Quem são os inimigos do
público?
(na prática cineclubista)
O evento, o espetáculo e a
autoria
Acho que é do tempo em que eu
trabalhava na Cinemateca Brasileira, no Parque Ibirapuera, que me vem à
lembrança um outdoor que ficava na
avenida IV Centenário, quase em frente ao portão 5, nosso acesso ao parque. Em 1972,
provavelmente. Era um daqueles motes rimados, bordões “clássicos” que marcaram
uma época da propaganda e que ficam na memória de uma geração. E que já era
velho – acho que dos anos 50 e 60 - e mais engraçado, portanto, naquela época:
“Quem são os amigos da Etelvina? Cito, Pox e Parquetina”. Os produtos de
limpeza que eram os grandes amigos da dona de casa.
Por causa dessa lembrança, o título
deste artigo. Quem são os inimigos do público? O evento, o espetáculo e a
autoria. Há muitos – e bota muitos nisso - outros inimigos do público, claro,
mas este recurso, digamos, mnemônico, me permite tratar e salientar estes, bem
urgentes no processo de autoformação do público em que estamos envolvidos.
Novidades
No âmbito do audiovisual, como em
qualquer outro aspecto da produção social, há uma divisão geral em dois grandes
campos de interesse, que implicam em diferentes concepções sobre a organização
da sociedade. De um lado, o lucro e a acumulação de capital como motores do
desenvolvimento; de outro, a produção e distribuição equânimes do trabalho e
seus resultados como caminhos de realização do ser humano.
No primeiro caso, reconhecem-se as
diversas formas do capitalismo – dos extremos das ditaduras fascistas ao
idealismo do capitalismo humanista -; no outro caso, os socialismos – que
também incluem de ditaduras sangrentas até utopias generosas -, sem falar de
degenerescências várias nos dois casos. Uma coisa, porém não varia: o
capitalismo, sob qualquer forma, expressa a ideologia dos setores dominantes de
cada sociedade; e o socialismo, a das chamadas camadas subalternas. E todos
reconhecem que as classes sociais dominantes organizam e dirigem as demais
classes, seja para benefício delas, já que o lucro é a única forma de fomentar
o desenvolvimento - como pensam as classes dominantes -, ou para explorá-las,
segundo os críticos do capitalismo. Como já deu para desconfiar, este texto se
desenvolve na lógica desta última concepção.
Também no plano do audiovisual, uma
grande maioria de instituições visa em primeiro lugar o lucro, apoiando-se no
empreendedorismo privado, e outras buscam uma apropriação social da criação
audiovisual, sustentando-se geralmente no Estado e, mais raramente, em formas
de organização social civil. No primeiro caso temos as grandes corporações
internacionais e empresas em geral de produção, distribuição, exibição
cinematográfica, as redes de televisão e de rádio, as gigantescas empresas de
serviços de informática, internet, redes “sociais” – assim como as start-ups que almejam um dia jogar entre
os grandes times. Do outro lado, as organizações sem fins de lucro: instituições
públicas de variado tipo, que trabalham com o audiovisual, e outras, estatais
ou particulares (mas não comerciais), como algumas escolas de cinema, rádio e
televisão, arquivos de filmes, museus, casas de cultura, festivais e, não podemos
esquecer, cineclubes.
Especialmente com a grande onda de
ampliação e aprofundamento do capitalismo em escala mundial, iniciada por volta
dos anos 70 e 80 do século passado, com a revolução digital e a queda do bloco
comunista, também há, cada vez mais, uma “adequação” dessas instituições sem
fins lucrativos ao sistema dominante, adotando formas de trabalho e de gestão
típicas dos empreendimentos comerciais e alinhando-se como estruturas
complementares e facilitadoras do predomínio do capitalismo no campo do
audiovisual. Os “inimigos do público” são algumas dessas “adequações”: formas
alienadoras que se insinuam nas práticas do público, descaracterizando-as.
O evento
Evento é uma coisa bem ampla. A queda
de um meteoro, um naufrágio, o lançamento de um foguete, constituem eventos.
Mas aqui me interessa apenas o evento como relação social, como manifestação e,
sobretudo, como prática cultural. Isto é, quando se torna a forma
preponderante, senão exclusiva, da atuação de uma determinada organização. Não
me refiro ao evento comemorativo de uma efeméride, à organização de uma festa
ou tantos outros exemplos possíveis de ocasiões únicas para promover,
propagandear, levantar recursos ou outras finalidades pontuais. O evento é
inimigo quando substitui a atividade sistemática e coletiva.
