quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O cineclube contemporâneo

(é preciso) se dar conta que não é só uma mudança do sistema, é uma mudança de cultura, uma cultura civilizatória. E não tem como sonhar com um mundo melhor se não passar a vida lutando por ele. Temos que superar o individualismo e criar uma consciência coletiva para transformar a sociedade.” — Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai em discurso para estudantes brasileiros (Rio de Janeiro, 2015)


Primeira parte: prolegômenos

Balanço rápido (e incompleto)

Para muitos intelectuais franceses, o cineclubismo desapareceu depois da velha vaga da cinefilia das primeiras décadas pós-II Guerra Mundial. No resto da Europa acontece algo semelhante: o número de cineclubes diminuiu enormemente nos últimos 40 anos, a ponto de praticamente se ignorar sua existência, ou sua identidade, em meio a atividades culturais e sociais diversas. Isso também é verdade para os antigos regimes socialistas, onde o cineclube era questão de Estado, isto é, tinha apoio governamental. Deixou de ser, e o mercado – que substituiu muitas funções do Estado – não demonstra grande interesse por esse tipo de atividade.

No mundo árabe e na África subsaariana os cineclubes existem – como em toda parte – mas na maioria dos países são casos isolados, iniciativas únicas, ou quase. O mesmo vale para a Ásia, com as possíveis exceções da Índia e talvez Bangladesh, onde os cineclubes, no entanto, não são nem sombra dos milhares que existiram até os anos 80. A Austrália e a Nova Zelândia, países ligados à tradição britânica, têm situação semelhante à da antiga metrópole.

Mesmo na América Latina, onde o auge dos movimentos cineclubistas foi provavelmente no período das ditaduras generalizadas no continente, entre as décadas de 70 e 80, os cineclubes também são uns tantos polos ativos, mas isolados e frequentemente efêmeros. A exceção, para muitos, seria o Brasil, onde os programas governamentais multiplicaram pontos de exibição audiovisual. Mas, passados alguns anos, não existe um levantamento fidedigno que comprove a existência de um número muito significativo de cineclubes, diferentes de atividades de exibição esporádica e sem organização própria.

O cineclubismo tradicional, organizado como um movimento cultural, subsiste em muitos países europeus - como França, Reino Unido, Itália, Alemanha e outros – de forte tradição cineclubista, e onde existem políticas públicas consolidadas de apoio à atividade, mas numa escala muito mais modesta que no passado não tão distante. No resto do mundo, os cineclubes resistem atomizados, situação que não é incomum em sua história.

Na contracorrente dessa agonia, centenas, talvez milhares de cidades dos EUA têm suas film societies, das quais a mais famosa deve ser a do Lincoln Center, de Nova York. Ironicamente, os Estados Unidos, que nunca participaram do movimento cineclubista internacional, podem ser o país com maior número de cineclubes hoje em dia, ainda que de um tipo particular.

Contra os cineclubes

            O senso comum, isto é, a opinião geral, repercutida mecanicamente e sem muita reflexão, credita a fragilidade atual do cineclubismo às novas tecnologias, que permitiriam o acesso quase ilimitado a filmes (em computadores, tablets, celulares), enquanto os cineclubes, antes, tiravam sua importância justamente de propiciar a oportunidade de ver obras não disponíveis no mercado tradicional (salas de cinema). O interesse por esses filmes de nacionalidades incomuns nos cinemas tradicionais, o gosto por temas, estilos, narrativas particulares, diferentes e ousadas foi chamado de cinefilia, quase uma forma de culto, e o cineclube era seu templo. Hoje, a oferta não apenas de filmes, mas de outros conteúdos audiovisuais, em novos formatos e suportes, é exponencialmente maior. Aquela cinefilia seria agora um fenômeno renovado e diferenciado, numa escala muito maior mas, ao mesmo tempo, exercida de forma mas íntima, individual[1] – de resto como cabe muito bem ao ato de culto.

         Mas, para muitos, os cineclubes não teriam sido apenas superados por esses aspectos da tecnologia. Sua estrutura e inserção na sociedade, excessivamente formalizadas num modelo do século XX, estariam ultrapassadas: hoje todos podem se comunicar on line e as decisões podem ser tomadas de forma muito mais ágil e informal, sem a burocracia ligada à constituição de uma associação civil, nos termos da lei. Não há mais necessidade de associados, com direitos e deveres diferenciados, nem de uma direção estruturada em cargos que exprimem a coordenação de atividades que hoje todos podem fazer juntos, sem complicações desnecessárias e até hierarquizantes.

Esta é uma postura que tem mais aceitação no Brasil que em qualquer outra parte do mundo. E creio que, também apenas em nosso País, o Estado aceitou e convive com essa realidade, criando políticas governamentais que estimulam os chamados coletivos informais (não apenas de cinema, mas em todas as atividades culturais comunitárias), cujos compromissos formais são assumidos por uma única pessoa física. É verdade que a burocracia para registrar uma entidade qualquer, no Brasil, é notoriamente mais complicada que na maioria dos países. Mas sua contrapartida, não apenas no nosso caso, é a criação de soluções ad hoc, verdadeiras gambiarras que, cedo ou tarde, criam novos problemas.

