O cineclube contemporâneo
“(é preciso) se dar conta que não é só uma
mudança do sistema, é uma mudança de cultura, uma cultura civilizatória. E não
tem como sonhar com um mundo melhor se não passar a vida lutando por ele. Temos
que superar o individualismo e criar uma consciência coletiva para transformar
a sociedade.” — Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai em discurso para
estudantes brasileiros (Rio de Janeiro, 2015)
Primeira parte: prolegômenos
Balanço rápido (e incompleto)
Para muitos intelectuais franceses, o cineclubismo
desapareceu depois da velha vaga da cinefilia das primeiras décadas pós-II
Guerra Mundial. No resto da Europa acontece algo semelhante: o número de
cineclubes diminuiu enormemente nos últimos 40 anos, a ponto de praticamente se
ignorar sua existência, ou sua identidade, em meio a atividades culturais e
sociais diversas. Isso também é verdade para os antigos regimes socialistas,
onde o cineclube era questão de Estado, isto é, tinha apoio governamental.
Deixou de ser, e o mercado – que substituiu muitas funções do Estado – não
demonstra grande interesse por esse tipo de atividade.
No mundo árabe e na África subsaariana os cineclubes existem
– como em toda parte – mas na maioria dos países são casos isolados,
iniciativas únicas, ou quase. O mesmo vale para a Ásia, com as possíveis
exceções da Índia e talvez Bangladesh, onde os cineclubes, no entanto, não são
nem sombra dos milhares que existiram até os anos 80. A Austrália e a Nova
Zelândia, países ligados à tradição britânica, têm situação semelhante à da
antiga metrópole.
Mesmo na América Latina, onde o auge dos movimentos
cineclubistas foi provavelmente no período das ditaduras generalizadas no
continente, entre as décadas de 70 e 80, os cineclubes também são uns tantos
polos ativos, mas isolados e frequentemente efêmeros. A exceção, para muitos,
seria o Brasil, onde os programas governamentais multiplicaram pontos de
exibição audiovisual. Mas, passados alguns anos, não existe um levantamento
fidedigno que comprove a existência de um número muito significativo de
cineclubes, diferentes de atividades de exibição esporádica e sem organização
própria.
O cineclubismo tradicional, organizado como um
movimento cultural, subsiste em muitos países europeus - como França, Reino
Unido, Itália, Alemanha e outros – de forte tradição cineclubista, e onde
existem políticas públicas consolidadas de apoio à atividade, mas numa escala
muito mais modesta que no passado não tão distante. No resto do mundo, os
cineclubes resistem atomizados, situação que não é incomum em sua história.
Na contracorrente dessa agonia, centenas, talvez
milhares de cidades dos EUA têm suas film
societies, das quais a mais famosa deve ser a do Lincoln Center, de Nova
York. Ironicamente, os Estados Unidos, que nunca participaram do movimento
cineclubista internacional, podem ser o país com maior número de cineclubes
hoje em dia, ainda que de um tipo particular.
Contra os cineclubes
O senso
comum, isto é, a opinião geral, repercutida mecanicamente e sem muita reflexão,
credita a fragilidade atual do cineclubismo às novas tecnologias, que
permitiriam o acesso quase ilimitado a filmes (em computadores, tablets, celulares), enquanto os
cineclubes, antes, tiravam sua importância justamente de propiciar a
oportunidade de ver obras não disponíveis no mercado tradicional (salas de
cinema). O interesse por esses filmes de nacionalidades incomuns nos cinemas
tradicionais, o gosto por temas, estilos, narrativas particulares, diferentes e
ousadas foi chamado de cinefilia,
quase uma forma de culto, e o cineclube era seu templo. Hoje, a oferta não
apenas de filmes, mas de outros conteúdos audiovisuais, em novos formatos e
suportes, é exponencialmente maior. Aquela cinefilia seria agora um fenômeno
renovado e diferenciado, numa escala muito maior mas, ao mesmo tempo, exercida
de forma mas íntima, individual[1] – de resto como cabe muito
bem ao ato de culto.
Mas, para muitos, os cineclubes não
teriam sido apenas superados por esses aspectos da tecnologia. Sua estrutura e
inserção na sociedade, excessivamente formalizadas num modelo do século XX,
estariam ultrapassadas: hoje todos podem se comunicar on line e as decisões podem ser tomadas de forma muito mais ágil e
informal, sem a burocracia ligada à constituição de uma associação civil, nos
termos da lei. Não há mais necessidade de associados, com direitos e deveres
diferenciados, nem de uma direção estruturada em cargos que exprimem a
coordenação de atividades que hoje todos podem fazer juntos, sem complicações
desnecessárias e até hierarquizantes.
Esta é uma postura que tem mais aceitação no Brasil
que em qualquer outra parte do mundo. E creio que, também apenas em nosso País,
o Estado aceitou e convive com essa realidade, criando políticas governamentais
que estimulam os chamados coletivos
informais (não apenas de cinema, mas em todas as atividades culturais
comunitárias), cujos compromissos formais são assumidos por uma única pessoa
física. É verdade que a burocracia para registrar uma entidade qualquer, no
Brasil, é notoriamente mais complicada que na maioria dos países. Mas sua
contrapartida, não apenas no nosso caso, é a criação de soluções ad hoc, verdadeiras gambiarras que, cedo
ou tarde, criam novos problemas.
De uma
maneira geral, no mundo todo se mantém o modelo de organização civil, com
associados e dirigentes eleitos. No entanto, pelo menos em muitos cineclubes
nos países mais ricos, na Europa, e praticamente em toda a América do Norte
anglófona, essa forma de organização se adaptou às necessidades de convivência
com o mercado. É o modelo por excelência das film societies estadunidenses, e de grande parte das inglesas e
canadenses. Nesses casos, o cineclube se torna ou busca a condição de
instituição cinematográfica cultural da cidade. Sua administração é
profissionalizada nos moldes de uma gestão comercial, com uma equipe contratada
sob controle de uma direção eleita, geralmente em forma de conselho de notáveis.
