segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Vontade Política:
um cinema popular
em cada comunidade




“Um Brasil cheio de pequenas salas de cinema de qualidade. Fruindo o cinema nacional e tantos outros com muita dignidade.”
Gizely Cesconetto, mensagem 16383 da lista cncdialogo@yahoogrupos.com.br

Várias mensagens, na lista convivial dos cineclubes brasileiros, têm abordado a questão da falta de cinemas no Brasil e o sonho natural dos cineclubistas de superarem esse problema em suas cidades, em suas comunidades. Acho que quem começou foi o Paulo Rodrigues, esse Hermes ituano da lista cineclubista, seguido por comentários da Fernanda Lopes, da Ana Vidigal, uma bela crônica de Abrahim Baze, para citar os de que me lembro agora. De vários pontos do País. Até o Capitão Miranda, nosso inesquecível Vigilante Rodoviário, se manifestou. Acho que é perfeitamente possível termos um cineclube em cada comunidade brasileira (e de muitos outros países com condições semelhantes), com conforto, qualidade, dignidade. A mensagem da Gizely Cesconetto, que resume tão bem esse nosso sonho na frase que serve de epígrafe a este texto, também aponta o que penso ser simultaneamente o problema e a solução da questão: vontade política.

Temos o mau costume de identificar essa faculdade tão básica, a vontade, como atribuição do governo. Talvez, no caso, por que vem associada ao adjetivo política. Política como “arte de governar”, como trato das questões do Estado. Mas, na sua origem, o termo deriva de cidade, sem ornamentos administrativos; identifica-se com a reunião dos cidadãos, que é o exercício básico da política. Em ambos os casos, trata-se, enfim, de resolver os problemas da cidade, do conjunto da população. Assim, creio que pensar em vontade política, aplicada à questão da inexistência de cinemas, remete a, pelo menos, três ordens de consideração. Há a vontade política governamental, expressa nas – ou na ausência das – políticas públicas. Existe uma questão de vontade política do movimento cineclubista, como segmento organizado politicamente em entidades locais e nacional que o representam politicamente. E tem a vontade política da comunidade, que a cada cineclube incumbe personalizar, e essa última vontade se incorpora na militância de cada cineclubista que participa desse coletivo. A militância é expressão mais pessoal da vontade política. Evidentemente essas coisas só se separam na exposição do pensamento, porque lá fora, na realidade, estão fortemente imbricadas. Vou tratar rapidamente desses três ou quatro aspectos da vontade política.

Vontade política do Estado e do governo

No meu artigo O Modelo Brasileiro de cinema, procuro mostrar como a compreensão dos problemas do cinema brasileiro, no plano institucional (isto é, nos meios acadêmicos, na imprensa, nas diferentes esferas dos governos), ao longo dos tempos, sempre foi confundida com - e reduzida à - questão da produção. Isso se deve à hegemonia do modelo de Hollywood (em que a produção se localiza na origem do modelo econômico do cinema (1)) no plano ideológico, e à importância, o predomínio do ponto de vista dos produtores/realizadores brasileiros no espaço político e público de discussão do cinema brasileiro. Para além de qualquer “culpa”, esse já é um preconceito enraizado na nossa “cultura”, na maneira preponderante de vermos a questão do cinema. Um caso bem explícito de hegemonia ideológica. Claro que isso também está estruturalmente ligado à exclusão, igualmente “cultural”, dos interesses do público na questão.
Em outras palavras, a política pública para o cinema brasileiro sempre foi, quase exclusivamente, de investimento na produção, de sustentação da produção. Nunca houve uma política de apoio à exibição (2) e apenas controles bem frouxos da distribuição (cotas de tela, “Lei do Curta”). Defender o cinema brasileiro, nas consciências “cultas”, virou sinônimo de fomentar e proteger a produção. “Cinema brasileiro” virou produção...
Mesmo atualmente, com a inevitável tomada de consciência (num mercado exibidor que é 20% do que foi há 30 anos, e o público 6 vezes menor (3)) sobre a importância da exibição, ela ainda é vista como corolário, extensão do apoio à produção. Como o mercado não exibe filmes brasileiros - não porque o público não tem acesso ao cinema -, há que se criar mais salas de cinema. O público, cuja exclusão do “cinema brasileiro” (na verdade, exclusão do cinema e do processo cultural em geral) é gritante, constitui apenas um álibi conveniente: é sempre considerado como estatística, como platéia receptora desprovida de consciência, de interesses e de projeto para a comunicação audiovisual no Brasil. Pode-se até criar mais pontos de exibição, mas não é o público – e sim os ingressos (ou relatórios de público) – que interessa.
Esse é o cerne dos programas da Ancine de criação de salas de cinema, que não questionam o modelo desse mercado - antes procuram irrealisticamente reproduzi-lo. Pela primeira vez na história deste país será uma medida de apoio à exibição, mas apenas pontual, não estrutural, não questionando o modelo em vigor, e beneficiando setores bem específicos entre os exibidores (os projetos excluem a sociedade organizada em entidades sem fins lucrativos). Da mesma forma, a orientação do programa Cine+Cultura, de distribuição de sistemas de projeção “amadores” é, essencialmente, promover a circulação de curtas-metragens (sobretudo os produzidos com recursos públicos), cuja produção cresceu exponencialmente com as políticas públicas mais democráticas do atual governo e com a criação de novos espaços políticos no Estado, basicamente ocupados por essa mesma produção, antes mais marginalizada (4).

