terça-feira, 6 de agosto de 2019
Existe um cinema cineclubista?
(Notas sobre o filme Passaporte para Osasco)
(Notas sobre o filme Passaporte para Osasco)
Na minha opinião, ainda não. Mas
certamente o documentário Passaporte para
Osasco é um passo importante nesse caminho. Tenho visto, sempre que
descubro indicações suficientes, filmes realizados em torno do universo dos
cineclubes e de outras atividades comunitárias de expressão audiovisual em
ambientes populares; o filme de Rui Souza ocupa um espaço diferenciado.
Rememorando o mais óbvio: com a
revolução digital, especialmente neste século aconteceu uma progressiva
democratização do acesso aos equipamentos de reprodução da imagem e do som,
processo que continua permitindo a utilização, por meios
privados, de aparelhos capazes de captar a realidade de formas cada vez mais
sofisticadas – e a preços crescentemente acessíveis. No Brasil, isso mudou a
forma de organização e representação social e política do segmento produtor de
documentários, curtas-metragens e outras formas menos reconhecidas pelo já
estreito mercado audiovisual comercial. A ABD, entidade que representa esse
segmento, deixou de incluir apenas os estados mais ricos – como era durante a
época do cinema em película – estendendo-se por todas as unidades da federação.
Paralelamente, essa “democratização” da produção audiovisual também acarretou
inicialmente uma queda generalizada da qualidade do material produzido. Com
equipamentos mais baratos e simples, a formação dos novos realizadores passou a
ser, em grande parte, rápida e superficial. Os equipamentos também facilitam um
emprego mais bruto, sem conhecimento e domínio da linguagem, técnicas e estilos
do cinema e de suas aplicações em outros formatos. Som, iluminação,
enquadramento e movimentação de câmera tenderam a uma simplificação ou
imediatismo (diversas funções reunidas num só aparelho) que prejudicaram muito,
especialmente nos primeiros anos, a maior parte – com notáveis exceções, é
claro – dessa produção.
Sem estender muito esta
recapitulação – tenho falado bastante sobre isso em outros artigos acessíveis neste blogue – outro aspecto dessa democratização da produção e
reanimação do cinema amador, foi o ressurgimento da sua interface
com o movimento cineclubista. A rearticulação deste último foi, de certa forma,
iniciativa do primeiro, que pouco a pouco assumiu um papel preponderante. De
fato, uma leitura possível desse fenômeno poderia passar pelo próprio
desenvolvimento tecnológico e pela distribuição comercial dos aparelhos de
captação de imagem e som, entre 2003 e 2010.
A acessibilidade também está
ligada aos preços decrescentes. Desde o início houve uma ligação entre muitos
dos novos realizadores e comunidades populares. Um aspecto disso se afirma e se
identifica claramente com as políticas federais de produção de filmes amadores
e, em seguida, com os programas de distribuição de filmes e equipamentos básicos
de projeção nos meios populares. Outro aspecto, complementar, foi o da criação
de projetos de formação de realizadores, as chamadas oficinas de cinema,
programas simplificados de curta duração que, a meu ver, caíam bastante naquela
categoria que Paulo Freire descrevia como “modelos copiados do opressor para
supostamente promover os orpimidos”.
Na minha pesquisa informal mas
cotidiana por um cinema realmente popular, algo que se poderia chamar
inicialmente de cinema cineclubista, o que mais encontro são exemplos de
produções realizadas durante esse tipo de oficinas ou que derivam desse tipo de
formação. De uma maneira geral, confirmam Paulo Freire: são filmes toscos,
extremamente conservadores no que tange à forma e frequentemente também quanto
ao conteúdo. Não apenas não superam um cinema de orientação comercial como
sequer resistem à comparação. Esses filmes, contudo, têm a marca do público
como autor: não costumam valorizar a apropriação individual da autoria – embora
os “professores” que orientam essas produções gostem de destacar sua
participação. A autoria, a meu ver, é uma forma de propriedade privada no nível
do simbólico e uma marca que distingue um cinema sem verdadeira representação
ou identidade popular.
Mas a referência à autoria, num
filme, nem sempre identifica realmente um autor nesse sentido de apropriação da
realização. Posso estar enganado, mas é o que senti, inferi de Passaporte para Osasco. O filme indica que a direção, roteiro e montagem são de Rui Souza, mas o restante
da ficha técnica aponta para um trabalho bem mais coletivo: João Luiz de Brito
Neto fez a fotografia e o som direto, além de assinar conjuntamente a montagem.
