domingo, 17 de dezembro de 2017
Reflexões
sexagenárias
Talvez seja o meu aniversário, que aconteceu há poucos
dias; talvez seja a neve que tomou conta da paisagem que vejo da janela do meu
escritório, e a noite que cai em torno de quatro horas da tarde, acabando – em
mais de um sentido - com o dia da gente.
Talvez seja porque sou fã – coisa que, como estudioso de públicos, sou obrigado
a admitir -, sempre fui, desde mais ou menos meus quinze anos, de ficção
científica. Mas sobretudo da literatura de ficção científica, embora também
goste bastante do gênero no cinema.
Bom, acho que tudo junto: a ficção me dá um sentido de
precariedade da realidade, do mundo, cujos cenários estão se transformando com
uma velocidade incrível, abrindo alternativas tecnológicas, base de transformações
sociais que se traduzem, ou apontam, para outros quadros políticos. A idade me
traz um sentimento de um certo fim de carreira, de estar numa fase da vida de
conclusão e não de começo – embora, por outro lado, minha personalidade seja
sempre meio imatura, meio adolescente, e eu esteja envolvido, ou iludido, meio
que como sempre, com mais de um projeto. Não é, pois, um sensação depressiva, é
só, ou é mais, uma constatação. Convivendo com gente jovem que estuda os meios
audiovisuais, constato que o último videogame
que joguei foi na rua Nestor Pestana, em 1985 acho. Hoje, os vários aspectos
disso de que não faço quase ideia e de que não tenho nenhuma experiência,
constituem um curso universitário, com mestrado e doutorado. É só uma
constatação: ouvir a exposição de uma tese sobre esses jogos, num seminário, e
não (me) identificar (com) nada ou quase nada do que está sendo dito. E outros
colegas que discutem interessadíssimos termos que nunca ouvi antes, que
descrevem coisas de que, afinal, também não tenho a menor ideia. Tem uma parte
do que está acontecendo com o mundo de que eu, na verdade, já não participo.
Como uma vez, há uns quatro anos, que um sujeito me disse que o filho dele
falava no celular sobre trabalho ao mesmo tempo que lia Ulisses – ele não esclareceu se era no original. Era uma estupidez,
claro, mas que se referia a um estado, uma atitude e um costume social que vêm
se consolidando – a distração elevada
a um grau que nem Krakauer nem Benjamim pensaram - e eu não sei aonde isso vai
dar, como vai ser. Existe um novo comportamento, uma nova convivência, um outro
tipo de socialização que está se delineando. E eu não vou ter tempo de
participar. Olhe, não que eu quisesse. Mas queria compreender – e não sei se
serei capaz, nesse espaço de tempo agora meio determinado (parece que não faz
muito tempo que eu tinha todo o tempo do mundo), de compreender sem fazer
parte.
Tenho visto matérias, repassadas no facebook, sobre
bonecas sexuais robóticas. Elas são uma das pontas de lança da A.I.
(inteligência artificial em inglês). Já estão maravilhosas, dizem, mas parece
que vão em busca da perfeição. Quem quiser saber o que é perfeição deve lembrar
ou procurar assistir Cherry 2000 (tem no Youtube, a partir de R$ 3,99), um
filme de 1987 visionário (!), grande sucesso das sessões Trash do Elétrico Cineclube. Como se sabe, sexo – ou pornografia,
como é no mais das vezes consumido – é o maior movimento da internet. O
comércio de mulheres na chamada vida real também está entre os maiores
negócios, comparável aos tráficos de armas, drogas e animais silvestres. Por
isso é bem verossímil prever que os maiores avanços em robótica e A.I. se darão
nos campos do sexo e da guerra – já que as
drogas já são sintéticas e os animais só valem pela sua raridade e fragilidade,
uma espécie de aura estética, como também dizia o Benjamin, cujo valor se constrói
na razão direta da possibilidade de extinção de cada espécie. Os drones
militares já são robôs não humanóides em que se está tentando aperfeiçoar a
capacidade de decisão, isto é, de autonomia para decidir como, quando e quem
matar. Os principais países intervencionistas, principalmente os Estados
Unidos, mas também Inglaterra, França e seus muitos aliados menores, têm uma
necessidade imperiosa de reduzir e controlar suas baixas para manter o controle
da opinião pública internamente; o robô é uma necessidade absoluta e, por isso,
em pleno desenvolvimento. Mas as matérias sobre as bonecas (que nunca falam dos
bonecos ou das outras possibilidades bastante viáveis e prováveis no campo tecnocosmético) têm mostrado incríveis
avanços na comunicação – mais ou menos como na tecnologia da Siri, da Apple –,
nos movimentos e na reprodução das características da pele humana. Elas já
podem variar de temperatura local quando estimuladas. E podem até - conforme a encomenda,
claro - exigir algum foreplay sob
pena de não atingirem o orgasmo, que nunca será fingido.
