quarta-feira, 27 de setembro de 2017


Textões e cineclubismo
(ou literatura e cultura cineclubista)

Na sequência da publicação de mais um artigo em meu blogue – e divulgação na lista nacional dos cineclubes – um velho amigo cineclubista me escreveu, debatendo alguns aspectos do texto. Seguiram-se algumas mensagens, como sempre, com argumentos e ideias, daqui e de lá. Comentei que achava que devíamos fazer esse debate de forma aberta, e ele me respondeu que achava que tinha pouco interesse, pois as pessoas estavam vendo o cineclubismo mais como um aspecto meio superado, um departamento muito específico de questões maiores, como as de gênero, religião ou mesmo do cinema brasileiro. E acrescentou também: “recebi uma mensagem privada dizendo que mensagens longas e "intelectualizadas" não serviam para nada a não ser deleite intelectual e estéril do autor das mesmas...” Daí, portanto, o textão.

Embora, evidentemente, não exista uma exegese mais precisa do textão – já que a ideia mesma repele a reflexão e apela para o senso comum – acho que podemos reconhecer que qualquer coisa que ultrapasse dois parágrafos, chegue perto do fim da página é, definitivamente, um textão. Então, vamos a ele, pelo menos no que se refere ao cineclubismo.

A ideologia do textículo

Citei essa associação: falta de interesse do cineclubismo e inutilidade de reflexões mais longas porque, ao contrário do meu amigo, acho que não são uma coisa de agora, dos últimos tempos ou dos novos tempos, mas uma velhíssima tendência obscurantista, anti-intelectual (intelectual no sentido de uso do intelecto, da inteligência, da reflexão). O fenômeno é bastante geral e recorrente, e manifesta-se de mil maneiras em formulações reacionárias ou populistas, que promovem a compreensão do mundo e das coisas em ideias simples e sem nuances. Curto e grosso. Geralmente estão associados ao racismo, ao preconceito, ao nacionalismo e à xenofobia: nós contra eles. Não são estranhas a uma polarização maniqueísta, burra mesmo, que muitos reconhecem atualmente nas chamadas redes sociais na internet.

Tais ideas procuram separar as abstrações do “intelectual” e do “homem comum”, restringindo este último a um espaço edênico de ignorância e felicidade determinadas pela Natureza ou pelo Criador. Ou, sob outro entendimento, mantendo-o nos limites da ignorância e da exploração por terceiros. Além de velha, essa ideia, que é também prática de solapa social, é bem generalizada. Hoje em dia, certamente se aproveita de alguns instrumentos da indústria de comunicação, como o twitter - e seu limite de mensagens de 140 caracteres (que estão pensando em mudar) - ou o instagram, que privilegia as imagens. Mas não sejamos reducionistas também aqui: esses mesmos meios servem para ampliar o universo de pessoas que se manifestam pela escrita e que, possivelmente, poderão acessar outros mecanismos e ambientes, explorando e se manifestando de formas mais elaboradas.

Ideias expressas de forma simples e curta, como quaisquer outras, têm sua função social disputada na arena da luta de classes: podem ser úteis para a emancipação ou para a domesticação; reduzir sempre as ideias, no entanto, a fórmulas simplificadas, aponta para a rasteirização, a ingenuidade, a subordinação – que propiciam o abuso. O slogan, por exemplo, termo sem correspondente em português, tem origem em formas de identificação clânica, militar (a palavra vem do gaélico e irlandês sluagh-ghairm  -sluagh "grupo armado” e gairm "grito"). É uma forma mnemônica simples que serve para angariar, arregimentar ou para controlar massas, plateias, para projetos também curtos e grossos, como toda a publicidade moderna, mas igualmente o facismo que, aliás, tem parentesco próximo com ela. Enfim, como todos sabem, a capacidade de interpretar um texto complexo é o parâmetro usado para medir o analfabetismo funcional – ou incapacidade de se situar e desfrutar plenamente do universo comunicacional social. O analfabetismo funcional atinge um percentual significativo dos povos: no Brasil, quase um terço da população; nos EUA, um quinto, e nos países nórdicos, um décimo.  O tema é vasto e merece uma reflexão mais ampla, mas meu textão aqui visa localizar essa questão no cineclubismo brasileiro.

A mensagem privada, que meu amigo não identificou, nem eu perguntei, lembrou-me algumas referências esparsas no facebook – que não raro funciona como ventilador de matérias fecais – mas em particular uma campanha contra textões estranhamente associada à divulgação de um desses circuitos de exibição que alguns produtores  andam organizando através de cineclubes. Eu disse “estranhamente associada” porque realmente uma coisa – textos extensos – não tem, em princípio, nada a ver com a outra: a organização de um circuito de exibição. Acredito que os promotores dessa associação já estivessem preocupados anteriormente com os tais textões, de forma que a mistura de uma coisa e outra meio que veio para demonstrar que uma iniciativa como aquela, do circuito, podia ser realizada sem um grande texto para ampará-la. Grande demonstração lógica: mostraram que era possível lançar um filme sem grandes temas, apenas com um sistema de inscrição de cineclubes numa lista ou sistema. Os circuitos comerciais fazem a mesma coisa toda semana, também sem grandes textos – no máximo umas imagens na tevê. E fazem isso há mais de um século. Isso me lembra a formação do circuito Cine+Cultura, há poucos anos, quando se combateu – e se acabou por eliminar – as atividades de formação, como o Manual do Cineclube e as oficinas, em favor dos aspectos funcionais do circuito de exibição formado pelos cines+.

Bom, muito cá entre nós (que ninguém nos leia!), acho que a mensagem privada enviada ao meu amigo e a campanha contra os textões têm a mesma origem, e acho que a identifico bem. Afinal, neste nosso meio cineclubista, não são muitos os textões, não é mesmo? E talvez sua autoria seja fácil de identificar. Em outras palavras, identificar os textões com uma pessoa. Ora, inversamente, os que insistem em combater esse autor passam também a ser provavelmente identificados sem dificuldade. Contribui ainda, para isso, o fato de que muitos outros cineclubistas já me falaram sobre recados privados que receberam para evitar o referido autor... de textões. Por isso, nem precisei perguntar. Bem, a esta altura, quantos leitores já entenderam tudo? Ah, e entre esses leitores com certeza estão os que fazem campanha contra textões: eles são dos primeiros a lê-los.