Vontade política do Conselho Nacional de Cineclubes

Estes questionamentos, especialmente quanto ao Cine+Cultura, aborrecem, incomodam algumas pessoas, principalmente dirigentes do movimento envolvidos com o projeto, e algumas entidades que foram beneficiadas pelo próprio. Nesse sentido, é importante compreender duas coisas. Primeiro, que a crítica é uma atividade indispensável, particularmente para a prática cultural. Abolir, esconder, recalcar a crítica, ao invés de contribuir para o desenvolvimento das “políticas públicas”, implica na sua extenuação e na criação de uma atitude de acomodação e subserviência. Segundo, que a atitude crítica não debilita a posição do movimento junto ao Estado ou ao governo. Ao contrário, é a manifestação consciente e representativa de um movimento atuante que o qualifica como interlocutor do Estado. Mais importante que o ilusório e efêmero acesso ou diálogo entre dirigentes e funcionários é o peso do movimento como expressão de uma prática social e de uma parte da população, ou do público. E esta última frase vale para os dois lados: o cineclubismo, na luta por suas reivindicações, e o Estado, na busca de uma gestão democrática e eficiente.
Resumindo muito, o que o movimento, através do CNC, estabeleceu nos últimos dois anos foi uma forma de relacionamento bem definida com o Cine+Cultura em especial, com a Secretaria do Audiovisual do MINC (5) e, de outra maneira, com o governo de modo geral. A relação com o Cine+Cultura é praticamente simbiótica: grande parte das lideranças nacionais e regionais cineclubistas são responsáveis (diante do programa, não do movimento) - e demissíveis - pela aplicação e administração do programa. A ação política organizativa da entidade nacional reduziu-se e praticamente se limitou à “administração” das questões do Cine+Cultura – uma espécie de terceirização das funções acessórias do programa, agora despolitizadas, como produção de oficinas e “monitorias” burocráticas. Em detrimento de ações autônomas, publicações, encontros, eventos (6) de intercâmbio e fortalecimento do movimento em suas bases. O caso mais gritante é o abandono da distribuidora do movimento cineclubista, a Filmoteca Carlos Vieira. Paralelamente, a direção nacional do movimento também se esforçou muito para prestigiar alguns setores e iniciativas do ministério, algumas muito pertinentes, como a reformulação da lei Rouanet ou dos direitos autorais (7), outras bem menos, como a aprovação do PL 29, da televisão por assinatura. Mas descurou quase completamente dos interesses originados no próprio movimento.
A “vontade política” do movimento, expressa pela sua entidade, limitou-se aos setores (e questões) com que já tinha “diálogo”, abolindo qualquer tipo de confronto, de reivindicação que extrapolasse o que já estava sendo oferecido, na relação com o Estado, e reduzindo a interlocução com a sociedade exclusivamente a determinados segmentos do cinema. Assim, ainda que propale slogans de defesa dos direitos do público, o “movimento” (como identidade nacional) não procurou nem estabeleceu relações com entidades e movimentos sociais, reivindicativos, comunitários, camponeses, operários, de negros, de mulheres... Em uma palavra: do público (8).

