Morte
de cineclubista
O texto que escrevi quando o Antonio Gouveia morreu (https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2011/01/gouveia-intelectual-organico.html) é um dos mais lidos no meu blogue, não sei por quê.
O Gouveia foi um amigo muito próximo; não fui capaz de produzir um artigo com
o mesmo grau de envolvimento – meu – e de interesse para os leitores quando da
morte do Luís Orlando da Silva, expoente do cineclubismo baiano e da
solidariedade cineclubista (e humana) com quem convivi bem menos. Cada vez que
se vai um cineclubista importante, que fez uma contribuição significativa para a
edificação do cineclubismo brasileiro, é muito relevante assinalar essa
trajetória, incorporar essa memória à identidade de um movimento social e
cultural mais que centenário e, no entanto, sempre pouco valorizado,
praticamente desconhecido na memória coletiva. E isso não apenas no nível mais
institucional, mas também entre os próprios cineclubistas que, em ciclos muito
curtos, parecem esquecer tudo, e recomeçam sem cessar – e sem continuidade - o
cineclubismo, quer dizer, essa experiência coletiva, esse projeto de cinema dos
segmentos excluídos do campo dominado pelo cinema comercial.
Quando morreu o Carlos Vieira, nada escrevi. Mas,
diferente dos casos do Gouveia e do Luís Orlando, estive presente no seu
enterro, com o sempre companheiro Frank Ferreira. Foi uma experiência muito
especial, muito marcante para nós dois, creio. Como muitos sabem, o Carlos
Vieira foi um grande cineclubista, cujas ações marcaram o movimento desde o
início dos anos 50 até o final dos 70. Em 1956, foi o grande motor da criação
da primeira entidade representativa dos cineclubes brasileiros, o Centro dos
Cineclubes de São Paulo – cuja influência se estendia bem além do estado. Ele
presidiu a entidade até 1975, quando o Centro se transformou em Federação
Paulista de Cineclubes, que também inicialmente presidiu. Criou, junto com
Paulo Emílio Salles Gomes, o Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas, que
durou todo o ano de 1958 e formou toda uma geração que mais que influiu,
praticamente definiu a cultura cinematográfica na década seguinte. Foi
organizador da primeira Jornada de Cineclubes, em 1959, também feita com o
apoio da Cinemateca Brasileira (ex-Clube de Cinema de São Paulo). Nos anos em
que todos se sentiam cinéfilos, Vieira era como que o centro irradiador do intercâmbio
que ligava diversos cineclubes extremamente importantes na vida de diversas
cidades do interior paulista. Com laços familiares com Portugal, Vieira também
trocava reflexões com as publicações cineclubistas daquele país. Quando o
movimento foi perseguido e praticamente desorganizado pela ditadura militar, o
Centro de Cineclubes foi a única entidade que subsistiu, devido em boa parte ao
caráter pouco constestador de suas atividades mas que, por outro lado, acabou
garantindo uma transferência da experiência cineclubista, uma “passagem do
bastão” quando uma nova geração, de que eu já fazia parte, se apresentou.
Meu relacionamento com o Vieira foi bastante
contraditório: eu bem jovem e engajado na luta contra a ditadura; ele bem mais velho,
ligado a uma concepção estetizante, elitista e sem compromisso social. Mas o
cineclubismo nos ligava – e Marco Aurélio Marcondes também ajudou muito na
mediação dessa relação, mostrando a importância de reorganizarmos o movimento,
lá no comecinho dos anos 70, através da integração das diversas regiões do
País, mas também de todas as gerações cineclubistas e concepções de
cineclubismo. Sem a intolerância que, afinal, era apanágio do governo
autoritário. O Vieira, deslocado tanto pela idade como pela visão que tinha do
cineclubismo, acabou se afastando, quase naturalmente, certamente com bastante
generosidade e desapego. Não sem antes conduzir e presidir a primeira Jornada
organizada depois da repressão ao cineclubismo do final dos anos 60, e de lá –
em Curitiba, 1974 - ser eleito, pela última vez, presidente do recém
reorganizado Conselho Nacional de Cineclubes.
Só fui procurar o Vieira mais de 30 anos depois,
interessado em recuperar a memória e eventuais documentos do movimento. Ele já estava
bem fragilizado; certamente havia um dimensão traumática no seu afastamento de
um movimento que meio que dependeu dele durante mais de 20 anos e do qual se
afastara, ou fora afastado, há 30 anos. O Vieira tinha uma vida bem simples, centrada
no núcleo familiar; ele me lembrava um funcionário às antigas – acho que
trabalhava com contabilidade -, sempre de terno e com uma liguagem bem formal.
Mas a dignidade e a generosidade, a ausência de qualquer tipo de ressentimento
estavam ali em grau bem elevado.
Morreu pouco tempo depois do nosso encontro; ir ao seu
enterro foi quase uma coincidência. E foi uma experiência muito forte, que me
deixou uma marca permanente. A vida cineclubista do Vieira era um universo
pessoal; sua família ignorava praticamente tudo de sua trajetória. Era o enterro
do funcionário, modesto como postura, discreto, ou que fechara para todos sua
experiência cineclubista. Pouca gente: familiares próximos, um pastor, eu e o
Frank formamos um círculo pouco antes do enterro propriamente dito. O pastor –
o intelectual social ali naquele ambiente – fez um pequeno discurso, para mim
altamente insignificante, de quem nada conhecia do homem que ali estava sendo
despedido da vida e do mundo. Ninguém tinha mais nada a dizer. Ninguém, mesmo
os que talvez o amassem, ou tivessem amado, lhe dava qualquer importância.