Bom, eu me identificaria como um autor de textões, se adotasse essa visão anti-intelectual. Mas não. Não meço minhas reflexões, como não pretendo medir meus leitores. Escrevo sobre cineclubismo desde meus 20 anos, nos anos 70, quando a maioria dos meus leitores ainda não tinha nascido (mas nem todos). Aprendi desde logo a escrever em diferentes registros, pois também tirei boa parte meu sustento, esses anos todos, da escrita: jornalística, de propaganda, mais recentemente, acadêmica; mas sempre, paralelamemte, militante e cineclubista. Os textos a que me refiro aqui, então, são estes últimos. Militantes, porque são os escritos voltados não para o público dos cineclubes (o que também faço muito), mas para os cineclubistas militantes, já bem comprometidos com o cineclubismo, ou para dirigentes de cineclubes. São textos em que procuro passar minha própria experiência, recuperar a memória da experiência histórica cineclubista, avançar proposições ou analisar e criticar posturas de que discordo. Textos que têm uma forma despretensiosa de pretensão: a de suscitar questionamentos, reflexões, que possam animar, transformar, enriquecer a prática dos cineclubes. Nada disso se faz de forma superficial ou breve. Só de ma fé - com a intenção de neutralizar as idéias sem efetivamente considerá-las - ou com o preconceito de que os cineclubistas não são, de alguma forma, capazes, é que se imagina que isso não interessa aos cineclubistas.

Cineclubismo e literatura

Na verdade, o cineclubismo é muito próximo da literatura, da cultura escrita. Nosso companheiro estudioso do cinema e do cineclubismo, Gabriel Álvarez Rodríguez, sempre destaca a relação entre o cineclubismo, a escrita e as publicações, explorando, por exemplo, a influencia da Gaceta Literária espanhola, nos anos 20, sobre os primeiros cineclubes hispânicos[i]. Como se preciso fosse lembrar que ainda muitos repetem que o cineclubismo surgiu com a revista Ciné-Club, de Louis Delluc, e tantas que se seguiram – como destaca Christophe Gautier em seu formidável La Passion du Cinéma[ii]. No Brasil, Diogo Gomes dos Santos identifica as origens mais remotas do cineclubismo com a Turma do Paredão[iii], que logo se espalharia pelas colunas de cinema de diferentes revistas, para voltar a se reunir em Cinearte. Mas e O Fã, primeira revista realmente de crítica cinematográfica, na realidade o boletim do Chaplin Club? E, se não bastasse a proximidade ou origem dos fundadores do Clube de Cinema de São Paulo com a revista Clima, poderíamos lembrar como o cineclubismo dos anos seguintes esteve diretamente ligado à propagação da crítica e de uma literatura de cinema em todas as regiões do País. Se considerarmos a cultura cinematográfica brasileira no sentido de um acervo de expressão literária – que certamente é uma de suas dimensões, ainda que eu pense que não a única e nem mesmo a principal – os cineclubes fazem parte substancial de sua origem e disseminação. A quase totalidade dos movimentos renovadores na história do cinema surgiu dos ambientes cineclubistas e da reflexão escrita, publicada em livros e revistas – especialmente em publicações cineclubistas. O cineclubismo não está apenas associado à criação de uma crítica moderna – basta lembrar André Bazin (em seus ensaios e nos Cahiers du cinéma) ou Paulo Emílio Salles Gomes n’O Estado de São Paulo – mas igualmente encontra-se na origem dos cursos universitários de cinema em todos os países. E isso é apenas um sobrevoo rápido; falar mais em profundidade sobre literatura cineclubista é assunto para outro texto. Que virá.

A militância nunca esteve longe dessa literatura, seja na defesa sistemática de novas abordagens do cinema, geralmente ligadas à valorização do público (mesmo se, muitas vezes, de forma paternalista), seja no embate direto com outras vertentes do cinema ou do próprio cineclubismo. No caso do Brasil, podemos lembrar a defesa dos valores do cinema mudo pelo Chaplin Club, nas páginas de O Fã – de resto como se dava um pouco em toda parte com o advento do filme sonoro. Mas também a discussão entre cineclubes católicos – com abundante literatura - e laicos, que marcou os anos 50 e a criação das entidades regionais e nacional dos cineclubes. Nos anos 70, em que eu já participava, os cineclubes mantinham uma extensa literatura, dos boletins de cada entidade às publicações do CNC, onde se debatiam desde propostas de gestão da Dinafilme até concepções do mundo, passando, naturalmente, pelas análises de filmes. Vários cineclubistas, de ambos os lados da celeuma, eram bem conhecidos na época. Digladiavam-se em torno de idéias como a do nacional-popular de Gramsci contra o internacionalismo proletário encarnado em Trotski. Essas ideias serviam para embasar a defesa do cinema brasileiro, por um lado (e a exibição de filmes de Mazzaropi, por exemplo), e um cinema revolucionário puro, geralmente identificado com os clássicos do cinema soviético. Influíam no cotidiano do movimento, por exemplo na montagem e seleção de acervos regionais de filmes para distribuição da Dinafilme. Nessa época o Cineclube da Fatec publicou meu primeiro texto realmente grande: um modesto livreto de umas 80 páginas com a primeira história do cineclubismo no Brasil[iv]. Não creio que exista uma relação tão direta, mas é certamente uma associação que me ocorre, lembrar que a decadência e morte do cineclubismo organizado, naquela época, foram acompanhadas também de uma onda anti-intelectual, contrária a debates, e do fim das publicações em geral a partir da metade da década de 80.

Hoje

Meus amigos estranham que eu escreva tanto sobre cineclubismo. Ou mais especificamente para cineclubistas, ainda mais agora que estou inserido numa respeitável instituição acadêmica que me cobra textos alinhados aos seus cânones. Pouca gente – nem o amigo missivista que citei – acredita que esses textos sejam lidos. Como inegavelmente o movimento cineclubista no Brasil – e no resto do mundo – anda meio irrelevante socialmente, isto é, não tem participação nem manifesta posição em qualquer questão importante da sociedade ou da cultura, muitos associam essa “invisibilidade” com a inexistência do movimento social e cultural que é o cineclubismo.