Os associados representam ou evocam ainda a adesão e o vínculo com a
comunidade, mas não têm participação real na orientação da associação. Os
sócios são também uma forma de promoção financeira e fidelização dos
frequentadores. Esses cineclubes têm uma programação de tipo tradicional,
cobrindo a diversidade cinematográfica que não entra no mercado ou valorizando
os filmes que vão ficando velhos: complementam a circulação comercial dos
filmes, sem colidir com os interesses da indústria cinematográfica. Em grande maioria, também aceitam e pagam pelos
“direitos autorais” dos distribuidores. Nesses
países, geralmente existem diferentes programas – públicos e privados - de
apoio à atividade cineclubista, mas esta sempre se completa também pela promoção
de outras fontes de receita e com a cobrança de ingressos. Na prática, são
dirigidas por seus administradores, sem participação do associados; funcionam
com pequenas empresas comerciais autônomas que atendem uma necessidade que o
mercado não provê – e pela qual não se interessa -, mas não colidem com ele.
No Brasil, as entidades estáveis mais ou menos
baseadas nesse modelo são mantidas por instituições de ensino superior ou administrações
municipais; são coordenadas por funcionários da instituição e geralmente não
têm nem conselhos nem associados, e tampouco cobram por suas atividades. Outras
formas aspirantes a uma gestão de tipo comercial, com ou sem formalização, são
geralmente menos estáveis, pois sem uma legislação consolidada no País, oscilam
e vacilam conforme existam ou não programas governamentais de fomento à sua
atividade. Diferentemente de suas homólogas estrangeiras, tanto num caso como
no outro, não se apoiam nem no mercado nem na comunidade, mas exclusivamente em
programas governamentais. Não é incomum que se denominem cineclube.
Numa avaliação quantitativa, o modelo original de
cineclube participativo - e muito frequentemente subversivo - foi superado em quase
todo o mundo por diferentes formas mais ajustadas às políticas governamentais e
às regras do mercado audiovisual, também complementares entre si.
Formas de cineclube na História
Sempre se diz que uma das características – e riquezas
– da instituição cineclube é a sua capacidade de adaptação a diferentes
contextos e circunstâncias. Apenas três características gerais são permanentes
na história dos cineclubes e, como também está praticamente consagrado, juntas
elas distinguem os cineclubes de qualquer outra atividade similar[2]. São elas: o caráter
coletivo e democrático, a ausência de finalidade lucrativa e, decorrente desta,
o objetivo cultural em sentido mais amplo. Atendidas essas condições, os
cineclubes se organizam, e às suas atividades, de acordo com a comunidade em
que se instalam e as conjunturas do momento. Cineclubes de cinéfilos, de
escolas, de sindicatos, de acampamentos, de aldeias, de grupos políticos e
movimentos sociais, de gêneros ou de etnias, de imigrantes, de comunidades de
bairro ou pequenas municipalidades – sem falar das comunidades possíveis no
plano virtual, que ainda estão sendo ou para ser criadas -; não há limite, fora
das três condições citadas anteriormente, para a diversidade dos cineclubes.
Mas certamente é possível identificar formas
preponderantes – como as que tratamos nos itens precedentes – em diferentes
momentos históricos, em ambientes sociais, de classe, ou nas tradições
cineclubistas nacionais. Assim, podemos dizer que o cineclubismo nasceu, no
começo do século XX, entre o modelo revolucionário anarquista ou socialista e o
tipo eclesiástico, principalmente católico, ou benemérito. Nos anos 20, consolidou-se
um outro paradigma, o do culto cinéfilo. Há muitas outras maneiras de
distinguir os cineclubes, mas essas três “fórmulas” são, mutatis mutandis, as de maior duração e influência sobre todo o
cineclubismo, recorrentes ao longo de sua história. E a elas – e a combinações
entre elas - pode-se sempre relacionar, de alguma forma, todas as tão
diferentes práticas cineclubistas.
Em outro lugar[3], trabalhei com uma
categorização mais ampla de iniciativas do público; aqui, mais acima, falei da
quase infinda tipologia dos cineclubes em situações concretas. Mas há também,
como acabamos de ver, esses três grandes paradigmas históricos de cineclube: o
revolucionário, o paternalista e o elitista. Como já dissemos, esses traços
distintivos podem ser exclusivos, ou quase, mas no mais das vezes se conjugam,
com intensidades variáveis.
O cineclube revolucionário tem suas raízes até antes
do cinematógrafo, nos clubes operários do século XIX, em palestras e debates
apoiados em projeções de lanternas mágicas – substituídas pelo cinematógrafo no
fim do século. Consolidado no início do século XX[4], esse tipo de cineclube se
define pelo objetivo ou compromisso de tornar o público (ou o operariado, as
classes populares; a terminologia varia com a época) sujeito do processo cinematográfico, como parte de um programa mais
amplo de libertação radical de toda forma de exploração. Tendo início nos meios
anarquistas, socialistas e feministas da virada para o século XX, prosperou nos
anos e décadas seguintes entre comunistas de variados matizes, movimentos
anticoloniais ou de libertação nacional, refluindo e reduzindo-se, já neste
século, a alguns países e movimentos sociais.
O cineclube paternalista leva este adjetivo pela sua
finalidade principal de instruir, educar, formar o espectador e o público
dentro de um modelo pré-concebido. Em sua forma mais pura e completa, esteve
ligado a iniciativas religiosas, com destaque para a igreja católica romana[5]. Seus sinais originais
podem ser até mais antigos que os dos cineclubes operários que citamos acima[6] mas, grosso modo lhes são contemporâneos. Depois dos primeiros tempos do
cinema houve certo hiato em sua atividade – um período em que a igreja
anatemizava o cinema, até este ser revalorizado pela encíclica Vigilanti Cura, em 1936, que passa a ser
um guia para a ação católica com o cinema. O período áureo desse tipo de
cineclube é o pós-guerra, até aos anos 60. Mas o paternalismo, a tutela do
público, tem uma influência bem mais vasta...
Chamo de elitista o paradigma criado nos anos 20 com a
apropriação da experiência cineclubista por certos setores da intelectualidade
parisiense[7] e sua codificação sob
“forma culta”, como entende Antoine De Baecque[8]. Segundo ele, o cineclube
(ou a cinefilia) se constitui como uma cultura
quando reúne um tipo de especialistas, connaisseurs,
capazes de sistematizar - preferencialmente sob forma literária – sua experiência.
