sábado, 22 de janeiro de 2011


Gouveia: intelectual orgânico cineclubista

Alguns companheiros me pediram para escrever alguma coisa sobre a morte do Gouveia. Algo que ligasse a figura, a vida, a militância dele a um sentido mais geral do cineclubismo, um pouco além do elogio fúnebre. De fato, as lembranças pessoais, afetivas, na imprensa e nos diversos comentários dos que o conheceram, até as notas mais completas, ou formais, como a do Conselho Nacional de Cineclubes, traçaram um retrato sucinto, mas relativamente completo, do nosso companheiro. Mas retrato mesmo, imagens sem muito movimento, produzidas frequentemente na dor, no choque, que ainda não é saudade, e na correria que sempre marca esses anúncios funerários que também procuram reunir as pessoas fisicamente numa última homenagem: o enterro.

Dureza de tarefa. Fui muito amigo do Gouveia. É difícil separar os tantos sentimentos pessoais de perder uma pessoa muito próxima. Por outro lado, entrando no próprio regime de prestar uma homenagem ao amigo, vou incorporando o traço intelectual mais marcante do Gouveia: ele foi um dedutivo, um teorizador, um facundo. Como os amigos sabem, às vezes até o limite da exasperação. Minha conversa telefônica mais curta com o Gouveia, em quase 40 anos de amizade e militância, durou 45 minutos; não era raro passarmos – eu e ele, mas também qualquer outro interlocutor presente e disposto – a noite, e até mais, discutindo. Sem falar das reuniões do CNC, no final dos anos 70, que duravam dias sem interrupção, mas isso é outra história na nossa imemória...

Então, afinal, assumir essa subjetividade me coloca um pouco em sintonia com o espírito do Gouveia, e “espírito”, a identidade do amigo ausente, é exatamente a materialidade do que ele deixa de si, o valor não tangível do que ele representa para nós e, no caso do Gouveia, o que ele representa para o movimento cineclubista. Sua contribuição que permanece e modifica nossa história. Um sentido materialista de permanência histórica, pobre sucedâneo da eternidade metafísica...

E, chegando ao final de uma primeira página, já me sinto meio que um herdeiro, um gouveiano, um loquaz nadando contra uma certa maré twitterante, simplificadora, que tenta afogar reflexões - como as do Gouveia -, mais longas, profundas, dialéticas. Tenta mas não consegue, porque as marés refluem, como é da sua essência. O Gouveia estava mais para rio, corrente, às vezes frenético e caudaloso, outras pesado, lento, mas que nunca deixará de fluir. E meu “longo” texto, comparado com os papos do Gouveia, é um magro igarapé, alimentado também por algumas lágrimas que me surpreendem ao pensar no velho amigo.

Panteão orgânico

As nações, as culturas, as comunidades de diferentes naturezas, ao construírem, reconhecerem sua identidade, projetam-na em conjuntos de fatos, pessoas, mitos, que perduram na memória coletiva e cimentam o reconhecimento do que lhes é comum. Os gregos tinham um templo para todos os deuses: o panteão. Nações reúnem – e enterram – seus heróis num grande edifício comum que recebe o mesmo nome. A palavra caiu na linguagem comum para denominar esse conjunto de figuras importantes, centrais, que identificam qualquer comunidade: panteões de atletas, de artistas, cientistas, políticos, e por aí vai... Mas um panteão não é só uma lista, um elenco sem qualificação. Num panteão entram apenas os mais significativos, não tanto os mais famosos, mas os mais dignos, em algum sentido. Bom, claro que isso também é muitas vezes depreciado.

Muita gente associa certa idéia de panteão ao cineclubismo, na sua acepção mais vulgar que, aliás, também é a da Academia: a da “idade do ouro” do cineclubismo, que precede imediatamente a Nouvelle Vague parisiense. Um dos traços marcantes, efetivamente, das turmas de cinéfilos mais notáveis[i] daquela época, era o estabelecimento de “panteões” de cineastas, que inclusive as dividiam: o pessoal dos Cahiers com Hitchcock e Hawks, entre outros, ou os macmahonianos[ii] com Lang, Walsh, Losey, Preminger, para ficar só em dois exemplos. Esses ritos e comportamentos também tiveram sua voga por aqui...

Panteão é, portanto, um espaço identitário. Também é, em sentido mais ou menos extenso, ideológico. Isso é claro não apenas em picuinhas cinéfilas, mas sobretudo nos panteões nacionais, que frequentemente constroem a história dos povos em torno de representantes das classes dominantes de todas as épocas: chefes militares, dirigentes políticos (inclusive tiranos, genocidas...), empresários, intelectuais.