É da lógica das instituições hegemônicas – de que se contaminam as opiniões privadas, que hoje se irradiam acriticamente, de forma simples e tosca, pelas chamadas redes sociais, colocando a noção de senso comum de Gramsci num outro patamar – selecionar ideologicamente o que deve ser divulgado e promovido, tal como o que precisa ser censurado e obliterado. Raramente os cineclubes superaram essa barreira e, quando o fizeram, expressavam geralmente posturas elitistas e conservadoras. No entanto, desde que existe o cinema, os cineclubes nunca deixaram de, senão produzir, ao menos ajudar a colocar em circulação, além de filmes, ideias e propostas para o avanço do público e da sociedade. Embora, ao contrário das definições correntes de cultura e tradição popular, geralmente identificadas com as formas orais, o cineclubismo, evidentemente, se reconheça no cinema e no audiovisual (e, como mostrei acima, também bastante na literatura), tal como a sabedoria popular, este elabora, transmite e reproduz uma cultura própria, fora dos ambientes e práticas dominantes.

Em outras palavras: os cineclubistas estão lendo e escrevendo – e penso que, quantitativamente, atualmente mais que em qualquer outro momento histórico, pelo menos no Brasil. Em minha experiência pessoal, frequentemente sou procurado por estudantes e pesquisadores de todas as regiões do País envolvidos com trabalhos e pesquisas sobre o nosso campo e trabalho. Meu blogue é acessado de dez a vinte vezes por dia em média e, em 8 anos, foi visto por quase 23 mil leitores. Não é muito, se comparado à Lady Gaga ou a certos gatinhos engraçadinhos mas, considerada a complexidade da leitura, é um número respeitável. Poucos filmes brasileiros tiveram esse público nos últimos anos. A média de acessos salta para números bem mais elevados quando “lanço” algum texto novo e o anuncio no facebook ou na lista de discussão dos cineclubes. Também em outros espaços de intercâmbio de textos, como o Academia.edu ou motores de busca, como Google Scholar, mais acadêmicos, tenho tido acessos sistemáticos e mais citações do que eu imaginava. A lista tradicional de comunicação entre cineclubistas, cncdialogo@yahoogrupos.com.br, de 2004 até hoje teve um tráfego de mais de 37 mil mensagens. Mesmo que uma pequena percentagem delas se constitua de debates, também somam muitos milhares. A lista mantém estável um número de assinantes sempre em torno de 1.200 pessoas: não são leitores de palavras cruzadas, mas gente interessada, quase sempre envolvida de alguma forma com uma prática cultural organizada em torno do audiovisual. E isso sem contar outras listas, como as criadas durante as oficinas do programa Cine+Cultura, com muitas centenas de participantes, cujo acesso e avaliação foram apropriados indevidamente e privatizados por um certo grupo.

Mas o melhor indicador para essa produção intelectual é o número de trabalhos acadêmicos: algumas teses de doutorado, várias dissertações de mestrado, incontáveis artigos em revistas universitárias e capítulos de livros coletivos, bem como apresentações em colóquios, a que se somam os trabalhos de conclusão de curso e, last but not least, os textões deste escriba, que fogem um pouco desses formatos mais institucionais, ainda que os pratique de quando em vez. Com extensão mais variada e profundidade idem - já que muitos voltam-se apenas para a divulgação – há ainda um número significativo de blogues e “páginas” de cineclubes e práticas congêneres. Acredito que nunca se escreveu tanto sobre cineclubismo como se faz atualmente – neste século – no Brasil. Penso também que esse fenômeno é possivelmente exclusivo do nosso País, embora haja muitos trabalhos em outros idomas, de outros países, mas em nenhum caso com o volume e a concentração que se vê nesse período em nossa terra.

É curioso que essa atividade se faça, de certa forma, “fora” do movimento cineclubista, restrita aos meios de divulgação institucional do ambiente acadêmico e sem influenciar, aparentemente, as escolhas políticas que se apresentam hoje para os cineclubes brasileiros. Creio que isso se explica em parte pela especialização elitista que caracteriza em boa medida – e também atrapalha bastante seu próprio  desenvolvimento – a produção acadêmica. O isolamento dessa produção confirma a dissociação da maioria dos autores das atividades cineclubistas propriamente ditas, já que geralmente não há “vulgarizações” desses textos. Mas, seguindo o cânone acadêmico, cada vez mais esses textos dialogam entre sí, isto é, são citados reciprocamente. O que já é muito positivo.

Mais importante, porém, me parece o fato de que essa produção está refletindo um impacto do cineclubismo na história e na sociedade brasileiras, que começa a ser reconhecido, a “existir” institucionalmente, a partir desses textos. Consequentemente,  de alguma forma essa reflexão deverá retornar para o movimento, alterar e enriquecer seu nível de autoconsciência; indispensável, por sua vez, para que os cineclubes voltem a ter um papel na sociedade. De fato, assim como é parte do éthos cineclubista a abolição do espaço hierárquico entre a obra cinematográfica e o público, também precisamos, diante dessa produção acadêmica sobre o cineclubismo, promover a sua apropriação pelo público. Isto é, apropriar-se desses textos e reinformá-los, estabelecer o diálogo entre eles e a prática cineclubista. Pretendo consolidar em breve uma primeira listagem desses trabalhos para acesso dos interessados. De qualquer forma, num momento que penso ser de indiscutível refluxo enquanto movimento organizado, o cineclubismo brasileiro parece estar refletindo e acumulando forças para um possível retorno amadurecido.

Por isso mesmo é fundamental denunciar e combater os obscurantistas, os anti-intelectuais que, depois de terem contribuído fortemente para o recuo do movimento, não satisfeitos, perseguem qualquer sinal de vida e inteligência que, independentemente dessas insídias, continuam a germinar e florescer nos interstícios do cineclubismo, na consciência do público.

Felipe Macedo

Setembro de 2017, em Montreal.




