quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Some Audiences Pictures - 1911 - Mary Heaton Vorse

Seminário Brasileiro de Cineclubismo 
e Organização do Público

CONVITE

Amigas e amigos,

Nos últimos anos, um número surpreendente de teses, dissertações, trabalhos de conclusão de curso e artigos os mais diversos - sobre o cineclubismo em geral, experiências cineclubistas, o papel educativo dos cineclubes e outros temas correlatos - têm sido produzidos. Paradoxalmente, essa farta produção não tem correspondente no nível de organização do movimento cineclubista concreto, com exceção, talvez, de experiências educacionais promovidas por agentes mais ou menos públicos. Há um hiato, pode-se dizer, entre a reflexão e o trabalho concreto no cineclubismo brasileiro, entre uma teoria que circula apenas nos ambientes acadêmicos e uma prática que raramente é sistematizada.

Com a intenção de interferir nesse espaço, propus a alguns amigos a formação de um grupo de discussão sobre cineclubismo. Um fórum baseado um pouco na experiência e no rigor acadêmicos, mas ligado orgânicamente ao movimento cultural e social dos cineclubes e de outras formas de organização do público audiovisual. Um mecanismo de troca de reflexões em torno de temas que os próprios participantes propõem, identificados sobretudo com a prática dos cineclubes.

Instalado na internet, esse Seminário Brasileiro de Cineclubismo e Organização do Público pretende ser permanente, diferentemente de um seminário presencial. E sistemático, com uma produção mínima de textos assegurada também pela adesão dos membros do Seminário a um regimento organizativo.

Dez cineclubistas - que são também autores de teses, dissertações e artigos diversos sobre o cineclubismo – já aderiram. Acabamos de convidar vários outros autores que descobrimos na pesquisa de textos cineclubistas existentes. Gostaríamos agora de convidar todos os interessados, segundo as normas estabelecidas no Regimento que reproduzo abaixo.
Essas regras visam garantir uma produção sistemática de um conteúdo interessante e estimulante, visando contribuir para o avanço do cineclubismo, das formas de organização do público e das diversas comunidades da sociedade civil em geral.

Para participar, o interessado deve nos enviar – para seminario-brasileiro-de-cineclubismo@googlegroups.com - uma pequena mensagem explicando seu interesse, seguida de uma curta biografia e de um texto para avaliação, cujos elementos estão descritos no Regimento (artigo 2.3). Como já disse, para assegurar a produção e vitalidade do blog, uma produção mínima é exigida a cada participante. Assim como um nível de qualidade e pertinência, sempre avaliadas pelos próprios participantes.

Agradeço antecipadamente sua atenção e, esperamos, participação.

Um abraço,

Felipe Macedo
Secretário-geral do Seminário

Seminário Brasileiro de Cineclubismo
e Organização do Público
Regimento Interno

1.               O Seminário Brasileiro de Cineclubismo é um grupo de estudos e debates de duração indeterminada, voltado para a discussão de temas relativos ao movimento de cineclubes no Brasil e no mundo, incluindo aspectos teóricos, história e políticas para o cineclubismo.

2.               Podem participar do Seminário todas as pessoas interessadas que, comprovadamente, tenham participação relevante no movimento cineclubista, por sua atuação atual ou passada em um cineclube e/ou por produzirem reflexões pertinentes e sistemáticas sobre o tema.
2.1.           O critério para o estabelecimento dessas condições é a deliberação de dois terços (2/3) do conjunto dos membros do Seminário.
2.2.           A proposição de novos membros pode ser feita por qualquer participante, sujeita ao item 2.1.
2.3.           Qualquer pessoa pode solicitar diretamente sua inscrição como membro, obedecidas as seguintes cláusulas e o disposto no item 2.1:
a.    Breve carta de intenção (máximo de 300 palavras), justificando o interesse;
b.    Resumo biográfico com: nome, cidade e estado, cineclube(s) a que está ou esteve ligado; formação profissional e acadêmica (apenas a última posição ocupada), e
c.    Texto com reflexão sobre qualquer aspecto da atividade cineclubista, em torno de trinta mil (30.000) caracteres e espaços, nos termos do item 4.2. deste Regimento.

3.               Os participantes do Seminário comprometem-se, igualmente, a produzir contribuições escritas, conforme as modalidades, extensão e regularidade estabelecidas no item 4.

4.               Mensalmente será definido, pela maioria simples dos membros e com antecedência de trinta (30) dias, um tema de discussão envolvendo o cineclubismo, que poderá eventualmente ser prolongado até três vezes, segundo o mesmo critério.
4.1.           Todos os membros do Seminário devem propor reflexões diversificadas sobre o tema mensal, participando minimamente com um texto (ver item 4.2) a cada dois meses. Essa regularidade poderá ser revista se e quando o Seminário ultrapassar 20 membros.
4.2.           Os textos deverão ter um mínimo de 15.000 e um máximo de 30.000 caracteres e espaços – entre 2.300 (5 páginas) e 4.500 palavras (10 páginas) - em letra Times New Roman, 12, com 1,5 interlinha e parágrafos justificados.