No campo governamental, o cineclubismo brasileiro “estabeleceu-se” em duas secretarias e alguns gabinetes do MINC, incapaz de oferecer reivindicações e trazer para a conversa áreas como Educação, Relações Exteriores, órgãos, agências e programas voltados para os segmentos e necessidades da população a que já me referi logo acima.

É claro que seria fácil demais ficar elencando o que faltou, e injusto exigir de qualquer gestão uma ação permanente e onipresente, no âmbito do Estado como da sociedade (9). Mas o direcionamento da prática política está bem evidenciado. E há áreas e questões em que a inação, a ausência de vontade política não se justifica. É o caso da ANCINE, agência regulamentadora e estimuladora do cinema, responsável pela área da exibição – até pela desistência do secretário Da Rin em sua gestão – em todos os aspectos. E é o caso, mais especificamente, dos projetos de criação de salas de cinema nos municípios que não as têm.
Como fica mais uma vez evidente no interesse manifestado justamente nestas últimas mensagens entre cineclubes, se essa questão é muito importante para os cineclubes, é exatamente porque ela é vital para o público brasileiro. Neste caso faltou de forma escandalosa vontade política à nossa entidade. Não apenas por não se manifestar, mas por ignorar arrogantemente reiteradas demandas do próprio movimento: em carta à diretoria de 14 de setembro de 2009, quando ainda se estava articulando o “Programa de Expansão do Parque Exibidor de Cinema” da ANCINE, eu pedia esclarecimentos e atitudes do CNC. Voltei ao assunto em 31 de maio deste ano (10), mas nunca tive qualquer resposta – e creio que uma resposta teria sido de interesse do movimento, não uma atenção pessoal a mim.

Os projetos da ANCINE, cujo conteúdo não vou discutir aqui para não alongar o texto (11), independentemente de várias outras inadequações, excluem expressamente qualquer iniciativa não comercial e, portanto, precisamente os cineclubes. Essa exclusão se deve, justamente, à forma de vontade política do governo e, mais especificamente, à falta de vontade política, ou incapacidade de manifestá-la, da parte dos cineclubes brasileiros. Creio, particularmente, que se o CNC e o movimento tivessem (e acho que ainda podem fazê-lo) se manifestado, poderíamos, no mínimo, ter sido incluídos nas possibilidades de financiamento que os projetos prevêem.

Vontade política do movimento cineclubista

Apesar de pertencer a outra geração cineclubista, não sou dos que desvalorizam a de hoje – à qual também pertenço, porque estou (muito) vivo. De fato, se assim não fosse, há muito teria parado de escrever nas listas cineclubistas ou desistido de manter espaços na internet, onde procuro discutir o cineclubismo em seus aspectos teóricos e em sua prática contemporânea. Teria desistido porque a aparência é de que esses textos – ou qualquer outro – não suscitam interesse, não obtêm resposta, comentários, nem mesmo críticas ou refutação. As pessoas parecem ignorá-los ou concordar inteiramente com estes textos. Gozado, na prática, vem a dar no mesmo...
Mas não é assim: “minha” geração foi muito parecida, ainda que vivêssemos numa realidade de repressão e tivéssemos um movimento aparentemente menos homogêneo, manifestamente dividido em visões e tendências políticas e culturais. Também era uma minoria bem definida (talvez menor que a de hoje; também, com a internet, até eu...) que se manifestava por escrito. Mas, como hoje, os cineclubes afluíam em número e em peso a qualquer oportunidade de encontro, e todos se posicionavam enfaticamente sobre seus interesses. Criadas e abertas as formas de participação e convivência, em articulação com formas de organização regional e local, com poder real de influir no encaminhamento das grandes questões cineclubistas e na orientação de atividades práticas (publicações, distribuição, etc (12)), o movimento comparece e corresponde.