De uma maneira geral, no mundo todo se mantém o modelo de organização civil, com associados e dirigentes eleitos. No entanto, pelo menos em muitos cineclubes nos países mais ricos, na Europa, e praticamente em toda a América do Norte anglófona, essa forma de organização se adaptou às necessidades de convivência com o mercado. É o modelo por excelência das film societies estadunidenses, e de grande parte das inglesas e canadenses. Nesses casos, o cineclube se torna ou busca a condição de instituição cinematográfica cultural da cidade. Sua administração é profissionalizada nos moldes de uma gestão comercial, com uma equipe contratada sob controle de uma direção eleita, geralmente em forma de conselho de notáveis. Os associados representam ou evocam ainda a adesão e o vínculo com a comunidade, mas não têm participação real na orientação da associação. Os sócios são também uma forma de promoção financeira e fidelização dos frequentadores. Esses cineclubes têm uma programação de tipo tradicional, cobrindo a diversidade cinematográfica que não entra no mercado ou valorizando os filmes que vão ficando velhos: complementam a circulação comercial dos filmes, sem colidir com os interesses da indústria cinematográfica. Em grande maioria, também aceitam e pagam pelos “direitos autorais” dos distribuidores.  Nesses países, geralmente existem diferentes programas – públicos e privados - de apoio à atividade cineclubista, mas esta sempre se completa também pela promoção de outras fontes de receita e com a cobrança de ingressos. Na prática, são dirigidas por seus administradores, sem participação do associados; funcionam com pequenas empresas comerciais autônomas que atendem uma necessidade que o mercado não provê – e pela qual não se interessa -, mas não colidem com ele.
No Brasil, as entidades estáveis mais ou menos baseadas nesse modelo são mantidas por instituições de ensino superior ou administrações municipais; são coordenadas por funcionários da instituição e geralmente não têm nem conselhos nem associados, e tampouco cobram por suas atividades. Outras formas aspirantes a uma gestão de tipo comercial, com ou sem formalização, são geralmente menos estáveis, pois sem uma legislação consolidada no País, oscilam e vacilam conforme existam ou não programas governamentais de fomento à sua atividade. Diferentemente de suas homólogas estrangeiras, tanto num caso como no outro, não se apoiam nem no mercado nem na comunidade, mas exclusivamente em programas governamentais. Não é incomum que se denominem cineclube.

Numa avaliação quantitativa, o modelo original de cineclube participativo - e muito frequentemente subversivo - foi superado em quase todo o mundo por diferentes formas mais ajustadas às políticas governamentais e às regras do mercado audiovisual, também complementares entre si.

Formas de cineclube na História

Sempre se diz que uma das características – e riquezas – da instituição cineclube é a sua capacidade de adaptação a diferentes contextos e circunstâncias. Apenas três características gerais são permanentes na história dos cineclubes e, como também está praticamente consagrado, juntas elas distinguem os cineclubes de qualquer outra atividade similar[2]. São elas: o caráter coletivo e democrático, a ausência de finalidade lucrativa e, decorrente desta, o objetivo cultural em sentido mais amplo. Atendidas essas condições, os cineclubes se organizam, e às suas atividades, de acordo com a comunidade em que se instalam e as conjunturas do momento. Cineclubes de cinéfilos, de escolas, de sindicatos, de acampamentos, de aldeias, de grupos políticos e movimentos sociais, de gêneros ou de etnias, de imigrantes, de comunidades de bairro ou pequenas municipalidades – sem falar das comunidades possíveis no plano virtual, que ainda estão sendo ou para ser criadas -; não há limite, fora das três condições citadas anteriormente, para a diversidade dos cineclubes.

Mas certamente é possível identificar formas preponderantes – como as que tratamos nos itens precedentes – em diferentes momentos históricos, em ambientes sociais, de classe, ou nas tradições cineclubistas nacionais. Assim, podemos dizer que o cineclubismo nasceu, no começo do século XX, entre o modelo revolucionário anarquista ou socialista e o tipo eclesiástico, principalmente católico, ou benemérito. Nos anos 20, consolidou-se um outro paradigma, o do culto cinéfilo. Há muitas outras maneiras de distinguir os cineclubes, mas essas três “fórmulas” são, mutatis mutandis, as de maior duração e influência sobre todo o cineclubismo, recorrentes ao longo de sua história. E a elas – e a combinações entre elas - pode-se sempre relacionar, de alguma forma, todas as tão diferentes práticas cineclubistas.

Em outro lugar[3], trabalhei com uma categorização mais ampla de iniciativas do público; aqui, mais acima, falei da quase infinda tipologia dos cineclubes em situações concretas. Mas há também, como acabamos de ver, esses três grandes paradigmas históricos de cineclube: o revolucionário, o paternalista e o elitista. Como já dissemos, esses traços distintivos podem ser exclusivos, ou quase, mas no mais das vezes se conjugam, com intensidades variáveis.

O cineclube revolucionário tem suas raízes até antes do cinematógrafo, nos clubes operários do século XIX, em palestras e debates apoiados em projeções de lanternas mágicas – substituídas pelo cinematógrafo no fim do século. Consolidado no início do século XX[4], esse tipo de cineclube se define pelo objetivo ou compromisso de tornar o público (ou o operariado, as classes populares; a terminologia varia com a época) sujeito do processo cinematográfico, como parte de um programa mais amplo de libertação radical de toda forma de exploração. Tendo início nos meios anarquistas, socialistas e feministas da virada para o século XX, prosperou nos anos e décadas seguintes entre comunistas de variados matizes, movimentos anticoloniais ou de libertação nacional, refluindo e reduzindo-se, já neste século, a alguns países e movimentos sociais.

O cineclube paternalista leva este adjetivo pela sua finalidade principal de instruir, educar, formar o espectador e o público dentro de um modelo pré-concebido. Em sua forma mais pura e completa, esteve ligado a iniciativas religiosas, com destaque para a igreja católica romana[5]. Seus sinais originais podem ser até mais antigos que os dos cineclubes operários que citamos acima[6] mas, grosso modo lhes são contemporâneos. Depois dos primeiros tempos do cinema houve certo hiato em sua atividade – um período em que a igreja anatemizava o cinema, até este ser revalorizado pela encíclica Vigilanti Cura, em 1936, que passa a ser um guia para a ação católica com o cinema. O período áureo desse tipo de cineclube é o pós-guerra, até aos anos 60. Mas o paternalismo, a tutela do público, tem uma influência bem mais vasta...

