Cem Anos
de Cineclubismo
ou a
presença do público no cinema
(publicado na revista América Hoy, no. 2, julho 2013 - Memorial da América Latina)
(publicado na revista América Hoy, no. 2, julho 2013 - Memorial da América Latina)
Ausência
do público no cinema
Nos
estudos acadêmicos sobre o cinema existem as mais diversas abordagens: da
linguagem, da narração, do processo cognitivo, psicanalítico, entre outros. O
público, porém, não aparece. A recepção,
como já aponta o conceito, é ato passivo, determinado sobretudo pela obra que
exerce sua influência sobre o espectador. E o espectador, por sua vez, é uma abstração generalizante que,
desconhecendo os diferentes contextos culturais, sociais, históricos, se impõe
como paradigma. Significativamente, essa abstração tende a ser calcada num
espectador ocidental, branco, masculino, de classe média e mesmo cristão. O
público, ao contrário, é contexto concreto, não individuação abstrata.
No
plano sociocultural, das políticas públicas por exemplo, o público também só é considerado
como objeto, nunca sujeito. Faz-se políticas para ele, nunca com ele. Ele não
tem voz na política: conselhos, câmaras e outras formas de participação da
sociedade civil na elaboração de programas para o cinema e/ou o audiovisual em
geral têm representantes de produtores, distribuidores, artistas – e mesmo de
numerosos subgrupos de interesse, como diretores, documentaristas, técnicos –
mas não do público. Consagra-se e consolida-se a visão do público como massa
indistinta de espectadores praticamente incapazes, consumidores inconscientes,
receptáculos inermes de catequeses, autoritarismos, propagandas. Objeto, nunca
sujeito.
Mesmo
a semântica que impregna os usos da relação entre cinema e público é
significativa: plateia, assistência, auditório; espectador, ouvinte, consumidor.
Parece que só a palavra público tem uma conotação mais ativa, comporta
responsabilidade e capacidade coletivas.
Cinefilia
Cinefilia
é uma espécie de ramo do cinema que vem sendo estudada de uns tempos para cá. A
julgar pelo número de publicações – ainda um fenômeno mais dos países
desenvolvidos – a cinefilia está meio na moda. O termo é uma construção híbrida
que pretende descrever o amor, o gosto pelo cinema. Mas que amor é esse? Nos
anos 10 do século passado, um terço da população estadunidense ia ao cinema
toda semana; na década seguinte, a metade de todos os americanos. Não seria
isso uma forma clara de amor ao cinema, de cinefilia? Segundo depoimentos, nos
anos 50, certas chanchadas ou alguns títulos do Mazzaropi eram vistos por mais
de 15% da população brasileira. Isso era cinefilia? A idéia de cinefilia que passou para a
posteridade, no entanto, foi mais a de uma apreciação “culta” do cinema. Culta
no sentido de que era característica de especialistas, supostos conhecedores de
cinema que se diferenciavam da massa de frequentadores. Essa diferenciação se
localizava frequentemente na capacidade de produzir textos mais elaborados – de
onde a crítica, que veio a se estabelecer até como profissão – e no fato de
alguns desses espectadores se notabilizarem, justamente por seus escritos ou
por fazerem seus próprios filmes. Mais uma vez se fazia do público massa; e dos
sinais evidentes da sua participação, selecionava-se uma elite: os cinéfilos connaisseurs. Assim, a cinefilia seria
um fenômeno típico dos anos 20, com as vanguardas cinematográficas francesas
principalmente. Ou dos anos 50 e 60, com as revistas parisieneses Cahiers de Cinéma e Positif, e a produção que surgiu daqueles grupos, a Nouvelle Vague.
Cineclube seria uma espécie de templo desse culto, a cinefilia. Logo, o mesmo
raciocínio situava o surgimento dos cineclubes naquela primeira época dos anos
loucos e identificava o pequeno grupo de cineclubes parisienses que deu origem
às revistas de cinema já citadas como “a idade do ouro” do cineclubismo. No
entanto, nos anos 20, muitos dos primeiros “cinéfilos” cultuavam os filmes mais
populares da época, como as aventuras seriadas de Fantômas, Judex ou da
vamp Musidora. Assim como nos anos 50 seguia-se todos os chamados peplums italianos, de heróis como
Maciste e Hércules... Os cineclubes que deram origem aos Cahiers e Positif eram
uma meia dúzia em Paris, em meio a alguns milhares de cineclubes que se
espelhavam pela França na época, sobretudo nos meios mais populares. Também nos
anos 20, ao lado das sessões chiques promovidas por Louis Delluc ou Ricciotto
Canudo, vários clubes de bairro ou a rede de “Amigos de Spartacus” exibiam e debatiam
cinema em termos bem mais populares e desde bem antes...
