sexta-feira, 25 de março de 2011

Entrevista a Élida Aragão – 23/3/2011, no quadro de sua monografia no curso de Comunicação Social/Jornalismo, Faculdade São Luís, São Luís, MA


As questões que se seguem são muito interessantes e bastante abrangentes. Nos limites de uma quase correspondência, minhas respostas são extremamente resumidas, sintéticas, simplificadas, portanto um tanto esquemáticas, omitindo aspectos, nuances e outras características que nos casos concretos fazem muita diferença. Algumas respostas remetem a trabalhos mais extensos que desenvolvi; outras se misturam um pouco, ligando mais de uma pergunta.

Qual sua concepção sobre o cinema, enquanto Instituição, espaço da coletividade?

A historiografia atual reconhece o cinema como instituição e o denomina justamente assim – e, o fazendo, distingue esse cinema das formas anteriores, “primitivas” (segundo Noel Burch) ou “de atrações” (Tom Gunning, André Gaudreault, etc) – a partir do início da segunda década do século XX e da institucionalização, padronização e hegemonização de formas e modos de produção, expressão, recepção. O cinema-instituição seria praticamente identificado com o modelo de cinema hollywoodiano, dominante a partir dessa época um pouco indefinida, por volta de 1914, uns anos a mais ou a menos.

O problema que vejo nessa compreensão é que ela meio que estabelece ou sugere um domínio estável e permanente do referido modelo, pelo menos até depois da segunda guerra mundial, senão até hoje. De certa forma, o cinema-instituição passa a ser o próprio cinema, ainda que estivesse implícita a destruição de formas alternativas de expressão audiovisual.

Eu penso que o cinema é fundamentalmente uma relação social, uma tensão sempre renovada entre a criação e a recepção, mediada pelo modelo econômico e social. É indiscutível que existe um cinema hegemônico, justamente instrumento de dominação e fabricação de consenso ideológico, e que se identifica aproximativamente em formas estéticas e em modelos de produção e de recepção institucionalizados, fundamentalmente no plano do mercado. Mas essa superestrutura é contraditória, dialética; sempre existem modelos alternativos que apontam para a superação desse padrão dominante. E essa antinomia é a expressão de uma contradição básica essencial, entre as classes sociais fundamentais, pelo domínio e direção da sociedade, e que faz parte de todas as etapas do processo do cinema e do audiovisual. Assim, o público (a forma contemporânea do proletariado, isto é, dos que não têm acesso aos meios de produção e representação audiovisuais) está presente em todos os momentos, especialmente da criação (até porque só o trabalho cria; o capital não: ele organiza e distribui): a hegemonia não é um estado permanente e estável, mas um processo contraditório.

O cinema-instituição se apoderou do mercado, mas paralelamente continuaram as vanguardas, os cinemas nacionais, as formas de resistência do público – das quais o cineclube é a instituição mais estável e generalizada. Dentro de cada filme essa dialética está presente, geralmente pela temática e narrativa ligada aos interesses do público, mas “controlada” pela orientação ideológica do Capital que controla a (maior parte da) produção. Mesmo os filmes hollywoodianos frequentemente retratam as corporações, os grandes financistas, o imperialismo, o racismo, segundo uma espécie de senso comum (ou bom senso) popular que é nitidamente anticapitalista. Mas, ao final, a ordem e a harmonia são recuperadas, em edificantes happy endings, preservando “o único sistema possível”.

De maneira muito resumida, o estabelecimento do cinema-instituição, o predomínio do modelo hollywoodiano, se deu justamente no quadro de uma luta muito concreta em que o público teve que ser coagido (censura, normas, etc), controlado (leis, estímulo à freqüência de segmentos mais abastados, “lanterninhas”, etc) e finalmente convencido (longa-metragem de ficção linear e literário). Essa batalha se deu principalmente entre o estabelecimento das salas fixas e o final da primeira guerra mundial, com a instauração inicial do controle do mercado mundial pelo cinema americano.

