sexta-feira, 23 de novembro de 2018



Morte de cineclubista

 O texto que escrevi quando o Antonio Gouveia morreu (https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2011/01/gouveia-intelectual-organico.html) é um dos mais lidos no meu blogue, não sei por quê. O Gouveia foi um amigo muito próximo; não fui capaz de produzir um artigo com o mesmo grau de envolvimento – meu – e de interesse para os leitores quando da morte do Luís Orlando da Silva, expoente do cineclubismo baiano e da solidariedade cineclubista (e humana) com quem convivi bem menos. Cada vez que se vai um cineclubista importante, que fez uma contribuição significativa para a edificação do cineclubismo brasileiro, é muito relevante assinalar essa trajetória, incorporar essa memória à identidade de um movimento social e cultural mais que centenário e, no entanto, sempre pouco valorizado, praticamente desconhecido na memória coletiva. E isso não apenas no nível mais institucional, mas também entre os próprios cineclubistas que, em ciclos muito curtos, parecem esquecer tudo, e recomeçam sem cessar – e sem continuidade - o cineclubismo, quer dizer, essa experiência coletiva, esse projeto de cinema dos segmentos excluídos do campo dominado pelo cinema comercial.

     Quando morreu o Carlos Vieira, nada escrevi. Mas, diferente dos casos do Gouveia e do Luís Orlando, estive presente no seu enterro, com o sempre companheiro Frank Ferreira. Foi uma experiência muito especial, muito marcante para nós dois, creio. Como muitos sabem, o Carlos Vieira foi um grande cineclubista, cujas ações marcaram o movimento desde o início dos anos 50 até o final dos 70. Em 1956, foi o grande motor da criação da primeira entidade representativa dos cineclubes brasileiros, o Centro dos Cineclubes de São Paulo – cuja influência se estendia bem além do estado. Ele presidiu a entidade até 1975, quando o Centro se transformou em Federação Paulista de Cineclubes, que também inicialmente presidiu. Criou, junto com Paulo Emílio Salles Gomes, o Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas, que durou todo o ano de 1958 e formou toda uma geração que mais que influiu, praticamente definiu a cultura cinematográfica na década seguinte. Foi organizador da primeira Jornada de Cineclubes, em 1959, também feita com o apoio da Cinemateca Brasileira (ex-Clube de Cinema de São Paulo). Nos anos em que todos se sentiam cinéfilos, Vieira era como que o centro irradiador do intercâmbio que ligava diversos cineclubes extremamente importantes na vida de diversas cidades do interior paulista. Com laços familiares com Portugal, Vieira também trocava reflexões com as publicações cineclubistas daquele país. Quando o movimento foi perseguido e praticamente desorganizado pela ditadura militar, o Centro de Cineclubes foi a única entidade que subsistiu, devido em boa parte ao caráter pouco constestador de suas atividades mas que, por outro lado, acabou garantindo uma transferência da experiência cineclubista, uma “passagem do bastão” quando uma nova geração, de que eu já fazia parte, se apresentou.

     Meu relacionamento com o Vieira foi bastante contraditório: eu bem jovem e engajado na  luta contra a ditadura; ele bem mais velho, ligado a uma concepção estetizante, elitista e sem compromisso social. Mas o cineclubismo nos ligava – e Marco Aurélio Marcondes também ajudou muito na mediação dessa relação, mostrando a importância de reorganizarmos o movimento, lá no comecinho dos anos 70, através da integração das diversas regiões do País, mas também de todas as gerações cineclubistas e concepções de cineclubismo. Sem a intolerância que, afinal, era apanágio do governo autoritário. O Vieira, deslocado tanto pela idade como pela visão que tinha do cineclubismo, acabou se afastando, quase naturalmente, certamente com bastante generosidade e desapego. Não sem antes conduzir e presidir a primeira Jornada organizada depois da repressão ao cineclubismo do final dos anos 60, e de lá – em Curitiba, 1974 - ser eleito, pela última vez, presidente do recém reorganizado Conselho Nacional de Cineclubes.

       Só fui procurar o Vieira mais de 30 anos depois, interessado em recuperar a memória e eventuais documentos do movimento. Ele já estava bem fragilizado; certamente havia um dimensão traumática no seu afastamento de um movimento que meio que dependeu dele durante mais de 20 anos e do qual se afastara, ou fora afastado, há 30 anos. O Vieira tinha uma vida bem simples, centrada no núcleo familiar; ele me lembrava um funcionário às antigas – acho que trabalhava com contabilidade -, sempre de terno e com uma liguagem bem formal. Mas a dignidade e a generosidade, a ausência de qualquer tipo de ressentimento estavam ali em grau bem elevado.