Cineclube como organização do público
Em
outras palavras, cineclube não é uma reunião de especialistas, mas uma
organização quase espontânea do público, que reage e busca ter voz num cinema
em que frequentemente não se reconhece. Desde o início das projeções – e mesmo
antes do cinema, com as lanternas mágicas – principalmente nos ambientes mais
populares, com menos acesso a meios mais tradicionais de educação e cultura, já
se usava as imagens para ilustrar palestras educativas, de proselitismo
político ou religioso. Essas atividades se desenvolviam principalmente em
associações e clubes populares e têm origem em ações de ajuda mútua, de
organização política e estímulo cultural que vêm desde meados do século XIX.
Ali estavam as primeiras sementes do cineclubismo que comemora este ano seu
centenário formal.
Com
a massificação do cinema a partir das salas fixas, de 1905 em diante, seu
público inicial era fundamentalmente proletário e imigrante, e as salas – os
famosos nickelodeons onde o ingresso
custava 5 centavos – simples, pobres e localizadas em bairros populares. Mas os
filmes apresentavam o ponto de vista dos empreendedores capitalistas: assumiam
uma temática próxima do gosto dessas modernas massas da cultura, o tratamento,
no entanto, era seu oposto: a ridicularização do imigrante, o combate e censura
às conquistas sociais, até mesmo (um pouco depois) a repressão ao público com
uma força de polícia própria – origem dos lanterninhas uniformizados que
marcarão épocas posteriores do cinema.
As
salas de cinema eram locais de manifestações ruidosas, com o público cantando,
vaiando, participando enfim de várias formas – e várias delas organizadas, como
as siffleries (apitaços) parisienses.
Desde essa época começam a surgir alternativas para um cinema que não mostrava
e não representava os interesses daqueles públicos. Organizações operárias,
entre outras (a Igreja também criou várias instituições que tratavam com o
cinema, desde o início do século), alugavam salas e promoviam suas próprias
sessões, começaram a produzir filmes. Há vários relatos nesse sentido,
documentados pelo menos desde 1908. Em 1911, em Los Angeles, o jornal L.A.Citizen fala de uma sala gerida por socialistas e
feministas; um entrevistado explica que “nossa sala é o resultado da rebelião
do público contra o que oferecem a ele" (Steven Ross, Working Class Hollywood, 1998).
O primeiro cineclube
Mas
o provável primeiro caso realmente bem documentado da organização de um
cineclube – com estatutos, sessões com debates e produção de filmes – é o do Cinéma
du Peuple (Cinema do Povo), organização criada por militantes e simpatizantes
anarquistas em Paris, em 1913. O programa do cineclube foi publicado no jornal Libertaire, de 13 de setembro; os
estatutos foram registrados em 28 de outubro. O mote do cineclube era
“Divertir, instruir, emancipar”. O Cinema do Povo teve vida curta, interrompida
no ano seguinte pelo início da I Guerra Mundial. Mas deixou uma produção
própria, quase inteiramente preservada, com títulos como As misérias da agulha, sobre o trabalho de costureiras; O velho doqueiro e A Comuna, sobre a insurreição de 1871, entre outros.
Um
detalhe interessante é que a iniciativa dos anarquistas franceses foi bastante
difundida, e chegou ao Brasil através de artigos de Neno Vasco, anarquista
português muito ativo no Brasil que, em um de seus períodos de exílio em
Portugal mandava para o jornal A Lanterna
notícias do movimento internacional. De fato, na sequência dessas matérias,
no seu número 242, de 8 de maio de 1914, o periódico traz o seguinte anúncio:
“para tratar de fundar uma sociedade cujo objetivo será a propaganda social
através do cinematógrafo, uma reunião será feita na próxima segunda-feira, 11
do corrente, às 19h30, no salão da Lega della Democrazia, na Rua Bonifácio, 39,
12º. Andar. Pede-se a todos os interessados que compareçam.” Não há contudo,
confirmação da realização dessa reunião.
Também
a igreja católica mantinha atividades voltadas para a formação de um público
orientado pelos melhores princípios cristãos, embora isso fosse marcado por uma
orientação pré-definida e não deva se confundir com o cineclubismo em que esse
público se auto-organiza. O padre Pedro Sinzig, numa revista Vozes de Petrópolis de 1912 cita várias
salas de cinema – paroquiais? comerciais? – católicas, como a do Centro Popular
Católico, de Petrópolis, o Cinema Modelo de Belo Horizonte e o Cinema Católico
de Recife.
América Latina
As
pesquisas sobre público e cineclubismo são bastante raras em toda a
historiografia do cinema; na América Latina esse problema se agrava
profundamente. Isto contribui para manter velhos mitos e, no nosso caso
particular, para consagrar os anos posteriores aos cineclubes “clássicos”
franceses – e também espanhóis – como origem do cineclubismo em nosso
continente. Certamente não é assim: os movimentos operários, principalmente,
criaram em toda a América instituições próprias que promoviam atividades
culturais; o que acontece é que não há pesquisas e grande parte dos documentos
se perdeu ou não está organizada e/ou acessível. Não sabemos ainda até que
ponto o dispositivo cinematográfico era utilizado nas associações, clubes,
ateneus, círculos de debate, escolas, que os meios populares criaram em grande
número na virada e início do século 20.