Por que intelectuais? Recorro à explicação de Gramsci: os intelectuais são os “funcionários da superestrutura”, os especialistas não ligados diretamente à produção econômica – e por isso aparentemente autônomos em relação às classes sociais – que garantem a continuidade e a hierarquia das instituições que reproduzem a vida social: Igreja, Universidade, Justiça, Meios de comunicação, etc. Desses intelectuais tradicionais ou “eclesiásticos” disse o pensador italiano que a “distância entre estes e o mundo da produção cria neles a ilusão de serem autônomos em relação à máquina econômica vigente: é a veleidade da "autoposição" comum entre acadêmicos, juristas e burocratas”[iii].

Mas Gramsci não tem uma concepção tradicional do intelectual. Como disse muitas vezes, “todo homem é intelectual”, “não se pode conceber uma pessoa não-intelectual”, mas “nem todos exercem essa função na sociedade”. O intelectual não é apenas o acadêmico, o homem de letras, o artista, mas todos que têm uma função de direção e organização na esfera das relações sociais. Ele fala, então, de outra categoria: a dos intelectuais orgânicos. Estes são os que laboram o cimento ideológico das diferentes classes ou blocos de classes sociais. Muitos se identificam e aderem à perspectiva das classes subalternas: são os que sustentam e dirigem organizações populares de todo tipo – entre as quais os cineclubes – elaboram e conduzem a disputa ideológica e ética no plano do Estado e das instituições. São os intelectuais (independentemente de sua origem social) que se “descolam” das classes dominantes, se identificam e se ligam organicamente com as classes populares. O público do audiovisual é hoje uma das formas de se descrever o conjunto ou o bloco das classes subalternas. E a forma mais acabada do intelectual orgânico é o militante consciente (porque também há formas de adesão psicológicas, emocionais, etc).

Para o cineclubismo, construir um panteão de intelectuais[iv] orgânicos é parte essencial da consolidação da nossa identidade própria (a eventual redundância vem para reforçar a idéia de que não somos mero apêndice das “classes” artística ou cinematográfica - que não são classes, mas estamentos de funções sociais definidas), do auto-reconhecimento do movimento como forma de organização do público (este sim, como escreveu Fabio Masala: o “proletariado moderno”) e da recuperação de uma memória coletiva identitária.

Intelectual cineclubista orgânico

Como erigir esse panteão orgânico a partir de um movimento como o nosso, feito de tantas dificuldades, de dedicações e sacrifícios quase anônimos, numa prática que é mais frequentemente perseguida que estimulada, que se define por não ter fins lucrativos e que nós mesmos confundimos com não ter condições de sustentabilidade independente? O cineclubista, o militante que toca o trabalho de forma desinteressada é, nos termos de Gramsci, por definição um intelectual. Na maioria, intelectuais ligados aos interesses do público. Intelectuais orgânicos, numa apreciação genérica de sua função em relação ao bloco de classes que constitui o público do audiovisual.

Mas isso enquanto função, enquanto batalham, militam no cineclubismo. Historicamente, estatisticamente, a imensa maioria dos cineclubistas abandona nossa atividade depois de determinados períodos em suas vidas, vai dedicar-se às mais variadas atividades. Uma pequena parte no campo do audiovisual - mas quase sempre numa perspectiva individual -, a maioria em outras áreas. Em certas épocas e regiões o cineclubismo é mesmo mais ou menos identificado com a juventude ou mesmo com a adolescência. E isto não é nenhuma avaliação moral ou de outra ordem, é apenas uma constatação, de resto indiscutível. Acredito, inclusive, que vivemos um momento em que essa “tendência” tende a diminuir, talvez pelo próprio crescimento dos elementos de consciência do cineclubismo como instituição do público, que não poderiam se apresentar da mesma forma em outros momentos da história – isto é, antes dos meios de comunicação tornaram-se mediadores das relações sociais e políticas, de o audiovisual constituir-se como principal elemento dessa mediação e o público do audiovisual identificar-se com o bloco de classes subalternas, excluídas do poder.

Retomando o raciocínio, o cineclubista orgânico seria, então, aquele que mantém uma relação permanente com o movimento cineclubista. Aquele que é cineclubista, não que está cineclubista. Que compreende e se conduz na vida prática, a partir de uma visão de mundo (que é consciência de classe) do público; que encontra os interesses do público nas diferentes áreas da vida: no trabalho, na política, na sua subjetividade.