Além dos grandes nomes dos anos 20, De Baecque deriva sua observação sobretudo de
alguns cineclubes parisienses[9] de onde se originaram as
revistas Cahiers de Cinéma et Positif, e depois o grupo de
realizadores da Nouvelle Vague. Christophe Gauthier também fala em um protocolo cineclubista quando descreve
as características que identificavam as atividades cinéfilas (não apenas de
cineclubes) nos anos 20[10], como as sessões
semanais, a realização de debates, publicações, entre outras.
É
essa idéia de “especialistas”, capazes de redigir textos “cultos”,
necessariamente distinguindo os cinéfilos do restante da humanidade, que baseia
o caráter e adjetivo de elitista. Foi o modelo que se institucionalizou, se
oficializou - no sentido de prevalecer socialmente - e que ficou incorporado na
expansão mundial do cineclubismo, a qual teve seus maiores momentos justamente
– e, em boa medida, por isso mesmo – quando da notoriedade dos cineclubes da
vanguarda francesa dos anos 20, e da Nouvelle Vague, nos 50. O Brasil não fugiu
à regra, sacralizando o Chaplin Club[11] como “o primeiro
cineclube” brasileiro.
Como já disse, essa classificação tem
função didática: aponta a origem e trajetória histórica do fenômeno; é
indicativa para a compreensão de casos concretos, mas não pode ser aplicada mecanicamente.
Esses traços – de radicalismo, paternalismo, elitismo – também não devem
induzir a uma valoração rasteira, moralista. De fato, na maioria dos casos, os
cineclubes concretos misturam e transformam essas influências. Assim, pode
haver cineclubes com elementos revolucionários, paternalistas e elitistas
simultaneamente ou em diferentes combinações e intensidades. A herança
“revolucionária” pode ser reduzida a uma agressividade vazia ou retórica; o
paternalismo pode ajudar a construir importantes experiências de formação do público;
a referência elitista pode constituir um desafio para o crescimento intelectual
do cineclube e da comunidade.
Segunda parte: contrapontos
A favor dos cineclubes – mercado e tecnologias
Cinema não é tecnologia, é arte – como
já dizia nosso elegante antepassado, Ricciotto Canudo. A ideia de que novas
tecnologias possam acabar com uma forma de arte é uma falácia, aliás recorrente
nas trajetórias de várias formas de expressão. Se novas tecnologias fossem
determinantes para acabar com os cineclubes, como mencionado no início deste
texto, também o seriam para as salas comerciais de cinema. No entanto, o número
de salas continua crescendo em todo o mundo (22% em relação a cinco anos atrás;
na América Latina, 78%)[12]. Nos EUA e Canadá, o
público está mais ou menos estável desde o início do século, em torno de 1,3
bilhões de pessoas por ano – mas equivale a mais de dez vezes o público de
todos os principais esportes somados (futebol americano, basquete, beisebol e
hóquei), nos dois países. Neles, 68% das pessoas com mais de 2 anos frequentam
o cinema uma média de 6 vezes ao ano; os maiores frequentadores estão na faixa
entre 12 e 39 anos. Ora, como é amplamente sabido, é essa população que mais
acesso tem às novidades tecnológicas e também a que mais uso faz delas.
Seria mais sensato admitir que as mudanças
tecnológicas alteram a relação do público, inclusive quantitativamente, mas
nunca a ponto de acabar com uma forma de expressão artística fundamental.
Assim, nos anos 20, sem rádio, televisão ou outro entretenimento acessível, 70%
da população americana iam ao cinema mais de 40 vezes ao ano. Esses números não
mudaram significativamente nem com a Depressão, mas apenas entre o final de II
Guerra e os anos 60, quando a televisão realmente estabeleceu novos padrões de
audiência. Desde então, a frequência estabilizou-se em números ainda muito
importantes. É verdade, contudo, que a atração atual pelo cinema comercial
nestes patamares – em oposição à crise do cineclubismo - se deve muito a um
fabuloso esquema de propaganda e controle dos mercados e ao estabelecimento de
um padrão de espetáculo pirotécnico milionário (3D, IMAX, etc.).
Por outro lado, esse caráter ribombante do espetáculo
cinematográfico e a diminuição relativa, mas indiscutível, do público, levaram
a exibição a se concentrar nos países desenvolvidos e nos segmentos mais
afluentes da população no resto do mundo. Nos últimos anos tem até aumentado,
em números absolutos, o público (e bastante, a renda) cinematográfico, mas sob
um novo “modelo de negócios” [13], excluindo a maior parte
da população nos países menos desenvolvidos e isolando os setores mais
informados (daí, em parte, o sucesso das film
societies), reservando para as grandes massas a vulgaridade e a alienação[14]. Há mesmo diversos países
em que já não há praticamente cinemas.
Na verdade, creio ser mais correto
dizer que as inovações tecnológicas em si favorecem o cineclubismo. Mas, mais
que isso, o próprio modelo de negócio, a estrutura de exploração dos mercados
pelas indústrias do audiovisual, oferecem oportunidades – algumas novas, outras
desde sempre – para a atividade de cineclubes. Por exemplo, a exploração
comercial exaure o produto filme, tratando-o como uma mercadoria perecível,
preferindo até fazer o notório remake a
prolongar a vida de um clássico. No ramo literário, em que pese a dinâmica
comercial, promovem-se reedições sucessivas; no cinema, não. Alguns entusiastas
superficiais da tecnologia diriam que agora esses filmes estão todos
disponíveis na internet[15]. Mas, enquanto
alternativa efetivamente popular, esse acesso não é real. As cópias vendidas
pelas empresas controladoras não são financeiramente acessíveis para a grande
maioria – sem falar da informação e da apropriação elitista desta parte da
cultura cinematográfica. E a procura de filmes significativos e notórios em
termos estéticos, políticos, etc., na internet, além do crescente controle, não
passa de algumas centenas de milhares de acessos distribuídos em períodos de
vários anos: uma parcela muito diminuta da população em geral acessa de fato essa
produção. Ora, o Youtube, por exemplo, tem
hoje 1 bilhão de usuários, 7 bilhões de visualizações por dia (metade delas,
contudo, pelo celular). Alain Bergala[16] diz, meio sério, meio
brincando, que curtas-metragens feitos
por realizadores ou grupos jovens são muita vez vistos apenas pelos amigos e
familiares do realizador...