Durante essa batalha é que surgem os cineclubes, que vão se tornar os principais núcleos de resistência e de produção de outras instituições do público contra as estruturas do capital: vanguardas, crítica, cinemas nacionais, cinematecas, festivais de cinema, etc.

Segundo dados do IBGE/2008, somente 13% dos brasileiros vão ao cinema, e de forma esporádica. Na sua opinião, isso se deve a quê?

Meu texto O Modelo do Cinema Brasileiro (publicado como "O Modelo Brasileiro: um estrangeiro em nossas telas", em Moraes, Geraldo (org.) 2008. O Cinema de Amanhã – Brasília – Congresso Brasileiro de Cinema, Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural), pretende ser uma resposta a esta questão.

A desigualdade social é determinante para afastar o público do cinema? Por quê?

Como disse, esta questão está tratada com mais profundidade no ensaio O Modelo do Cinema Brasileiro. Modelo que é, na verdade, mundial, e o texto procura mostrar a maneira como o Brasil (e praticamente todo o Terceiro Mundo, sem grandes diferenças) se enquadra dentro dele. Para dominar o mercado mundial do audiovisual, com o ciclo de “janelas” de exploração dos produtos (cinema, vídeo caseiro, TV a cabo e TV aberta), Hollywood estabeleceu um modelo de custo elevadíssimo – que só se paga, justamente, na escala que apenas a indústria de Los Angeles pode explorar. Dentro desse padrão, o custo do ingresso de cinema é alto demais para o poder aquisitivo da maioria da população dos países menos desenvolvidos – o que não tem importância para o negócio, pois esses públicos entrarão em outras etapas do mercado. Mas é isso que exclui cerca de 90% da população brasileira do acesso ao cinema e percentuais até mais altos, chegando mesmo virtuais a 100% em certos países africanos onde praticamente não há mais salas de cinema.

No texto mencionado, mostro que nem sempre foi assim. Dos começos do cinema – que são essencialmente populares, de operários e imigrantes - até os anos 70, a estratégia foi outra e o ingresso era cerca de 20%, ou mesmo menos, do preço atual, gerando um modelo de consumo generalizado e popular.

Com o modelo atual, a maioria do público não está apenas afastado do acesso às salas, mas também ausente das objetivas, das histórias, narrativas (exceto como exotismo ou horror), dos estilos. E das políticas públicas.

Na literatura sobre cineclubismo se fala em prática cineclubista e movimento cineclubista, o que os distingue?

Literatura sobre cineclubismo? Você é bem otimista. Eu também sou, e acredito que estamos perto de começar a constituir uma, por causa de uma nova geração de pessoas interessadas, como você.

Movimento cineclubista designa a dimensão coletiva, integrada, da vontade e ação dos cineclubes em um determinado espaço e momento. Movimento, não é? Infelizmente são muito comuns, praticamente em todos os países onde existe cineclubismo, os períodos de desarticulação – em que os cineclubes diminuem extraordinariamente em número sem, no entanto, desaparecerem – intercalados com momentos de grande atividade, unidade e intervenção na realidade do cinema e da sociedade.

Exemplos de grandes momentos de movimento cineclubista são a década de 20 e o pós-II Guerra, na Europa; ou os anos 50 e 60, e a resistência à ditadura entre os anos 70 e começo dos 80, no Brasil. Por outro lado, coincidindo com a chamada globalização, nos últimos 20 anos do século passado, praticamente em todo o mundo houve um grande refluxo do movimento. É preciso, no entanto, ver com certo distanciamento esses exemplos mais óbvios, tanto num sentido como no outro, pois o cineclubismo é muito marginalizado pelos meios de comunicação e pelos ambientes acadêmicos, além de ser uma atividade essencialmente coletiva, que raramente revela “grandes nomes” para o interesse convencional das mídias e outros observadores. A história do cineclubismo – e do público - está toda por pesquisar.