Um cineclube é essencialmente uma
atividade permanente e sistemática de autoformação coletiva em torno do
audiovisual. É da permanência e sistematicidade que ele constrói um vínculo de
representatividade com a comunidade em que existe e, com o caráter coletivo e
democrático, promove o progresso intelectual e moral do conjunto de seus membros
e frequentadores, sem imposições autoritárias ou paternalistas.
O evento é, por definição, pontual,
efêmero, no máximo esporádico ou ocasional. Está para o cinema como o panfleto
para a literatura. Pode ter um efeito catártico, como já dizia Aristóteles, mas
não de formação, que é progressivo, sistemático, alicerçado na multiplicidade e
diversidade de uma experiência contínua. Passar filme na praça uma vez por mês,
ou menos, que geralmente reúne plateias maiores (até pela raridade), pode ser
um espetáculo divertido, excelente para a promoção do patrocinador ou de grande
impacto de denúncia ou propaganda. Mas não se sedimenta na comunidade, ao
contrário: perverte e enfraquece o gosto e a disciplina da educação informal
que o audiovisual proporciona. Na verdade, cede e facilita essa função para,
justamente, as formas permanentes e sistemáticas de alienação, como novelas,
seriados, “reality-shows”, programas de auditório.
Organizar um evento, no sentido que
venho tratando, é aparentemente (enganosamente) mais gratificante,
recompensador, e também mais fácil que o compromisso diuturno com uma
programação constante. Inclusive para o público. É quase natural dar-lhe um
caráter festivo – que também não é “melhor” que a fruição sistemática, mas
parece – e não exige nenhum tipo de compromisso maior que uma eventual desprodução.
A identificação entre o público, quando ocorre, é momentânea, catártica e
emocional, e quase nunca um vínculo real de solidariedade que se exercita e
cresce na prática sistemática. Na fruição do filme, exacerba-se a experiência
pessoal, individual. Claro que isso não é tão óbvio quando o evento reúne
pouquíssimas pessoas – mas aí ele fica comprometido em outros muitos sentidos:
qual é o significado cultural de uma projeção eventual para uma dúzia de
pessoas?
Na programação sistemática as pessoas
se reconhecem no grupo, até no espaço, na sala de projeção que já identifica
outra relação com o audiovisual: coletiva, democrática, autônoma. O que não
elimina a catarse na relação com a obra, nem a força da experiência pessoal,
individual. Ao contrário, a prática sistemática lança pontes e derruba
fronteiras entre o indivíduo e a comunidade. Constrói um coletivo que não é
massa – como em tantos espetáculos musicais, religiosos...
Uma prática sistemática implica em
uma organização mais permanente. Também costuma gerar novas demandas, com a
evolução da experiência e do público. O evento favorece uma maior
especialização e pede, no máximo, um número bem limitado de
organizadores/produtores. Ou como diz a organização anticomunista internacional
Estudantes pela Liberdade: “o bom é que uma pessoa só pode tocar um cineclube”.
Faço a citação pela redução ad absurdum:
não pode haver um clube de cinema ativo
com uma pessoa só.
O evento, portanto, facilita e até
favorece a limitação da participação – não confundir participação com ir à
sessão – e aponta para a informalidade do compromisso e da organização. O
evento tende a substituir – e de fato, está acontecendo em larga escala – a
organização política e cultural comunitária pelo voluntarismo individual ou de
grupos muito limitados. O evento - como prática cultural, é sempre importante
lembrar – propicia a morte do cineclube e o enfraquecimento geral das
organizações que formam uma sociedade civil consciente e atuante.
O espetáculo
Também o termo espetáculo precisa ser
bem situado. Guy Debord trata do espetáculo numa perspectiva mais ampla, de
reificação da própria realidade contemporânea. Ainda que essa reflexão esteja
relacionada com os comentários que se seguem, trabalho numa perspectiva mais
restrita, sem entrar num sentido filosófico mais profundo. Há também o sentido
de espetáculo como “forma de apresentação” de diferentes linguagens artísticas,
mas mais frequentemente nos palcos. A evolução histórica do espetáculo, nesse
sentido, é intimamente ligada ao desenvolvimento e formação do público moderno
– mas isto é uma outra história, para outra oportunidade. Aqui, quero tomar
espetáculo mais como modo de apresentação espetacular, em que o impacto se
sobrepõe à narrativa, a atração à compreensão.