A forma atual de exploração do cinema, na verdade,
abre imensas oportunidades para o cineclubismo. O deslocamento tecnológico do
interesse comercial para outras “janelas” cria situações muito favoráveis aos
cineclubes. Hoje, tanto ou mais que em qualquer outro período da história do
público moderno, o cineclube contemporâneo tem grandes espaços e necessidades
fundamentais a preencher na sociedade, ocupando os espaços abandonados pelo
cinema comercial e oferecendo uma visão global e diversificada para todos os
públicos. A tecnologia que, enquanto consumo, tem hoje um caráter de dominação
e alienação; quando vista como fonte de programação, passa a ser
revolucionária.
A favor dos cineclubes – política e organização
A maioria das instituições políticas vigentes
desenvolveu-se acompanhando a evolução do capitalismo. As cidades burguesas, os
estados nacionais, mas também os parlamentos, as universidades, as igrejas e um
sem-número de instituições geradoras de práticas, costumes e valores tipicamente
capitalistas, precedem de um tanto e certamente sobreviverão ao capitalismo num
sentido mais estrito. Não há uma simetria, mas sim uma adequação assimétrica daquelas
à evolução deste, de forma que justamente as instituições sobrevivem,
transformam-se e se consolidam na medida dessa acomodação[17]. As revoluções burguesas
paradigmáticas se deram nos séculos XVII e XVIII, mas o berço da nova classe
dominante já se desenvolvia desde o século XI. O parlamento, instituição básica
do domínio da classe, já engatinhava no século X, na Islândia, mas só adquiriu
seu pleno sentido de arbitragem e moderação das relações de classe após a
instalação definitiva da burguesia no poder.
Da mesma forma, as classes sociais que podem superar o
capitalismo, também criam instituições não capitalistas, que vulneram o domínio
burguês e preparam as bases de uma sociedade futura baseada na colaboração
entre os seres humanos e não na exploração da maioria por uma ínfima minoria.
Antonio Gramsci citava os grupos culturais populares, os sindicatos e,
sobretudo, o partido político nacional-popular[18], capaz de conduzir o povo
ao poder. Desde os anos 70, tenho escrito que a grande característica dos
cineclubes é serem instituições desse tipo[19]: embriões de uma nova
forma de organização do processo do cinema e do audiovisual, sem a separação
entre as etapas econômicas de produção, distribuição e consumo, e com a
integração livre dos aspectos criativos, identitários, educativos que, na
perspectiva comercial, capitalista, só existem subordinados à dinâmica do
lucro.
Vivemos hoje uma crise dessas instituições: dos
partidos aos cineclubes e outras instituições culturais populares, passando
pelos sindicatos. O neoliberalismo, triunfante, declara a morte prematura
dessas instituições (ainda que siga investindo fortunas, metodicamente, no
enfraquecimento das “falecidas”), os regimes de vocação populista neutralizam
essas instituições pela cooptação, reproduzindo, aliás, o erro fundamental dos fracassados
países do “socialismo real”. Os próprios segmentos populares e as concepções
que exteriorizam – o pensamento de uma “esquerda” não muito definida – também
em boa medida adotou esse discurso. Como alternativa às “velhas instituições” propõem
uma horizontalização e informalidade absolutas, localizando a causa da suposta
falência das organizações populares “tradicionais” na experiência do socialismo
real (do antigo bloco soviético) burocrática e hierarquizada. É curioso que não
se faça a ligação de burocracia e hierarquia com o autoritarismo, isto é, a incapacidade
dos regimes socialistas de estabelecerem sociedades mais livres que seus
concorrentes morais, os regimes capitalistas. Corolário dessa omissão, parte
significativa dessa esquerda tampouco identifica ou reconhece os traços de
autoritarismo nas experiências progressistas da América Latina, por exemplo.
Outra lacuna que me parece importante, esquecem todos que o autoritarismo – mãe
de todas as práticas não democráticas, como a burocracia, etc. – ocorreu
historicamente em todas as experiências que evocaram o socialismo (da simpática
Cuba ao horror do Cambodja) sobretudo pela pressão militar onipresente do
inimigo. Parecem ignorar igualmente, que a ausência de organização não é uma
criação nova; antes, está mais ligada a fórmulas igualitárias abstratas do
século XIX, ou de pequenas sociedades autorreguladas e estanques.
Todo trabalho exige organização e especialização de
tarefas. Ordenamento e divisão do trabalho. Que melhor exemplo que o cinema?
Criar paramentos de prestígio ou poder em cima de funções de coordenação é que
cria essa aura pejorativa no sentido do termo hierarquia. Ou de burocracia que,
sem esse viés, designa mais um procedimento metodológico. Toda instituição ou
organização implica em colaboração estruturada, e o estabelecimento de regras
transparentes é a maior garantia da sua lisura e democracia. Há menos “hierarquia” abstrata num cargo
eletivo com mandato determinado que na entrega da representação e/ou
coordenação de entidades e pessoas de maneira informal. Para alguns, as palavras
presidente ou tesoureiro podem soar mais autoritárias que coordenador, por
exemplo, mas o mandato daqueles é definido em atribuição e duração, sujeito a
supervisão e controle; e o deste pode tornar-se infindo e pouco compreendido no
plano público, permitindo toda sorte de abuso.
A experiência recente de mobilizações sociais sem
estrutura organizativa definida e unificadora, em todo o mundo[20], produziu grandes
protestos cívicos, mas resultou quase sempre no fortalecimento das classes
dominantes e suas organizações político-institucionais.
O capitalismo não se instituiu unicamente pelo
processo revolucionário que culminou e consolidou seu predomínio. Isso só foi
possível porque já havia uma sociedade formada em grande parte por instituições
capitalistas. Sua hegemonia se estabeleceu absoluta com o último impulso
revolucionário, mas não seria possível apenas a partir dele. Como, em sentido
inverso, aconteceu nos países do “socialismo real”: à tomada do poder pela via
revolucionária, militar ou até por invasão libertadora, não correspondeu a
criação de uma superestrutura institucional completamente nova e superior “intelectual
e moralmente” às instituições burguesas. Como dizia Gramsci, a hegemonia só se
estabelece com as duas funções, de domínio e de direção. Negligenciar uma delas
equivale ao fracasso político.