Chamo de elitista o paradigma criado nos anos 20 com a apropriação da experiência cineclubista por certos setores da intelectualidade parisiense[7] e sua codificação sob “forma culta”, como entende Antoine De Baecque[8]. Segundo ele, o cineclube (ou a cinefilia) se constitui como uma cultura quando reúne um tipo de especialistas, connaisseurs, capazes de sistematizar - preferencialmente sob forma literária – sua experiência. Além dos grandes nomes dos anos 20, De Baecque deriva sua observação sobretudo de alguns cineclubes parisienses[9] de onde se originaram as revistas Cahiers de Cinéma et Positif, e depois o grupo de realizadores da Nouvelle Vague. Christophe Gauthier também fala em um protocolo cineclubista quando descreve as características que identificavam as atividades cinéfilas (não apenas de cineclubes)  nos anos 20[10], como as sessões semanais, a realização de debates, publicações, entre outras.
É essa idéia de “especialistas”, capazes de redigir textos “cultos”, necessariamente distinguindo os cinéfilos do restante da humanidade, que baseia o caráter e adjetivo de elitista. Foi o modelo que se institucionalizou, se oficializou - no sentido de prevalecer socialmente - e que ficou incorporado na expansão mundial do cineclubismo, a qual teve seus maiores momentos justamente – e, em boa medida, por isso mesmo – quando da notoriedade dos cineclubes da vanguarda francesa dos anos 20, e da Nouvelle Vague, nos 50. O Brasil não fugiu à regra, sacralizando o Chaplin Club[11] como “o primeiro cineclube” brasileiro.

         Como já disse, essa classificação tem função didática: aponta a origem e trajetória histórica do fenômeno; é indicativa para a compreensão de casos concretos, mas não pode ser aplicada mecanicamente. Esses traços – de radicalismo, paternalismo, elitismo – também não devem induzir a uma valoração rasteira, moralista. De fato, na maioria dos casos, os cineclubes concretos misturam e transformam essas influências. Assim, pode haver cineclubes com elementos revolucionários, paternalistas e elitistas simultaneamente ou em diferentes combinações e intensidades. A herança “revolucionária” pode ser reduzida a uma agressividade vazia ou retórica; o paternalismo pode ajudar a construir importantes experiências de formação do público; a referência elitista pode constituir um desafio para o crescimento intelectual do cineclube e da comunidade.

Segunda parte: contrapontos

A favor dos cineclubes – mercado e tecnologias

         Cinema não é tecnologia, é arte – como já dizia nosso elegante antepassado, Ricciotto Canudo. A ideia de que novas tecnologias possam acabar com uma forma de arte é uma falácia, aliás recorrente nas trajetórias de várias formas de expressão. Se novas tecnologias fossem determinantes para acabar com os cineclubes, como mencionado no início deste texto, também o seriam para as salas comerciais de cinema. No entanto, o número de salas continua crescendo em todo o mundo (22% em relação a cinco anos atrás; na América Latina, 78%)[12]. Nos EUA e Canadá, o público está mais ou menos estável desde o início do século, em torno de 1,3 bilhões de pessoas por ano – mas equivale a mais de dez vezes o público de todos os principais esportes somados (futebol americano, basquete, beisebol e hóquei), nos dois países. Neles, 68% das pessoas com mais de 2 anos frequentam o cinema uma média de 6 vezes ao ano; os maiores frequentadores estão na faixa entre 12 e 39 anos. Ora, como é amplamente sabido, é essa população que mais acesso tem às novidades tecnológicas e também a que mais uso faz delas.

Seria mais sensato admitir que as mudanças tecnológicas alteram a relação do público, inclusive quantitativamente, mas nunca a ponto de acabar com uma forma de expressão artística fundamental. Assim, nos anos 20, sem rádio, televisão ou outro entretenimento acessível, 70% da população americana iam ao cinema mais de 40 vezes ao ano. Esses números não mudaram significativamente nem com a Depressão, mas apenas entre o final de II Guerra e os anos 60, quando a televisão realmente estabeleceu novos padrões de audiência. Desde então, a frequência estabilizou-se em números ainda muito importantes. É verdade, contudo, que a atração atual pelo cinema comercial nestes patamares – em oposição à crise do cineclubismo - se deve muito a um fabuloso esquema de propaganda e controle dos mercados e ao estabelecimento de um padrão de espetáculo pirotécnico milionário (3D, IMAX, etc.).

Por outro lado, esse caráter ribombante do espetáculo cinematográfico e a diminuição relativa, mas indiscutível, do público, levaram a exibição a se concentrar nos países desenvolvidos e nos segmentos mais afluentes da população no resto do mundo. Nos últimos anos tem até aumentado, em números absolutos, o público (e bastante, a renda) cinematográfico, mas sob um novo “modelo de negócios” [13], excluindo a maior parte da população nos países menos desenvolvidos e isolando os setores mais informados (daí, em parte, o sucesso das film societies), reservando para as grandes massas a vulgaridade e a alienação[14]. Há mesmo diversos países em que já não há praticamente cinemas.

         Na verdade, creio ser mais correto dizer que as inovações tecnológicas em si favorecem o cineclubismo. Mas, mais que isso, o próprio modelo de negócio, a estrutura de exploração dos mercados pelas indústrias do audiovisual, oferecem oportunidades – algumas novas, outras desde sempre – para a atividade de cineclubes. Por exemplo, a exploração comercial exaure o produto filme, tratando-o como uma mercadoria perecível, preferindo até fazer o notório remake a prolongar a vida de um clássico. No ramo literário, em que pese a dinâmica comercial, promovem-se reedições sucessivas; no cinema, não. Alguns entusiastas superficiais da tecnologia diriam que agora esses filmes estão todos disponíveis na internet[15]. Mas, enquanto alternativa efetivamente popular, esse acesso não é real. As cópias vendidas pelas empresas controladoras não são financeiramente acessíveis para a grande maioria – sem falar da informação e da apropriação elitista desta parte da cultura cinematográfica. E a procura de filmes significativos e notórios em termos estéticos, políticos, etc., na internet, além do crescente controle, não passa de algumas centenas de milhares de acessos distribuídos em períodos de vários anos: uma parcela muito diminuta da população em geral acessa de fato essa produção.  Ora, o Youtube, por exemplo, tem hoje 1 bilhão de usuários, 7 bilhões de visualizações por dia (metade delas, contudo, pelo celular). Alain Bergala[16] diz, meio sério, meio brincando, que  curtas-metragens feitos por realizadores ou grupos jovens são muita vez vistos apenas pelos amigos e familiares do realizador...