[i] ÁLVAREZ, Gabriel Rodríguez. S.d. Contemporaneos y el Cineclub Mexicano: Revistas y cine clubes, la experiencia mexicana. México : Universidade Nacional Autônoma do México.
[ii] GAUTIER, Christophe. 1999. La passion du cinéma. Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. Paris : AFRHC
[iii] Diogo Gomes dos Santos escreve em http://diogo-dossantos.blogspot.ca/. A turma do Paredão era a alcunha do grupo que reunia Adhemar Gonzaga, Álvaro Rocha, Paulo Vanderley, Luís Aranha, Hercolino Cascardo e Pedro Lima.
[iv] MACEDO, Felipe. 1982. O Movimento Cineclubista Brasileiro. São Paulo: Cineclube da FATEC.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017


Em 26 de agosto último, o presidente do Conselho Nacional de Cineclubes divulgou uma curta nota definindo a postura da entidade na preparação da assembleia geral da entidade, voltada para a eleição de uma nova diretoria. Destaco o trecho:  " diante de um cenário político nacional desfavorável ao financiamento público de atividades culturais, evidencia-se a necessidade da realização de um único encontro que venha a promover as eleições de uma nova diretoria para o próximo biênio da entidade." Para tanto, um encontro será realizado em São Paulo, em dois meses (10 a 12 de novembro). Nos dias subsequentes, algumas figuras ligadas ao cineclubismo manifestaram-se a respeito, sempre em apoio a esse processo que estende a vida da entidade.

É o que comento aqui, pensando numa perspectiva mais ampla:

A enésima Jornada
(ou como fazer uma Jornada Nacional de Cineclubes)

O CNC, essa quimera...

Minha intenção não é faltar ao respeito, ofender ou culpar, responsabilizar quem quer que seja, ao nível pessoal, pela situação existente. No entanto, salta aos olhos. E parece que ninguém vê. A partir de 2012, portanto há meia década, um grupo relativamente grande (entre 30 e 50 pessoas), mas que não representa em absoluto, nem de longe, a realidade dos cineclubes e entidades congêneres do Brasil, reúne-se a intervalos de um pouco mais de dois anos cada, para eleger a diretoria do Conselho Nacional de Cineclubes. Não são as mesmas pessoas; uma parte delas, vinda de vários estados, repete-se, é verdade – mas não é um grupo, estritamente, porque não têm maiores afinidades de qualquer tipo –, e algumas há muito mais tempo que o período citado. Estas são as que têm uma mistura de compromisso ético-político com o que compreendem – cada um à sua maneira – como cineclubismo e o que parece uma postura de atração pelo poder, ou melhor pelo prestígio, pelo status que em certas instâncias exala dessa sigla, CNC; dessa espécie de mito que apela mais para a imaginação do que para a realidade. Outra parte, variável, que se substitui periodicamente, é constituída pela esfera dos atingidos exatamente pela ressonância desse mito: são os que mais ou menos recentemente tomaram conhecimento da ideia de movimento, de representação coletiva do trabalho que fazem de alguma maneira em suas bases locais: apaixonam-se pelo cineclubismo – que também entre eles não é uma concepção unívoca - e querem participar, ajudar – sem realmente aprofundarem muito sua compreensão das circunstâncias ou da história. Algumas figuras amalgamam os dois tipos. E, claro, há uma ou outra exceção a tudo isso.

Será a terceira vez. Aconteceu em 2013,  depois de uma primeira gestão improdutiva, iniciada em 2010; repetiu-se em 2015 e agora tenta-se fazer o mesmo ainda em 2017 ou, quem sabe, um pouco depois. E o que acontece? Com muita dificuldade talvez se faça um encontro de no máximo uns 30 grupos ligados de alguma forma ao cineclubismo, um bom número deles sem atividade real, onde se elege uma enorme diretoria, cheia de cargos e de suplentes, com quase o mesmo número de diretores que o das pessoas/entidades presentes. Aí passam-se mais dois anos sem que nada aconteça. A “diretoria” começa no maior pique, fazendo reuniões por skype ou mecanismo equivalente e propondo grandes ideias e muitas reformulações. Mas, como o governo não dá dinheiro, nada acontece e, poucos meses depois, já são uns poucos gatos pingados a pretender representar a tal instituição nacional. Um pouco mais e praticamente cessa qualquer “atividade”, que afinal nunca passou de um mero exercício de imaginação e boa vontade. Aí, findos os tais dois anos (duração do mandato, nos estatutos do CNC), alguém conclama o povo a se reunir e os “de sempre”, junto com mais alguns que aproveitam o embalo, assim como os novos apaixonados que ficam sabendo, todos que citei mais acima, fazem tudo igual de novo.

Será que não dá para ver isso? O único objetivo real desse CNC – ao que parece, de forma mais inconsciente que proposital – acaba por se limitar a fazer um encontro a cada dois anos, unicamente para se reproduzir. Como ele não existe de fato, e nada mais consegue realizar senão esse parto muito induzido, organizar o tal encontro é uma grande dificuldade: às vezes excede bastante os tais dois anos. E acaba reunindo um número menor e muito menos representativo que o universo cineclubista real. É um círculo vicioso: encontro improvisado, eleição sem representatividade, entidade sem força orgânica – sem reconhecimento institucional, político ou social - e ação nenhuma. E tudo pretende recomeçar.

Isso não é obra de pessoas maldosas, ou simplesmente interessadas em ostentar o duvidoso título de “diretor de alguma coisa” (pero que las hay, las hay). Boa parte dos que conseguem participar do tal encontro, com destaque para os que não estiveram nas diretorias anteriores, entram nessa com a maior boa vontade e empenho. Mas, ao que também parece, estão mais ou menos contaminadas pela ilusão e pelo vício herdados das administrações Lula e Dilma – e de lideranças com elas comprometidas de diferentes formas -, de que só é possível se organizar se houver ajuda financeira do governo. É um paradoxo, não? O povo, o público – que os cineclubes supostamente representam de alguma forma - só consegue se organizar se o governo ajudar (isto é, se o governo quiser)? Se já não funcionou com o governo anterior, imaginem com Temer, o espúrio. Melhor juntar mais dois anos e tentar em 2020. Ou pior, se o Messias não voltar: um quadro bem possível é o de uma consolidação liberal-conservadora nos próximos anos; nos quais a cultura, sobretudo a de base comunitária e popular, não terá vez.