O cineclube, reinventando sempre formas de organização
de suas práticas, não pode abrir mão de uma estrutura transparente e
democrática que permita a sua reprodução e renovação através de procedimentos
democráticos. Sem um método e forma de integração do público na sua condução,
na sua direção, o cineclube não cumpre sua atribuição essencial – organizar o
público – abandona a perspectiva da emancipação do público, equivalente
contemporâneo do velho proletariado, aqueles que não possuem os meios de
produzir sua consciência, identidade, humanidade. Sem organização, o cineclube
se condena a ser apenas um coadjuvante desprezado no gigantesco campo do
comércio audiovisual.
Formas do cineclube contemporâneo
A todas as
observações que fiz acima, preciso juntar a rica experiência dos três últimos
anos militando no Cineclube Latino Americano Juan Carlos Arch. Na condição de
diretor de Atividades Culturais do Memorial da América Latina, em São Paulo,
tive oportunidade de facilitar a instalação do cineclube em espaços dessa
entidade. E como militante do cineclube, depois de muitos anos afastado[21] da convivência cotidiana
com o público, pude vivenciar e avaliar as imensas transformações por que passaram
o público urbano moderno, a militância cineclubista de base e, claro, os
recursos técnicos da atividade. O Cineclube Latino-Americano foi uma espécie de
laboratório para a comprovação da validade da experiência centenária da
organização cineclubista e, simultaneamente, um aprendizado da articulação
desta com novas ferramentas e práticas do público.
Este texto tem este formato espelhado – primeira e
segunda parte “espelham” os argumentos para chegar ao desafio proposto pelo
título do artigo - em boa medida baseado na mesma idéia: comparar e aproveitar
a experiência histórica do cineclubismo para compreender e propor seu papel na
atualidade. A prática diária no cineclube, ainda que limitada ao campo de
atuação[22] que lhe dá sua identidade
particular, me ajudou a compreender melhor as mudanças que se manifestavam
também - mas de forma diferente – no plano do movimento e do público em seu
sentido mais amplo. Foi essencial para complementar esta reflexão.
A chamada globalização – termo usado para descrever o avanço do capitalismo
neoliberal sobretudo nos anos de falência do bloco comunista e de
redemocratização formal na América Latina (em termos econômicos: intensa
privatização), apoiado no desenvolvimento das tecnologias cibernéticas,
sobretudo entre os anos 80 e o início deste século – não deu muita conta de
avaliar o novo processo de integração das populações ao capitalismo, cujos
efeitos mais claros se manifestam um pouco depois.
A reprodução do sistema adquiriu um
novo significado, entrando nos planos simbólicos e subjetivos como nunca antes.
Hoje, a sujeição ao capital já não se dá exclusivamente através da produção de
mais-valia no trabalho, mas pela própria apropriação do universo pessoal
subjetivo do público: basta acessar a rede mundial para já estar produzindo
ganhos para os proprietários das - ironicamente chamadas – redes sociais.
Vivemos um novo ciclo de expansão geográfica - reintegrando os mercados dos
antigos países socialistas e promovendo uma ampla privatização nos países
emergentes - e vertical - incorporando ou criando novos mercados pelas mudanças
tecnológicas e promovendo até uma abertura limitada a novos segmentos sociais,
de gênero, etc. Paralelamente, entre o bombardeio maciço, a miséria e a fome[23], ocorre o maior êxodo
populacional desde a II Guerra Mundial.
Ou, no nosso terreno: a uniformização e vulgarização
da comunicação cultural, o isolamento e alienação do público atingem níveis
inéditos, beirando a patologia nas chamadas redes
sociais. Ao que se soma a supremacia ideológica do individualismo e o
enfraquecimento das instituições populares.
O cineclube contemporâneo tem que se posicionar frente
a tudo de que este texto tratou até aqui: considerar as oportunidades – que são
muitas – e adequar-se aos novos comportamentos dos públicos e da militância na
conjuntura atual. Evidentemente, as diferenças entre comunidades e contextos
continuam a existir – felizmente – mas gostaria de tratar de um paradigma
possível, adaptável, que possa considerar a realidade contemporânea e, ao mesmo
tempo, adequar-se ou ajudar a pensar e construir a grande maioria das práticas
localizadas.
Terceira parte : o cineclube contemporâneo
O cineclube contemporâneo tem que a) assimilar a
evolução tecnológica – e isso de maneira permanente e flexível – b) compreender
a situação social, econômica e cultural concreta, isto é, como se situar frente
ao modo de consumo do audiovisual atual e c) estabelecer um projeto de atuação
em relação a essa realidade. Tratei das duas primeiras questões até aqui. Agora
vou tentar articulá-las com um projeto de cineclube para os dias atuais. Na
minha compreensão, isso inclui o reexame e aproveitamento criativo da nossa
experiência histórica concreta.
1. A instituição audiovisual da comunidade
É indiscutível que a família, a escola, as igrejas são
instituições básicas na formação e socialização das pessoas. A mídia, porém,
que em suas diversas formas é, hoje, fundamentalmente audiovisual, tornou-se um
dos, senão o principal pilar de socialização e mediação social, em todos os
níveis, na sociedade contemporânea. Seu controle e direcionamento são exercidos
por uma ínfima minoria detentora do capital, sempre em grau acelerado de
concentração. Concentração financeira, da qual têm derivado também crescentes
uniformização e empobrecimento de linguagem e conteúdos, resultando numa
alienação[24]
montante.
O cineclube não é (apenas) um espaço de exibição ou de
educação de uma plateia. Ele é, justamente, a instituição do público que se opõe à sua dominação e exploração. É
a base, o embrião da construção de um novo sistema (o movimento cineclubista em
sentido amplo, baseado nas práticas colaborativas dos cineclubes) de
comunicação social e autoformação do público. Um sistema que integra produção,
circulação e consumo; consumo criativo e produtivo, que fecha essa equação.
Essa é a herança atualizada dos cineclubes fundadores, que chamei de
revolucionários.
O cineclube contemporâneo precisa ser visto como
elemento indispensável da comunidade, central na sua vida social, na
construção, preservação e afirmação de sua identidade. A instituição
audiovisual do público. A experiência e o sucesso das film societies aponta, ainda que de maneira parcial e incompleta,
para essa condição.