A participação e a democracia no movimento, de certa forma como no próprio cineclube, é uma relação dialética entre estímulo e oportunidade de envolvimento, por um lado, e uma constante reavaliação e aperfeiçoamento dos instrumentos dessa prática. Mas o movimento tem se encaminhado, fundamentalmente, na direção contrária: reduzindo encontros – em número e/ou periodicidade -, substituindo a presença maciça pela delegação de poderes, alienando para terceiros a elaboração e gestão de ações organizativas, numa suposta “profissionalização” de molde empresarial, dispensando a prestação de contas e o controle democrático, inclusive com a eliminação total de qualquer tipo de publicação.

Ainda mais grave que isso, como já desenvolvi um pouco mais no texto Tarefas dos Cineclubes Brasileiros na Mudança do Modelo de Cinema (http://felipemacedocineclubes.blogspot.com), há uma disseminação no movimento de uma certa cultura acomodatícia, subordinada, dependente, que espera do governo (ou até, contra todas as demonstrações da realidade, de empresas privadas) não apenas os recursos mas, com alguma frequência, até orientação para sua prática:
“Sustentabilidade é sinônimo de independência; o contrário (a gratuidade como princípio) leva necessariamente à dependência e/ou subordinação. No Brasil caíram praticamente em desuso: a gestão de associados contribuintes (elemento, aliás, importante, senão essencial, na própria organização da democracia interna do cineclube); a cobrança de taxas de manutenção em suas atividades (até mesmo a contribuição voluntária, “passar o chapéu”, virou raridade); a promoção de ações de financiamento, como rifas, “bailinhos”, etc… Mesmo os cineclubes que já tenham apoios devem ter ou criar essa condição de independência, sob pena, justamente, de orientarem sua ação em função dos limites estabelecidos pelo ‘patrocinado’.”

Ao se acomodarem a modelos de “financiamento” do governo, alguns cineclubes adotam acriticamente um modelo que, no limite (claro que a reprodução desse modelo não é tão comum, nem integral), representa exibição precária, sem conforto, com filmes escolhidos por uma instituição pública. A gratuidade da prática, que é inerente ao modelo, implica na provável incapacidade de aperfeiçoá-lo, acarreta – em círculo vicioso - a sua perenização. Ou mais provavelmente, a sua falência a médio prazo.

Vontade política da comunidade, do cineclube
Se a fé remove montanhas, a vontade política de uma comunidade bem pode criar um cineclube que atenda realmente às suas necessidades. Um cineclube que compreenda a si mesmo como a instituição audiovisual da comunidade, cuja função e objetivos comportam o acesso através do audiovisual (e em sinergia com outras formas de expressão e de comunicação), à informação, ao conhecimento, à cultura, ao entretenimento, e também incluem o conhecimento, a preservação e a expressão da cultura da coletividade.

Há muitos exemplos (13). Eu mesmo participei de diversos cineclubes que foram capazes de criar salas de cinema bem importantes: o Cineclube Bixiga, o Cineclube Oscarito, o Elétrico Cineclube, sem falar do projeto dos popcines. Todos os exemplos são de cineclubes bem coletivos; a maioria montou suas salas sem nenhum patrocínio, muitos antes mesmo de qualquer legislação de fomento. Creio que o combustível para essas iniciativas foi fundamentalmente vontade política: vontade de viabilizar sonhos sem esperar pela intervenção divina, estatal ou empresarial. Vou lembrar aqui algumas práticas cineclubistas que permitiram chegar a esses sonhos:

 Apesar da precariedade de equipamentos públicos no Brasil, existe um grande número de espaços sem uso num número muito grande de comunidades. Essa falta de uso se explica, em parte, por uma “cultura” pública de gestão: ou o Estado promove diretamente as atividades ou, o que é mais comum, não usa e não cede os espaços. Ou, como na “filosofia” dos projetos da ANCINE, só reconhece como interlocutor a empresa comercial. Em São Paulo, por exemplo, os CEUs têm auditórios superdimensionados que, entretanto, ficam a maior parte do tempo sem uso. Equipados até para projeção em 35 mm, umas poucas vezes sua programação foi entregue a distribuidoras comerciais de filmes, como a Warner Bros.(!). Mas existe um grande número de espaços menos ambiciosos – mas bem razoáveis – nas mãos de prefeituras, ministérios e secretarias estaduais, até do poder judiciário. Da mesma forma, instituições privadas também geralmente, historicamente, resistem ao compartilhamento do uso de suas estruturas com a sociedade civil. Entre as mais importantes – e com os melhores espaços – estão as unidades do sistema “S” (Sesc, Sesi, Sebrae, etc), as escolas de todos os níveis, as igrejas, clubes particulares, até hospitais e outros. Nos casos, raros, em que existe sala de cinema comercial na cidade, certamente a maior parte do tempo ela não é usada; há uma larga e forte tradição cineclubista de promover sessões próprias nesses horários disponíveis. A vontade política, aqui, se expressa pela capacidade de mobilizar a comunidade para reivindicar esses espaços, estabelecendo parcerias não subalternas (não se trata de prestar serviço de graça, mas de controlar a orientação e a programação de forma independente) que beneficiem a todos.