Esses são muito poucos. Mesmo se considerarmos que as classes subalternas, justamente, têm menos meios e oportunidades para reconhecer esses “heróis” do seu panteão[v]. Paulo Emílio, Carlos Vieira, Cosme Alves Neto, Luís Orlando são os que me ocorrem – mas evidentemente esta é uma avaliação pessoal, subjetiva, improvisada neste momento e muito influenciada pelo fato de ter convivido com eles. E não cito os vivos. Certamente há outros nomes que, justamente, o trabalho de pesquisa da identidade cineclubista irá revelar. Mas, sem dúvida nenhuma, o Gouveia, o Antonio Gouveia Júnior é parte desse time histórico.

Transcendência histórica

Penso que consegui estabelecer essa ligação entre o compromisso permanente e inabalável do Gouveia com a identidade mais profunda do cineclubismo e do cineclubista. Colocadas nessa perspectiva, algumas das contribuições do Gouveia na trajetória histórica do cineclubismo brasileiro encontram uma contextualização mais clara e revelam melhor seu alcance e importância. E os traços de personalidade dele, bem marcantes, também encontram lugar, acho, numa ética cineclubista, num comportamento engajado, e num compromisso que nunca cedeu nem à ameaça nem ao aliciamento.

Advogado bem sucedido logo depois de concluir o curso de Direito, o Gouveia abandonou a profissão, desgostoso[vi], por uma atividade profissional mais engajada, o jornalismo. Mas foi sempre o advogado do movimento – não o tradicional, mas o que nos ensinava o sentido das relações políticas implícitas nas questões jurídicas e nos aparelhava concretamente para enfrentá-las. Ele sempre disse que o direito não era, em última instância, uma técnica, mas uma relação política. Aprendi, como um rábula, a fazer estatutos com o Gouveia, que me ensinou – e a muitos outros – enquanto preparávamos os primeiros estatutos da reconstrução do CNC (1973/74) e da Federação Paulista (1975).

O Gouveia também foi uma figura marcante em algumas das Jornadas mais importantes da nossa história. Em 1978, em Caxias, a maior Jornada até hoje, marcada por uma disputa memorável entre os defensores do “nacional-popular” e os do “internacionalismo proletário”[vii]... O Gouveia, editor de política da sucursal d’A Gazeta Mercantil em Brasília, vinha quase incógnito para esses encontros, sob pena de perder suas credenciais, fornecidas pela polícia, para cobrir o Congresso. Em 1980 o Gouveia foi a “alma” da Jornada: fez um discurso inesquecível no sentido de preservar a minoria – numa Jornada em que o campo majoritário ficou muito forte - que se manteve como um princípio para o cineclubismo. Por outro lado, na mesma ocasião ele também fez uma proposta de organização da discussão dos estatutos do CNC, baseada em ritos do Congresso Nacional, que provocou uma enorme e engraçada confusão.

O Gouveia foi o motor inicial e a direção moral da organização do movimento em Brasília, naqueles tempos, e da constituição de uma forte Federação local, que articulava grande parte das relações do movimento com o governo federal – isto é, a ditadura, a repressão. Ou seja, eram relações de defesa e de resistência, bastante complexas e mesmo perigosas.

A participação do Gouveia no desenvolvimento do projeto da Dinafilme dá um capítulo importante da nossa história, mas eu queria lembrar especialmente seu papel nas invasões da sede da nossa Distribuidora pela Polícia Federal, em 1977 e 1979. Uma coincidência “curiosa”, eu era presidente da Federação Paulista (responsável pela sede central da Dinafilme) na primeira invasão, e presidente do CNC na segunda. O “chefe das operações” nos dois casos foi o delegado José Vieira Madeira, chefe do DCDP em São Paulo em 1977 e diretor nacional em 1979. Ou seja, nos enfrentamos “promovidos”, em ambos os casos. O Gouveia me acompanhava sempre em todas as reuniões que tivemos com o Madeira. E o policial, desde o primeiro evento, desenvolveu um verdadeiro ódio, muito especial, por nós dois. Em 1977 foi uma derrota: não havia possibilidade de divulgar a invasão, a repressão era praticamente integral no País. Dezenas de filmes foram apreendidos e depois guardados na Cinemateca que se comprometeu a não permitir a sua circulação nos cineclubes[viii]. Mas em 1979 foi bem diferente. Houve uma imensa mobilização nacional dos cineclubes e da sociedade civil (lembro que o CNC tinha mais de 600 cineclubes filiados e a Dinafilme trabalhava com mais de 2.000 pontos de exibição de movimentos populares e comunitários) e já havia sido restaurada a liberdade de imprensa. Para encurtar uma história bem mais longa e divertida, o Gouveia coordenou nossa campanha na imprensa, que inclusive envolveu um debate com a Polícia Federal, que reduzimos ao ridículo pública e nacionalmente. Ele também organizou e encaminhou as ações em Brasília, conseguindo uma audiência com o ministro da Justiça – o famigerado Petrônio Portella – em que este acabou cedendo e mandando o Madeira (que se recusava a dialogar comigo ou com o Gouveia) me receber e devolver nossos filmes. O que aconteceu na mesma noite, fora do expediente: um chefe da Censura humilhado recebeu o presidente do CNC para cumprir as ordens e devolver os filmes. Foi um dos melhores momentos da minha vida. Não teria acontecido sem a ação decisiva do Gouveia que, como sempre, fez questão de não aparecer, se promover.