5.               Os membros que não tiverem participação regular e não cumprirem as disposições previstas neste regimento, particularmente o disposto no item 4 e seus subitens, serão suspensos.
5.1.           A falta de participação em três (3) períodos de discussão implicará em seu desligamento. Poderão ser readmitidos por deliberação dos membros do Seminário, reaplicando-se o disposto no item 2 do Regimento.

6.            Os textos serão para uma lista de discussão por emails própria e em blog criado especialmente para essa finalidade, depois de organizados por uma Comissão de Edição (CE) do Seminário.5.
6.1.           A Comissão de Edição (CE) será composta por 3 (podendo ser ampliada para até 5) membros do Seminário, eleitos por maioria simples através de manifestação única de cada membro na lista de emails. O mandato de cada integrante da CE é de 6 meses, permitidas as reconduções.
6.2.           A CE não fará nenhuma seleção dos textos, limitando-se a organizar seu ordenamento para melhor compreensão na leitura. Os textos que não obedecerem o disposto no item 4.2, contudo, serão excluídos.

7.               O Seminário terá um secretário-geral, eleito a cada 6 meses, permitidas as reconduções, que terá como atribuições a organização e gestão das correspondências correntes entre os membros - como as proposições e deliberações previstas no Regimento – que constituem a atividade regular do Seminário.

8.    Observações pontuais, sugestões e outras manifestações que não constituam contribuições ao debate segundo o item 4 serão livremente expressas na lista de emails, mas não publicadas no blog. Todos as manifestações desses tipos poderão ser revistas, adaptadas ou modificadas pelos seus autores e submetidas novamente à CE para eventual publicação.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

New York Movie - Edward Hopper, 1939


Existe um cinema cineclubista? 
(Notas sobre o filme Passaporte para Osasco)

Na minha opinião, ainda não. Mas certamente o documentário Passaporte para Osasco é um passo importante nesse caminho. Tenho visto, sempre que descubro indicações suficientes, filmes realizados em torno do universo dos cineclubes e de outras atividades comunitárias de expressão audiovisual em ambientes populares; o filme de Rui Souza ocupa um espaço diferenciado.

Rememorando o mais óbvio: com a revolução digital, especialmente neste século aconteceu uma progressiva democratização do acesso aos equipamentos de reprodução da imagem e do som, processo que continua permitindo a utilização, por meios privados, de aparelhos capazes de captar a realidade de formas cada vez mais sofisticadas – e a preços crescentemente acessíveis. No Brasil, isso mudou a forma de organização e representação social e política do segmento produtor de documentários, curtas-metragens e outras formas menos reconhecidas pelo já estreito mercado audiovisual comercial. A ABD, entidade que representa esse segmento, deixou de incluir apenas os estados mais ricos – como era durante a época do cinema em película – estendendo-se por todas as unidades da federação. Paralelamente, essa “democratização” da produção audiovisual também acarretou inicialmente uma queda generalizada da qualidade do material produzido. Com equipamentos mais baratos e simples, a formação dos novos realizadores passou a ser, em grande parte, rápida e superficial. Os equipamentos também facilitam um emprego mais bruto, sem conhecimento e domínio da linguagem, técnicas e estilos do cinema e de suas aplicações em outros formatos. Som, iluminação, enquadramento e movimentação de câmera tenderam a uma simplificação ou imediatismo (diversas funções reunidas num só aparelho) que prejudicaram muito, especialmente nos primeiros anos, a maior parte – com notáveis exceções, é claro – dessa produção.

Sem estender muito esta recapitulação – tenho falado bastante sobre isso em outros artigos acessíveis neste blogue – outro aspecto dessa democratização da produção e reanimação do cinema amador, foi o ressurgimento da sua interface com o movimento cineclubista. A rearticulação deste último foi, de certa forma, iniciativa do primeiro, que pouco a pouco assumiu um papel preponderante. De fato, uma leitura possível desse fenômeno poderia passar pelo próprio desenvolvimento tecnológico e pela distribuição comercial dos aparelhos de captação de imagem e som, entre 2003 e 2010.

A acessibilidade também está ligada aos preços decrescentes. Desde o início houve uma ligação entre muitos dos novos realizadores e comunidades populares. Um aspecto disso se afirma e se identifica claramente com as políticas federais de produção de filmes amadores e, em seguida, com os programas de distribuição de filmes e equipamentos básicos de projeção nos meios populares. Outro aspecto, complementar, foi o da criação de projetos de formação de realizadores, as chamadas oficinas de cinema, programas simplificados de curta duração que, a meu ver, caíam bastante naquela categoria que Paulo Freire descrevia como “modelos copiados do opressor para supostamente promover os orpimidos”.

