sábado, 27 de julho de 2013

Exibição de A Comuna (1914, Cinema do Povo) pelo Cineclube Latino-Americano no centenário do cineclubismo (Memorial da América Latina, 14/07/2013)


Cem Anos de Cineclubismo
ou a presença do público no cinema
(publicado na revista América Hoy, no. 2, julho 2013 - Memorial da América Latina)

Ausência do público no cinema

Nos estudos acadêmicos sobre o cinema existem as mais diversas abordagens: da linguagem, da narração, do processo cognitivo, psicanalítico, entre outros. O público, porém, não aparece. A recepção, como já aponta o conceito, é ato passivo, determinado sobretudo pela obra que exerce sua influência sobre o espectador. E o espectador, por sua vez, é uma abstração generalizante que, desconhecendo os diferentes contextos culturais, sociais, históricos, se impõe como paradigma. Significativamente, essa abstração tende a ser calcada num espectador ocidental, branco, masculino, de classe média e mesmo cristão. O público, ao contrário, é contexto concreto, não individuação abstrata.

No plano sociocultural, das políticas públicas por exemplo, o público também só é considerado como objeto, nunca sujeito. Faz-se políticas para ele, nunca com ele. Ele não tem voz na política: conselhos, câmaras e outras formas de participação da sociedade civil na elaboração de programas para o cinema e/ou o audiovisual em geral têm representantes de produtores, distribuidores, artistas – e mesmo de numerosos subgrupos de interesse, como diretores, documentaristas, técnicos – mas não do público. Consagra-se e consolida-se a visão do público como massa indistinta de espectadores praticamente incapazes, consumidores inconscientes, receptáculos inermes de catequeses, autoritarismos, propagandas. Objeto, nunca sujeito.

Mesmo a semântica que impregna os usos da relação entre cinema e público é significativa: plateia, assistência, auditório; espectador, ouvinte, consumidor. Parece que só a palavra público tem uma conotação mais ativa, comporta responsabilidade e capacidade coletivas.

Cinefilia

Cinefilia é uma espécie de ramo do cinema que vem sendo estudada de uns tempos para cá. A julgar pelo número de publicações – ainda um fenômeno mais dos países desenvolvidos – a cinefilia está meio na moda. O termo é uma construção híbrida que pretende descrever o amor, o gosto pelo cinema. Mas que amor é esse? Nos anos 10 do século passado, um terço da população estadunidense ia ao cinema toda semana; na década seguinte, a metade de todos os americanos. Não seria isso uma forma clara de amor ao cinema, de cinefilia? Segundo depoimentos, nos anos 50, certas chanchadas ou alguns títulos do Mazzaropi eram vistos por mais de 15% da população brasileira. Isso era cinefilia?  A idéia de cinefilia que passou para a posteridade, no entanto, foi mais a de uma apreciação “culta” do cinema. Culta no sentido de que era característica de especialistas, supostos conhecedores de cinema que se diferenciavam da massa de frequentadores. Essa diferenciação se localizava frequentemente na capacidade de produzir textos mais elaborados – de onde a crítica, que veio a se estabelecer até como profissão – e no fato de alguns desses espectadores se notabilizarem, justamente por seus escritos ou por fazerem seus próprios filmes. Mais uma vez se fazia do público massa; e dos sinais evidentes da sua participação, selecionava-se uma elite: os cinéfilos connaisseurs. Assim, a cinefilia seria um fenômeno típico dos anos 20, com as vanguardas cinematográficas francesas principalmente. Ou dos anos 50 e 60, com as revistas parisieneses Cahiers de Cinéma e Positif, e a produção que surgiu daqueles grupos, a Nouvelle Vague. Cineclube seria uma espécie de templo desse culto, a cinefilia. Logo, o mesmo raciocínio situava o surgimento dos cineclubes naquela primeira época dos anos loucos e identificava o pequeno grupo de cineclubes parisienses que deu origem às revistas de cinema já citadas como “a idade do ouro” do cineclubismo. No entanto, nos anos 20, muitos dos primeiros “cinéfilos” cultuavam os filmes mais populares da época, como as aventuras seriadas de Fantômas, Judex ou da vamp Musidora. Assim como nos anos 50 seguia-se todos os chamados peplums italianos, de heróis como Maciste e Hércules... Os cineclubes que deram origem aos Cahiers e Positif eram uma meia dúzia em Paris, em meio a alguns milhares de cineclubes que se espelhavam pela França na época, sobretudo nos meios mais populares. Também nos anos 20, ao lado das sessões chiques promovidas por Louis Delluc ou Ricciotto Canudo, vários clubes de bairro ou a rede de “Amigos de Spartacus” exibiam e debatiam cinema em termos bem mais populares e desde bem antes...

