quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Quem são os inimigos do público?
(na prática cineclubista)
O evento, o espetáculo e a autoria

Acho que é do tempo em que eu trabalhava na Cinemateca Brasileira, no Parque Ibirapuera, que me vem à lembrança um outdoor que ficava na avenida IV Centenário, quase em frente ao portão 5, nosso acesso ao parque. Em 1972, provavelmente. Era um daqueles motes rimados, bordões “clássicos” que marcaram uma época da propaganda e que ficam na memória de uma geração. E que já era velho – acho que dos anos 50 e 60 - e mais engraçado, portanto, naquela época: “Quem são os amigos da Etelvina? Cito, Pox e Parquetina”. Os produtos de limpeza que eram os grandes amigos da dona de casa.

Por causa dessa lembrança, o título deste artigo. Quem são os inimigos do público? O evento, o espetáculo e a autoria. Há muitos – e bota muitos nisso - outros inimigos do público, claro, mas este recurso, digamos, mnemônico, me permite tratar e salientar estes, bem urgentes no processo de autoformação do público em que estamos envolvidos.

Novidades

No âmbito do audiovisual, como em qualquer outro aspecto da produção social, há uma divisão geral em dois grandes campos de interesse, que implicam em diferentes concepções sobre a organização da sociedade. De um lado, o lucro e a acumulação de capital como motores do desenvolvimento; de outro, a produção e distribuição equânimes do trabalho e seus resultados como caminhos de realização do ser humano.

No primeiro caso, reconhecem-se as diversas formas do capitalismo – dos extremos das ditaduras fascistas ao idealismo do capitalismo humanista -; no outro caso, os socialismos – que também incluem de ditaduras sangrentas até utopias generosas -, sem falar de degenerescências várias nos dois casos. Uma coisa, porém não varia: o capitalismo, sob qualquer forma, expressa a ideologia dos setores dominantes de cada sociedade; e o socialismo, a das chamadas camadas subalternas. E todos reconhecem que as classes sociais dominantes organizam e dirigem as demais classes, seja para benefício delas, já que o lucro é a única forma de fomentar o desenvolvimento - como pensam as classes dominantes -, ou para explorá-las, segundo os críticos do capitalismo. Como já deu para desconfiar, este texto se desenvolve na lógica desta última concepção.

Também no plano do audiovisual, uma grande maioria de instituições visa em primeiro lugar o lucro, apoiando-se no empreendedorismo privado, e outras buscam uma apropriação social da criação audiovisual, sustentando-se geralmente no Estado e, mais raramente, em formas de organização social civil. No primeiro caso temos as grandes corporações internacionais e empresas em geral de produção, distribuição, exibição cinematográfica, as redes de televisão e de rádio, as gigantescas empresas de serviços de informática, internet, redes “sociais” – assim como as start-ups que almejam um dia jogar entre os grandes times. Do outro lado, as organizações sem fins de lucro: instituições públicas de variado tipo, que trabalham com o audiovisual, e outras, estatais ou particulares (mas não comerciais), como algumas escolas de cinema, rádio e televisão, arquivos de filmes, museus, casas de cultura, festivais e, não podemos esquecer, cineclubes.

Especialmente com a grande onda de ampliação e aprofundamento do capitalismo em escala mundial, iniciada por volta dos anos 70 e 80 do século passado, com a revolução digital e a queda do bloco comunista, também há, cada vez mais, uma “adequação” dessas instituições sem fins lucrativos ao sistema dominante, adotando formas de trabalho e de gestão típicas dos empreendimentos comerciais e alinhando-se como estruturas complementares e facilitadoras do predomínio do capitalismo no campo do audiovisual. Os “inimigos do público” são algumas dessas “adequações”: formas alienadoras que se insinuam nas práticas do público, descaracterizando-as.

O evento

Evento é uma coisa bem ampla. A queda de um meteoro, um naufrágio, o lançamento de um foguete, constituem eventos. Mas aqui me interessa apenas o evento como relação social, como manifestação e, sobretudo, como prática cultural. Isto é, quando se torna a forma preponderante, senão exclusiva, da atuação de uma determinada organização. Não me refiro ao evento comemorativo de uma efeméride, à organização de uma festa ou tantos outros exemplos possíveis de ocasiões únicas para promover, propagandear, levantar recursos ou outras finalidades pontuais. O evento é inimigo quando substitui a atividade sistemática e coletiva.