De fato, o cinema nasceu sob este
estigma: a historiografia contemporânea praticamente adotou a denominação de
“cinematografia de atrações” para o período inicial do cinema, antes do
amadurecimento e institucionalização da linguagem clássica do cinema. O cinema
buscou seu espectador atraindo-o para a surpresa, o inusitado, o incomum, o
estrangeiro, como nos espetáculos de fenômenos e aberrações em feiras e
parques, ou o truque, em sua acepção cinematográfica (tirada do teatro). A
atração responde a uma espécie de voyeurismo, a uma curiosidade inconsequente, pulsional.
Não chega a encadear uma narrativa e quase nenhuma reflexão. Se a atração
prevaleceu nos primórdios do cinema, sempre foi parte do espetáculo, e
atualmente volta a ocupar um papel central na cinematografia dominante, com
formidáveis efeitos especiais percebidos numa torrente de planos rapidíssimos,
no limite da percepção normal e da sugestão subliminar.
Ao espetáculo audiovisual atual
aplicam-se várias das considerações que fiz em relação a eventos, outras as
completam. A grandiosidade técnica e financeira do espetáculo de cinema, hoje,
é essencial para o controle e reprodução do modelo de exploração do mercado
mundial. Nem mesmo os países europeus mais ricos podem fazer produções em série
com custos de centenas de milhões de dólares. Para isso é preciso ter a
participação e controle do mercado mundial – cerca de 85% - que só a indústria
de Hollywood tem. O sistema de heróis, que em boa medida substituiu o velho star system facilita a repetição do
modelo (quase todos usam máscaras, afinal) e se completa com a mercantilização
de incontáveis subprodutos.
Essa escala bilionária de negócios e plateias (bilhões de
acessos), paradoxalmente, individualiza ao máximo o consumo com a uniformização
do modelo estético (argh!) e a despersonalização do consumidor, cuja identidade
se expressa na sua representação de consumidor, como já previa Debord.
Parece que, quanto maior a plateia,
mais se afirma seu caráter de multidão e mais se perde a identidade pessoal
que, como disse mais acima, se define pelo seu assentamento na comunidade e na
sociedade. E quanto mais eventual o espetáculo, mais se criam as condições de
seus efeitos despersonalizadores, alienantes. O evento é a sua casa.
Meu cineclube[1] experimentou bastante,
recentemente, esses efeitos: chegamos a ter mil pessoas numa festa, mas esse
público não voltou ao cineclube. Juntamos projeção e festa em um noitão de muita festa (chamamos o evento
de Noche las Brujerías). A sala lotou noite adentro. As pessoas adoraram a
experiência que foi, de fato, rica (passamos o sueco A feitiçaria através dos tempos, de 1922, e Santa Sangre, chileno de 1989), muito “espetacular”. Gostaram, mas
não voltaram. Nossa dificuldade adicional é que nosso cineclube é central,
metropolitano; sua “comunidade” é uma aproximação de gostos e interesses, não
uma comunidade com uma história comum. Um público mais homogêneo constrói uma
atividade sistemática com bem menos dificuldade. Mas não é, absolutamente,
isento delas.
A autoria
Antonio Gramsci escreveu que todo
homem é filósofo, todo homem é intelectual, mesmo que não exerça na sociedade
essa função específica. Outros agregaram, no mesmo sentido, que todo homem é
artista. Ora, todo homem (no sentido de ser humano) é autor, mesmo que não
adote essa condição como título ou profissão. É autor, sobretudo de si mesmo,
através das escolhas que faz diante das relações que a vida social lhe oferece
– ou impõe. Mas, justamente, essa sua criação principal – ele mesmo – é
resultado da interação com as coisas e com os outros, muita vez fora do seu
controle. Ele nunca é o criador único, mas o ser social que, na natureza, em
sociedade e no devir histórico, cria a sua aventura simultaneamente pessoal e
coletiva.
A criação artística é parte desse
processo: é uma interação entre criação e recepção, um diálogo permanente em
que as partes só se separam no plano abstrato: qualquer obra só existe quando
consumida, fruída. E o consumo, por sua vez, realimenta o processo - todo
consumo é produtivo: todo consumo cultural é criativo. Essa troca ininterrupta
e simultânea criação-recepção-criação constitui uma espiral histórica interminável,
também chamada de cultura.