Por
isso, nos países de maior tradição cinematográfica – do ponto de vista
industrial -, que são a Argentina, o Brasil e o México, identificam-se os
primeiros cineclubes no final dos anos 20, isto é, aqueles que surgiram por
influência do cineclubismo europeu daquela década, a essa altura já consagrado.
Na América Hispânica, foi a influência do Cineclube da Casa Universitária de
Madri (que teve Buñuel entre seus fundadores) e da chamada “geração de 27”,
através da Gazeta Literária, que deram
origem ao Cineclube de Buenos Aires, em 1928, e o Cineclube Mexicano, em 1930.
No Brasil foi o Chaplin Club, do Rio de Janeiro, também fundado em 1928, que é
considerado até hoje o primeiro cineclube.
Na
grande maioria dos outros países latino-americanos, as primeiras referências –
e não será mera coincidência – surgem nos anos 50, justamente quando novamente
se prestigiava um cineclubismo e uma cinefilia “de norma culta”, identificados
com os críticos e cineastas da Nouvelle Vague. A partir dessa época os
cineclubes se tornam bem visíveis em todo o continente. Mesmo nos três países
com mais estrutura é também nessa época que os cineclubes proliferam e quando
se pode notar as influências que exercem sobre os cinemas nacionais e suas
instituições. De fato, antes dos anos 70 – quando surgem as primeiras escolas
de cinema – todos os cineastas se formavam nos cineclubes. E as faculdades
foram criadas com a geração de cineclubistas dos anos 50 – porque a geração
seguinte, formada por aquela, já é a dos “cinemas novos” que, a partir dos
cineclubes, renovou o cinema latino-americano e, em boa medida, de outras
partes do mundo. No longo período em que pululavam ditaduras em nosso
continente, uma importante resistência se organizou a partir dos cineclubes. A
crítica cinematográfica profissional tem a mesma origem cineclubista. Os
festivais de cinema surgem por iniciativa dos cineclubes e as cinematecas
nacionais se organizam a partir de cineclubes. Elencar esses casos
ultrapassaria qualquer espaço disponível num artigo como este. Mas, em resumo,
nos países de maior e mais antiga cinematografia, os cineclubes foram responsáveis
pela criação de uma cultura cinematográfica nacional, isto é, praticamente tudo
– obras e instituições – que não vinha de Hollywood. Nos outros, os cineclubes
praticamente se confundem com o que se possa identificar como cinema nacional:
é neles ou a partir deles que se produziram os poucos filmes realizados antes
da revolução digital; é nos cineclubes que se pratica e desenvolve o estudo, a
crítica, a produção e a exibição de filmes diversos do discurso monolíngue
estadunidense.
Paulo
Emílio Salles Gomes, considerado uma espécie de patrono do cineclubismo
brasileiro pode ser dado como um exemplo pessoal onde se encontram essas
potencialidades que resultam das práticas cineclubistas. Aliás, em uma
entrevista já no fim da vida, ele definia-se, enfim, como cineclubista, ou
seja, era esse adjetivo que melhor englobava uma trajetória que envolvia
política, ensino, crítica, teoria, que começou com o Clube de Cinema de São
Paulo (do qual participou desde 1940), passando pela “conversão” absoluta ao
cinema através de Plínio Sussekind (fundador do Chaplin Club), em Paris, e
termina na Cinemateca (em 1957, o Clube de Cinema se torna Fundação Cinemateca
Brasileira) e nos cursos de cinema das universidades de Brasília e de São
Paulo. Louis Delluc, responsável, de certa forma, pela disseminação do termo
cineclube, também pensava nesse tipo de relação com o cinema: foi o criador da
palavra cineasta que, para ele,
definia aquele que via, pensava e fazia cinema em todos os níveis. Em outras
palavras, é o público organizado para se apropriar individual e coletivamente
do poder e do sentido do cinema.
Na
sociedade atual, o público é um conceito que praticamente se confunde com a
totalidade do população, pois o principal meio de comunicação e socialização em
todo o planeta são as mídias, controladas pela chamada indústria cultural ou de
entretenimento. E, entre essas, a base fundamental é o audiovisual (cinema,
tevê, internet, celulares, etc.), cuja linguagem matriz é a do cinema. Os
cineclubes são a forma organizacional e mesmo institucional (existem nas
legislações da maioria dos países do mundo) desse público, desse proletariado
contemporâneo que não só não tem acesso aos meios de produção, mas igualmente
não tem acesso aos meios de produção do seu próprio imaginário. Que não dispõe
apenas de sua força de trabalho para vender, mas cuja subjetividade, hoje, é
apropriada e comercializada ao simples aceder à internet e às ironicamente
chamadas de redes sociais, de fato sob controle privado.