Pouco se escreve sobre cineclubes
O lançamento, muito
em breve, do livro de Priscila Sales, Arte em movimento: a trajetória
do Clube de Cinema de Assis, será
uma contribuição importante para o conhecimento em um campo de estudos que, ao
que parece, vem se consolidando em tempos recentes. A Priscila me convidou para
escrever o prefácio, apresentando esse trabalho interessantíssimo que revê a
trajetória de um cineclube do interior do estado de São Paulo, numa cidade
importante, de forte tradição universitária. Em minha opinião, esse texto ilumina a compreensão do período histórico – dos anos 50 aos 80 – no Brasil,
sob vários aspectos: da cultura e do cinema, da educação, da política. Muitas
outras histórias de práticas culturais se reconhecerão na experiência do Clube
de Cinema de Assis e nas reflexões que a autora propõe.
Apresento aqui o prefácio que fiz para o livro, sobrevoando um pouco a
questão dos estudos sobre o público e sobre o cineclubismo:
Prefácio
No campo do cinema – teoria ou história do cinema - não
se escreve muito sobre cineclubes. De fato, escreve-se muito pouco se
considerarmos a influência que os cineclubes tiveram e ainda têm na formação de
cineastas e outros profissionais, e sobre grande parte das instituições ligadas
ao cinema: cinematecas, festivais de cinema, a crítica cinematográfica, os
estudos universitários; o cinema amador, de vanguarda, documentário e até mesmo
sobre grande parte dos cinemas nacionais, nos países que não têm uma indústria
cinematográfica organizada, isto é, a grande maioria.
A historiografia do cinema ignorou por muito tempo
diversos temas ou objetos de pesquisa - não apenas os cineclubes - que só
começaram a ser “redescobertos” no decorrer da segunda metade do século passado.
O cineclube foi um dos últimos, ou um dos mais recentes desses redescobrimentos.
O “esquecimento” desses temas, o fato de a produção acadêmica ou institucional
ignorar certos assuntos não é, em absoluto, neutro, e deve-se a várias razões.
Mas a principal é de caráter ideológico:
diversos temas foram submetidos a um crivo de legitimidade criado e respeitado pela Universidade, reproduzido pela
Imprensa e outras instituições sociais. Manifestações, práticas e instituições
populares, tudo que não se exprime de uma maneira culta estabelecida como apropriada
ficou, assim, de fora dos estudos cinematográficos por um longo tempo. Das
manifestações orais no cinema mudo ao filme de família ou ao cinema amador; da
pornografia à chanchada e inúmeras formas de comédia de todos os países; da
mulher ao negro e todas as etnias em posição subalterna em diferentes
sociedades, passando pelas orientações sexuais não hegemônicas, tudo isso foi
considerado por décadas como vulgar, divergente, e ilegítimo como objeto. O
público mesmo, paradoxalmente, só recentemente e/ou
parcialmente foi reconhecido pelos estudos de cinema.