Um cineclube é essencialmente uma atividade permanente e sistemática de autoformação coletiva em torno do audiovisual. É da permanência e sistematicidade que ele constrói um vínculo de representatividade com a comunidade em que existe e, com o caráter coletivo e democrático, promove o progresso intelectual e moral do conjunto de seus membros e frequentadores, sem imposições autoritárias ou paternalistas.

O evento é, por definição, pontual, efêmero, no máximo esporádico ou ocasional. Está para o cinema como o panfleto para a literatura. Pode ter um efeito catártico, como já dizia Aristóteles, mas não de formação, que é progressivo, sistemático, alicerçado na multiplicidade e diversidade de uma experiência contínua. Passar filme na praça uma vez por mês, ou menos, que geralmente reúne plateias maiores (até pela raridade), pode ser um espetáculo divertido, excelente para a promoção do patrocinador ou de grande impacto de denúncia ou propaganda. Mas não se sedimenta na comunidade, ao contrário: perverte e enfraquece o gosto e a disciplina da educação informal que o audiovisual proporciona. Na verdade, cede e facilita essa função para, justamente, as formas permanentes e sistemáticas de alienação, como novelas, seriados, “reality-shows”, programas de auditório.

Organizar um evento, no sentido que venho tratando, é aparentemente (enganosamente) mais gratificante, recompensador, e também mais fácil que o compromisso diuturno com uma programação constante. Inclusive para o público. É quase natural dar-lhe um caráter festivo – que também não é “melhor” que a fruição sistemática, mas parece – e não exige nenhum tipo de compromisso maior que uma eventual desprodução. A identificação entre o público, quando ocorre, é momentânea, catártica e emocional, e quase nunca um vínculo real de solidariedade que se exercita e cresce na prática sistemática. Na fruição do filme, exacerba-se a experiência pessoal, individual. Claro que isso não é tão óbvio quando o evento reúne pouquíssimas pessoas – mas aí ele fica comprometido em outros muitos sentidos: qual é o significado cultural de uma projeção eventual para uma dúzia de pessoas?

Na programação sistemática as pessoas se reconhecem no grupo, até no espaço, na sala de projeção que já identifica outra relação com o audiovisual: coletiva, democrática, autônoma. O que não elimina a catarse na relação com a obra, nem a força da experiência pessoal, individual. Ao contrário, a prática sistemática lança pontes e derruba fronteiras entre o indivíduo e a comunidade. Constrói um coletivo que não é massa – como em tantos espetáculos musicais, religiosos...

Uma prática sistemática implica em uma organização mais permanente. Também costuma gerar novas demandas, com a evolução da experiência e do público. O evento favorece uma maior especialização e pede, no máximo, um número bem limitado de organizadores/produtores. Ou como diz a organização anticomunista internacional Estudantes pela Liberdade: “o bom é que uma pessoa só pode tocar um cineclube”. Faço a citação pela redução ad absurdum: não pode haver um clube de cinema ativo com uma pessoa só.

O evento, portanto, facilita e até favorece a limitação da participação – não confundir participação com ir à sessão – e aponta para a informalidade do compromisso e da organização. O evento tende a substituir – e de fato, está acontecendo em larga escala – a organização política e cultural comunitária pelo voluntarismo individual ou de grupos muito limitados. O evento - como prática cultural, é sempre importante lembrar – propicia a morte do cineclube e o enfraquecimento geral das organizações que formam uma sociedade civil consciente e atuante.

O espetáculo

Também o termo espetáculo precisa ser bem situado. Guy Debord trata do espetáculo numa perspectiva mais ampla, de reificação da própria realidade contemporânea. Ainda que essa reflexão esteja relacionada com os comentários que se seguem, trabalho numa perspectiva mais restrita, sem entrar num sentido filosófico mais profundo. Há também o sentido de espetáculo como “forma de apresentação” de diferentes linguagens artísticas, mas mais frequentemente nos palcos. A evolução histórica do espetáculo, nesse sentido, é intimamente ligada ao desenvolvimento e formação do público moderno – mas isto é uma outra história, para outra oportunidade. Aqui, quero tomar espetáculo mais como modo de apresentação espetacular, em que o impacto se sobrepõe à narrativa, a atração à compreensão.