2. Base social do cineclube contemporâneo
Como afirmei
no começo deste texto, as salas comerciais de cinema se concentraram nos polos
de maior poder econômico, principalmente nos países menos desenvolvidos, e no
estilo padronizado das superproduções para públicos menos exigentes
esteticamente – ou mais integrados ideologicamente. Já o audiovisual em geral, que
não se estrutura sobre um espaço físico – a sala de cinema - está presente em
toda parte: televisores, computadores dispositivos móveis, e em diferentes produtos,
formatos e linguagens, como informativos, novelas, jogos, redes sociais, etc.
As salas de cinema, contudo, mesmo que já não
constituam o principal veículo do audiovisual comercial, ainda ocupam um papel muito
relevante social e culturalmente. O filme (narrativa ficcional ou documental,
especialmente de longa-metragem) é um formato típico da sala de cinema; mesmo
que não mais exclusivo, tem nela condições muito especiais de fruição e
consumo. As salas de cinema são um índice cultural importante para
compreendermos as sociedades: os EUA têm uma sala para cada 9 mil habitantes; a
França, uma para 11 mil; o Reino Unido, para 16 mil. Brasil e Índia, com
populações tão desproporcionais, têm uma sala para cada 100 mil pessoas.
O cineclube contemporâneo, para atender, responder
proporcionalmente às necessidades do público, também deve ter uma relação
proporcional com a distribuição geográfica e social da população. O Brasil tem
uma forte concentração populacional nas grandes regiões metropolitanas – quase
metade da população (90 milhões) - e uma enorme dispersão de pequenas
comunidades: 3,8 mil municípios com 20 mil habitantes ou menos. Um quadro
simplificado dá uma ideia dessa distribuição:
Cidades brasileiras
|
número
|
Total
|
5.570
|
Regiões metropolitanas
|
20
|
200.000 habitantes ou mais
|
160
|
Entre 100.000 e 200.000
|
150
|
Entre 50.000 e 100.000
|
350
|
Entre 20.000 e 50.000
|
900
|
Até 20.000
|
3.800
|
Como se sabe, dentro do modelo econômico
excludente, as áreas nas cidades maiores e regiões metropolitanas são altamente
diferenciadas; nas localidades menores, onde os privilegiados são pouco numerosos
e mais afastados, pode-se observar uma maior uniformidade cultural.
Atrevo-me a sugerir, então, partirmos
de uma relação de um cineclube deste novo tipo para cada 50 mil habitantes, nas
áreas de maior concentração, e um para cada 20 mil nas regiões de maior
dispersão da população. Apesar da abstração estatística, esta proposta também
se apoia em observações empíricas: nas cidades maiores, a facilidade de
comunicação e transporte permite trabalhar com uma base geográfica maior,
geralmente localizada nas periferias ou nos velhos centros mais deteriorados.
Nas demais cidades (de menos de 20 mil habitantes), uma minoria – cerca de mil
localidades – têm menos de 5 mil habitantes; nestes casos, a experiência bem
sucedida de alguns cineclubes ou iniciativas congêneres tem sido a de promover
sessões itinerantes.
Esse ambicioso objetivo implicaria na
criação de entre 4 mil e 8 mil cineclubes, uma tarefa de médio e longo prazo
mesmo se apoiada pelo Estado - o que não parece ter muita chance de acontecer.
Note-se bem: o cineclube que estou preconizando não tem praticamente nada a ver
com os espaços precários de exibição promovidos há alguns anos pelo governo
federal e alguns estaduais. Ou com salas geridas pelo próprio Estado, ou
terceirizadas para a iniciativa privada, como no projeto da prefeitura de São
Paulo[25].
3. Base humana e econômica do cineclube contemporâneo
Consolidar um
cineclube com a proposta que estou desenvolvendo aqui é tarefa dificílima,
muito distante do modelo de exibições quase sem estrutura ou periodicidade
definida que constituem atualmente a grande maioria das atividades culturais
com audiovisual no Brasil. Como evoca a citação de Pepe Mujica na abertura
deste artigo, trata-se de um compromisso vital, de um trabalho de alta
dedicação, que tem como objetivo contrapor-se coletivamente e substituir, no coração
e mente do público, a visão subalterna de seu lugar no mundo, contribuindo para
a sua emancipação integral.
Minhas experiências
mais pessoais, com o PopCine[26] e com o Cineclube
Latino-Americano, juntam-se à observação dos modelos mais bem sucedidos (em
termos de estabilidade) de cineclube e da própria falência do modelo de militância
de 30 ou mais anos atrás. Como juntar, então, estes dois parágrafos numa proposta coerente?
Sem um
financiamento definido, o modelo de cineclube (ver o item 5 seguinte: estrutura)
que proponho demandará esforço e dedicação, mas pode viabilizar-se a médio
prazo (até 2 anos). Cobrando uma taxa de manutenção (ingresso), de associação
ou outra forma de contribuição financeira; realizando eventos festivos e
promoções; captando publicidade no comércio local e doações (Lei Rouanet para
pessoa física) pessoais na comunidade, o cineclube pode começar a melhorar suas
condições de instalação e atividade, e dar ajudas de custo que permitam
garantir uma participação mais intensa dos militantes (cuidando para não
“distribuir resultados financeiros”, mas apenas remunerar o trabalho
indispensável). Com muito trabalho e criatividade, essa situação pode se tornar
um círculo virtuoso: melhores condições, mais participação, melhores
resultados.
4. Cineclube e Estado
Evidentemente,
uma política pública que reconhecesse a importância do cineclubismo
constituiria um diferencial importantíssimo para a viabilização de um projeto
como o do cineclube contemporâneo. Mas, como já disse, esta não é a postura dos
governos petistas, em todos os níveis, e muito menos das suas oposições. Apenas
um movimento cineclubista forte, com peso e repercussão social e cultural,
seria capaz de alterar essa situação. E isso está totalmente para se construir
– esta proposta pretende ser um caminho.