Acho que práticas cineclubistas designam as atividades típicas de cineclubes. Christophe Gauthier (La passion du cinéma – cinéphiles, cinéclubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929 – Paris : Association française de recherche sur l’histoire du cinéma – 1999) fala no conceito de protocolo cinéfilo e o livro de Antoine de Baecque, A Cinefilia, recém lançado no Brasil, também propõe uma classificação de atividades, e mesmo de comportamentos e rituais, para se estudar o que eles chamam de cinefilia (que eu considero um conceito elitista, que não se confunde com cineclubismo; mas isso já é outra história). Mas, nessa linha de classificação, haveria certamente uma espécie de protocolo cineclubista, com práticas que surgiram da atividade cineclubista e são geralmente associadas aos cineclubes: o associativismo, as apresentações antes dos filmes, o debate, as publicações, as fichas de filmes, as sessões semanais, entre muitas outras. Mas a verdade é que quase todas essas “características” eventualmente deixam de estar presentes, não são praticadas (ver, sobre isso, O que é cineclube, em http://cineclube.utopia.com.br/e Hegemonia e Cineclube, em http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/ ). Hoje, no Brasil, há uma sensível mudança, que eu penso ser provisória e conjuntural (mas posso estar errado) e se dever à forte subordinação das iniciativas cineclubistas ao Estado, aos interesses dos realizadores individuais (em oposição à produção cineclubista, coletiva e despersonalizada) e, em última instância, ao individualismo e empreendedorismo que decorrem da ideologia do capital.

Nesse quadro quase desapareceram o associativismo como base de autonomia do cineclube e diversas práticas coletivas dentro do cineclube (alguns cineclubes alienam, ou privatizam sua própria programação – atividade justamente coletiva e democrática - a “curadores”, por exemplo. Mais adiante falaremos da “programadora” do Estado). O elo de unidade de ação nacional é hoje extremamente tênue e fortemente centralizado. O modelo de movimento, justamente, mudou, com raras instâncias de reunião, debate e ação comum dos cineclubes. O que não acontece em outros países.

Também expressão deste quadro, houve uma certa tendência a se falar em “práticas cineclubistas” em qualquer contexto (por exemplo, desenvolvidas por entidades como SESC ou prefeituras) no momento em que aconteceu o embate entre uma concepção do cineclubismo como essencialmente democrático e coletivo e a idéia de constituir (apenas) um circuito de exibição para o cinema brasileiro, em particular para o curta-metragem, no uqardo da instalação do programa Cine+Cultura, do ministério da Cultura. Esse conflito resultou no meu afastamento (início de 2009) da direção do movimento e da coordenação dos conteúdos da formação (oficinas) oferecida pelo Cine+Cultura, inclusive com a censura integral de um manual cineclubista que eu escrevera sob encomenda do Conselho Nacional de Cineclubes (veja minha carta de renúncia neste blogue, em postagens mais antigas). Depois disso a discussão desapareceu e hoje se estende o conceito de cineclube, de forma bem liberal – e o adjetivo é bem preciso –, a quase qualquer prática de exibição. Um exemplo recente foi um esboço de mobilização em defesa de um “cineclube” oprimido pela prefeitura de uma pequena cidade, que depois demonstrou, constrangedoramente, tratar-se de uma querela local entre um funcionário municipal - que era o “cineclube”, isto é, sessões de cinema oferecidas pela prefeitura – e a administração municipal, descontente com o desempenho do servidor público.

Qual a principal diferença do cineclubismo de ontem para o de hoje?