A forma atual de exploração do cinema, na verdade, abre imensas oportunidades para o cineclubismo. O deslocamento tecnológico do interesse comercial para outras “janelas” cria situações muito favoráveis aos cineclubes. Hoje, tanto ou mais que em qualquer outro período da história do público moderno, o cineclube contemporâneo tem grandes espaços e necessidades fundamentais a preencher na sociedade, ocupando os espaços abandonados pelo cinema comercial e oferecendo uma visão global e diversificada para todos os públicos. A tecnologia que, enquanto consumo, tem hoje um caráter de dominação e alienação; quando vista como fonte de programação, passa a ser revolucionária.

A favor dos cineclubes – política e organização

A maioria das instituições políticas vigentes desenvolveu-se acompanhando a evolução do capitalismo. As cidades burguesas, os estados nacionais, mas também os parlamentos, as universidades, as igrejas e um sem-número de instituições geradoras de práticas, costumes e valores tipicamente capitalistas, precedem de um tanto e certamente sobreviverão ao capitalismo num sentido mais estrito. Não há uma simetria, mas sim uma adequação assimétrica daquelas à evolução deste, de forma que justamente as instituições sobrevivem, transformam-se e se consolidam na medida dessa acomodação[17]. As revoluções burguesas paradigmáticas se deram nos séculos XVII e XVIII, mas o berço da nova classe dominante já se desenvolvia desde o século XI. O parlamento, instituição básica do domínio da classe, já engatinhava no século X, na Islândia, mas só adquiriu seu pleno sentido de arbitragem e moderação das relações de classe após a instalação definitiva da burguesia no poder.

Da mesma forma, as classes sociais que podem superar o capitalismo, também criam instituições não capitalistas, que vulneram o domínio burguês e preparam as bases de uma sociedade futura baseada na colaboração entre os seres humanos e não na exploração da maioria por uma ínfima minoria. Antonio Gramsci citava os grupos culturais populares, os sindicatos e, sobretudo, o partido político nacional-popular[18], capaz de conduzir o povo ao poder. Desde os anos 70, tenho escrito que a grande característica dos cineclubes é serem instituições desse tipo[19]: embriões de uma nova forma de organização do processo do cinema e do audiovisual, sem a separação entre as etapas econômicas de produção, distribuição e consumo, e com a integração livre dos aspectos criativos, identitários, educativos que, na perspectiva comercial, capitalista, só existem subordinados à dinâmica do lucro.

Vivemos hoje uma crise dessas instituições: dos partidos aos cineclubes e outras instituições culturais populares, passando pelos sindicatos. O neoliberalismo, triunfante, declara a morte prematura dessas instituições (ainda que siga investindo fortunas, metodicamente, no enfraquecimento das “falecidas”), os regimes de vocação populista neutralizam essas instituições pela cooptação, reproduzindo, aliás, o erro fundamental dos fracassados países do “socialismo real”. Os próprios segmentos populares e as concepções que exteriorizam – o pensamento de uma “esquerda” não muito definida – também em boa medida adotou esse discurso. Como alternativa às “velhas instituições” propõem uma horizontalização e informalidade absolutas, localizando a causa da suposta falência das organizações populares “tradicionais” na experiência do socialismo real (do antigo bloco soviético) burocrática e hierarquizada. É curioso que não se faça a ligação de burocracia e hierarquia com o autoritarismo, isto é, a incapacidade dos regimes socialistas de estabelecerem sociedades mais livres que seus concorrentes morais, os regimes capitalistas. Corolário dessa omissão, parte significativa dessa esquerda tampouco identifica ou reconhece os traços de autoritarismo nas experiências progressistas da América Latina, por exemplo. Outra lacuna que me parece importante, esquecem todos que o autoritarismo – mãe de todas as práticas não democráticas, como a burocracia, etc. – ocorreu historicamente em todas as experiências que evocaram o socialismo (da simpática Cuba ao horror do Cambodja) sobretudo pela pressão militar onipresente do inimigo. Parecem ignorar igualmente, que a ausência de organização não é uma criação nova; antes, está mais ligada a fórmulas igualitárias abstratas do século XIX, ou de pequenas sociedades autorreguladas e estanques.

Todo trabalho exige organização e especialização de tarefas. Ordenamento e divisão do trabalho. Que melhor exemplo que o cinema? Criar paramentos de prestígio ou poder em cima de funções de coordenação é que cria essa aura pejorativa no sentido do termo hierarquia. Ou de burocracia que, sem esse viés, designa mais um procedimento metodológico. Toda instituição ou organização implica em colaboração estruturada, e o estabelecimento de regras transparentes é a maior garantia da sua lisura e democracia.  Há menos “hierarquia” abstrata num cargo eletivo com mandato determinado que na entrega da representação e/ou coordenação de entidades e pessoas de maneira informal. Para alguns, as palavras presidente ou tesoureiro podem soar mais autoritárias que coordenador, por exemplo, mas o mandato daqueles é definido em atribuição e duração, sujeito a supervisão e controle; e o deste pode tornar-se infindo e pouco compreendido no plano público, permitindo toda sorte de abuso.

A experiência recente de mobilizações sociais sem estrutura organizativa definida e unificadora, em todo o mundo[20], produziu grandes protestos cívicos, mas resultou quase sempre no fortalecimento das classes dominantes e suas organizações político-institucionais.

O capitalismo não se instituiu unicamente pelo processo revolucionário que culminou e consolidou seu predomínio. Isso só foi possível porque já havia uma sociedade formada em grande parte por instituições capitalistas. Sua hegemonia se estabeleceu absoluta com o último impulso revolucionário, mas não seria possível apenas a partir dele. Como, em sentido inverso, aconteceu nos países do “socialismo real”: à tomada do poder pela via revolucionária, militar ou até por invasão libertadora, não correspondeu a criação de uma superestrutura institucional completamente nova e superior “intelectual e moralmente” às instituições burguesas. Como dizia Gramsci, a hegemonia só se estabelece com as duas funções, de domínio e de direção. Negligenciar uma delas equivale ao fracasso político.