Cineclube como organização do público

Em outras palavras, cineclube não é uma reunião de especialistas, mas uma organização quase espontânea do público, que reage e busca ter voz num cinema em que frequentemente não se reconhece. Desde o início das projeções – e mesmo antes do cinema, com as lanternas mágicas – principalmente nos ambientes mais populares, com menos acesso a meios mais tradicionais de educação e cultura, já se usava as imagens para ilustrar palestras educativas, de proselitismo político ou religioso. Essas atividades se desenvolviam principalmente em associações e clubes populares e têm origem em ações de ajuda mútua, de organização política e estímulo cultural que vêm desde meados do século XIX. Ali estavam as primeiras sementes do cineclubismo que comemora este ano seu centenário formal.

Com a massificação do cinema a partir das salas fixas, de 1905 em diante, seu público inicial era fundamentalmente proletário e imigrante, e as salas – os famosos nickelodeons onde o ingresso custava 5 centavos – simples, pobres e localizadas em bairros populares. Mas os filmes apresentavam o ponto de vista dos empreendedores capitalistas: assumiam uma temática próxima do gosto dessas modernas massas da cultura, o tratamento, no entanto, era seu oposto: a ridicularização do imigrante, o combate e censura às conquistas sociais, até mesmo (um pouco depois) a repressão ao público com uma força de polícia própria – origem dos lanterninhas uniformizados que marcarão épocas posteriores do cinema.

As salas de cinema eram locais de manifestações ruidosas, com o público cantando, vaiando, participando enfim de várias formas – e várias delas organizadas, como as siffleries (apitaços) parisienses. Desde essa época começam a surgir alternativas para um cinema que não mostrava e não representava os interesses daqueles públicos. Organizações operárias, entre outras (a Igreja também criou várias instituições que tratavam com o cinema, desde o início do século), alugavam salas e promoviam suas próprias sessões, começaram a produzir filmes. Há vários relatos nesse sentido, documentados pelo menos desde 1908. Em 1911, em Los Angeles, o jornal L.A.Citizen  fala de uma sala gerida por socialistas e feministas; um entrevistado explica que “nossa sala é o resultado da rebelião do público contra o que oferecem a ele" (Steven Ross, Working Class Hollywood, 1998).

O primeiro cineclube

Mas o provável primeiro caso realmente bem documentado da organização de um cineclube – com estatutos, sessões com debates e produção de filmes – é o do Cinéma du Peuple (Cinema do Povo), organização criada por militantes e simpatizantes anarquistas em Paris, em 1913. O programa do cineclube foi publicado no jornal Libertaire, de 13 de setembro; os estatutos foram registrados em 28 de outubro. O mote do cineclube era “Divertir, instruir, emancipar”. O Cinema do Povo teve vida curta, interrompida no ano seguinte pelo início da I Guerra Mundial. Mas deixou uma produção própria, quase inteiramente preservada, com títulos como As misérias da agulha, sobre o trabalho de costureiras; O velho doqueiro e A Comuna, sobre a insurreição de 1871, entre outros.

Um detalhe interessante é que a iniciativa dos anarquistas franceses foi bastante difundida, e chegou ao Brasil através de artigos de Neno Vasco, anarquista português muito ativo no Brasil que, em um de seus períodos de exílio em Portugal mandava para o jornal A Lanterna notícias do movimento internacional. De fato, na sequência dessas matérias, no seu número 242, de 8 de maio de 1914, o periódico traz o seguinte anúncio: “para tratar de fundar uma sociedade cujo objetivo será a propaganda social através do cinematógrafo, uma reunião será feita na próxima segunda-feira, 11 do corrente, às 19h30, no salão da Lega della Democrazia, na Rua Bonifácio, 39, 12º. Andar. Pede-se a todos os interessados que compareçam.” Não há contudo, confirmação da realização dessa reunião.

Também a igreja católica mantinha atividades voltadas para a formação de um público orientado pelos melhores princípios cristãos, embora isso fosse marcado por uma orientação pré-definida e não deva se confundir com o cineclubismo em que esse público se auto-organiza. O padre Pedro Sinzig, numa revista Vozes de Petrópolis de 1912 cita várias salas de cinema – paroquiais? comerciais? – católicas, como a do Centro Popular Católico, de Petrópolis, o Cinema Modelo de Belo Horizonte e o Cinema Católico de Recife.

América Latina

As pesquisas sobre público e cineclubismo são bastante raras em toda a historiografia do cinema; na América Latina esse problema se agrava profundamente. Isto contribui para manter velhos mitos e, no nosso caso particular, para consagrar os anos posteriores aos cineclubes “clássicos” franceses – e também espanhóis – como origem do cineclubismo em nosso continente. Certamente não é assim: os movimentos operários, principalmente, criaram em toda a América instituições próprias que promoviam atividades culturais; o que acontece é que não há pesquisas e grande parte dos documentos se perdeu ou não está organizada e/ou acessível. Não sabemos ainda até que ponto o dispositivo cinematográfico era utilizado nas associações, clubes, ateneus, círculos de debate, escolas, que os meios populares criaram em grande número na virada e início do século 20.