Origem da inércia

Não é óbvio que não é por aí? Que os movimentos populares (e o cineclubismo é um deles) têm de se organizar com seus próprios meios, criar seu próprio espaço político, baseado em legitimidade e força alicerçadas nas comunidades? Acredito que as dificuldades, a inoperância e a consequente desorganização mais ou menos generalizada (há exceções, claro) do movimento cineclubista, isto é, dos cineclubes unidos como movimento sócio-cultural, deve-se muito mais a uma concepção - na verdade mais uma incompreensão -, a uma avaliação equivocada, do que a uma fraqueza qualquer de natureza endógena. Desde minha demissão da direção do CNC, no início da gestão 2008-2010 (cf.: http://felipemacedocineclubes.blogspot.ca/2009/08/demissao-amigs-companheirs.html) tenho escrito análises e formulado propostas, na lista de discussão dos cineclubes e no blogue citado, para tentar superar o fenômeno que penso estar na origem dessa “incompreensão” e levantar bases de discussão de um programa de reorganização do movimento cineclubista brasileiro. 

Acredito que minhas análises, grosso modo, mostraram-se corretas. Muito resumidamente, aquele momento – início de 2009 – marcou a capitulação do movimento, institucionalmente através do CNC,  a uma orientação liberal aninhada no governo – um paradoxo (pensarão alguns) apenas aparente -  que se ajuntou bem ao estilo estatizantedo  ministério da Cultura. Posteriormente, no período que vai até a Jornada de 2010, em Moreno (PE), essa relação se transformou em dependência, e numa verdadeira promiscuidade, misturando lideranças com benefícios e vantagens, uma espécie de versão cineclubista das relações que predominam nos ambientes parlamentares, que todos conhecemos. O “movimento”, leia-se o CNC de então e a maioria das lideranças regionais, aderiu e promoveu de tal forma essa proximidade com o governo que instaurou-se até um culto a certas personalidades governamentais. A própria FICC (Federação Internacional de Cineclubes), que reuniu sua assembleia geral paralelamente àquela Jornada, foi contaminada, e manifestou-se publicamente em favor de um “candidato”[i] informal à sucessão ministerial na época! O movimento cineclubista, mesmo reunido em assembleia nacional – a mais rica, mais bem financiada de todos os tempos, com os delegados contemplados com passagens aéreas (e a imensa maioria ausente dos trabalhos, nas praias de Pernambuco) – nada reivindicava, nada criticava: suas manifestações eram, no máximo, pela defesa irrestrita e pela reprodução totalmente acrítica dos programas e mesmo, como vimos, dos responsáveis governamentais. Na verdade, esses benefícios, em sua maioria, se constituíam em magros incentivos[ii] (equipamentos bem básicos de projeção, com custo pelo menos 10 vezes inferior aos recursos alocados pelo mesmo ministério para qualquer das produções digitais mais baratas, por exemplo) que duraram apenas cerca de dois anos. A Programadora Brasil – base de conteúdos criada no mesmo programa geral de formação de plateias para a produção amadora de vídeos, altamente burocratizada e seletiva, sem participação cineclubista – durou o mesmo tempo.

          Moreno marca o encerramento de todo um período histórico, que vai da reorganização conflituosa do cineclubismo brasileiro, em 2004, até 2010, com o atrelamento ao governo e a realização da última Jornada regulamentarmente organizada e a eleição de sua última diretoria legítima, para o período 2010-2012. Mas marca também o fim do precário e efêmero apoio/dirigismo federal – que por sua vez influenciava muito os programas estaduais, onde os havia – e a rápida falência não apenas dos programas como Cine+Cultura e Programadora Brasil, mas também das muitas centenas (o governo federal alardeava alguns milhares, em 682 municípios – e previa triplicar o número de cidades até 2020[iii]) de cines+ ou cineclubes criados pelo governo, denominação que depende da perspectiva de quem os mencionava. A artificialidade da iniciativa ficou comprovada pela história[iv]. A herança desses anos é essa ideologia da benesse estatal e a pasmaceira diante dos desafios da praxis cultural do audiovisual comunitário no Brasil.

Esse quadro não deve excluir, claro, diversos outros fatores que contribuem para uma desorganização mais ou menos generalizada dos movimentos sociais e até uma certa apatia da população em geral com os abusos à democracia e especialmente aos direitos trabalhistas, que sequer se limita ao Brasil. Minha avaliação, contudo, quis sobretudo aprofundar a especificidade do fenômeno no movimento cineclubista em nosso País.

O desafio da reorganização

A gestão 2010-2012, praticamente inócua, foi a primeira vítima dessa herança e o início do que configura o atual período histórico (2011-?). Não conseguindo encerrar seu mandato com a devida assembleia, a instituição nacional do movimento cineclubista deixou de existir legal e politicamente. Mas, entre representantes do período anterior e personalidades do tipo que descrevi no começo deste texto, organizou-se uma “Jornada” pouco mais de um ano depois, em meados de 2013[v]. Ali se caracteriza o modelo que buscará se reproduzir até agora, como também já abordei. Ética e legalmente, o CNC que se constituiu desde então não pode ser reconhecido. Não obedece às normas democráticas de qualificação dos participantes, de convocação e de instauração da assembleia geral do cineclubismo brasileiro. Isso, sem mencionar sua ilegalidade formal, jurídica. Se politicamente podemos lhe reconhecer alguma representatividade, ela está ligada apenas ao relativamente pequeno e incaracterístico grupo que reúne, e não pode nunca ser confundido com a totalidade dos cineclubes do Brasil, que seguem sua vida como podem. Poderíamos dizer que esse CNC marca também, de alguma forma – desde sua constituição em 2013 – o fim da unicidade representativa do cineclubismo brasileiro e o início de uma pluralidade que, aliás, existe em movimentos cineclubistas de alguns outros países[vi]. Como não é mais uma legítima entidade nacional, mas representa de alguma forma o grupo de pessoas/entidades que o coonestam, reconhecem, e dele participam - mesmo que de forma virtual, abstrata -, o CNC é hoje uma organização “a mais”, dentre outras potencialmente possíveis, de grupos vários que se possam constituir. Seja dito de passagem que a própria Federação Internacional de Cineclubes encontra-se em situação mais ou menos comparável, uma vez que sua direção, coincidentemente presidida por um brasileiro, também entrou na ilegalidade formal desde o início de 2015, adotando um mecanismo semelhante para se perenizar.