O cineclube, reinventando sempre formas de organização de suas práticas, não pode abrir mão de uma estrutura transparente e democrática que permita a sua reprodução e renovação através de procedimentos democráticos. Sem um método e forma de integração do público na sua condução, na sua direção, o cineclube não cumpre sua atribuição essencial – organizar o público – abandona a perspectiva da emancipação do público, equivalente contemporâneo do velho proletariado, aqueles que não possuem os meios de produzir sua consciência, identidade, humanidade. Sem organização, o cineclube se condena a ser apenas um coadjuvante desprezado no gigantesco campo do comércio audiovisual.

Formas do cineclube contemporâneo

            A todas as observações que fiz acima, preciso juntar a rica experiência dos três últimos anos militando no Cineclube Latino Americano Juan Carlos Arch. Na condição de diretor de Atividades Culturais do Memorial da América Latina, em São Paulo, tive oportunidade de facilitar a instalação do cineclube em espaços dessa entidade. E como militante do cineclube, depois de muitos anos afastado[21] da convivência cotidiana com o público, pude vivenciar e avaliar as imensas transformações por que passaram o público urbano moderno, a militância cineclubista de base e, claro, os recursos técnicos da atividade. O Cineclube Latino-Americano foi uma espécie de laboratório para a comprovação da validade da experiência centenária da organização cineclubista e, simultaneamente, um aprendizado da articulação desta com novas ferramentas e práticas do público.

Este texto tem este formato espelhado – primeira e segunda parte “espelham” os argumentos para chegar ao desafio proposto pelo título do artigo - em boa medida baseado na mesma idéia: comparar e aproveitar a experiência histórica do cineclubismo para compreender e propor seu papel na atualidade. A prática diária no cineclube, ainda que limitada ao campo de atuação[22] que lhe dá sua identidade particular, me ajudou a compreender melhor as mudanças que se manifestavam também - mas de forma diferente – no plano do movimento e do público em seu sentido mais amplo. Foi essencial para complementar esta reflexão.

         A chamada globalização – termo usado para descrever o avanço do capitalismo neoliberal sobretudo nos anos de falência do bloco comunista e de redemocratização formal na América Latina (em termos econômicos: intensa privatização), apoiado no desenvolvimento das tecnologias cibernéticas, sobretudo entre os anos 80 e o início deste século – não deu muita conta de avaliar o novo processo de integração das populações ao capitalismo, cujos efeitos mais claros se manifestam um pouco depois.

         A reprodução do sistema adquiriu um novo significado, entrando nos planos simbólicos e subjetivos como nunca antes. Hoje, a sujeição ao capital já não se dá exclusivamente através da produção de mais-valia no trabalho, mas pela própria apropriação do universo pessoal subjetivo do público: basta acessar a rede mundial para já estar produzindo ganhos para os proprietários das - ironicamente chamadas – redes sociais. Vivemos um novo ciclo de expansão geográfica - reintegrando os mercados dos antigos países socialistas e promovendo uma ampla privatização nos países emergentes - e vertical - incorporando ou criando novos mercados pelas mudanças tecnológicas e promovendo até uma abertura limitada a novos segmentos sociais, de gênero, etc. Paralelamente, entre o bombardeio maciço, a miséria e a fome[23], ocorre o maior êxodo populacional desde a II Guerra Mundial.

Ou, no nosso terreno: a uniformização e vulgarização da comunicação cultural, o isolamento e alienação do público atingem níveis inéditos, beirando a patologia nas chamadas redes sociais. Ao que se soma a supremacia ideológica do individualismo e o enfraquecimento das instituições populares.

O cineclube contemporâneo tem que se posicionar frente a tudo de que este texto tratou até aqui: considerar as oportunidades – que são muitas – e adequar-se aos novos comportamentos dos públicos e da militância na conjuntura atual. Evidentemente, as diferenças entre comunidades e contextos continuam a existir – felizmente – mas gostaria de tratar de um paradigma possível, adaptável, que possa considerar a realidade contemporânea e, ao mesmo tempo, adequar-se ou ajudar a pensar e construir a grande maioria das práticas localizadas.

Terceira parte : o cineclube contemporâneo

O cineclube contemporâneo tem que a) assimilar a evolução tecnológica – e isso de maneira permanente e flexível – b) compreender a situação social, econômica e cultural concreta, isto é, como se situar frente ao modo de consumo do audiovisual atual e c) estabelecer um projeto de atuação em relação a essa realidade. Tratei das duas primeiras questões até aqui. Agora vou tentar articulá-las com um projeto de cineclube para os dias atuais. Na minha compreensão, isso inclui o reexame e aproveitamento criativo da nossa experiência histórica concreta.

1.   A instituição audiovisual da comunidade

É indiscutível que a família, a escola, as igrejas são instituições básicas na formação e socialização das pessoas. A mídia, porém, que em suas diversas formas é, hoje, fundamentalmente audiovisual, tornou-se um dos, senão o principal pilar de socialização e mediação social, em todos os níveis, na sociedade contemporânea. Seu controle e direcionamento são exercidos por uma ínfima minoria detentora do capital, sempre em grau acelerado de concentração. Concentração financeira, da qual têm derivado também crescentes uniformização e empobrecimento de linguagem e conteúdos, resultando numa alienação[24] montante.

O cineclube não é (apenas) um espaço de exibição ou de educação de uma plateia. Ele é, justamente, a instituição do público que se opõe à sua dominação e exploração. É a base, o embrião da construção de um novo sistema (o movimento cineclubista em sentido amplo, baseado nas práticas colaborativas dos cineclubes) de comunicação social e autoformação do público. Um sistema que integra produção, circulação e consumo; consumo criativo e produtivo, que fecha essa equação. Essa é a herança atualizada dos cineclubes fundadores, que chamei de revolucionários.