Na minha pesquisa informal mas cotidiana por um cinema realmente popular, algo que se poderia chamar inicialmente de cinema cineclubista, o que mais encontro são exemplos de produções realizadas durante esse tipo de oficinas ou que derivam desse tipo de formação. De uma maneira geral, confirmam Paulo Freire: são filmes toscos, extremamente conservadores no que tange à forma e frequentemente também quanto ao conteúdo. Não apenas não superam um cinema de orientação comercial como sequer resistem à comparação. Esses filmes, contudo, têm a marca do público como autor: não costumam valorizar a apropriação individual da autoria – embora os “professores” que orientam essas produções gostem de destacar sua participação. A autoria, a meu ver, é uma forma de propriedade privada no nível do simbólico e uma marca que distingue um cinema sem verdadeira representação ou identidade popular.

Mas a referência à autoria, num filme, nem sempre identifica realmente um autor nesse sentido de apropriação da realização. Posso estar enganado, mas é o que senti, inferi de Passaporte para Osasco. O filme indica que a direção, roteiro e montagem são de Rui Souza, mas o restante da ficha técnica aponta para um trabalho bem mais coletivo: João Luiz de Brito Neto fez a fotografia e o som direto, além de assinar conjuntamente a montagem. Também notei a participação de outros integrantes do velho núcleo de militantes que compõem o Centro Cineclubista de São Paulo, como Cacá Mendes na produção executiva e, nos agradecimentos, Diogo Gomes dos Santos. Os créditos do filme indicam que é uma produção do Centro Cineclubista e dos cineclubes Kinopheria (do bairro de Itaquera, dirigido por Brito Neto) e Alto do Farol, de Osasco. Um pouco de pesquisa dá consistência ao que o filme exala nas entrevistas: é um trabalho de fôlego, com uma longa preparação – as entrevistas foram filmadas entre 2005 e 2007, mas o filme só chegou à forma final no início de 2016 (e eu só o descobri agora!).

Rui Souza vive em Osasco há cerca de 40 anos, teve seus contatos iniciais com o cineclubismo através do mesmo Centro Cineclubista, em 1985. O filme, e outras manifestações dele, como o blogue www.netodohumbertomauro.blogspot.com mostram essas filiações. O filme foi feito com uma equipe enxuta, um grupo de pessoas que se identificam, com objetivos comuns. As entrevistas também são quase íntimas, no sentido de que os entrevistados estão muito à vontade, falando com os seus, com gente de casa, com companheiros da comunidade de Osasco – e da classe trabalhadora, em última instância. Pois é disso que se trata: um levantamento da memória da histórica greve de 1968 em Osasco e outros acontecimentos – inclusive da luta armada – daquele período. Música e outros elementos do filme também foram reunidos com gente próxima. É um filme comunitário em muitos e vários sentidos: realizador, equipe e mesmo o objeto são parte de um coletivo. Pelo menos foi assim que senti e percebi o filme.

Além desta minha birra com a autoria, também acho que um dos objetivos fundamentais de um cineclube – ou mais profundamente, da comunidade em que se instala um cineclube, através dele – é a coleta, preservação e difusão da memória, portanto de parte fundamental da identidade da comunidade. De uma maneira geral, acho que a expressão audiovisual – o objetivo máximo da instituição cineclubista – não deve começar pela ficção. Claro que isso é uma generalização imprecisa, e haverá exceções, mas como tenho notado na produção de origem comunitária que conheço, a pretensão ficcional frequentemente acaba em maus filmes. Passaporte para Osasco é, nesse sentido, um grande trabalho de pesquisa, recuperação e disponibilização da memória e identidade de Osasco e da classe trabalhadora. Mostra um interessante e pouco usual material de arquivo também. Os créditos – eu nunca tinha visto isso – até indicam os livros e filmes pesquisados, confirmando esse caráter de investigação, de sério compromisso, que usualmente só se encontra na produção acadêmica. O filme, assim, supera outras produções documentárias identificadas com o dispositivo comercial – parafraseando Gramsci: supera “intelectual e moralmente” outras produções.

Não sou chegado às “análises de filmes”. Analisar um filme de forma tradicional, para mim, é como explicar uma piada. Ou você pegou a graça ou não adianta tentar explicar. A discussão da relação entre o filme e a experiência do público – que é a prática do debate cineclubista (não é nem crítica nem análise no sentido tradicional) – se dá na projeção, no coletivo. Portanto não me interessa muito aqui se estou de acordo com os pontos de vista dos entrevistados ou com uma visão da questão política brasileira que também aflora do filme. Porque penso, e até nisso o filme contribui, que o público saberá, nas suas próprias circunstâncias, fazer essa avaliação. O filme é fluente, claro, aberto ao debate. São 90 minutos que não cansam em momento algum, acho, conservando um estímulo e uma originalidade que também não são comuns em tantos outros filmes que tangenciam de certa forma a mesma questão – e que são citados nos créditos. Não é nada tosco, retomando minha severa afirmação anterior.

Não sei como anda o cineclubismo em Osasco agora, ou em 2016, mas vejo esse filme imerso numa cultura cineclubista, um passo e um exemplo no caminho de um cinema  compromissado com a emancipação do público, do povo. Um cinema em que o público, a comunidade é o autor.