Parte desse esquecimento seletivo, os cineclubes têm
características próprias que explicam sua exclusão de uma historiografia que,
em todas as vertentes – mesmo as ditas progressistas – os ignorou durante
praticamente todo o século 20. De fato, os primeiros trabalhos que começaram
essa recuperação do cineclubismo como objeto válido de estudo são, concomitantemente,
expressão clara de muitos dos motivos que mantiveram o tema desprezado. Estou
falando dos livros de Christophe Gauthier[i] e
Antoine de Baecque[ii],
que lançaram as primeiras bases e iniciariam uma produção atualmente já
importante de trabalhos sobre a cinefilia. Ou melhor, sobre uma concepção
determinada de cinefilia, como apanágio dos connaisseurs,
de especialistas capazes, segundo esses autores, de criar uma cultura – de fato
uma subcultura – dentro de um protocolo
composto de rituais comportamentais e de formas de expressão de um conhecimento
próprio, traduzido em forma literária. E geralmente sob a tutela de uma
personalidade totêmica: um artista, um autor,
isto é, um realizador cinematográfico. Os cineclubes que incorporam ou
corporificam essa cultura cinéfila são, assim, reconhecidos pela Academia
porque esta pode identificar um autor e uma linguagem dita superior, a da
escrita. Mas a imensa maioria dos cineclubes se caracteriza justamente pelo
caráter coletivo e anônimo de sua organização, em que não se destacam
personalidades – salvo exceções, claro – e pela inexistência de uma producão
literária própria; o que mais caracteriza o cineclube é o debate em sua forma
oral. Mesmo os boletins informativos ou as fichas de filmes que marcaram toda
uma época do cineclubismo em todo o mundo eram, em sua quase totalidade,
reproduções de textos de revistas e outras fontes externas. A introdução dessa
cinefilia – e, por tabela, dos cineclubes - nos estudos de cinema, estabeleceu
justamente uma abordagem, um corte elitista mais ou menos idêntico ao que
motivava grande parte da exclusão do gosto pelo cinema (a cinefilia da pessoa
comum) e dos cineclubes da História do cinema. Esses autores reconhecem os
cineclubes de elite do final dos anos 20 (Gauthier) ou os círculos de cinéfilos
do início dos anos 50 (De Baecque), que frequentavam a Cinemateca, algumas
salas de arte e talvez uma dúzia de cineclubes em Paris – quando existiam cerca
de 10.000 cineclubes na França.
Mas eles não ficaram de fora apenas por isso. Os
cineclubes definem-se essencialmente por: a) serem associações entre iguais, de
gestão coletiva e democrática, b) não terem fins lucrativos: ninguém se
apropria privadamente dos resultados econômicos da atividade - se e quando
estes existem – que devem ser obrigatoriamente reinvestidos na própria
instituição, e c) terem como objetivo a apropriação do cinema, isto é, de serem
instrumentos para o acesso, a fruição, a informação, o conhecimento, a
formação, a preservação e expressão de identidades comunitárias, culturais,
étnicas, etc., separadamente ou de forma combinada. Em outras palavras, o
cineclube não tem dono, é propriedade coletiva, comunitária; não é uma atividade
comercial, não é um empreendimento capitalista e, finalmente, é uma instituição
criadora de valores (como diria Gramsci), uma ferramenta política para o
autoconhecimento de todo tipo de comunidade, seja territorial, cultural, étnica
ou de classe. Essas três características, exclusivas dos cineclubes quando
todas reunidas, sempre foram motivo para mais que sua exclusão: para uma verdadeira
e constante perseguição em toda a sua história e em todos os países. Os
cineclubes são perigosos para as instituições hegemônicas em vários sentidos. O
comércio do cinema, a chamada indústria cinematográfica, os vê como
concorrentes a serem literalmente eliminados (apesar dos cineclubes sempre
terem sido importantes formadores de público para o cinema em geral). Hoje, essa
concorrência se apresenta travestida de supostos direitos autorais – quando se
trata, na verdade, de direitos patrimoniais ou de propriedade industrial – como
se não fossem justamente as grandes corporações cinematográficas as que mais
sujeitam autores a abdicarem de seus direitos em negociações absolutamente
desiguais. Os cineclubes sempre ameaçaram todas as igrejas e dogmas, e foram
perseguidos por impiedade e imoralidade – justamente ao não acatarem a censura
estabelecida por aquelas organizações. E os cineclubes sempre combateram – e
seus membros e frequentadores foram por isso frequentemente presos e abusados –
censuras, polícias e todas as formas de poder que cerceiem as liberdades e
direitos em qualquer circunstância. A História do Cineclubismo, que nunca foi
escrita, é também uma longa trajetória de exclusão, abandono e perseguição.
Outro aspecto negativo da cinefilia elitista é o de
reforçar uma concepção já bastante arraigada de que os cineclubes surgiram nos
anos 20 do século passado. Claro, tratava-se do modelo proposto: atividades bem
elitistas, como as premières de
filmes promovidas para divulgar as revistas de Louis Delluc, Ciné-club et Cinéa, ou os banquetes organizados por Ricciotto Canudo para
debater os valores da sétima arte. Ainda que essas ações tenham sido muito
importantes para valorizar institucionalmente o cineclubismo – e válidas em si
pela valorização do cinema numa época em que ele precisava de reconhecimento –
os cineclubes já existiam há anos. De fato, sua origem vem de práticas de
organização operária e popular e de debates em torno de exibições de lanterna
mágica, desde o século 19. Mas na segunda década do século 20 já existem em
diversos países cineclubes organizados segundo as características que elenquei
anteriormente, como um Working Class Theatre, de Los Angeles, ou o Cinéma du
Peuple, de Paris, além de muitas outras iniciativas não documentadas ou menos estruturadas.