O cineclube contemporâneo precisa ser visto como elemento indispensável da comunidade, central na sua vida social, na construção, preservação e afirmação de sua identidade. A instituição audiovisual do público. A experiência e o sucesso das film societies aponta, ainda que de maneira parcial e incompleta, para essa condição.

2.   Base social do cineclube contemporâneo

    Como afirmei no começo deste texto, as salas comerciais de cinema se concentraram nos polos de maior poder econômico, principalmente nos países menos desenvolvidos, e no estilo padronizado das superproduções para públicos menos exigentes esteticamente – ou mais integrados ideologicamente. Já o audiovisual em geral, que não se estrutura sobre um espaço físico – a sala de cinema - está presente em toda parte: televisores, computadores dispositivos móveis, e em diferentes produtos, formatos e linguagens, como informativos, novelas, jogos, redes sociais, etc.

As salas de cinema, contudo, mesmo que já não constituam o principal veículo do audiovisual comercial, ainda ocupam um papel muito relevante social e culturalmente. O filme (narrativa ficcional ou documental, especialmente de longa-metragem) é um formato típico da sala de cinema; mesmo que não mais exclusivo, tem nela condições muito especiais de fruição e consumo. As salas de cinema são um índice cultural importante para compreendermos as sociedades: os EUA têm uma sala para cada 9 mil habitantes; a França, uma para 11 mil; o Reino Unido, para 16 mil. Brasil e Índia, com populações tão desproporcionais, têm uma sala para cada 100 mil pessoas.

O cineclube contemporâneo, para atender, responder proporcionalmente às necessidades do público, também deve ter uma relação proporcional com a distribuição geográfica e social da população. O Brasil tem uma forte concentração populacional nas grandes regiões metropolitanas – quase metade da população (90 milhões) - e uma enorme dispersão de pequenas comunidades: 3,8 mil municípios com 20 mil habitantes ou menos. Um quadro simplificado dá uma ideia dessa distribuição:

Cidades brasileiras
número
Total
5.570
Regiões metropolitanas
20
200.000 habitantes ou mais
160
Entre 100.000 e 200.000
150
Entre 50.000 e 100.000
350
Entre 20.000 e 50.000
900
Até 20.000
3.800

         Como se sabe, dentro do modelo econômico excludente, as áreas nas cidades maiores e regiões metropolitanas são altamente diferenciadas; nas localidades menores, onde os privilegiados são pouco numerosos e mais afastados, pode-se observar uma maior uniformidade cultural.

         Atrevo-me a sugerir, então, partirmos de uma relação de um cineclube deste novo tipo para cada 50 mil habitantes, nas áreas de maior concentração, e um para cada 20 mil nas regiões de maior dispersão da população. Apesar da abstração estatística, esta proposta também se apoia em observações empíricas: nas cidades maiores, a facilidade de comunicação e transporte permite trabalhar com uma base geográfica maior, geralmente localizada nas periferias ou nos velhos centros mais deteriorados. Nas demais cidades (de menos de 20 mil habitantes), uma minoria – cerca de mil localidades – têm menos de 5 mil habitantes; nestes casos, a experiência bem sucedida de alguns cineclubes ou iniciativas congêneres tem sido a de promover sessões itinerantes.

         Esse ambicioso objetivo implicaria na criação de entre 4 mil e 8 mil cineclubes, uma tarefa de médio e longo prazo mesmo se apoiada pelo Estado - o que não parece ter muita chance de acontecer. Note-se bem: o cineclube que estou preconizando não tem praticamente nada a ver com os espaços precários de exibição promovidos há alguns anos pelo governo federal e alguns estaduais. Ou com salas geridas pelo próprio Estado, ou terceirizadas para a iniciativa privada, como no projeto da prefeitura de São Paulo[25].

3.   Base humana e econômica do cineclube contemporâneo

Consolidar um cineclube com a proposta que estou desenvolvendo aqui é tarefa dificílima, muito distante do modelo de exibições quase sem estrutura ou periodicidade definida que constituem atualmente a grande maioria das atividades culturais com audiovisual no Brasil. Como evoca a citação de Pepe Mujica na abertura deste artigo, trata-se de um compromisso vital, de um trabalho de alta dedicação, que tem como objetivo contrapor-se coletivamente e substituir, no coração e mente do público, a visão subalterna de seu lugar no mundo, contribuindo para a sua emancipação integral.

Minhas experiências mais pessoais, com o PopCine[26] e com o Cineclube Latino-Americano, juntam-se à observação dos modelos mais bem sucedidos (em termos de estabilidade) de cineclube e da própria falência do modelo de militância de 30 ou mais anos atrás. Como juntar, então,  estes dois parágrafos numa proposta coerente?

Sem um financiamento definido, o modelo de cineclube (ver o item 5 seguinte: estrutura) que proponho demandará esforço e dedicação, mas pode viabilizar-se a médio prazo (até 2 anos). Cobrando uma taxa de manutenção (ingresso), de associação ou outra forma de contribuição financeira; realizando eventos festivos e promoções; captando publicidade no comércio local e doações (Lei Rouanet para pessoa física) pessoais na comunidade, o cineclube pode começar a melhorar suas condições de instalação e atividade, e dar ajudas de custo que permitam garantir uma participação mais intensa dos militantes (cuidando para não “distribuir resultados financeiros”, mas apenas remunerar o trabalho indispensável). Com muito trabalho e criatividade, essa situação pode se tornar um círculo virtuoso: melhores condições, mais participação, melhores resultados.

4.   Cineclube e Estado

Evidentemente, uma política pública que reconhecesse a importância do cineclubismo constituiria um diferencial importantíssimo para a viabilização de um projeto como o do cineclube contemporâneo. Mas, como já disse, esta não é a postura dos governos petistas, em todos os níveis, e muito menos das suas oposições. Apenas um movimento cineclubista forte, com peso e repercussão social e cultural, seria capaz de alterar essa situação. E isso está totalmente para se construir – esta proposta pretende ser um caminho.