Também notei a participação de outros integrantes do velho núcleo de militantes
que compõem o Centro Cineclubista de São Paulo, como Cacá Mendes na produção
executiva e, nos agradecimentos, Diogo Gomes dos Santos. Os créditos do filme
indicam que é uma produção do Centro Cineclubista e dos cineclubes Kinopheria
(do bairro de Itaquera, dirigido por Brito Neto) e Alto do Farol, de Osasco. Um
pouco de pesquisa dá consistência ao que o filme exala nas entrevistas: é um trabalho
de fôlego, com uma longa preparação – as entrevistas foram filmadas entre 2005
e 2007, mas o filme só chegou à forma final no início de 2016 (e eu só o
descobri agora!).
Rui Souza vive em Osasco há
cerca de 40 anos, teve seus contatos iniciais com o cineclubismo através do
mesmo Centro Cineclubista, em 1985. O filme, e outras manifestações dele, como
o blogue www.netodohumbertomauro.blogspot.com mostram essas filiações. O filme foi feito com uma
equipe enxuta, um grupo de pessoas que se identificam, com objetivos comuns. As
entrevistas também são quase íntimas, no sentido de que os entrevistados estão
muito à vontade, falando com os seus, com gente de casa, com companheiros da
comunidade de Osasco – e da classe trabalhadora, em última instância. Pois é disso
que se trata: um levantamento da memória da histórica greve de 1968 em Osasco e
outros acontecimentos – inclusive da luta armada – daquele período. Música e
outros elementos do filme também foram reunidos com gente próxima. É um filme
comunitário em muitos e vários sentidos: realizador, equipe e mesmo o objeto são parte de um
coletivo. Pelo menos foi assim que senti e percebi o filme.
Além desta minha birra com a
autoria, também acho que um dos objetivos fundamentais de um cineclube – ou
mais profundamente, da comunidade em que se instala um cineclube, através dele
– é a coleta, preservação e difusão da memória, portanto de parte fundamental
da identidade da comunidade. De uma maneira geral, acho que a expressão
audiovisual – o objetivo máximo da instituição cineclubista – não deve começar
pela ficção. Claro que isso é uma generalização imprecisa, e haverá exceções,
mas como tenho notado na produção de origem comunitária que conheço, a
pretensão ficcional frequentemente acaba em maus filmes. Passaporte para Osasco é, nesse sentido, um grande trabalho de
pesquisa, recuperação e disponibilização da memória e identidade de Osasco e da
classe trabalhadora. Mostra um interessante e pouco usual material de arquivo
também. Os créditos – eu nunca tinha visto isso – até indicam os livros e
filmes pesquisados, confirmando esse caráter de investigação, de sério
compromisso, que usualmente só se encontra na produção acadêmica. O filme,
assim, supera outras produções documentárias identificadas com o dispositivo
comercial – parafraseando Gramsci: supera “intelectual e moralmente” outras produções.
Não sou chegado às “análises de
filmes”. Analisar um filme de forma tradicional, para mim, é como explicar uma
piada. Ou você pegou a graça ou não adianta tentar explicar. A discussão da
relação entre o filme e a experiência do público – que é a prática do debate
cineclubista (não é nem crítica nem análise no sentido tradicional) – se dá na
projeção, no coletivo. Portanto não me interessa muito aqui se estou de acordo com os pontos de vista dos entrevistados ou
com uma visão da questão política brasileira que também aflora do filme. Porque
penso, e até nisso o filme contribui, que o público saberá, nas suas próprias circunstâncias,
fazer essa avaliação. O filme é fluente, claro, aberto ao debate. São 90
minutos que não cansam em momento algum, acho, conservando um estímulo e uma
originalidade que também não são comuns em tantos outros filmes que tangenciam
de certa forma a mesma questão – e que são citados nos créditos. Não é nada
tosco, retomando minha severa afirmação anterior.
Não sei como anda o cineclubismo
em Osasco agora, ou em 2016, mas vejo esse filme imerso numa cultura
cineclubista, um passo e um exemplo no caminho de um cinema compromissado com a emancipação do público,
do povo. Um cinema em que o público, a comunidade é o autor.
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