O termo cineclube também não foi invenção de Delluc, como querem alguns, tendo
sido usado já em 1907 para designar um grupo de profissionais de cinema que
tinha por base o cinema Omnia Pathé, em Paris.
Os cineclubes, de fato, se constituíram em sua
configuração definitiva – que surge simultanemente em vários países e se espalha
pelo mundo inteiro – como uma forma de organização, uma instituição cuja finalidade
é defender o público contra a manipulação e a exploração de um cinema
(comercial) cujo objetivo é o lucro e a reprodução do sistema hegemônico. Ao
mesmo tempo, procuram estruturar-se como contra-instituições – os espaços
heterotópicos de Foucault, como lembra a autora deste livro -, como ferramentas
de afirmação e expressão de identidade do público. O cineclube como instituição
constitui uma forma paradigmática de organização que vai se aplicar ou
influenciar fortemente na formação de várias outras instituições do cinema. A
maioria das cinematecas do mundo surgiu de cineclubes; os primeiros e muitos
dos principais festivais de cinema foram organizados por cineclubes; até os
anos 70, pelo menos, praticamente todos os cineastas formaram sua visão do
cinema nos cineclubes. Quase todos os movimentos estéticos do cinema surgiram
dos cineclubes como o impressionismo francês, o neorealismo italiano, a nouvelle vague francesa, os cinemas
novos do Brasil, da Inglaterra, da Tchecoslováquia, bem como o cinema
experimental ou de vanguarda, um pouco em toda parte. No limite, nos países
onde não existe uma indústria do cinema organizada, o que existe de cinema se
organiza em torno ou se origina dos cineclubes. Hoje já há países ou regiões –
inclusive no Brasil, onde 90% dos municípios não têm cinemas - em que existem
mais cineclubes que salas comerciais. No outro extremo, os Estados Unidos são
provavelmente o país com o maior número de cineclubes na atualidade: lá toda
cidade tem a sua film society.
Por tudo isso, é tão estranho e ao mesmo tempo
revelador que tão pouco se tenha escrito – ou refletido de forma estruturada –
sobre os cineclubes. É forçoso lembrar, no entanto, que desde o final dos anos
50, os chamados Estudos Culturais – de Richard Hoggart, Stuart Hall, Raymond
Williams, E.P. Thompson e outros – recuperaram a noção do papel do público e de
suas instituições nas artes e no campo do audiovisual. A esses, seguem-se as
autoras que, baseadas na tradição aberta por Emilie Altenloh, mas sobretudo
pela exclusão das mulheres no terreno do cinema, aprofundaram a questão do
público e de suas instituições, mas com uma ressonância muito mais ampla: Janet
Staiger, Miriam Hansen, Annete Kuhn, entre outras. Mas esses estudos, de resto
essenciais para a compreensão das relações sociais estabelecidas em torno do
dispositivo cinematográfico, não abordam especificamente o cineclubismo.
O sesquicentenário da Liga do Ensino da França,
comemorado em 2016, propiciou a organização de um colóquio importante em Paris
sobre o que lá chamam de cinema educativo,
uma ampla ação social com apoio estatal que, desde o final dos anos 20 até
hoje, atua com cineclubes numa escala importante, com muitos milhões de
espectadores por ano. Alguns trabalhos sobre o cineclubismo francês também apareceram
neste período bem mais recente, que podemos chamar de atual.
O Brasil tem uma forte tradição de cineclubismo, que
também vem desde o início do século passado, constituindo um movimento cultural
que influenciou muito não apenas o cinema brasileiro, mas a cultura cinematográfica
como um todo. Foi provavelmente o cineclubismo brasileiro que rompeu de forma
mais evidente e profunda com o padrão elitista de cineclubismo herdado do
modelo francês que, combinado com as práticas paternalistas patrocinadas pela Igreja, criou um modelo que influencia
até hoje cineclubes em todo o mundo. Contudo, por aqui também os cineclubes
foram ignorados pela reflexão acadêmica. Pelo menos até o início deste século.