Adianto aqui, para referência, as questões legais e institucionais principais que precisam ser resolvidas junto ao Estado para que o cineclubismo se desenvolva livremente:

a)        Simplificação do registro em cartório e reconhecimento institucional em geral, hoje cheio de burocracias e taxas,
b)        Reconhecimento da imunidade tributária dos cineclubes – que é inerente, já que não têm fins lucrativos, e
c)        Plena liberdade de exibição, sem sujeição aos limites dos direitos patrimoniais.

Estes três pontos são as bandeiras prioritárias e permanentes da exibição cultural no Brasil. Do ponto de vista administrativo, a relação dos cineclubes com o Estado deveria ser tratada diretamente com o município, para o qual devem ser transferidos os recursos federais e estaduais que possam ser alocados para o fomento do cineclubismo.

5.   Estrutura e papel do cineclube contemporâneo na comunidade

No item 3, fiz algumas considerações gerais sobre o tipo de trabalho que requer o cineclube contemporâneo. Elas supõem o estabelecimento gradual (ou imediato, se houver recursos) de uma estrutura completa e funcional para a promoção de uma ampla gama de atividades. Considerando ainda o que desenvolvi no item 2, isto é, uma base social ideal entre 20 mil e 50 mil pessoas, o cineclube deve ter:

o   instalações físicas para projeção e outras atividades que usem auditório, com pelo menos 100 lugares (menos, em comunidades menores) confortáveis, tela em torno de 4 x 7 m, pé direito e ângulo de visão adequados;
o   área para bar-bomboniére, com espaço para recepções, lançamentos, exposições, etc.;
o   espaços para administração, arquivo, estudos e depósito de equipamentos;
o   sala para estúdios de web rádio e web tv, e
o   acesso a área para festas maiores

A programação deve ser a mais variada possível, entendida como uma construção que resulta da sua real apropriação pela comunidade. À medida que o público goste, se acostume e adquira o hábito de frequentar o cineclube, a programação deve se intensificar tanto quanto possível, e se diversificar, atendendo a escolas[27], por exemplo, ou a públicos determinados: crianças, jovens, idosos ou por grupos de interesse, como acompanhamento de novelas, aprofundamento de temas para estudo formal ou informal, etc.

É fundamental que o cineclube contemporâneo crie formas de relação à distância com o público, seja como programação mesmo (produção própria ou de outras fontes independentes, noticiário local, etc.), para incrementar a participação (grupos de what’s up para agilizar o trabalho) ou para propaganda e publicidade. A produção de publicidade para o comércio ou outras iniciativas locais pode ser uma fonte importante de recursos para o cineclube. E um serviço para a comunidade, no caso de campanhas educativas: vacinação, segurança, etc.

A produção é atividade essencial do cineclube contemporâneo. Seu papel na comunidade deve necessariamente envolver a documentação e preservação da vida e da história comunitária. Da mesma forma, à medida que o cineclube se integre à criação cultural em geral da comunidade, pessoal ou coletiva, essa produção vai envolver a ficção e a experimentação. A produção para as novas plataformas audiovisuais -– especialmente na internet – permitem que o cineclube dispute também o espaço audiovisual ocupado pela produção comercial.

Essa produção do cineclube, reunida aos resultados de uma coleta da produção comunitária existente e/ou anterior (fotos, filmes de família, instantâneos e vídeos de celulares, etc.) deve ter um espaço próprio e condições básicas de conservação. Nos casos que demandem recursos mais complexos de preservação, o cineclube deve articular-se com outras instituições, como arquivos e cinematecas.

6.   Movimento cultural e social

O cineclube contemporâneo não é uma invenção abstrata, mas a sistematização de uma longa série de experiências históricas. Já em 1911 há menção de uma sala de cinema em Los Angeles que funcionava diariamente e, segundo seus dirigentes, era um espaço de luta contra o cinema opressor, único que, fora dali, se oferecia ao povo. Mais perto de casa, no tempo e no espaço, temos os “cineclubes 35 mm” que funcionaram, também diariamente, em diversas cidades brasileiras nos anos 80, com enorme sucesso. Alguns deles, inclusive, transformaram-se em salas comerciais e, depois, grandes circuitos de exibição[28]. A maioria, entretanto, não conseguiu sobreviver à especulação imobiliária que também matou os cinema de rua. Acredito que, além de todas as pressões que se abateram sobre eles, um grande motivo para o seu desaparecimento foi a incapacidade que tiveram de encontrar uma forma de união, de fortalecimento mútuo. Também mencionei a experiência do PopCine que, projetado para ser um circuito, cometeu o erro de depender inteiramente do Estado – que não cumpriu o programa.

Cineclubes organizados nestas bases, de árdua construção, serão, por outro lado, instituições fortes e influentes em cada comunidade. Sua estrutura permitirá uma ação que influencie a educação formal, junto às escolas, e informal, através do lazer integrado à socialização, à civilização e a emancipação da maioria. Contribuirá para a inclusão social, mesmo nas mais distantes e pequenas localidades, constituindo uma rede de exibições e outras atividades itinerantes, bem como pelo alcance da internet, radio e tevê. O cineclube contemporâneo tem os mesmos princípios defendidos há 100 anos pelo primeiro cineclube que conhecemos melhor: Divertir, instruir, emancipar!

Na medida em que consigam construir um projeto comum e atuem como movimento, terão grande capacidade de pressão sobre o Estado e influência sobre os próprios rumos do cinema e do audiovisual. Em última instância, estarão criando um novo cinema e uma nova organização institucional para a comunicação, o aprendizado, a expressão artística. Base essencial para se constituir uma sociedade plenamente livre e consciente.