De fato, o cinema nasceu sob este estigma: a historiografia contemporânea praticamente adotou a denominação de “cinematografia de atrações” para o período inicial do cinema, antes do amadurecimento e institucionalização da linguagem clássica do cinema. O cinema buscou seu espectador atraindo-o para a surpresa, o inusitado, o incomum, o estrangeiro, como nos espetáculos de fenômenos e aberrações em feiras e parques, ou o truque, em sua acepção cinematográfica (tirada do teatro). A atração responde a uma espécie de voyeurismo, a uma curiosidade inconsequente, pulsional. Não chega a encadear uma narrativa e quase nenhuma reflexão. Se a atração prevaleceu nos primórdios do cinema, sempre foi parte do espetáculo, e atualmente volta a ocupar um papel central na cinematografia dominante, com formidáveis efeitos especiais percebidos numa torrente de planos rapidíssimos, no limite da percepção normal e da sugestão subliminar.

Ao espetáculo audiovisual atual aplicam-se várias das considerações que fiz em relação a eventos, outras as completam. A grandiosidade técnica e financeira do espetáculo de cinema, hoje, é essencial para o controle e reprodução do modelo de exploração do mercado mundial. Nem mesmo os países europeus mais ricos podem fazer produções em série com custos de centenas de milhões de dólares. Para isso é preciso ter a participação e controle do mercado mundial – cerca de 85% - que só a indústria de Hollywood tem. O sistema de heróis, que em boa medida substituiu o velho star system facilita a repetição do modelo (quase todos usam máscaras, afinal) e se completa com a mercantilização de incontáveis subprodutos.

Essa escala  bilionária de negócios e plateias (bilhões de acessos), paradoxalmente, individualiza ao máximo o consumo com a uniformização do modelo estético (argh!) e a despersonalização do consumidor, cuja identidade se expressa na sua representação de consumidor, como já previa Debord.

Parece que, quanto maior a plateia, mais se afirma seu caráter de multidão e mais se perde a identidade pessoal que, como disse mais acima, se define pelo seu assentamento na comunidade e na sociedade. E quanto mais eventual o espetáculo, mais se criam as condições de seus efeitos despersonalizadores, alienantes. O evento é a sua casa.

Meu cineclube[1] experimentou bastante, recentemente, esses efeitos: chegamos a ter mil pessoas numa festa, mas esse público não voltou ao cineclube. Juntamos projeção e festa em um noitão de muita festa (chamamos o evento de Noche las Brujerías). A sala lotou noite adentro. As pessoas adoraram a experiência que foi, de fato, rica (passamos o sueco A feitiçaria através dos tempos, de 1922, e Santa Sangre, chileno de 1989), muito “espetacular”. Gostaram, mas não voltaram. Nossa dificuldade adicional é que nosso cineclube é central, metropolitano; sua “comunidade” é uma aproximação de gostos e interesses, não uma comunidade com uma história comum. Um público mais homogêneo constrói uma atividade sistemática com bem menos dificuldade. Mas não é, absolutamente, isento delas.

A autoria

Antonio Gramsci escreveu que todo homem é filósofo, todo homem é intelectual, mesmo que não exerça na sociedade essa função específica. Outros agregaram, no mesmo sentido, que todo homem é artista. Ora, todo homem (no sentido de ser humano) é autor, mesmo que não adote essa condição como título ou profissão. É autor, sobretudo de si mesmo, através das escolhas que faz diante das relações que a vida social lhe oferece – ou impõe. Mas, justamente, essa sua criação principal – ele mesmo – é resultado da interação com as coisas e com os outros, muita vez fora do seu controle. Ele nunca é o criador único, mas o ser social que, na natureza, em sociedade e no devir histórico, cria a sua aventura simultaneamente pessoal e coletiva.

A criação artística é parte desse processo: é uma interação entre criação e recepção, um diálogo permanente em que as partes só se separam no plano abstrato: qualquer obra só existe quando consumida, fruída. E o consumo, por sua vez, realimenta o processo - todo consumo é produtivo: todo consumo cultural é criativo. Essa troca ininterrupta e simultânea criação-recepção-criação constitui uma espiral histórica interminável, também chamada de cultura.