 Uma variante ou complemento desse método é o de conseguir a cessão de espaço (imóvel) ou terreno, para construção ou adaptação pelo cineclube. Há vários formatos legais para essa cessão: comodato, cessão por tempo determinado, etc, modos que geralmente variam segundo o costume da cidade (se prefeitura) ou outra instituição. Geralmente a câmara municipal é que autoriza. Os estudos que fizemos para o projeto dos popcines mostram que adaptações geralmente não são muito caras; a construção obviamente é bem mais custosa. E mesmo essas obras de adaptação podem ser feitas com vários expedientes de parceria (usando máquinas, insumos e pessoal da prefeitura) ou outras formas de colaboração, como mutirões. Em uma mensagem recente, fiz alguns comentários sobre essas adaptações (no caso, já tendo o material de projeção do Cine+Cultura), que rememoro aqui:

"Alguns desses aspectos implicam em investimentos mais importantes, outros nem tanto. Ar condicionado, poltronas e inclinação do piso são os mais caros, acho. Num projeto básico de uma sala PopCine esses ítens representavam mais ou menos 25% (ar condicionado) , poltronas (25%) e equipamento com tela (25%). Os demais 25% seriam as adaptações de cada espaço.
De qualquer forma, já tendo o espaço e o equipamento básico, o custo (para uma prefeitura, por exemplo) é realmente muito pequeno. Atenção: os custos de ar e de som aumentam exponencialmente com a área cúbica da sala. Isolamento acústico e de luz, numa sala comum, com portas e janelas normais, também é fundamental e pode colocar alguns problemas. Além do fechamento das janelas, o ideal é uma solução acústica para a porta, o que não é muito complicado.
A tela do Cine+Cultura é pensada para montagem/desmontage m, o que pode deixá-la meio bamba com o tempo; colocá-la numa "caixa" ou moldura, com caixa de som atrás, subwoofer embaixo, etc, é barato e muda toda a "psicologia" da recepção. Há uma disposição correta e ideal do sistema de som em relação à tela.
Se possível, é bom haver um espaço ou mesmo um palquinho para apresentações diversas, desde um animador ou conferencista, até o que der no espaço: mesas, teatrinho, etc... Também é preciso um pequeno espaço determinado para a operação do equipamento.
Poltronas podem ser conseguidas talvez por doação ou, numa pesquisa de comerciantes que têm poltronas velhas de cinemas fechados, auditórios, etc, compradas meio barato e reformadas. A lista cncdialogo pode ser um bom veículo para "rastrear" poltronas velhas de cinema. As cadeiras escolares e outras soluções precárias se tornam insuportáveis em filmes de longa-metragem ou programas de maior duração. Isso tem a ver com a própria capacidade de atenção e concentração, portanto com a capacidade crítica do público. A falta de um conforto mínimo, um espectador "fragilizado", tem bastante a ver com isso - e com o valor que se dá ao público na relação com a obra audiovisual e com a sua autoria.
A inclinação do piso é muito importante e é obtida com uma simples escavação (rebaixamento) na frente, ou com o levantamento do piso, com entulho, na parte de trás da sala, se o pé direito permitir.
Nos projetos PopCine sempre havia um espaço de convivência, barzinho, pipoqueira, etc. Creio que isso também é fundamental na relação do público com as ações desenvolvidas.