Adianto aqui,
para referência, as questões legais e institucionais principais que precisam
ser resolvidas junto ao Estado para que o cineclubismo se desenvolva
livremente:
a)
Simplificação do registro em cartório e reconhecimento
institucional em geral, hoje cheio de burocracias e taxas,
b)
Reconhecimento da imunidade tributária dos cineclubes
– que é inerente, já que não têm fins lucrativos, e
c)
Plena liberdade de exibição, sem sujeição aos limites
dos direitos patrimoniais.
Estes três
pontos são as bandeiras prioritárias e permanentes da exibição cultural no
Brasil. Do ponto de vista administrativo, a relação dos cineclubes com o Estado
deveria ser tratada diretamente com o município, para o qual devem ser
transferidos os recursos federais e estaduais que possam ser alocados para o
fomento do cineclubismo.
5. Estrutura e papel do cineclube contemporâneo na
comunidade
No item 3, fiz
algumas considerações gerais sobre o tipo de trabalho que requer o cineclube
contemporâneo. Elas supõem o estabelecimento gradual (ou imediato, se houver
recursos) de uma estrutura completa e funcional para a promoção de uma ampla
gama de atividades. Considerando ainda o que desenvolvi no item 2, isto é, uma
base social ideal entre 20 mil e 50 mil pessoas, o cineclube deve ter:
o
instalações físicas para projeção e outras atividades
que usem auditório, com pelo menos 100 lugares (menos, em comunidades menores)
confortáveis, tela em torno de 4 x 7 m, pé direito e ângulo de visão adequados;
o
área para bar-bomboniére, com espaço para recepções,
lançamentos, exposições, etc.;
o
espaços para administração, arquivo, estudos e
depósito de equipamentos;
o
sala para estúdios de web rádio e web tv, e
o
acesso a área para festas maiores
A programação deve ser a mais variada possível,
entendida como uma construção que resulta da sua real apropriação pela
comunidade. À medida que o público goste, se acostume e adquira o hábito de
frequentar o cineclube, a programação deve se intensificar tanto quanto possível,
e se diversificar, atendendo a escolas[27], por exemplo, ou a
públicos determinados: crianças, jovens, idosos ou por grupos de interesse,
como acompanhamento de novelas, aprofundamento de temas para estudo formal ou
informal, etc.
É fundamental que o cineclube contemporâneo crie
formas de relação à distância com o público, seja como programação mesmo
(produção própria ou de outras fontes independentes, noticiário local, etc.),
para incrementar a participação (grupos de what’s
up para agilizar o trabalho) ou para propaganda e publicidade. A produção
de publicidade para o comércio ou outras iniciativas locais pode ser uma fonte
importante de recursos para o cineclube. E um serviço para a comunidade, no
caso de campanhas educativas: vacinação, segurança, etc.
A produção é atividade essencial do cineclube
contemporâneo. Seu papel na comunidade deve necessariamente envolver a
documentação e preservação da vida e da história comunitária. Da mesma forma, à
medida que o cineclube se integre à criação cultural em geral da comunidade,
pessoal ou coletiva, essa produção vai envolver a ficção e a experimentação. A
produção para as novas plataformas audiovisuais -– especialmente na internet –
permitem que o cineclube dispute também o espaço audiovisual ocupado pela
produção comercial.
Essa produção do cineclube, reunida aos resultados de
uma coleta da produção comunitária existente e/ou anterior (fotos, filmes de
família, instantâneos e vídeos de celulares, etc.) deve ter um espaço próprio e
condições básicas de conservação. Nos casos que demandem recursos mais
complexos de preservação, o cineclube deve articular-se com outras
instituições, como arquivos e cinematecas.
6. Movimento cultural e social
O cineclube
contemporâneo não é uma invenção abstrata, mas a sistematização de uma longa
série de experiências históricas. Já em 1911 há menção de uma sala de cinema em
Los Angeles que funcionava diariamente e, segundo seus dirigentes, era um
espaço de luta contra o cinema opressor, único que, fora dali, se oferecia ao
povo. Mais perto de casa, no tempo e no espaço, temos os “cineclubes 35 mm” que
funcionaram, também diariamente, em diversas
cidades brasileiras nos anos 80, com enorme sucesso. Alguns deles, inclusive,
transformaram-se em salas comerciais e, depois, grandes circuitos de exibição[28]. A maioria, entretanto, não conseguiu sobreviver à
especulação imobiliária que também matou os cinema de rua. Acredito que, além
de todas as pressões que se abateram sobre eles, um grande motivo para o seu
desaparecimento foi a incapacidade que tiveram de encontrar uma forma de união,
de fortalecimento mútuo. Também mencionei a experiência do PopCine que,
projetado para ser um circuito, cometeu o erro de depender inteiramente do
Estado – que não cumpriu o programa.
Cineclubes organizados nestas bases, de árdua
construção, serão, por outro lado, instituições fortes e influentes em cada
comunidade. Sua estrutura permitirá uma ação que influencie a educação formal,
junto às escolas, e informal, através do lazer integrado à socialização, à
civilização e a emancipação da maioria. Contribuirá para a inclusão social,
mesmo nas mais distantes e pequenas localidades, constituindo uma rede de
exibições e outras atividades itinerantes, bem como pelo alcance da internet,
radio e tevê. O cineclube contemporâneo tem os mesmos princípios defendidos há
100 anos pelo primeiro cineclube que conhecemos melhor: Divertir, instruir,
emancipar!
Na medida em que consigam construir um projeto comum e
atuem como movimento, terão grande capacidade de pressão sobre o Estado e
influência sobre os próprios rumos do cinema e do audiovisual. Em última
instância, estarão criando um novo cinema e uma nova organização institucional
para a comunicação, o aprendizado, a expressão artística. Base essencial para
se constituir uma sociedade plenamente livre e consciente.
Notas:
[1] Há exceções importantes a esse “individualismo”: muita gente inclui na
cinefilia os fandoms – comunidades de
fãs de gêneros, como a ficção científica ou os animes – com suas publicações,
convenções e outras atividades. O video
game, também é outra forma de audiovisual que reúne comunidades, online e em campeonatos. Os apreciadores
de ópera também se reúnem em salas de cinema que passaram a promover “sessões”
desse tipo. Por outro lado, não há realmente comunidades importantes de
cultuadores de cinema; Sua fruição em provedores como o Youtube se dá em
privado, individualmente.