  

Notas:

[1] Há exceções importantes a esse “individualismo”: muita gente inclui na cinefilia os fandoms – comunidades de fãs de gêneros, como a ficção científica ou os animes – com suas publicações, convenções e outras atividades. O video game, também é outra forma de audiovisual que reúne comunidades, online e em campeonatos. Os apreciadores de ópera também se reúnem em salas de cinema que passaram a promover “sessões” desse tipo. Por outro lado, não há realmente comunidades importantes de cultuadores de cinema; Sua fruição em provedores como o Youtube se dá em privado, individualmente.
[2] O que é cineclube? Disponível em http://www.cineclube.utopia.com.br/
[3] Teses para uma jornada de cineclubes e entidades congêneres - 4. As divisões do público: enquadrados, rebeldes e tutelados, disponível em http://felipemacedocineclubes.blogspot.com.br/2015/07/teses-para-uma-jornada-de-cineclubes-e_7.html
[4] O modelo melhor documentado desse tipo de cineclube é o do Cinema do Povo, de 1913. Ver mais em: http://felipemacedocineclubes.blogspot.com.br/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html 
[5] Mas igualmente nas predicações protestantes e nas iniciativas de controle dos trabalhadores, de sindicatos patronais ou de organizações como a YMCA (Associação Cristá de Moços), no começo do século XX.
[6] Os padres jesuitas já empregavam lanternas mágicas para atrair e catequisar os indígenas, por exemplo nas Missões, na América do Sul, desde o século XVII.
[7] Principalmente as sessões de promoção de revistas – Journal du Cinéclub, Cinéa - editadas por Louis Delluc (de onde se consolidaria o termo cineclube) e o Clube dos Amigos da Sétima Arte, de Ricciotto Canudo, frequentemente tidos como os primeiros cineclubes.
[8] De Baecque, Antoine. 2011. Cinefilia - Invenção de um Olhar, História de uma Cultura: 1944-1968. Cosac Naify.
[9] Na verdade, a observação de De Baecque cobre poucos cineclubes de jovens da classe média na capital francesa. Nessa mesma época havia milhares de cineclubes na cidade e na França.
[10] La passion du cinéma: cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. O trabalho de Gauthier considera um campo mais amplo que o dos cineclubes, como o título já indica, inclusive anteriores aos anos 50, procurando sistematizar atividades comuns ao que denomina cinefilia.
[11] 1928-1930, Rio de Janeiro.
[12] Dados do relatório Theatrical Market Statistics 2013, da Motion Pictures Association of America (MPAA).
[14] No Brasil, seguindo este raciocínio, os segmentos seriam três: meia dúzia de capitais que dispõem de um circuito de “salas de arte”,  o público dos xópins (equivalente das massas do primeiro mundo) e o enorme descampado dos “sem tela”.
[15] Esse fato é indiscutível, a tecnologia abriu de fato essa perspectiva de acesso a cópias de qualidade, ainda que selecionadas com um viés primeiromundista. E do ponto de vista de acesso “legal”, só disponibilizadas de acordo com as normas da MPAA. Há acesso também a um universo ainda mais amplo no Youtube e outros arquivos (e isto pode facilitar a programação de cineclubes).
[16] Teórico, educador e realizador ensaísta francês.
[17] Muitas outras instituições não são exclusividade do capitalismo – como a família, a propriedade privada, etc. – mas se transformam e se adequam à reprodução do sistema, inclusive das próprias modificações deste.
[18] O conceito de nacional-popular não se restringe ao espaço geográfico nacional, mas remete à capacidade da maioria, popular, de construir a direção da totalidade social que se identifica como nação. Teoricamente o conceito se aplica igualmente ao espaço inteiro da Terra, quando chegarmos a nos identificar nesse nível.
[20] Da chamada “primavera árabe” aos “indignados” europeus e movimentos de “ocupe-se”, sobraram o caos e anomia sob bombardeio, disputas fratricidas promovidas por interesses estrangeiros, a recomposição de velhas ditaduras ou simplesmente a vitória eleitoral das direitas. Mais recentemente, na Espanha e na Grécia, um retorno à opção partidária tem aberto novas perspectivas, ainda a observar.
[21] Desde que deixei o Elétrico Cineclube, há 20 anos, tenho trabalhado com cinema e televisão e passei mais de dez anos em Montreal, trabalhando alguns anos com tradução e legendagem de filmes e pesquisando o cineclubismo na Universidade, mas sem uma prática cineclubista tradicional, diária.. Entre 2003 e 2009 colaborei intensamente na direção nacional do cineclubismo brasileiro e, até 2013, com a Federação Internacional de Cineclubes, mas também sem o trabalho cotidiano do meu cineclube. No Cineclube Latino Americano, ao contrário, essa vivência foi muito intensa.
[22] A comunidade do Cineclube Latino Americano é o interesse pelo cinema e a cultura do continente; seu público, o do espaço metropolitano inteiro de São Paulo (e até de outras cidades, fora da Grande São Paulo!).
[23] Que reduziram a escombros, nos últimos 5 nos, vários países: Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Iêmen, Eritréia, Etiópia, Somália, Sudão, e deixa outros em eterna precariedade social e política, em catástrofe nacional, como o Haiti, Bangladesh, ou à beira da guerra civil, como Mali, Níger, Nigéria, Congo, Camarões, Burkina Fasso. Na América do Sul, o Brasil é um dos maiores polos de imigração não apenas do nosso continente, mas também da África.
[24] As pessoas não apenas alienam sua relação com o  trabalho, a vida social e o próprio planeta, mas adquirem, cada vez mais, comportamentos compulsivos, agressivos, neuróticos, aderindo a crenças extremistas e instaurando – sobretudo, mas não exclusivamente, nos países dependentes – um nível de violência social absolutamente contraditório com o grau de civilização que a cultura e a mídia permitiriam generalizar.
[25] Considerando a instabilidade política atual do Brasil, é preciso esclarecer que também não creio que esteja no horizonte de outras políticas culturais, de eventuais grupos oposicionistas que, por sua vez, preconizam delegar toda iniciativa cultural à empresa privada.
[27] O trabalho com escolas da “base territorial” do cineclube é uma questão especial. A articulação cineclube/escola pode permitir um intercâmbio com o corpo docente, além de pais e alunos, abrindo grandes perspectivas de integração do cinema e do audiovisual nos currículos. A  programação sistemática de sessões para as escolas pode trazer para o cineclube um significativo aporte financeiro que, de outro lado, seria extremamente econômico para as instituições educacionais (Secretaria de Educação).