Esta pergunta é muito genérica. Há vários ontens e vários hojes, e em diversos aquis, em diferentes partes do mundo. Nos anos 80 (O Movimento Cineclubista Brasileiro, CC Fatec), esbocei uma idéia de trajetória de crescente democratização na história do cineclubismo no Brasil. Resumindo brutalmente: no fim dos anos 20, o Chaplin Club começou como uma iniciativa das grandes elites da Capital Federal que, entretanto, trouxe pela primeira vez um sentido real de cultura cinematográfica para o País. Nos anos 40, o Clube de Cinema de São Paulo já era uma iniciativa mais aberta (mas que ainda fazia alguns debates em francês...) e que embasou uma difusão muito grande do cineclubismo pelo Brasil todo, nos anos seguintes. A Igreja, nos anos 50, expandiu ainda mais o cineclubismo, ainda que o mantendo sob sua rigorosa tutela. No fim dos anos 50 e começo dos 60, a politização da pequena burguesia estudantil generosamente já tentava “levar a cultura para o povo”. Mas foi nos anos 70 que o cineclubismo brasileiro tornou-se principalmente expressão das maiorias, organizando-se nos bairros e junto a movimentos populares, sem intermediações ou tutelas.

Atualmente é essa tradição que anima, senão a maioria, pelo menos uma grande parte dos cineclubes em suas experiências concretas, no plano local. Mas acho que essas práticas transformadoras não se coordenam nem se expressam num plano mais amplo, mostrando que a trajetória a que eu me referira não era uma “evolução” determinista. Hoje há uma espécie de retrocesso: a direção política do movimento é muito dependente do Estado, subordinada à produção do curta-metragem e aos “setores médios” da população. De certa forma, de volta à ação de “levar filmes”, paternalisticamente, “ao povo”. Mas, como já disse, há um número muito significativo de ações criativas, inovadoras e efetivamente populares efervescendo em todos os cantos do País – só que sua voz não se expressa ainda efetivamente como um movimento renovador do cinema e da sociedade, mas mais como um circuito complementar da produção e de programas governamentais.

O cineclubismo atual tem um caráter mais inclusivo?

Como disse mais acima: não. Embora haja numerosas experiências fascinantes de inclusão das comunidades nas incríveis oportunidades que oferece a tecnologia digital, o traço médio, geral, do cineclubismo brasileiro é o de viabilizar a exibição da produção de curta-metragem, a qual não tem força para reivindicar os mercados principais.

Isso é conduzido sob um discurso “progressista”, sem dúvida, de defesa dos “direitos do público”, mas na prática reduz esses direitos apenas ao acesso aos filmes, não ao protagonismo do público nas políticas de cinema e cultura. Eu não conceituaria isso como inclusão, exceto numa acepção muito restrita, meio mercadológica (ainda que as estatísticas também sejam muito modestas).

A deturpação dos princípios (de defesa dos interesses do público) leva, inclusive à falácia da própria idéia restrita de acessibilidade. Recentemente a Programadora Brasil divulgou dados de sua atuação no último ano. Atingiu um público de 200.000 pessoas, entre abril de 2010 e março de 2011, trabalhando com mais de 1.000 pontos de exibição. Isto significa um público anual de cerca de 200 pessoas por ponto de exibição, ou menos de 20 espectadores por mês - com sessões semanais! É cerca de um décimo do público dos festivais de cinema, que ocorrem uma vez por ano e são pouco mais de uma centena em todo o Brasil. Equivale também a mais ou menos 0,15 por cento daqueles 10% da população que vão ao cinema (110 milhões de ingressos/ano). Eu penso que sessões que atraem estatisticamente (o que é uma mera abstração) 4 ou 5 pessoas em média por semana podem muito provavelmente ser conseqüência de uma programação dirigida de fora para dentro (não é à toa que a distribuidora estatal se chama Programadora), de acordo com interesses (gostos, inclusive) que não são os das comunidades em que são realizadas. É claro que a isso se soma a precariedade das exibições, sem conforto e qualidade, que correspondem ao padrão decorrente do projeto e do material distribuído pelo Estado, como menciono a seguir.

Seu olhar sobre as políticas públicas de incentivo à atividade cineclubista no Brasil.