[3] Teses para uma jornada de
cineclubes e entidades congêneres - 4. As divisões do público: enquadrados,
rebeldes e tutelados,
disponível em http://felipemacedocineclubes.blogspot.com.br/2015/07/teses-para-uma-jornada-de-cineclubes-e_7.html
[4] O modelo melhor documentado desse tipo de
cineclube é o do Cinema do Povo, de 1913. Ver mais em: http://felipemacedocineclubes.blogspot.com.br/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html
[5] Mas igualmente nas predicações protestantes e nas iniciativas de
controle dos trabalhadores, de sindicatos patronais ou de organizações como a
YMCA (Associação Cristá de Moços), no começo do século XX.
[6] Os padres jesuitas já empregavam lanternas mágicas
para atrair e catequisar os indígenas, por exemplo nas Missões, na América do
Sul, desde o século XVII.
[7] Principalmente as sessões de promoção de revistas – Journal du Cinéclub, Cinéa - editadas por Louis Delluc (de onde se
consolidaria o termo cineclube) e o Clube dos Amigos da Sétima Arte, de
Ricciotto Canudo, frequentemente tidos como os primeiros cineclubes.
[8] De Baecque, Antoine. 2011. Cinefilia
- Invenção de um Olhar, História de uma Cultura: 1944-1968. Cosac Naify.
[9] Na verdade, a observação de De Baecque cobre poucos cineclubes de jovens
da classe média na capital francesa. Nessa mesma época havia milhares de
cineclubes na cidade e na França.
[10] La passion du cinéma:
cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. O trabalho de Gauthier considera um campo mais amplo que o dos
cineclubes, como o título já indica, inclusive anteriores aos anos 50,
procurando sistematizar atividades comuns ao que denomina cinefilia.
[11] 1928-1930, Rio de Janeiro.
[12] Dados do relatório Theatrical Market
Statistics 2013, da Motion Pictures Association of America (MPAA).
[13] Ver O Modelo Brasileiro de Cinema,
em https://www.academia.edu/10359705/O_Modelo_Brasileiro_de_Cinema
[14] No Brasil, seguindo este raciocínio, os segmentos seriam três: meia
dúzia de capitais que dispõem de um circuito de “salas de arte”, o público dos xópins (equivalente das massas
do primeiro mundo) e o enorme descampado dos “sem tela”.
[15] Esse fato é indiscutível, a tecnologia abriu
de fato essa perspectiva de acesso a cópias de qualidade, ainda que selecionadas
com um viés primeiromundista. E do ponto de vista de acesso “legal”, só disponibilizadas
de acordo com as normas da MPAA. Há acesso também a um universo ainda mais
amplo no Youtube e outros arquivos (e isto pode facilitar a programação de
cineclubes).
[17] Muitas outras instituições não são exclusividade do capitalismo – como a
família, a propriedade privada, etc. – mas se transformam e se adequam à
reprodução do sistema, inclusive das próprias modificações deste.
[18] O conceito de nacional-popular não se restringe ao espaço geográfico
nacional, mas remete à capacidade da maioria, popular, de construir a direção
da totalidade social que se identifica como nação. Teoricamente o conceito se
aplica igualmente ao espaço inteiro da Terra, quando chegarmos a nos identificar
nesse nível.
[19] Ver Hegemonia e Cineclube em http://felipemacedocineclubes.blogspot.com.br/2009/05/hegemonia-e-cineclube-revisao-de-um.html
[20] Da chamada “primavera árabe” aos “indignados”
europeus e movimentos de “ocupe-se”, sobraram o caos e anomia sob bombardeio,
disputas fratricidas promovidas por interesses estrangeiros, a recomposição de
velhas ditaduras ou simplesmente a vitória eleitoral das direitas. Mais
recentemente, na Espanha e na Grécia, um retorno à opção partidária tem aberto
novas perspectivas, ainda a observar.
[21] Desde que deixei o Elétrico Cineclube, há 20 anos, tenho trabalhado com
cinema e televisão e passei mais de dez anos em Montreal, trabalhando alguns
anos com tradução e legendagem de filmes e pesquisando o cineclubismo na
Universidade, mas sem uma prática cineclubista tradicional, diária.. Entre 2003
e 2009 colaborei intensamente na direção nacional do cineclubismo brasileiro e,
até 2013, com a Federação Internacional de Cineclubes, mas também sem o
trabalho cotidiano do meu cineclube.
No Cineclube Latino Americano, ao contrário, essa vivência foi muito intensa.
[22] A comunidade do Cineclube
Latino Americano é o interesse pelo cinema e a cultura do continente; seu
público, o do espaço metropolitano inteiro de São Paulo (e até de outras
cidades, fora da Grande São Paulo!).
[23] Que reduziram a escombros, nos últimos 5 nos, vários países: Afeganistão,
Iraque, Líbia, Síria, Iêmen, Eritréia, Etiópia, Somália, Sudão, e deixa outros
em eterna precariedade social e política, em catástrofe nacional, como o Haiti,
Bangladesh, ou à beira da guerra civil, como Mali, Níger, Nigéria, Congo,
Camarões, Burkina Fasso. Na América do Sul, o Brasil é um dos maiores polos de
imigração não apenas do nosso continente, mas também da África.
[24] As pessoas não apenas alienam sua relação com o trabalho, a vida social e o próprio planeta,
mas adquirem, cada vez mais, comportamentos compulsivos, agressivos,
neuróticos, aderindo a crenças extremistas e instaurando – sobretudo, mas não
exclusivamente, nos países dependentes – um nível de violência social
absolutamente contraditório com o grau de civilização que a cultura e a mídia
permitiriam generalizar.
[25] Considerando a instabilidade política atual do
Brasil, é preciso esclarecer que também não creio que esteja no horizonte de
outras políticas culturais, de eventuais grupos oposicionistas que, por sua
vez, preconizam delegar toda iniciativa cultural à empresa privada.
[27] O trabalho com escolas da “base territorial” do cineclube é uma questão
especial. A articulação cineclube/escola pode permitir um intercâmbio com o
corpo docente, além de pais e alunos, abrindo grandes perspectivas de
integração do cinema e do audiovisual nos currículos. A programação sistemática de sessões para as
escolas pode trazer para o cineclube um significativo aporte financeiro que, de
outro lado, seria extremamente econômico para as instituições educacionais
(Secretaria de Educação).