Um levantamento que realizei recentemente[iii] revelou
a existência de um bom número de artigos e trabalhos acadêmicos sobre aspectos
bem diversos do cineclubismo em nosso país. O texto de Priscila Sales, que eu
já havia descoberto antes, se destaca qualitativamente nesse conjunto, pela
consistência e coerência com que determinou seu objeto e a abrangência que
deduz da experiência do Clube de Cinema de Assis.
Contar a história de um cineclube pode não ter maior interesse
para quem não participou ou conheceu a experiência. Mas aqui Priscila Sales consegue
localizar e mostrar a importância de um cineclube como paradigma de uma
organização da comunidade universitária inserida na realidade de uma cidade
média do interior do estado, neste caso São Paulo. Ela revela como essa
experiência estabeleceu uma rede de conexões culturais institucionais e
informais que culminavam na formação – e na busca – do seu público. E como essa
prática evolui em diferentes momentos e contextos igualmente emblemáticos da
história recente do País. É uma história que vai muito além da narrativa
factual. Mas, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais interessantes do trabalho
que embasa este livro é justamente a prospecção, organização e análise dos fatos,
através dos documentos que revelam essa trajetória, seja no que me parece ter
sido uma verdadeira aventura de descobrimento, nos arquivos do cineclube e na
revelação de um dossiê do cineclube na Cinemateca Brasileira, ou seja na
articulação heurística desses componentes com a pesquisa na imprensa de Assis e
em diversas outras fontes que a autora percorreu e integrou neste trabalho.
Arte em movimento: a trajetória do Clube de
Cinema de Assis não é apenas a recuperação da história do Clube de
Cinema de Assis entre os anos de 1960 e 1983. É a exposição de uma experiência cultural,
social e política de interesse e validade muito maiores. Sales localiza essa
experiência no tempo de várias maneiras: na história do cineclubismo, que ela
igualmente revela e valida, ao mostrar a integração do Clube de Cinema no
processo histórico; no período complexo que articula o fim de uma época (do
desenvolvimentismo, da mobilização popular, de um tipo de cineclubismo) e o
percurso acidentado da ditadura e seus reflexos na universidade e na cidade; no
cineclube e no movimento cineclubista, e no seu público, uma busca constante. Sua
análise também dialoga permanentemente com a teoria, integrando o caso pontual
numa reflexão ampla. Além de ser uma monografia exemplar de um tema que empolga
– porque acredito que atinge a todos que se interessam por cinema, por cultura,
por política em sua acepção mais ampla – é a restituição em profundidade de uma
experiência que serve não de modelo, estático, mas de exemplo que se mostra vivo
nas páginas deste trabalho. Exemplo em que muitas outras experiências se
reconhecerão, do qual se podem tirar importantes reflexões gerais. Porque temos
cerca de 6 mil municípios, quase 2.500 instituições de ensino superior e, nas
grandes cidades, comunidades de bairro com traços identitários que encontram
ressonância na experiência apresentada neste livro.
Arte em
movimento: a trajetória do Clube de Cinema de Assis é o resultado de uma
pesquisa acadêmica séria e consistente mas, para mim, bem mais: é sobretudo um
trabalho que consegue reproduzir uma experiência cultural de forma a
apresentá-la como uma ferramenta para a compreensão do que é um cineclube. E
por isso é também um estímulo para a reflexão, acadêmica e/ou informal, e para
o engajamento cultural, para a atividade cineclubista.
[i] La passion du cinéma – Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées
à Paris de 1920 à 1929. AFRHC – École des Chartes.
1999.
[ii] La cinéphilie – Invention d’un regard, histoire d’une culture,
1944-1968.Fayard. 2003 (Existe edição brasileira)
[iii] Bibliografia cineclubista brasileira (2000/2017) – disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2017/10/reuni-aqui-os-principais-textos.html