Isso tudo vai levar ainda alguns anos, talvez uns
vinte. Não poderei também participar disso. Se estiver vivo, do que duvido, precisaria
estar bem gagá para procurar uma boneca dessas, tal como provavelmente seria
inútil tentar fugir do robô policial se ele vier atrás de mim. O que me parece
cada vez mais próximo, mais real. As bonecas e os robôs soldados são alguns dos
sinais, bem visíveis, de muitas tecnologias que, na esteira da informática, de
eletrônica, da miniaturização extrema, etc., já estão mudando e mudarão profundamente a paisagem social, as formas
de convivência e comunicação e a estrutura dos poderes. Os veículos terrestres
e aéreos (de uso civil) sem piloto; a integração, sob comando vocal, dos
sistemas eletrodomésticos, de entretenimento e de segurança; a centralização e
o acesso a todas as informações sobre cada cidadão, com a consequente
possibilidade de controle de todos os seus movimentos (apenas se e quando
necessário, claro, ou por um eventual raquer black hat). Junto com as bonecas e outros robôs, são alguns
exemplos já claros do que vai ser o mundo e a vida daqui a alguns anos. Quando
lembro da série Jornada nas Estrelas,
que eu via nos anos 70, penso como aquele sistema portátil de comunicação
parece exprimir uma imaginação limitada daquele tempo. Pensar, no final do
século passado, em falar com alguém num telefone portátil, com som e imagem?
Coisa de ficção científica... Mas era
uma coisa que se imaginava, de forma completamente irrealista, mas já se
pensava. Os exemplos acima são muito mais concretos do que era, então essa
ideia.
Some-se a isso outra constatação que prolifera nos
meios de comunicação: os empregos vão acabar. Em grande parte. Metade, dizem
algumas matérias, outras falam em muito mais que isso; de qualquer forma, a
maioria dos empregos vai desaparecer. Em todo o planeta. Substituídos pela
automação. Ora, novas profissões devem surgir, claro, mas se tudo que puder ser
automatizado – e isso envolve inúmeras funções intelectuais, da tradução à
seleção de quem matar num combate – for entregue a máquinas, as atividades de
gestão e supervisão que vierem a existir provavelmente ocuparão um número bem
menor de pessoas.
Amirável
Mundo Novo
Voltando aos meus jovens colegas, outro dia uma menina
do mestrado de cinema, num seminário, muito segura, afirmou que a luta de
classes acabou. É preciso entender que para os canadenses (como ela) essa ideia
de luta de classes não é muito familiar, nem clara. Então, como ela vê todo
mundo feliz – como aqui é muito frio, além de ser um país rico, não há pobres
na rua (eles morreriam congelados) – parece que o conflito social é coisa do
passado. Meio bobinha ela mas, por outro lado, fora do que o conceito expressa
como processo social, me pergunto como anda a luta de classes. Atualmente
parece mais massacre que luta, com uma das “classes” soterrada nos escombros do
Oriente Médio, no holocausto dos imigrantes do Mediterrâneo, no desmonte dos
direitos do trabalho (indispensável acompanhamento da destruição de empregos)
que vai do Macron e do Brexit até o Temer, passando pelo avatar hitleriano do
Trump. A outra classe, a do capital, tem hoje um perfil muito claro. Não é
propriamente, como dizem, constituída pelo 1% da população que detém a metade
da riqueza, ou o mesmo valor que os restantes 99%. É bem menos que isso: os
2.000 bilionários existentes (0.000035% da população mundial) não apenas detêm
a maior parte dos recursos econômicos da humanidade (os 8 homens mais ricos do
planeta, segundo dados da Oxfam, têm a mesma renda total que metade dos
habitantes da Terra), mas – o que é o fundamental – controlam as decisões sobre
a totalidade desses recursos.
Elysium
ou Mad Max
Numa
outra perspectiva, a China já está passando os Estados Unidos como potência
econômica; superá-los em influência política e poder militar é uma questão de
tempo, mantidas as relações internacionais atuais. Concomitantemente, os EUA
investem regularmente em armamento o equivalente à soma dos dez maiores
orçamentos militares de outras potências: três vezes mais que a China, segundo
colocado, dez vezes mais que cada um dos outros – Rússia, Arábia Saudita,
Índia, França, Inglaterra, Japão, Alemanha e Coréia do Sul. Um parênteses: o
Brasil é o 13º. orçamento, mas ele é gasto quase que só em manutenção da
lataria velha que são nossas forças armadas; é o único entre esses principais
que atualmente não investe em tecnologias novas ou próprias. Voltando ao
assunto, será que o Tio Sam vai ficar parado, olhando a China passá-lo para
trás (com a Índia vindo atrás em passo acelerado)? Ou será que dá para imaginar
uma situação de equilíbrio de interesses numa nova ordem planetária – ao
contrário do que sempre ocorreu historicamente quando grandes potências
capitalistas disputam o mercado mundial? Parece que a possibilidade de uma hecatombe é bastante grande. E próxima. Certamente uma guerra atômica seria um
método eficiente de eliminar o excesso de população que constrange o modelo
esboçado mais acima. O problema dessa solução é a dificuldade de controle sobre
sua extensão e efeitos, que poderiam atingir eventualmente até os mais bem
protegidos.
Da
janela
Mas há uma luz inigualável em Montreal, típica do inverno, que recupera todas as qualidades deste mundo congelado, o faz brilhar e, nesse mesmo fluxo de ideias, me lembra que há muitos mundos possíveis, noutras estações, neste mesmo ou em outro universo.
Montreal, 17 de dezembro de 2017.
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