     Morreu pouco tempo depois do nosso encontro; ir ao seu enterro foi quase uma coincidência. E foi uma experiência muito forte, que me deixou uma marca permanente. A vida cineclubista do Vieira era um universo pessoal; sua família ignorava praticamente tudo de sua trajetória. Era o enterro do funcionário, modesto como postura, discreto, ou que fechara para todos sua experiência cineclubista. Pouca gente: familiares próximos, um pastor, eu e o Frank formamos um círculo pouco antes do enterro propriamente dito. O pastor – o intelectual social ali naquele ambiente – fez um pequeno discurso, para mim altamente insignificante, de quem nada conhecia do homem que ali estava sendo despedido da vida e do mundo. Ninguém tinha mais nada a dizer. Ninguém, mesmo os que talvez o amassem, ou tivessem amado, lhe dava qualquer importância. Então, sem conseguir me conter, pedi a palavra e falei da importância que o Vieira tinha para muita gente, para o cinema e a cultura no Brasil, para o cineclubismo e para a memória social que ali estava sendo obnubilada. Foi uma surpresa total. Acho, uma impressão muito pessoal, que vi algum brilho nos olhares da viúva, da única filha, talvez de um cunhado que me chamou mais a atenção. Um brilho de orgulho. Espero. Porque, por outro lado, o que eu senti foi o trauma de uma vida dedicada ao cinecluubismo mas totalmente esquecida, fundamentalmente pelo cineclubismo – pelas pessoas reais que fazem esse movimento. O trauma, acho, vem do medo de partilhar desse mesmo destino. Um pouco depois, por iniciativa de alguns velhos cineclubistas, demos o nome dele para o projeto da distribuidora de filmes do movimento que nunca chegamos, afinal, a constituir.

      O Gouveia, que conviveu com muita gente até morrer há poucos anos, certamente está vivo na memória de alguns cineclubistas, pelo menos dos da velha guarda. O Luís Orlando deixou uma marca mais forte, tenho certeza, porque a linhagem da sua memória não é apenas cineclubista, mas identitária, ligada profundamente à vivência da comunidade afro-brasileira da Bahia.

     Há alguns dias recebi uma mensagem de outro amigo, lembrando outro grande cineclubista paulista. Carlos Braggio morreu em 28 de fevereiro de 2015. Imaginem, saiu uma nota em algum espaço virtual falando que ele será muito lembrado. Como sanduíche. Carlos Braggio agora é um sanduíche com recheio de carne seca, criado pelo meu velho amigo e que agora se institucionaliza no City Bar, “boteco em frente ao teatro do Centro de Convivência Cultural”, em Campinas. Acho que a homenagem vale. Já tinha um precedente, na cultura paulista e mesmo brasileira, com o Baurú, que também homenageia um frequentador, desta vez do Ponto Chic de São Paulo.

     Conheci o Carlos Braggio na mesma época em que conheci o Carlos Vieira. Aquele Carlos era originário de uma cidadezinha paulista, Lucélia, e como me contou depois, cresceu num ambiente provinciano e bem conservador. Foi no primeiro cineclube que frequentou que descobriu um outro mundo, que o transformou. Cá entre nós, esse depoimento - que não tem nada de exceção, eu o ouvi em várias outras ocasiões e situações - já serve para justificar nossas vidas de militantes dessa atividade que pode e realmente muitas vezes muda a vida da pessoas. Quando o conheci, em 1972 acho, ele era o representante do cineclube do CCLA, o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, um cineclube dos anos 60, com muita tradição – havia sido o principal insuflador das atividades com o público infantil na Cinemateca Brasileira, por exemplo. Sob a direção do Braggio, o velho cineclube se tornara moderno e engajado: o Braggio retornava a um outro cineclube a transformação que ele próprio experimentara.

    Carlos Braggio foi absolutamente essencial no difícil processo de organização da Federação Paulista de Cineclubes, do Conselho Nacional de Cineclubes e da Dinafilme, a distribuidora de filmes (em película, vale lembrar) que, neste caso, o movimento cineclubista conseguiu criar e fazer funcionar por mais de uma década. Mais velho alguns anos do que as outras lideranças em São Paulo, a experiência e os conhecimentos do Braggio foram indispensáveis para a organização da sede comum das três entidades que citei, na velha Boca do Lixo, em São Paulo, no auge da ditadura. Ele organizou, em 1975, a 9ª. Jornada Nacional de Cineclubes, no vetusto CCLA (a foto mostra o local das plenárias daquele congresso).

      Paralelamente, o Braggio ajudou a criar o Museu da Imagem e do Som de Campinas, em 1974 e, em 1977, coordenava ações culturais de tipo comunitário na secretaria de Cultura da cidade. Mesmo depois do refluxo do movimento cinelubista, continuou sempre estimulando atividades e instituições culturais, festivais – de Super 8, por exemplo – assim como ações de interiorização da cultura no plano estadual. Depois de ser Diretor de Cultura de Campinas, no final dos anos 90, deixou sua marca no importante Centro de Convivência e na reabertura do Teatro Castro Mendes. Mas é difícil encontrar qualquer menção ao Braggio cineclubista na internet, por exemplo. Mesmo a “história” do CCLA e do seu cineclube só fala do começo dos anos 60. Por que será?

       Perdi o contato com o Braggio por muitos anos, pouco antes da sua morte retomamos um contato superficial pela internet. Além de cineclubista muito  importante – desses que faz parte do panteão cineclubista de que falo no meu artigo sobre o Gouveia – foi também um amigo muito querido e respeitado. E só tomei conhecimento da morte dele por causa de um sanduíche! Acho que a memória, base da identidade institucional cineclubista está precisando de novos símbolos.