Em O Partido Cineclubista – O que fazer?, de setembro de 2016, abordo os desafios mais gerais que se colocam para o cineclube, diante não apenas dessa desorganização nacional do movimento, mas também da implantação do ilegítimo governo Michel Temer e possível continuidade liberal-conservadora e, finalmente, em vista da revolução tecnológica que influencia profundamente as relações entre a produção audiovisual e o público. Em O cineclube contemporâneo, de outubro de 2015, formulo propostas bem detalhadas de organização do cineclube tal como deve, a meu ver, se constituir e enraizar dentro das comunidades brasileiras, ao mesmo tempo aproveitando a larga experiência histórica do cineclubismo e transformando-a profundamente, em função justamente desses novos desafios. Os dois textos estão também disponíveis no blogue https://felipemacedocineclubes.blogspot.ca. Em outros artigos, Teses para uma Jornada de cineclubes e entidades congêneres (julho, 2015) e Fique são (fevereiro de 2013) – igualmente no blogue citado –, escritos por ocasião dessas falsas jornadas a que me referi, sugeri que os envolvidos na precária organização desses encontros assumissem essa condição de maneira propositiva, tornando-os em um encontro sem representatividade formal mas que poderia se articular para, com o devido tempo e preparação, organizar uma ampla e democrática assembleia que, aí sim, se constituíria como uma verdadeira Jornada Nacional de Cineclubes e teria representatividade para decidir e eventualmente reorganizar institucionalmente o CNC - como, aliás, já aconteceu três vezes em nossa história, contando com a fundação da entidade: em 1961, 1974 e 2004. Pelo menos as duas úlimas, de que participei intensamente, tiveram mais de um ano de discussão e preparação antes de se reunirem efetivamente.

Como fazer uma Jornada

          O subtítulo é mais provocativo que pretensioso de fato. Toda a minha pretensão resume-se em tentar interpretar a experiência adquirida da história do movimento e do aprendizado pessoal que construí atuando na preparação e organização de mais de uma dúzia dentre as 18 jornadas de que participei em 45 anos de militância cineclubista. Não pretendo ensinar ninguém a fazer uma Jornada, mas recuperar uma experiência coletiva bastante repetida e testada que, à luz da análise aqui desenvolvida, pode contribuir para um caminho mais democrático e mais produtivo para o cineclubismo brasileiro hoje. E, sobretudo, de maneira livre e independente. Creio que tal experiência pode ser resumida, para facilitar a leitura, em alguns pontos, sugestões que passo a elencar:

1.    Reunião: Esse encontro proposto pelo presidente do CNC deve ser encarado como um reunião não representativa e tomado como base inicial de organização de uma ampla assembleia digamos, em 13 ou 14 meses, considerando que essa reunião agora se dê em dezembro. Se, mais uma vez, esta proposta for ignorada e o encontro eleger uma nova diretoria do CNC, qualquer outro grupo de cineclubistas compromissados com uma verdadeira reorganização do movimento deveria assumir essa responsabilidade e organizar uma Reunião Preparatória para uma Jornada Nacional de Cineclubes. Passo a usar o termo Reunião para ambas as alternativas.

2.    Pauta:A pauta dessa Reunião deve ser: a) local da Jornada; b) data da Jornada; c) sugestão de pauta para temário da Jornada, a ser discutida durante o período que a antecede, prioritariamente através da lista cncdialogo, e eventual e complementarmente, por outros meios que se aprovem (por exemplo, página especial no Facebook ou coisa equivalente – mas sempre em complemento à cncdialogo),d) local e data da Pré-Jornada, a ser realizada 6 meses antes da Jornada; e) constituição de uma Comissão Organizadora da Jornada enxuta, com representantes dos cineclubes das cidades escolhidas para a Jornada e Pré-Jornada e outras pessoas que possam efetivamente contribuir física e logisticamente para a organização dos dois encontros – a Comissão não deve exceder 10 ou 12 pessoas/cineclubes {cabe uma exceção: a cidade sede pode ter mais de um representante na Comissão, em função de responsabilidades bem definidas – e sem ultrapassar 1/3 (um terço) dos membros da Comissão}.
A Comissão Organizadora da Jornada tem a função exclusiva de organizar a Jornada, não se constituindo como uma forma de representação mais ampla, não lhe cabendo se manifestar em nome dos cineclubes brasileiros sobre qualquer outro assunto.

3.    Pré-Jornada: A Pré-Jornada é uma reunião da Comissão Organizadora (e convidados, sem voto, que tenham surgido no período por envolvimento direto com a organização prática da Jornada) que deve se realizar em torno de 6 meses antes da Jornada para deliberar, de acordo com o desenvolvimento das discussões abertas de todos os cineclubes do País, uma proposta de programa (organização de horários, plenárias, grupos de discussão, eventos especiais) e temário (conjunto dos assuntos a serem debatidos), que serão discutidos a partir dessa data até (cerca de 6 meses depois) a plenária inicial da Jornada, instância soberana que aprovará definitivamente o programa e o temário a ser discutido durante a assembleia.

4.    Data: a Jornada deve ser realizada no período de férias escolares (janeiro, fevereiro ou julho) de forma a ser bem acessível aos jovens – parte significativa do movimento – e a outros segmentos. Realizar em época de provas, por exemplo, ou durante o ano letivo, certamente compromete a participação. Uma boa solução é realizar a Jornada no começo do ano e a Pré-Jornada em julho, ou inversamente.

