terça-feira, 6 de agosto de 2019

New York Movie - Edward Hopper, 1939


Existe um cinema cineclubista? 
(Notas sobre o filme Passaporte para Osasco)

Na minha opinião, ainda não. Mas certamente o documentário Passaporte para Osasco é um passo importante nesse caminho. Tenho visto, sempre que descubro indicações suficientes, filmes realizados em torno do universo dos cineclubes e de outras atividades comunitárias de expressão audiovisual em ambientes populares; o filme de Rui Souza ocupa um espaço diferenciado.

Rememorando o mais óbvio: com a revolução digital, especialmente neste século aconteceu uma progressiva democratização do acesso aos equipamentos de reprodução da imagem e do som, processo que continua permitindo a utilização, por meios privados, de aparelhos capazes de captar a realidade de formas cada vez mais sofisticadas – e a preços crescentemente acessíveis. No Brasil, isso mudou a forma de organização e representação social e política do segmento produtor de documentários, curtas-metragens e outras formas menos reconhecidas pelo já estreito mercado audiovisual comercial. A ABD, entidade que representa esse segmento, deixou de incluir apenas os estados mais ricos – como era durante a época do cinema em película – estendendo-se por todas as unidades da federação. Paralelamente, essa “democratização” da produção audiovisual também acarretou inicialmente uma queda generalizada da qualidade do material produzido. Com equipamentos mais baratos e simples, a formação dos novos realizadores passou a ser, em grande parte, rápida e superficial. Os equipamentos também facilitam um emprego mais bruto, sem conhecimento e domínio da linguagem, técnicas e estilos do cinema e de suas aplicações em outros formatos. Som, iluminação, enquadramento e movimentação de câmera tenderam a uma simplificação ou imediatismo (diversas funções reunidas num só aparelho) que prejudicaram muito, especialmente nos primeiros anos, a maior parte – com notáveis exceções, é claro – dessa produção.

Sem estender muito esta recapitulação – tenho falado bastante sobre isso em outros artigos acessíveis neste blogue – outro aspecto dessa democratização da produção e reanimação do cinema amador, foi o ressurgimento da sua interface com o movimento cineclubista. A rearticulação deste último foi, de certa forma, iniciativa do primeiro, que pouco a pouco assumiu um papel preponderante. De fato, uma leitura possível desse fenômeno poderia passar pelo próprio desenvolvimento tecnológico e pela distribuição comercial dos aparelhos de captação de imagem e som, entre 2003 e 2010.

A acessibilidade também está ligada aos preços decrescentes. Desde o início houve uma ligação entre muitos dos novos realizadores e comunidades populares. Um aspecto disso se afirma e se identifica claramente com as políticas federais de produção de filmes amadores e, em seguida, com os programas de distribuição de filmes e equipamentos básicos de projeção nos meios populares. Outro aspecto, complementar, foi o da criação de projetos de formação de realizadores, as chamadas oficinas de cinema, programas simplificados de curta duração que, a meu ver, caíam bastante naquela categoria que Paulo Freire descrevia como “modelos copiados do opressor para supostamente promover os orpimidos”.

Na minha pesquisa informal mas cotidiana por um cinema realmente popular, algo que se poderia chamar inicialmente de cinema cineclubista, o que mais encontro são exemplos de produções realizadas durante esse tipo de oficinas ou que derivam desse tipo de formação. De uma maneira geral, confirmam Paulo Freire: são filmes toscos, extremamente conservadores no que tange à forma e frequentemente também quanto ao conteúdo. Não apenas não superam um cinema de orientação comercial como sequer resistem à comparação. Esses filmes, contudo, têm a marca do público como autor: não costumam valorizar a apropriação individual da autoria – embora os “professores” que orientam essas produções gostem de destacar sua participação. A autoria, a meu ver, é uma forma de propriedade privada no nível do simbólico e uma marca que distingue um cinema sem verdadeira representação ou identidade popular.