Por isso, nos países de maior tradição cinematográfica – do ponto de vista industrial -, que são a Argentina, o Brasil e o México, identificam-se os primeiros cineclubes no final dos anos 20, isto é, aqueles que surgiram por influência do cineclubismo europeu daquela década, a essa altura já consagrado. Na América Hispânica, foi a influência do Cineclube da Casa Universitária de Madri (que teve Buñuel entre seus fundadores) e da chamada “geração de 27”, através da Gazeta Literária, que deram origem ao Cineclube de Buenos Aires, em 1928, e o Cineclube Mexicano, em 1930. No Brasil foi o Chaplin Club, do Rio de Janeiro, também fundado em 1928, que é considerado até hoje o primeiro cineclube.

Na grande maioria dos outros países latino-americanos, as primeiras referências – e não será mera coincidência – surgem nos anos 50, justamente quando novamente se prestigiava um cineclubismo e uma cinefilia “de norma culta”, identificados com os críticos e cineastas da Nouvelle Vague. A partir dessa época os cineclubes se tornam bem visíveis em todo o continente. Mesmo nos três países com mais estrutura é também nessa época que os cineclubes proliferam e quando se pode notar as influências que exercem sobre os cinemas nacionais e suas instituições. De fato, antes dos anos 70 – quando surgem as primeiras escolas de cinema – todos os cineastas se formavam nos cineclubes. E as faculdades foram criadas com a geração de cineclubistas dos anos 50 – porque a geração seguinte, formada por aquela, já é a dos “cinemas novos” que, a partir dos cineclubes, renovou o cinema latino-americano e, em boa medida, de outras partes do mundo. No longo período em que pululavam ditaduras em nosso continente, uma importante resistência se organizou a partir dos cineclubes. A crítica cinematográfica profissional tem a mesma origem cineclubista. Os festivais de cinema surgem por iniciativa dos cineclubes e as cinematecas nacionais se organizam a partir de cineclubes. Elencar esses casos ultrapassaria qualquer espaço disponível num artigo como este. Mas, em resumo, nos países de maior e mais antiga cinematografia, os cineclubes foram responsáveis pela criação de uma cultura cinematográfica nacional, isto é, praticamente tudo – obras e instituições – que não vinha de Hollywood. Nos outros, os cineclubes praticamente se confundem com o que se possa identificar como cinema nacional: é neles ou a partir deles que se produziram os poucos filmes realizados antes da revolução digital; é nos cineclubes que se pratica e desenvolve o estudo, a crítica, a produção e a exibição de filmes diversos do discurso monolíngue estadunidense.

Paulo Emílio Salles Gomes, considerado uma espécie de patrono do cineclubismo brasileiro pode ser dado como um exemplo pessoal onde se encontram essas potencialidades que resultam das práticas cineclubistas. Aliás, em uma entrevista já no fim da vida, ele definia-se, enfim, como cineclubista, ou seja, era esse adjetivo que melhor englobava uma trajetória que envolvia política, ensino, crítica, teoria, que começou com o Clube de Cinema de São Paulo (do qual participou desde 1940), passando pela “conversão” absoluta ao cinema através de Plínio Sussekind (fundador do Chaplin Club), em Paris, e termina na Cinemateca (em 1957, o Clube de Cinema se torna Fundação Cinemateca Brasileira) e nos cursos de cinema das universidades de Brasília e de São Paulo. Louis Delluc, responsável, de certa forma, pela disseminação do termo cineclube, também pensava nesse tipo de relação com o cinema: foi o criador da palavra cineasta que, para ele, definia aquele que via, pensava e fazia cinema em todos os níveis. Em outras palavras, é o público organizado para se apropriar individual e coletivamente do poder e do sentido do cinema.

Na sociedade atual, o público é um conceito que praticamente se confunde com a totalidade do população, pois o principal meio de comunicação e socialização em todo o planeta são as mídias, controladas pela chamada indústria cultural ou de entretenimento. E, entre essas, a base fundamental é o audiovisual (cinema, tevê, internet, celulares, etc.), cuja linguagem matriz é a do cinema. Os cineclubes são a forma organizacional e mesmo institucional (existem nas legislações da maioria dos países do mundo) desse público, desse proletariado contemporâneo que não só não tem acesso aos meios de produção, mas igualmente não tem acesso aos meios de produção do seu próprio imaginário. Que não dispõe apenas de sua força de trabalho para vender, mas cuja subjetividade, hoje, é apropriada e comercializada ao simples aceder à internet e às ironicamente chamadas de redes sociais, de fato sob controle privado.