Outra intervenção discreta fundamental do Gouveia foi em torno da minha participação, como presidente do CNC, na assembléia da FICC de 1979 (quando fui eleito para o Comitê Executivo). Simplificando a burocracia da época, eu precisava de uma autorização da Embrafilme para poder sair do País. O diretor de Operações Não Comerciais, o atual secretário municipal de Cultura de São Paulo (o mesmo que dirigia a Cinemateca na primeira invasão da Dinafilme), não autorizou. Mas o Gouveia conseguiu junto aos outros diretores da Embrafilme – o presidente, Celso Amorin, e o diretor administrativo Samuel Pinheiro Guimarães – que aplicassem sua autoridade maior e permitissem minha viagem. Sem o Gouveia, o Brasil não teria participado daquela assembléia nem teria entrado na gestão da FICC, então presidida por um velho cineclubista meio conservador, François Truffaut...

Em 1980, o Gouveia fez a proposta básica da Resolução do Concine (uma espécie de ANCINE da época) que reconheceu não só os cineclubes, mas suas entidades representativas (isso foi fundamental para proteger as entidades durante a ditadura). Em plena ditadura, o texto é bem mais avançado que o da atual Instrução Normativa da Ancine que, contudo, é baseada naquele.

A proposta do Gouveia – e isto é um marco histórico – envolveu a criação do conceito jurídico de “taxa de manutenção”, que por si só demonstra e assegura a possibilidade do cineclube se manter economicamente, independentemente, e sem ser tratado como empresa comercial. Um conceito que será sempre uma referência jurídica para nós, e não apenas no Brasil, pois tem um caráter universal. Infelizmente, nesta época de gratuidade das práticas cineclubistas e dependência do Estado, o alcance do conceito e dessa conquista andam bastante comprometidos.

O Gouveia, como já disse, tem um papel fundamental no desenvolvimento da Dinafilme. Seu acompanhamento era diário, permanente, e não cabe numa rápida reminiscência como esta. Mas certos elementos pontuais são essenciais na reconstituição da experiência da nossa Distribuidora e, neles, o Gouveia foi decisivo. É o caso do Cineclube do Sindicato dos Jornalistas, que ele criou e animou (mas não presidiu, claro, pois ele nunca “aparecia”...) em momentos históricos do próprio País: o Sindicato era uma frente e uma vitrine da resistência civil à ditadura, local de promocão de eventos importantes na trajetória de reconquista da democracia no Brasil. Um desses elementos foi o cineclube do Sindicato. Mas, além e integrado a esse papel de resistência e propaganda, o cineclube dos jornalistas foi também uma sala – e um projeto – experimental da Dinafilme. Procurando uma “profissionalização” da nossa ação, isto é, uma organização que permitisse nossa sustentabilidade e independência, a Dinafilme passou a organizar “lançamentos” de filmes: eventos mediatizados, acompanhados de peças de publicidade (cartazes e folhetos criados junto com outras organizações, como o Clube de Criação), promovidos em várias sessões. O sucesso foi enorme: filmes como Greve!; Trabalhadores, presente!; Braços Cruzados, Máquinas Paradas, entre vários outros, foram lançados pelo e com o Gouveia, repercutindo bastante e tornando-se “sucessos” entre os cineclubes, seu grande público, e na luta pelas liberdades democráticas.

Foi nessa trajetória que a idéia do Cineclube Bixiga se desenvolveu[ix]. Capítulo mais conhecido, me limito a lembrar que indiscutivelmente foi o Gouveia, entre vários colaboradores (particularmente Frank Ferreira e Arnaldo Vuolo), o grande responsável pela viabilização do cineclube que mais influenciou o cinema no Brasil nas últimas décadas. Como tudo se liga neste mundo, com a saída do Gouveia, o Bixiga acabou indo parar nas mãos de um certo André Strum, que pouco depois fechou o local.