Mas a referência à autoria, num filme, nem sempre identifica realmente um autor nesse sentido de apropriação da realização. Posso estar enganado, mas é o que senti, inferi de Passaporte para Osasco. O filme indica que a direção, roteiro e montagem são de Rui Souza, mas o restante da ficha técnica aponta para um trabalho bem mais coletivo: João Luiz de Brito Neto fez a fotografia e o som direto, além de assinar conjuntamente a montagem. Também notei a participação de outros integrantes do velho núcleo de militantes que compõem o Centro Cineclubista de São Paulo, como Cacá Mendes na produção executiva e, nos agradecimentos, Diogo Gomes dos Santos. Os créditos do filme indicam que é uma produção do Centro Cineclubista e dos cineclubes Kinopheria (do bairro de Itaquera, dirigido por Brito Neto) e Alto do Farol, de Osasco. Um pouco de pesquisa dá consistência ao que o filme exala nas entrevistas: é um trabalho de fôlego, com uma longa preparação – as entrevistas foram filmadas entre 2005 e 2007, mas o filme só chegou à forma final no início de 2016 (e eu só o descobri agora!).

Rui Souza vive em Osasco há cerca de 40 anos, teve seus contatos iniciais com o cineclubismo através do mesmo Centro Cineclubista, em 1985. O filme, e outras manifestações dele, como o blogue www.netodohumbertomauro.blogspot.com mostram essas filiações. O filme foi feito com uma equipe enxuta, um grupo de pessoas que se identificam, com objetivos comuns. As entrevistas também são quase íntimas, no sentido de que os entrevistados estão muito à vontade, falando com os seus, com gente de casa, com companheiros da comunidade de Osasco – e da classe trabalhadora, em última instância. Pois é disso que se trata: um levantamento da memória da histórica greve de 1968 em Osasco e outros acontecimentos – inclusive da luta armada – daquele período. Música e outros elementos do filme também foram reunidos com gente próxima. É um filme comunitário em muitos e vários sentidos: realizador, equipe e mesmo o objeto são parte de um coletivo. Pelo menos foi assim que senti e percebi o filme.

Além desta minha birra com a autoria, também acho que um dos objetivos fundamentais de um cineclube – ou mais profundamente, da comunidade em que se instala um cineclube, através dele – é a coleta, preservação e difusão da memória, portanto de parte fundamental da identidade da comunidade. De uma maneira geral, acho que a expressão audiovisual – o objetivo máximo da instituição cineclubista – não deve começar pela ficção. Claro que isso é uma generalização imprecisa, e haverá exceções, mas como tenho notado na produção de origem comunitária que conheço, a pretensão ficcional frequentemente acaba em maus filmes. Passaporte para Osasco é, nesse sentido, um grande trabalho de pesquisa, recuperação e disponibilização da memória e identidade de Osasco e da classe trabalhadora. Mostra um interessante e pouco usual material de arquivo também. Os créditos – eu nunca tinha visto isso – até indicam os livros e filmes pesquisados, confirmando esse caráter de investigação, de sério compromisso, que usualmente só se encontra na produção acadêmica. O filme, assim, supera outras produções documentárias identificadas com o dispositivo comercial – parafraseando Gramsci: supera “intelectual e moralmente” outras produções.

Não sou chegado às “análises de filmes”. Analisar um filme de forma tradicional, para mim, é como explicar uma piada. Ou você pegou a graça ou não adianta tentar explicar. A discussão da relação entre o filme e a experiência do público – que é a prática do debate cineclubista (não é nem crítica nem análise no sentido tradicional) – se dá na projeção, no coletivo. Portanto não me interessa muito aqui se estou de acordo com os pontos de vista dos entrevistados ou com uma visão da questão política brasileira que também aflora do filme. Porque penso, e até nisso o filme contribui, que o público saberá, nas suas próprias circunstâncias, fazer essa avaliação. O filme é fluente, claro, aberto ao debate. São 90 minutos que não cansam em momento algum, acho, conservando um estímulo e uma originalidade que também não são comuns em tantos outros filmes que tangenciam de certa forma a mesma questão – e que são citados nos créditos. Não é nada tosco, retomando minha severa afirmação anterior.

Não sei como anda o cineclubismo em Osasco agora, ou em 2016, mas vejo esse filme imerso numa cultura cineclubista, um passo e um exemplo no caminho de um cinema  compromissado com a emancipação do público, do povo. Um cinema em que o público, a comunidade é o autor.