Na maior parte da História não se concebia essa figura social, o autor. No cinema, só se aventou o conceito com o triunfo do modelo dominante, uns 20 anos depois das projeções dos irmãos Lumière. E assim mesmo, a ideia – tal como a conceituação jurídica - varia: quem é o autor do filme, o roteirista, o diretor, o produtor?

Na verdade, o autor é sobretudo criação do capitalismo, em parte para valorizar (agregar valor, como se diz hoje) os produtos artísticos ou, por outro lado, pela necessidade de defesa contra a excessiva exploração de certos setores, especialmente, na história do direito autoral, o dos escritores.

Modernamente, a autoria é claramente uma forma de propriedade privada exercida por grandes corporações da indústria cultural. Necessitam valorizar o “autor” para justificar a sua propriedade, e não a dele (ou deles dependendo da definição legal de autoria em diferentes acordos internacionais e legislações nacionais). Como sua produção só pode encontrar valor de troca nessa condição, e como uns poucos artistas auferem vantagens reais com esta situação, o logro viceja.

Mas a grande maioria dos trabalhadores artísticos, na verdade, vende seus “direitos autorais” no próprio processo de produção da obra, sendo remunerados, como qualquer outro trabalhador, sem o pagamento justo do valor do seu trabalho. Outros, em proporção igualmente importante, sequer entram nesse circuito controlado – também chamado de mercado – e ficam à mingua, como um grande exército de mão de obra de reserva, necessitado e pronto a vender-se sob quaisquer condições.

No plano reificado das relações sociais, o autor se separa artificialmente do público e, aparentemente, assume interesses econômicos – e mesmo políticos, vide a polêmica das biografias – diferentes e mesmo conflitantes em relação ao público. A autoria passa a ser base da propriedade privada, que controla e limita a livre circulação da arte e da cultura, patrimônio milenar do conjunto da sociedade.

Os cineclubes sempre foram – e hoje esse é o seu maior problema – fortemente atingidos em sua liberdade de programar. E o público, que supostamente representam, tolhido no pleno acesso ao audiovisual. Mas muitos cineclubes subscrevem essa impostura ideológica, defendendo a autoria na figura reificada do artista e identificando falsamente interesses do público com os interesses - criados artificialmente, como vimos – dos cineastas em geral. Mais um argumento da fragilidade dessa concepção é que muitos distinguem a produção nacional da estrangeira, ou dos países desenvolvidos. Podemos não pagar “os direitos” dos filmes estrangeiros, mas todo artista nacional deve ser remunerado nessa base (mesmo que várias vezes, já que a produção brasileira é quase toda paga por recursos públicos, isto é, sociais).

As ideias decorrentes do conceito de autoria formam um conjunto coerente que tem subalternizado ideologicamente o movimento cineclubista brasileiro, descaracterizando várias práticas que definem a própria atividade cineclubista. Priorizando a economia da produção marginal em relação às necessidades do público, para muitos a rede cineclubista nacional deve constituir-se sobretudo como circuito alternativo aos mercados, transformando o conceito de formação de público (atividade sistemática de base comunitária) em formação de plateia (espaço de exibição em função da produção). Para atrair essa plateia, eliminou-se praticamente seus compromissos com a atividade a que deve aderir conscientemente, e não apenas como consumidor: não há mais associados e ninguém precisa contribuir com trabalho ou apoio econômico. Nessa lógica, o Estado deve prover as condições de projeção (minimamente, não se vá tirar muita verba da produção!) que, afinal, faz parte do processo alternativo: o mercado sustentado pelo Estado é composto de produção, distribuição e exibição. Para quê público?

Filha bastarda da autoria, a curadoria (programação ou seleção de filmes no cineclube) é outra forma de privatização da escolha e da participação do público. E, eventualmente, qualificação para um pro laborezinho...






[1] Cineclube Latino-Americano Juan Carlos Arch, funcionando (com uma ou mais sessões semanais) desde maio de 2013 em espaço cedido pelo Memorial da América Latina, na região central de São Paulo.