Na Venezuela, a grande maioria dos cineclubes foi substituída atualmente por “salas populares” coordenadas pela Cinemateca nacional, que orienta sua prática, escolhe e programa os filmes. É um modelo com aspectos positivos, mas fundamentalmente autoritário (paternalismo e autoritarismo são expressões da mesma subalternidade reservada ao público); o Estado substitui a iniciativa popular. Estatiza a iniciativa popular – e essa foi uma das causa mortis dos governos socialistas, nos anos 90 do século passado.

Guardadas as proporções – o Brasil tendo uma situação política geral simultaneamente mais conservadora, mas também mais liberal – é o que se está tentando implantar no Brasil. Talvez meio como farsa. O Estado venezuelano tem um projeto político nacional, também com traços de autoritarismo, e um ambiente político-social extremamente polarizado, em termos de classes, que se expressa também nessa política que poderíamos identificar como “cineclubista” (mas que não o é). Já os projetos do nosso MINC não são propriamente do Estado, que os viabiliza (também através da Cinemateca), mas de um segmento que hegemonizou aquela área: os chamados curta-metragistas ou abedistas. A brasileira Programadora Brasil não escolhe os filmes diretamente, “apenas” seleciona um corpus, um repertório de filmes, e estabelece regras rígidas para sua exibição (limita o número de filmes e sessões, combate a itinerância das projeções, entre outros exemplos). O programa Cine+Cultura, que distribui equipamento básico de projeção, descaracterizou a formação dos animadores locais em detrimento da integração ao sistema estatal. De forma mais mediada que na Venezuela, há um direcionamento para a exibição de curtas-metragens selecionados pelo governo, a partir de uma estrutura paupérrima (para não retirar recursos da produção) que, na maioria dos casos, não se estabiliza e não tem condições autônomas e permanentes de se sustentar. Reproduz e eterniza a dependência do “Estado” – que no Brasil está mais para “governo”, podendo suspender seu frágil apoio a qualquer momento, até por mudanças superficiais na gestão das instituições governamentais.

Mas, como na Venezuela, é melhor que nada. Ou não? Mesmo tendo um espaço de expressão maior, as entidades cineclubistas brasileiras não questionam em nada essas políticas (sequer demandam melhorias ou mais recursos), levadas totalmente a reboque pelas iniciativas do Estado e da produção.

É possível utilizar o cinema, por meio da prática cineclubista, como forma de inclusão cultural e mudança social de uma comunidade? Se sim, de que forma?

Cinema é um termo polissêmico. A gente pode ir ao cinema, pensando principalmente na sala, mas também na metáfora das sensações que um abstrato cinema nos proporciona através de cada filme concreto.

Esse processo geral e abstrato do cinema é determinado por relações sociais, estas sim concretas e muito variadas. O cinema não é progressista ou conservador, não muda nem conserva nada. As relações entre filmes concretos e espectadores concretos podem fazer isso. E estas podem se dar dentro de um sistema de relações (econômicas, políticas, psicológicas, etc) montado para privilegiar determinadas relações sociais e suas manifestações no plano ideológico; é o que o conceito de cinema-instituição descreve ou o que chamo de “modelo de cinema” em cada lugar e conjuntura.

Diz-se que a atmosfera relaxante, a obscuridade das velhas salas de cinema contribuíam para a identificação com um universo fictício e geralmente destituído de contradições; ou que o ritmo frenético de planos curtos dos efeitos especiais concorrem para a distração e alienação. Na linha saudosista, eu mesmo ouvi um monte de depoimentos de pessoas que “descobriram um novo mundo” nas sessões do cineclube da sua cidade ou comunidade, fora dos horizontes estreitos promovidos pelo cinema comercial e pela “sociedade” local. Os cineclubes muda(ra)m as vidas de muita gente.

Mas o mais importante é que os cineclubes são organizações do público, instituições do público organizado. São seu instrumento político, no sentido mais amplo possível – que vai do sentido gregário (pólis) à disputa do poder – para participar e influir decisivamente no processo do cinema. Hoje em dia, dado o modelo de que falamos, essa participação inclui a também a noção de acesso, dificultada pelo status quo. Mas não se limita a ela, ou não deveria.