5.    Local: a Jornada deve ser realizada em uma cidade não turística, sem praias ou outros atrativos que possam de alguma forma esvaziar os trabalhos. Na atual conjuntura, penso que a cidade não deve ser de difícil acesso, isto é, deve ser bem servida pelos sistemas mais baratos de locomoção. A cidade que a acolher deve ter uma infraestrutura capaz de receber (alojar e alimentar) de 200 a 500 pessoas (uma avaliação mais precisa pode ser feita durante o processo nacional de discussão e com uma pré-inscrição mais extensa – mas que não seja muito rigorosamente impeditiva). O ideal é que um cineclube faça antes da Reunião as negociações e tratativas com as instituições municipais e outras que assegurarão a realização local e que venha com uma proposta consolidada, comprovada e detalhada (alojamento, alimentação, transporte local, locais de reunião – para grupos e assembleias -, eventos, etc) para apresentar à decisão da Reunião – ou, se não tiver sido o caso, à Pré-Jornada. Sem esta posição inicial bem resolvida[vii] pelo menos seis meses antes, não há como se organizar uma Jornada, que deverá ser postergada até resolução dessa questão. Aqui não cabe amadorismo (no mau sentido) nem irresponsabilidade.
No entanto, num país com quase 6 mil municípios, dos quais pelo menos uns mil têm as características necessárias para acolher uma Jornada (e nos quais se encontra a grande maioria dos cineclubes mais organizados e atuantes), essa tarefa não é tão difícil quanto parece. Claro, isso depende muito da força política e da inserção do cineclube proponente em sua comunidade: daí deriva sua capacidade, senão sua habilidade de negociar com os parceiros necessários para essa empreitada.
Considerando a situação política desfavorável no plano federal e o desinteresse costumeiro das empresas em geral com o cineclubismo, deve-se procurar o apoio de instituições locais: prefeituras progressistas ou interessadas na promoção institucional da cidade, instituições culturais e educativas (unidades do Sesc e outras estruturas semelhantes, universidades, colégios, conventos, etc) e organizações populares (sindicatos, MST, etc). Uma prefeitura, usando sua própria estrutura de serviços (alojamento em escolas nas férias, colchões da Defesa Civil, alimentação da Merenda Escolar, ônibus escolares para transporte local, etc) pode certamente receber algumas centenas de cineclubistas num evento que projetará politicamente o renome da cidade. Mas muitas jornadas tiveram alojamento e alimentação em espaços e estruturas de outras instituições, como as já citadas. Hotéis podem participar com alojamentos especiais, para convidados de mais renome, que valorizarão esse apoio. O mesmo pode ser negociado com algum comércio ou indústria locais (para fornecimento de insumos: desde alimentos até papelaria, computadores, etc). Não há que esquecer ou desistir das instituições estaduais e federais – secretarias, ministério – que serão, contudo, tanto mais inclinadas a dar algum apoio quanto maiores ou mais importantes forem as parcerias já estabelecidas.
Os itens aqui mencionados – alojamento, alimentação, instalações diversas, transporte local e logística do evento – são os mais essenciais para a organização de uma Jornada, considerando-se a base quantitativa que também adiantei: de 200 a 500 pessoas. Não há como saber inicialmente o número definitivo – que só será “fechado” idealmente 2 meses antes do evento, e ainda assim, apenas prospectivamente, pois sempre haverá inscrições de última hora, que devem ser atendidas desde que possível. A negociação inicial, portanto, deverá prever essa flexibilidade (e até maior, se a resistência a este governo atual ou seu eventual sucessor fortalecer muito a militância cineclubista). Uma espécie de check-list destes e outros aspectos é o ponto de partida do cineclube que quiser se propor a organizar uma Jornada. A mesma checagem deverá ser feita pela Reunião, inversamente, para verificar a viabilidade da proposta.

6.     Duração e organização: Especialmente numa conjuntura de retomada e reorganização, a Jornada deve ter uma duração suficiente para promover o entrosamento dos participantes, assegurando a realização de discussões amplas sobre todos os temas estabelecidos – que não serão poucos. A jornada tem uma tradicional divisão em Grupos de Trabalho temáticos – que permitem a participação mais direta de cada membro de cada entidade e possivelmente um maior aprofundamento das questões – e Assembléia, geralmente dividida em algumas plenárias (pelo menos duas: a de abertura e deliberação de programa e temário e a de deliberação final e encerramento – que pode, ainda, incluir eventuais processos eleitorais), quando se realizam as deliberações do conjunto dos participantes, discutindo e votando as proposições dos grupos de trabalho, as formuladas diretamente no debate em plenária e moções diversas, além dos eventuais processos eleitorais. Historicamente, a maioria das Jornadas teve duração de 5 dias, suficiente para assegurar a grande experiência coletiva que ela representa para os cineclubistas e, concomitantemente, permitir o debate franco e profundo indispensável para o avanço do movimento. De fato, com o enfraquecimento do movimento, as Jornadas foram ficando mais espaçadas (antes eram anuais) e mais curtas, cada vez mais concentradas no mero processo eleitoral. A Jornada deve ser o mais aberta possível, acolher o maior número possível de pessoas – esta é uma das suas características mais essenciais.

7.    Transporte: As instalações da Jornada devem ser centralizadas em um ou poucos espaços e, neste caso, eles devem ser próximos. Isso definirá a necessidade, ou não, de transporte local, item que faz parte das atribuições da Jornada.
O transporte dos participantes a partir de suas cidades é responsabilidade deles. Evidentemente, várias pessoas de um ou mais cineclubes podem se organizar para conseguir melhores custos de transporte. Também podem reivindicar apoios privados ou públicos. Em estados ou regiões onde existem federações de cineclubes, estas podem fazer essas tratativas ainda com mais força, especialmente junto aos poderes públicos.

8.    Participantes na Jornada (qualificação): Esta é uma questão fundamental. Da qualificação das entidades participantes depende a lisura, representatividade e democracia das deliberações que podem levar a uma sólida organização nacional - mesmo que não seja pela imediata constituição de uma entidade representativa nacional, mas pelo estabelecimento de um programa de trabalho, por exemplo – decisões que só cabem a uma ampla assembleia de cineclubes claramente identificados.
Há muitas entidades, trabalhos, práticas congêneres do cineclubismo. Numa época de uma certa crise deste último e sobretudo de mudanças significativas nas formas participativas ou sem fins lucrativos de relação entre a produção audiovisual e os públicos, há que se preservar e mesmo promover o diálogo, as ações e reivindicações comuns possíveis entre os cineclubes e as entidades congêneres, definindo e preservando suas diferenças em função mesmo do estabelecimento de ações comuns. Assim, estas últimas também devem ser chamadas para a assembleia nacional dos cineclubes, mas qualificadas em separado. A diferenciação assegura a identidade de cada atividade, ao mesmo tempo que estabelece bases claras e seguras para uma colaboração produtiva. Há ainda outras categorias de participantes que é importante definir. Todas as condições que elenco a seguir estão nos estatutos do CNC que vigoraram até 2010 e foram observadas em todas as 20 Jornadas realizadas entre 1974 (quando o CNC passou a reunir cineclubes, antes era um conselho de federações regionais) e 2010.

