Pouca gente entende de cinema.
Não cinema filme, texto, linguagem. Que, nesse caso, parece que está cheio de voluntários esclarecidos, prontos a alfabetizar todo mundo.
Mas cinema sala, público, economia.
Para comprovar, a Folha de São Paulo deu matéria no dia 6 de março, simultaneamente confusa e interessante, sobre o fim da película no comércio cinematográfico, as providências para financiar o estabelecimento do novo processo digital de exibição e as iniciativas da Ancine quanto ao assunto.
Que interesse pode isso ter para o cineclubismo brasileiro e outras formas de exibição alternativa?
A matéria mostra que a adaptação do parque exibidor para a tecnologia digital é uma situação contraditória. Eliminando as cópias físicas, o processo barateia enormemente a distribuição dos conteúdos (tanto quanto facilita o controle centralizado destes, mas esse não é o tema da reportagem). Por outro lado, a adaptação das salas exige investimentos elevados.
Isso está sendo resolvido, nos países onde o processo está mais avançado, através de várias formas de colaboração entre distribuidores e exibidores. Tem a print fee, uma taxa que os primeiros pagam aos últimos em função da economia com a feitura de cópias. Há várias outras modalidades de empréstimo entre as empresas e, claro, a ajuda do Estado que, mesmo antes do pós-mercado industrial - esta contribuição tão original à teoria econômica - sempre se fez presente nestas ocasiões de grandes inversões nos fatores de produção.
Isso está sendo resolvido, nos países onde o processo está mais avançado, através de várias formas de colaboração entre distribuidores e exibidores. Tem a print fee, uma taxa que os primeiros pagam aos últimos em função da economia com a feitura de cópias. Há várias outras modalidades de empréstimo entre as empresas e, claro, a ajuda do Estado que, mesmo antes do pós-mercado industrial - esta contribuição tão original à teoria econômica - sempre se fez presente nestas ocasiões de grandes inversões nos fatores de produção.
A Folha, então, procura localizar essa situação no nosso mercado. Onde não há, creio, nenhum grande programa governamental de financiamento para a adaptação dos multiplexes em acelerada obsolescência. O maior jornal brasileiro sugere então que o programa Cinema Perto de Você, da Ancine, poderia cumprir esse papel. Ora, o programa da Ancine está voltado para a instalação de salas ou ampliação de complexos de exibição: a Agência sublinha a criação de novas salas e exclui especificamente meras reformas. Pode, então, financiar a instalação de salas digitais, mas não a adaptação das quase 2.000 que funcionam com película. Outros eixos do programa, que demonstram nossa assertiva inicial, determinam a criação dessas salas em cidades com menos de 100 mil habitantes, num ambicioso plano de estímulo ao acesso ao cinema, tema tão caro aos produtores nacionais e muitos dirigentes cineclubistas. No molho dessa salada, a Ancine localiza como objeto também a “nova classe C”, esse eufemismo triunfante que designa o crescimento do moderno proletariado brasileiro (com a saída de expressivos segmentos da população de uma situação de pobreza aquém desta nova condição que, contudo, é uma originalidade brasileira: em outros países essa faixa de renda é considerada baixa), o qual, penso eu, está mais presente justamente nas cidades mais populosas do que o objetivo precedente do programa almeja...
De fato, face ao que me parecem inadequações do programa da agência governamental, a Folha parece adivinhar e sugerir uma “adaptação” de interesse para o mercado tradicional (majoritariamente de exibidores estrangeiros, por sua vez controlados pela distribuição monopolizada por Hollywood). Por que não fazer desse programa um programinha gostoso entre o Estado e a exibição comercial, voltando-o para o financiamento da digitalização das salas existentes – e também novas, claro, pois o mercado está crescendo? Mas, e justamente, crescendo por causa dessa nova “classe” e nas grandes cidades.
Voltando aos cineclubes e exibidores não comerciais de caráter mais ou menos comunitário – que hoje constituem as poucas ou únicas alternativas na quase totalidade das localidades de menos de 100 mil habitantes -, que perspectivas se abrem diante dessa forma de ver o momento atual do cinema sala, público, economia, no Brasil?
Se triunfar a lógica de mercado, os investimentos serão carreados para o padrão tradicional, o modelo planetário de exploração do comércio cinematográfico. Ou seja: mais salas exibindo 90% de filmes hollywoodianos e 10% de filmes brasileiros e de todos os outros países do mundo, nos multiplexes, mas agora para um público ligeiramente maior, correspondente ao moderado mas consistente processo de crescimento e redistribuição de renda na nossa bem sucedida economia de exportação de matérias primas.
Se, contra essa lógica de mercado, a “salada Ancine” pudesse se implantar, teríamos o mesmo modelo de distribuição estendendo-se às cidades entre 20 mil e 100 mil habitantes, universalizando, de certa forma (71% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes, mas reúnem apenas 17% da população) o acesso ao cinema. E falo em salada, entre outras coisas, porque esse projeto mistura a obediência mais estrita aos preceitos do comércio – em especial proibindo explicitamente a participação no programa de empreendimentos sem fins lucrativos – com a etérea esperança de que isso poderia superar a dominação corporativa hollywoodiana e seu modelo mundial de cinema e de alguma forma mágica beneficiar o cinema brasileiro. É um pouco a mesma lógica capenga e dependente dos cineclubistas que vêm no mero acesso ao cinema o maior objetivo do público.
Nos dois casos, seja com crescimento do mercado nos moldes e locais do modelo atual de multiplexes em xópins ou através de uma suposta universalização desse mesmo modelo nas cidades que até agora não se pensava capazes de sustentar economicamente tal figurino, uma coisa é indiscutível: haveria um aumento estatístico do acesso ao cinema no Brasil. Como de fato já está havendo, mais ou menos no mesmo ritmo do crescimento da economia em geral e possivelmente um pouco mais acentuadamente devido à modesta melhoria das condições sociais. Cresce o acesso, mas a quê, e como?
Estas perspectivas, a realista e a dourada, decorrentes da leitura da Folha, empurram o cineclubismo e seus conexos recentemente inventados, os “cines”, para os guetos das pequenas comunidades e/ou das atividades mais especializadas e elitizadas, cinéfilas, acadêmicas.
Junto com a postura de precariedade e dependência que informam e prevalecem nos programas Cine+Cultura e Programadora Brasil, tudo relega o cineclubismo à condição de exceção especializada. Não de organização do público de todos os meios sociais, mas de muleta assistencialista sociocultural para os esquecidos de um modelo de exclusão que o cineclubismo contribui, dessa maneira, a consolidar. Exclusão de acesso, sem dúvida, mas sobretudo e essencialmente de participação. De poder.
Cresce a acessibilidade para o espectador, para a platéia, e diminui a participação do cidadão, do público.