Os anos seguintes – a década de 90 - foram de refluxo do cineclubismo. Mas o Gouveia estava lá, acompanhando o Elétrico Cineclube e, profissionalmente, assessorando primeiro o Circuito Estação, depois sua dissidência comercial, o Circuito Arteplex Unibanco, que todos reconhecem terem origem na adaptação empresarial do modelo do Cineclube Bixiga, passando pelo Cineclube Estação, do Rio de Janeiro.
Mais recentemente, o Gouveia acompanhou também o projeto PopCine, freqüentando a sala Maria Antonia e tentando ampliar nossas ligações com os meios empreendedores do cinema. Nestes últimos anos de vida, o Gouveia também era participante regular e colaborador do Cineclube Baixa Augusta e do Centro Cineclubista de São Paulo, dirigido pelo seu velho amigo, Diogo Gomes dos Santos.

Vaidoso, de alguma forma, como todo mundo, um traço marcante do Gouveia é que ele nunca aparecia, nunca cobrava os louros ou dividendos de tanta coisa que não teria sido sem a sua intervenção. Chega a ser engraçado: conheço muita gente que hoje coloca em suas “biografias” ter sido, por exemplo, fundador do Bixiga...

O Gouveia era um falador incontrolável, até prolixo. Eu dizia que ele pensava com a mesma velocidade com que falava: seus raciocínios tinham um encadeamento lógico que não incluía elipses nem formas sintéticas. Isso era longo, às vezes cansativo, mas formava, habilitava o interlocutor a compreender, reproduzir e utilizar o que aprendia com ele. E o Gouveia nos ensinou – aos que com ele conviveram – muita coisa, muita coisa essencial.

Foi um caso raríssimo de alguém que se dedicou a vida inteira, sem jamais se desligar do cineclubismo, e sem qualquer ganho ou vantagem pessoal, que ele desprezou eticamente como ninguém. O Gouveia era comunista, no sentido que isso tinha nos anos 60 e 70 (e não pode ser compreendido no contexto atual), mas a expressão desse engajamento foi muito pouco partidária: como no conceito gramsciano, o Gouveia sempre trabalhou com um “príncipe moderno coletivo”, mais amplo que os grupos que não conseguiam, como não conseguem até hoje, unificar e representar uma vontade coletiva consciente. É possivelmente por isso que ele foi mais cineclubista do que qualquer outra coisa. Aliás, foi ele que me mostrou a passagem em que Paulo Emílio Salles Gomes dizia mais ou menos o mesmo, considerando-se, afinal, ele também, fundamentalmente um cineclubista.

Gouveia foi conseqüente, perseverante, militante. Raro. Lágrimas vêm aos meus olhos quando penso que ele faz parte daqueles pouquíssimos heróis que devem habitar um panteão do cineclubismo brasileiro. Quando penso, quase vejo que ele na verdade já está lá, num papo animadíssimo com Plínio Sussekind, Paulo Emílio, Carlos Vieira, Cosme, Luís Orlando...

Quem não conheceu o Gouveia pode vê-lo no documentário de longa metragem Caminhos do Cineclubismo, do Diomédio Piskator – único em sua categoria.

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[i] Nas décadas de 50 e 60 a França tinha milhares de cineclubes. Os estudiosos de uma certa “cinefilia” interessam-se apenas por uns poucos grupos parisienses mais ou menos identificados com as revistas Cahiers du cinéma, Positif, Présence du cinéma.
[ii] Grupo que frequentava a sala de cinema MacMahon.
[iii] Citado por Alfredo Bosi – “Os Apontamentos de Gramsci” - Folha de São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 1, acessível em http://www.acessa.com/gramsci/
[iv] Já que nossos grandes nomes não incluem chefes militares ou outras especialidades menos “intelectuais”
[v] Os cineclubes têm uma função central na identificação, documentação e promoção dessas personalidades em suas comunidades e no seio do público em seu sentido mais amplo. Ver Ocupar e reorganizar o espaço audiovisual, disponível nos arquivos da lista cncdialogo
[vi] Ele me contou que, num de seus casos, acabou sendo pago com ativos de uma fábrica de fogões: virou patrão. Ele simplesmente abandonou a empresa aos outros sócios.
[vii] Esta é outra história para se contar, se pesquisar: a história das Jornadas.
[viii] Uma das referências a esses acontecimentos pode ser encontrada na tese de Carlos Roberto de Souza, A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil, disponível em http://www.mnemocine.com.br/
[ix] Sobre isto, os cineclubes BIxiga e do Sindicato dos Jornalistas, ver Da Distribuição Clandestina ao Grande Circuito Exibidor (http://cineclube.utopia.com.br/ )