 O imóvel também pode ser alugado, desde que o cineclube seja capaz de produzir uma receita a partir de suas atividades em geral. Os estudos do CPCine (o cineclube “mãe” do projeto PopCine) indicavam que uma freqüência média razoável (inferior aos cinemas comerciais), com um pequeno número de sessões semanais e ingresso médio de R$ 2,00 (dois reais), são suficientes para pagar os aluguéis médios de cidades pequenas e/ou bairros não especialmente valorizados, além de remunera duas pessoas na operação das sessões. E isso sem contar com receitas de café, pipoca (na época – 2007 – o saquinho de pipoca era lucrativo a partir de R$ 0,37 [trinta e sete centavos]), videoclube, livraria, etc.

 Muitos dos cineclubes citados foram financiados pelos próprios sócios e redes de simpatizantes, que eventualmente seriam ressarcidos – no caso de contribuições maiores – com a sala em funcionamento. Há várias outras formas de arrecadação. O cineclube de um acampamento de sem-terras no sul do Pará pretendia usar para isso uma experiência que haviam tido: eles receberam em doação um bezerro, que engordaram e venderam mais caro. Mas pode-se organizar leilões, festas, rifas, dependendo não só da vontade, mas também da criatividade política. Uma sugestão interessante é a dedução do Imposto de Renda de pessoa física, que pode ser de 6% da renda. Há um documento padrão (que pode ser obtido na Receita Federal) para essa doação, que pode ser feita em qualquer altura do ano e descontada depois, na declaração. Assim, o cineclube pode visitar as casas a qualquer hora, pedir a doação – apresentando um belo folheto com o desenho da sala, projeto de atividades, etc - e deixar o documento para o doador descontar depois. Não é muiito difícil, porque cada doação é relativamente pequena e um morador que será beneficiado pelo cineclube não deve hesitar muito para doar uma quantia pequena e dedutível.

 Há três anos, entre cerca de 25 projetos de popcines desenvolvidos para diferentes imóveis, nenhum deles tinha custo total, de adaptação, montagem e equipamento, superior a R$ 150 mil, ficando a média em torno de R$ 100 mil. Como disse acima, nesses 100 mil, o ar condicionado representava mais ou menos 25%; as poltronas, outros 25%, e o equipamento com tela e computador para autoração, mais 25%. Os demais 25% se prestavam, em média, às adaptações de cada espaço. Esses valores totais são inferiores, por exemplo, aos recursos disponibilizados pelo programa Cultura Viva para os Pontos de Cultura (R$ 180 mil mais equipamentos). Um cineclube desses pode perfeitamente ser um Ponto de Cultura; um Ponto de Cultura pode ser um cineclube desses.

 Finalmente, mesmo antes que o CNC se mobilize – ou caso não se mobilize - pode-se conseguir junto à prefeitura ou outra instituição “reconhecível” pela Ancine, e/ou com um parlamentar com base na área da comunidade, algum tipo de contrato em que o cineclube fique responsável pela criação da(s) sala(s) prevista(s) nos projetos da agência governamental. Esses projetos estão disponíveis no saite da ANCINE, mas de forma propagandística, não tendo uma orientação precisa quanto a formas de participação e encaminhamento: é mais um pequeno tropeço no caminho da vontade política dos que não fuizeram parte desse acerto. Mas um advogado, um parlamentar ou um funcionário público interessado podem ajudar a deslindar esse mistério.

É claro que este texto compõe um roteiro empobrecido das possibilidades que a inventividade de cada militante cineclubista, de cada cineclube, de cada comunidade, podem descobrir e criar. Meu objetivo foi mais o de argumentar sobre o sonho e o desafio da Gizely:

Com vontade política, com compromisso militante, é absolutamente possível criar um cinema popular, isto é, um cineclube com qualidade, conforto e, sobretudo, dignidade.
Agosto/2010
Felipe Macedo

Notas:

