domingo, 28 de maio de 2017

Diretas já : ditadura e democracia formal

            Cá estamos nós outra vez. Entre o primeiro semestre de 1983 e 25 de abril de 1984, os brasileiros saíram às ruas numa campanha que nos mobilizou como nunca em nossa história - desconfio bastante da avaliação da Folha de São Paulo, que calculou “cientificamente” a passeata contra Dilma Roussef, em 2016, como a maior da história. Eram as “Diretas já!”. Naquele 25 de abril foi votada a emenda constitucional que estabelecia as eleiçãoes diretas, não aprovada por não atingir os dois terços do Congressso dos apaniguados do regime autoritário. Não foi uma derrota, certamente. A campanha culminava, de certa forma, um longo processo de resistência à ditadura e de construção de uma sociedade civil com instituições ancoradas nos movimentos populares, nos bairros, no campo e nos sindicatos, e também na enorme massa do que então ainda chamavam de minorias: mulheres, negros, movimentos identitários de gênero, etc. A “derrota” na votação antecedeu de alguns meses a eleição (indireta) de Tancredo Neves e, sucessivamente, o processo de elaboração da Constituição de 1988 e as eleições finalmente diretas de 1989. Evidentemente, a Assembleia Constituinte e seu produto imediato foram e são bem mais importantes que as eleições na formação do processo democrático no nosso País.

       De uma certa maneira, o estabelecimento de uma ordem democrática pela Constituição chamada de “cidadã”, contraditoriamente, marcou o início de lentos mas progressivos enfraquecimento e desestruturação da mesma sociedade civil que atingira o que parecia para muitos ser seu maior objetivo. Principalmente os governos FHC e do PT, com estilos e linguagens diferentes, promoveram a erosão das bases representativas e coletivas das instituições populares, estimulando o empreendedorismo e as “boas formas de gestão” e/ou a cooptação e atrelamento ao Estado, no que alguns autores denominam “onguização” das organizações populares.

        Boa parte do que se costuma identificar como uma polarização na sociedade brasileira  de hoje vem desse empobrecimento da sociedade civil e de sua partidarização em um bloco que não consegue expressar efetivamente os interesses mais gerais das massas de trabalhadores e excluídos. Por isso as manifestações marcadas exclusiva ou majoritariamente por bandeiras partidárias, de seus conhecidos e estreitos aliados, e de organizações que constituem extensões das mesmas, têm sido quase sempre – e sobretudo nas ocasiões mais importantes – minoritárias em comparação com as mobilizações dos setores médios e de sentido reacionário.

          O horizonte opaco e sem alternativas que se apresenta depois da destruição da “coalizão” populista e da derrubada do governo petista tem agora uma – e apenas uma – saída, e esta é, justamente, novamente, a das eleições diretas. Misteriosas maquinações envolvem todas as instituições republicanas: executivo, legislativo e judiciário – com a participação nebulosa dos oligopólios da imprensa e do “entretenimento” (também diferentes “linguagens” ou dispositivos a serviço dos mesmos fins), e das organizações corporativas e patronais. A manipulação dos acontecimentos visa claramente a manutenção, extensão e aprofundamento das “reformas”, isto é, a eliminação dos direitos do trabalho e das políticas públicas sociais. E para que tal processo continue é necessário que ele se dê no espaço controlado por essas forças, o Congresso. Eleições indiretas com a “manutenção das reformas”, isto é, o retrocesso brutal, e a preparação de eleições em 2018 (ou, quem sabe, um pouco mais tarde...) de forma a reinstituir um equilíbrio formalmente democrático sob a hegemonia dessas forças que procuram não se identificar mas que são claramente as do capital financeiro e internacional.

              Uma campanha pelas eleições diretas já é a única alternativa em que esse poder de manipulação se vê enfraquecido, o único processo que ele é incapaz de controlar inteiramente. As mobilizações deste domingo, 28 de maio (especialmente no Rio de Janeiro, que foram convocadas de maneira ampla – escrevo isto antes de saber seu resultado e repersussão), mostrarão se estamos sendo capazes de reunir o sentimento da maioria sem estreitas bandeiras partidárias, se somos capazes de construir uma unidade avassaladora que sacuda essa classe política corrompida até em sua carne. Se a manifestação no Rio for ampla e grande (que aqui não são sinônimos), como nas primeiras diretas já, de 1984, provocarão um efeito de adesão crescente e uma “competição” saudável entre as cidades para ver quem faz a maior concentração ou passeata. A repetição da Greve Geral, numa avaliação muito cuidadosa (Greve Geral não é brincadeira e fazê-la sem uma boa preparação só leva ao desgaste dessa forma de manifestação e luta), não pode ser excluída da evolução dos acontecimentos.

            Como disse Churchil: “Agora não é o fim. Não é nem o começo do fim. Mas é, talvez, o fim do começo.” Esta campanha é o marco. A votação, no Congresso, das emendas que preveem eleiçoes diretas pode muito possivelmente redundar na repetição do fatídico 25 de abril de 1984. Na edição de hoje, o jornal Folha de São Paulo ameaça: as maiores bancadas partidárias pretendem votar a favor de eleições indiretas; elas têm 397 deputados e 72 senadores, respectivamente 77% da Câmara e 89% do Senado. E, como sabemos e já experimentamos historicamente, a classe política não se intimida nem se peja de votar contra a vontade popular.

              Ao contrário de enfraquecer nossa disposição de ir decisiva e unitariamente às ruas para nos manifestarmos, esse argumento mostra que, ainda que não resulte em eleições diretas neste difícil quadro institucional entre um governo falido e um prazo limitado para as eleições regulares, as diretas já podem, devem ser um estímulo fundamental para a reorganização do povo em torno de instituições que o fortaleçam e representem. É uma flexão de músculos, um exercício de organização que, com qualquer resultado, deve propiciar outras formas, sobretudo as permanentes, as instituições poppulares. Além disso, certamente contribuirá para a saída desse medíocre usurpador chamado Michel Temer.

               A lição da história, de fato, mostrou que o objetivo final não pode ser a ordem democrática formal, com eleições determinadas pelo poder econômico, mas o estabelecimento de uma democracia muito mais radical e uma justiça social real e concreta, muito para além da “redistribuição” limitada da riqueza produzida pela maioria mas usurpada por uma minoria ávida, corrupta e implacável.

              Diretas já! Mas também sindicatos renovados e conselhos de trabalhadores nas fábricas e empresas; ações cooperativas, organizações de auto-defesa, educacionais e culturais no campo; associações de moradores nos bairros; organizações politicas e culturais de mulheres, de grupos étnicos, de gênero. E, em toda parte, clubes e associações esportivas e culturais: cineclubes, grupos de teatro, de dança, clubes de escrita e criação, e muito mais. Só assim podemos construir, desde já, o corpo de instituições populares que nos permitirão atingir e manter uma sociedade efetivamente democrática e justa.

Felipe Macedo
28 de maio de 2017