Os cineclubes não são um segmento corporativo do cinema, como a produção, a distribuição ou a exibição, entre outros. Ainda que organizações políticas e representativas, não são uma representação de interesses econômicos e/ou profissionais determinados, mas sim das necessidades difusas do público, da comunidade, em torno do audiovisual. E este é suporte, meio, mediação, etc. Os cineclubes são um segmento da sociedade, um movimento social, não uma “classe” profissional. Isto já estava implícito quando Louis Delluc cunhou o termo cineasta, no começo do século, referindo-se não ao autor ou artista colocado num pedestal, mas ao praticante de cinema integral: espectador crítico, produtivo e criativo. Ou, parafraseando Gramsci, “todo homem é artista, mas apenas uns poucos assumem esse papel n(est)a sociedade”.

Ora, o principal meio de, justamente, mediação das relações sociais no plano simbólico é hoje o audiovisual (do cinema à internet, passando pela TV), que atinge, aproxima, e busca integrar e controlar praticamente a totalidade da população mundial. Quando falamos em público estamos nos referindo ao que os teóricos cineclubistas italianos dos anos 70 (Filippo Maria de Sanctis, Fabio Masala) chamaram pela primeira vez de “proletariado moderno”: o conjunto dos desprovidos dos meios de produção e representação simbólicos (ver também Beller, Jonathan. 2006. The Cinematic Mode of Production: Attention, Economy and the Society of the Spectacle. Hanover: Dartmouth College Press).

O cineclube é a única instituição estável, permanente e generalizada criada até agora com o escopo de organizar e representar esse público audiovisual. É evidente que os cineclubes são fragilíssimos (mas o próprio movimento sindical não é hoje uma sombra de seu papel em ocasiões pretéritas?) – exceto em alguns momentos históricos -, mas constituem o modelo institucional e organizacional do público, encarnam essa potencialidade de superação da alienação constituinte e disseminada pelo modelo comercial, capitalista, de cinema e de audiovisual. Os cineclubes são o embrião unificador do processo cinematográfico a partir do público, isto é, da totalidade da população explorada e alienada pelo Capital e pelas classes sociais a ele associadas.

Em determinados momentos históricos, os cineclubes crescem em importância e força, transformando concretamente não apenas o cinema (o neo-realismo italiano, a onda de nouvelles vagues, cinemas novos – incluindo o brasileiro -, cinemas-verdades do pós-guerra são todos originários do movimento cineclubista – assim como a maioria dos cinemas nacionais dos países menos desenvolvidos), mas toda a sociedade, sendo parte de processos de democratização e de justiça social que geralmente acompanhavam (ou vice-versa) as renovações dos cinemas.

Num quadro em que o audiovisual ocupa papéis cada vez mais importantes nas relações sociais, a potencialidade do cineclubismo – e de novas formas de cineclubismo - como movimento representativo do público só cresce.

E é importante lembrar que, por suas contradições internas – que o definem – o modelo hegemônico de cinema abandonou a exibição em salas de cinemas como seu principal instrumento de difusão, levando a esta situação de exclusão da maioria quase absoluta das populações de países menos avançados, como o nosso. Penso que mais que os aspectos negativos associados a esse quadro, essa condição constitui uma real oportunidade de ocupação de espaços sociais e do imaginário por parte do público. Os cineclubes pode(ria)m ocupar esse espaço de 90% ou mais da população que já não conhece cinema, a não ser as produções americanas mais recentes, em telas mínimas, entremeadas de interrupções publicitárias.

Para quem, como eu, acredita que as transformações sociais decorrem da tomada de consciência dos excluídos e de sua capacidade de formular e expressar sua visão de mundo, o cineclube é virtualmente o ambiente, ferramenta e arma para desenvolver essa auto-consciência do público.