8.1   Cineclubes: Participação plena, com direito a voto (um voto por cineclube). A Jornada não deve estabelecer limite de participação aos membros de cada cineclube. A Jornada não é um procedimento (meramente) eleitoral, ainda que implique em várias deliberações. Ela é sobretudo uma ocasião de congraçamento e de intercâmbio, tradicionalmente se organizando em grupos de trabalho e outras formas de atividade que até recomendam a presença de mais integrantes de cada cineclube. Para os cineclubistas, individualmente, constitui uma experiência única e muito marcante, geralmente fundamental na consolidação da sua adesão ao movimento. A dificuldade de transporte já faz uma triagem severa na capacidade de participação. Só em casos excepcionais deve se estabelecer um limite (tão elevado quanto possível) ao número de participantes por cineclube.
Os cineclubes devem constituir-se como associações abertas, democráticas e sem fins lucrativos; sua direção e o conteúdo das diferentes atividades deve ser controlada pelos associados. Isto não implica necessariamente registro legal, mas a demonstração de que a estrutura e gestão são do conhecimento e têm o aval da comunidade em que o cineclube atua;
A direção dos cineclubes, independente de sua construção formal, deve ser sujeita a avaliação, controle e escrutínio periódico pelos associados ou pela comunidade em que se insere. Para comprovar os elementos referentes à organização, os cineclubes devem apresentar estatutos, regimentos, declarações de associados ou frequentadores, além das atas de eleição ou outras provas de renovação de sua direção a critério da Comissão Organizadora, com recurso ao plenário da Jornada (plenário este constituído pelos cineclubes reconhecidos até a votação do dito recurso);
Os cineclubes devem ter entre suas atividades a projeção periódica e sistemática de filmes e/ou outros materiais audiovisuais com intervalos de, no máximo, um mês;
Para participação plena os cineclubes deverão demonstrar sua existência há pelo menos 6 (seis) meses anteriormente à reunião. Para comprovar sua atividade, os cineclubes devem apresentar material publicado na imprensa, cartazes, folhetos, divulgação na internet ou outros, verificáveis a critério da Comissão Organizadora, que comprovem tanto a antiguidade mínima quanto a sistematicidade de seu trabalho;

8.2     Cineclubes em formação: os cineclubes que não tiverem ou não puderem comprovar todos os elementos acima (pouco tempo de existência, itens ainda a organizar, etc.) serão considerados em processo de formação; poderão participar de todas as atividades da Jornada com direito a voz, mas sem direito a voto.

8.3     Entidades congêneres: as entidades de exibição audiovisual cultural ou educativa, sem finalidade lucrativa – mas que não se constituem como organizações associativas e democráticas – terão acesso a todas as atividades da Jornada, com direito a voz, mas sem direito a voto. Sugestão minha: em assuntos, temas, reivindicações e deliberações de interesse comum (legislação para atividade sem fins lucrativos, por exemplo), essas entidades poderão manifestar sua adesão às decisões, que assim ficarão fortalecidas e de representatividade mais abrangente. Também poderão propor observações complementares às decisões, quando estas não as incluírem, desde que não acarretem prejuízo aos cineclubes;

8.4     Convidados – Personalidades ou instituições convidados pela Comissão Organizadora, ou por sugestão oriunda das discussões abertas preparatórias e adotadas pela Comissão, terão pleno acesso a todas as atividades da Jornada, com direito a voz, mas sem direito a voto.

8.5               Observadores - Qualquer instituição ou pessoa que queira participar de todo o Encontro sem ser parte das categorias anteriores. Devem pagar o custo integral de sua participação e não têm direito de voto.

Nota: Caso o número de inscrições exceda a capacidade de acolhida, a prioridade deve ser a ordem estabelecida acima, com exceção da categoria dos convidados. Vale também a observação já feita sobre o estabelecimento de limite de número dos participantes de cada cineclube.

          Não sou muito otimista quanto ao resultado deste texto, pelo menos de imediato. Provavelmente não haverá nenhum encontro, dada a fraqueza desse CNC, mas também é possível que se consiga reproduzir o que descrevi no início deste texto, o que será inócuo, senão nocivo mesmo, para o movimento cineclubista brasileiro.

De qualquer forma, como sempre faço, não me abstenho e procuro fazer uma crítica séria e uma contribuição construtiva. Este e os demais textos aqui citados poderão um dia, possivelmente, ser aproveitados pelos cineclubistas que queiram refletir sobre nossa prática e nossa história.

Em Montreal, setembro de 2017





[i] Trata-se do “Volta Juca”, campanha orquestrada com a presença do interessado, Juca Ferreira (ministro extamente no período aqui mencionado – 2008-2010), e homenagens diversas com vistas à sua manutenção no primeiro governo Dilma Roussef, que começaria um mês depois. Nunca antes a entidade mundial havia sido instrumentalizada nesse nível. Na mesma assembleia da FICC foi eleito presidente o brasileiro Antonio Claudino de Jesus.
[ii] Digo “em sua maioria” porque também ocorria a sobreposição de financiamentos, com algumas entidades e/ou pessoas acumulando subvenções de diferentes editais, prêmios, etc., federais e, em alguns casos estaduais, o que acabava por totalizar somas importantes.
[iii] Metas do Plano Nacional de Cultura, do Ministério da Cultura, dezembro de 2011 (quando as atividades já estavam paradas há mais de um ano). Disponível em http://www.cultura.gov.br/documents/10883/11294/METAS_PNC_final.pdf/
[iv] Na história do cineclubismo brasileiro há outros exemplos que podemos associar a esse processo: a distribuição maciça de projetores 16 mm no programa anticomunista norte-americano Aliança para o Progresso (1961-1970), que acabaram sendo muito usados posteriormente, na resistência à ditadura, ou mesmo a rápida falência dos cineclubes católicos com a retirada do apoio efetivo da Igreja Romana, no início dos anos 60.
[v] Ver nota vii adiante.
[vi] Pelo menos França e Itália têm mais de uma federação nacional de cineclubes.
[vii] Em 2010, a representação da Bahia propôs a realização da Jornada seguinte em seu estado, sem qualquer condição assegurada. Mesmo assim a proposta foi aprovada. Essa – e a ausência de controle por parte da diretoria do CNC, responsável final pela realização do evento - foi a principal razão para que a Jornada seguinte, com seu corolário de eleições, etc., não se realizasse no devido tempo. A insistência, também sem fundamento, da mesma representação, em que “logo” se conseguiriam os recursos necessários, explica o adiamento por mais um ano e meio – até meados de 2013 – e a organização improvisada e sem representatividade da “Jornada”, finalmente, em Vitória (ES), com um número bem reduzido de pessoas/entidades, praticamente coincidindo com o número de cargos a serem preenchidos.