(1) Esta é uma questão bem mais ampla e complexa, que não cabe aqui. Mas lembro não apenas as origens da MPAA na MPPA, sendo o segundo “P”, de producers, de 1908, mas igualmente a reação contra esse monopólio, que fez com que os então exibidores passassem para a produção, dando origem aos grandes estúdios e à metonímia de Hollywood.
(2) Embora os exibidores/importadores tenham, em várias ocasiões, desfrutado de liberdades cambiais verdadeiramente escandalosas, tema que também vai além deste artigo e que, afinal, beneficiavam mais o Capital em geral do que este ou aquele setor específico.
(3) As cerca de 2.100 salas de cinema que o País tem hoje não têm 1/5 dos lugares oferecidos nos anos 70, quando o Brasil tinha a metade da população atual e chegava a vender 300 milhões de ingressos, contra 100 milhões atualmente.
(4) Entre as diversas contradições do programa Mais Cultura que evidenciam essa subordinação aos interesses da produção, podemos citar duas. Os recursos alocados para o Cine+Cultura giram em torno de 10 mil reais para cada entidade contemplada. Esse dispêndio consolida um modelo de apresentação audiovisual relativamente precário, não considera conforto, segurança, nem as condições de sua manutenção e consolidação. Por quê? Porque, planejado no interesse da produção, procura economizar recursos para que esses sejam prioritariamente aplicados da realização de filmes, não na auto-organização do público. Comparativamente, o programa de Pontos de Cultura, voltado para a organização nas comunidades, disponibiliza recursos 2.000% (vinte vezes) maiores, mesmo quando beneficia expressões culturais eventual e aparentemente menos “sofisticadas” que o audiovisual, como a tradição oral (o que está certíssimo). Outro exemplo está na Programadora Brasil, ação complementar à distribuição de equipamentos – mas criada anteriormente. O próprio nome – Programadora – já é indício da intenção dirigista ou paternalista: quem “programa”, o Estado, os “autores”? Só depois de alguma reclamação é que cineclubistas foram incluídos, minoritariamente, nas comissões de seleção de filmes, onde não há outras representações do público como tal. Além disso, a Programadora, inicialmente voltada para a recuperação e disponibilização do patrimônio audiovisual, passou a dar crescente importância à compra da produção atual diretamente às ABDs, constituindo-se, dessa forma, em mais uma ação de fomento à produção.
(5) A ser inteiramente reconstruída com a demissão do secretário Sílvio Da Rin.
(6) Quando poucas dessas ações aconteceram, não se distinguiram pelo espaço ou participação dado às bases cineclubistas mas, ao contrário, para personalidades do(s) governo(s) ou do “cinema brasileiro”.
(7) É forçoso destacar, no entanto, que esse apoio foi marcado por um verdadeiro automatismo, sem crítica.
(8) Nos cineclubes, como é da sua essência, essa interação acontece ininterruptamente. Mas, justamente, não se articula no plano nacional, não organiza, não fortalece e não viabiliza um efetivo movimento nacional pelos direitos do público. Nos dois eventos organizados pelo CNC e nos vários de que participou, o “público” continuou sendo representado, intermediado, por cineastas e funcionários do MINC.
(9) Em que pese também o fato da direção executiva do CNC ser altamente centralizada e centralizadora, por um lado, e uma baixa “taxa de participação” e trabalho da maior parte da diretoria, por outro. Tudo isso expressão de vontades políticas...
(10) Esses documentos estão no blog: http://felipemacdocineclubes.blogspot.com, nas datas referidas.
(11) Embora essa discussão seja indispensável, inclusive para que ainda nos posicionemos como movimento cineclubista.
(12) Não pensando em gerações, mas em experiência histórica do movimento, a Dinafilme, por exemplo, foi administrada por um Conselho nacional articulado com conselhos regionais, os Cadinas, onde se organizava a seleção e distribuição de cópias, a promoção de mostras eventuais, a edição de um relatório periódico (o Boletim Cadina). O Boletim Cineclube, do CNC, foi bastante “animado” pelas polêmicas entre gramscianos e trotskistas, o “nacional-popular” contra o “internacionalismo proletário”... Isso formava os quadros cineclubistas, desde as questões teóricas culturais e políticas até a gestão da distribuidora.
(13) Por exemplo, os cineclubes pioneiros de Marília e de Avaré, nos anos 50 (existiram por mais de 40 anos), o Cineclube Barão (anos 80), em Campinas, e depois o Centro Vitória (anos 90), com várias salas; o Cauim (anos 70), de Ribeirão Preto, que provavelmente mantém hoje a maior sala de cineclube do mundo, com 800 lugares; o Metrópolis (anos 80), de Vitória (depois incorporado à Universidade); o Cineclube Estação, no Rio (anos 80, hoje sala comercial), para citar apenas alguns, de memória.