Então, sem conseguir me conter, pedi a palavra e falei da importância que o
Vieira tinha para muita gente, para o cinema e a cultura no Brasil, para o
cineclubismo e para a memória social que ali estava sendo obnubilada. Foi uma
surpresa total. Acho, uma impressão muito pessoal, que vi algum brilho nos
olhares da viúva, da única filha, talvez de um cunhado que me chamou mais a
atenção. Um brilho de orgulho. Espero. Porque, por outro lado, o que eu senti
foi o trauma de uma vida dedicada ao cinecluubismo mas totalmente esquecida,
fundamentalmente pelo cineclubismo – pelas pessoas reais que fazem esse
movimento. O trauma, acho, vem do medo de partilhar desse mesmo destino. Um
pouco depois, por iniciativa de alguns velhos cineclubistas, demos o nome dele
para o projeto da distribuidora de filmes do movimento que nunca chegamos,
afinal, a constituir.
O Gouveia, que conviveu com muita gente até morrer há
poucos anos, certamente está vivo na memória de alguns cineclubistas, pelo
menos dos da velha guarda. O Luís Orlando deixou uma marca mais forte, tenho
certeza, porque a linhagem da sua memória não é apenas cineclubista, mas
identitária, ligada profundamente à vivência da comunidade afro-brasileira da
Bahia.
Há alguns dias recebi uma mensagem de outro amigo, lembrando outro grande cineclubista paulista. Carlos Braggio morreu em 28 de fevereiro de 2015. Imaginem, saiu uma nota em algum espaço virtual falando que ele será
muito lembrado. Como sanduíche. Carlos Braggio agora é um sanduíche com recheio
de carne seca, criado pelo meu velho amigo e que agora se institucionaliza no
City Bar, “boteco em frente ao teatro do Centro de Convivência Cultural”, em
Campinas. Acho que a homenagem vale. Já tinha um precedente, na cultura
paulista e mesmo brasileira, com o Baurú, que também homenageia um
frequentador, desta vez do Ponto Chic de São Paulo.
Conheci o Carlos Braggio na mesma época em que conheci
o Carlos Vieira. Aquele Carlos era originário de uma cidadezinha paulista, Lucélia,
e como me contou depois, cresceu num ambiente provinciano e bem conservador.
Foi no primeiro cineclube que frequentou que descobriu um outro mundo, que o
transformou. Cá entre nós, esse depoimento - que não tem nada de exceção, eu o
ouvi em várias outras ocasiões e situações - já serve para justificar nossas
vidas de militantes dessa atividade que pode e realmente muitas vezes muda a
vida da pessoas. Quando o conheci, em 1972 acho, ele era o representante do
cineclube do CCLA, o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, um
cineclube dos anos 60, com muita tradição – havia sido o principal insuflador
das atividades com o público infantil na Cinemateca Brasileira, por exemplo.
Sob a direção do Braggio, o velho cineclube se tornara moderno e engajado: o Braggio
retornava a um outro cineclube a transformação que ele próprio experimentara.
Carlos Braggio foi absolutamente essencial no difícil
processo de organização da Federação Paulista de Cineclubes, do Conselho
Nacional de Cineclubes e da Dinafilme, a distribuidora de filmes (em película,
vale lembrar) que, neste caso, o movimento cineclubista conseguiu criar e fazer
funcionar por mais de uma década. Mais velho alguns anos do que as outras
lideranças em São Paulo, a experiência e os conhecimentos do Braggio foram
indispensáveis para a organização da sede comum das três entidades que citei,
na velha Boca do Lixo, em São Paulo, no auge da ditadura. Ele organizou, em
1975, a 9ª. Jornada Nacional de Cineclubes, no vetusto CCLA (a foto mostra o
local das plenárias daquele congresso).
Paralelamente, o Braggio ajudou a criar o Museu da
Imagem e do Som de Campinas, em 1974 e, em 1977, coordenava ações culturais de
tipo comunitário na secretaria de Cultura da cidade. Mesmo depois do refluxo do
movimento cinelubista, continuou sempre estimulando atividades e instituições
culturais, festivais – de Super 8, por exemplo – assim como ações de interiorização
da cultura no plano estadual. Depois de ser Diretor de Cultura de Campinas, no
final dos anos 90, deixou sua marca no importante Centro de Convivência e na
reabertura do Teatro Castro Mendes. Mas é difícil encontrar qualquer menção ao
Braggio cineclubista na internet, por exemplo. Mesmo a “história” do CCLA e do
seu cineclube só fala do começo dos anos 60. Por que será?
Perdi o contato com o Braggio por muitos anos, pouco antes da sua morte retomamos um contato superficial pela internet. Além de
cineclubista muito importante – desses
que faz parte do panteão cineclubista de que falo no meu artigo sobre o Gouveia
– foi também um amigo muito querido e respeitado. E só tomei conhecimento da
morte dele por causa de um sanduíche! Acho que a memória, base da identidade
institucional cineclubista está precisando de novos símbolos.