Na maior parte da História não se
concebia essa figura social, o autor. No cinema, só se aventou o conceito com o
triunfo do modelo dominante, uns 20 anos depois das projeções dos irmãos
Lumière. E assim mesmo, a ideia – tal como a conceituação jurídica - varia:
quem é o autor do filme, o roteirista, o diretor, o produtor?
Na verdade, o autor é sobretudo
criação do capitalismo, em parte para valorizar (agregar valor, como se diz
hoje) os produtos artísticos ou, por outro lado, pela necessidade de defesa
contra a excessiva exploração de certos setores, especialmente, na história do
direito autoral, o dos escritores.
Modernamente, a autoria é claramente
uma forma de propriedade privada exercida por grandes corporações da indústria
cultural. Necessitam valorizar o “autor” para justificar a sua propriedade, e
não a dele (ou deles dependendo da definição legal de autoria em diferentes
acordos internacionais e legislações nacionais). Como sua produção só pode
encontrar valor de troca nessa condição, e como uns poucos artistas auferem
vantagens reais com esta situação, o logro viceja.
Mas a grande maioria dos trabalhadores
artísticos, na verdade, vende seus “direitos autorais” no próprio processo de
produção da obra, sendo remunerados, como qualquer outro trabalhador, sem o
pagamento justo do valor do seu trabalho. Outros, em proporção igualmente
importante, sequer entram nesse circuito controlado – também chamado de mercado
– e ficam à mingua, como um grande exército de mão de obra de reserva,
necessitado e pronto a vender-se sob quaisquer condições.
No plano reificado das relações
sociais, o autor se separa artificialmente do público e, aparentemente, assume
interesses econômicos – e mesmo políticos, vide a polêmica das biografias – diferentes
e mesmo conflitantes em relação ao público. A autoria passa a ser base da
propriedade privada, que controla e limita a livre circulação da arte e da
cultura, patrimônio milenar do conjunto da sociedade.
Os cineclubes sempre foram – e hoje
esse é o seu maior problema – fortemente atingidos em sua liberdade de
programar. E o público, que supostamente representam, tolhido no pleno acesso
ao audiovisual. Mas muitos cineclubes subscrevem essa impostura ideológica,
defendendo a autoria na figura reificada do artista e identificando falsamente
interesses do público com os interesses - criados artificialmente, como vimos –
dos cineastas em geral. Mais um argumento da fragilidade dessa concepção é que
muitos distinguem a produção nacional da estrangeira, ou dos países
desenvolvidos. Podemos não pagar “os direitos” dos filmes estrangeiros, mas
todo artista nacional deve ser remunerado nessa base (mesmo que várias vezes,
já que a produção brasileira é quase toda paga por recursos públicos, isto é,
sociais).
As ideias decorrentes do conceito de
autoria formam um conjunto coerente que tem subalternizado ideologicamente o
movimento cineclubista brasileiro, descaracterizando várias práticas que
definem a própria atividade cineclubista. Priorizando a economia da produção
marginal em relação às necessidades do público, para muitos a rede cineclubista
nacional deve constituir-se sobretudo
como circuito alternativo aos mercados, transformando o conceito de formação de
público (atividade sistemática de base comunitária) em formação de plateia
(espaço de exibição em função da produção). Para atrair essa plateia, eliminou-se praticamente seus compromissos com
a atividade a que deve aderir conscientemente, e não apenas como consumidor:
não há mais associados e ninguém precisa contribuir com trabalho ou apoio
econômico. Nessa lógica, o Estado deve prover as condições de projeção
(minimamente, não se vá tirar muita verba da produção!) que, afinal, faz parte
do processo alternativo: o mercado sustentado pelo Estado é composto de
produção, distribuição e exibição. Para quê público?
Filha bastarda da autoria, a
curadoria (programação ou seleção de filmes no cineclube) é outra forma de
privatização da escolha e da participação do público. E, eventualmente,
qualificação para um pro laborezinho...
[1]
Cineclube Latino-Americano Juan Carlos Arch, funcionando (com uma ou mais
sessões semanais) desde maio de 2013 em espaço cedido pelo Memorial da América
Latina, na região central de São Paulo.