Bolsonaro, o
filme
Assisti aqui (em Montreal), ontem, um documentário
belga de 52 minutos – As flechas de prata:
o orgulho de Hitler (Les flêches
d’argent: l’orgueil de Hitler. Mais informações, em francês, em https://www.laliberte.ch/news/ces-firmes-qui-roulaient-pour-hitler-469913) - sobre a indústria automobilística e a evolução do
espetáculo dos grands prix a partir
da renovação geral na Alemanha com a ascensão do nazismo.
O documentário é
dinâmico, fluente, de fácil compreensão, sem abandonar um elevado e sério teor
informativo e crítico. É uma combinação de muito material de arquivo e de
análises – depoimentos – feitos por especialistas. Enfoca desde a formação da
moderna indústria alemã, no quadro da superação das limitações impostas pelas
potências vencedoras da Primeira Grande Guerra, o alinhamento dessa indústria
(Audi, Mercedes, BMW, etc.) e do genial Ferdinand Porsche com o nazismo, suas
ligações com os grandes fabricantes americanos, Ford e GM (ambos dirigidos por
racistas financiadores do nazismo: Henri Ford e Alfred P. Sloan,
respectivamente), até o uso dos grandes prêmios de velocidade para a divulgação
das conquistas tecnológicas alemãs (base da fama que vem até nossos dias) e da
“superioridade da raça”. É bem possível que a TV5 exiba, ou já tenha exibido,
aí no Brasil.
Ao mesmo tempo, a televisão canadense trata há dias do
aniversário de 75 anos da libertação, pelo Exército Vermelho, do campo de
Auschwitz. Com outro registro, de reportagem, mas histórica, também esse tema
traz para as telas bastante material de arquivo.
Mas nenhum desses é o assunto aqui. Esses dois
exemplos me trouxeram à cachola o fato bem conhecido da valorização da
propaganda e da publicidade pelo nazismo – e outros fascismos – para o qual
constituíram um elemento central não apenas na sua divulgação, mas para a
própria construção do conceito, e do aparato que revestiu não só sua imagem, mas
seu dispositivo social e político. O próprio Hitler, Goebbels e outros nazistas
foram mestres na construção dessa imagem e na sua manipulação.
O que eles não previram, certamente, é que a mesma
capacidade de impressionar, de provocar interesse e admiração, de incitar sentimentos e comportamentos,
diante da queda da máscara espetacular – com a derrota na 2ª. Guerra - resulta
no diametralmente oposto: as imagens de arquivo sobre o nazismo
(principalmente) constituem um material incrível, riquíssimo, grandioso à sua
maneira, sobretudo chocante, de denúncia das atrocidades, de demonstração da
manipulação de consciências, da básica falsidade – e horror – dos pressupostos
e das ações dessa ideologia, política e Estado. Daí é que pensei no Bolsonaro,
meu tema aqui.
Imagino que não há nenhuma originalidade nesta minha
reflexão, mas desconheço qualquer material sobre o advento do bolsonarismo e
este primeiro ano do seu mito no poder. Bolsonaro, seus filhos raivosos, seus
ministros impagáveis e seu ideólogo vigarista usam as mesmas técnicas bem
retratadas no documentário a que me referi mais acima. Conseguem, assim,
supostamente comover seus seguidores. Também atraem a atenção das mais diversas
mídias institucionais, mas essas, geralmente, apenas destacam o evento: o
ridículo, o chocante, até o horroroso de certas acões ou declarações. Apesar de
se pretenderem “investigadoras” e “intérpretes” das notícias, praticamente
nunca vão além de reprodução e descrição desse tipo de acontecimento. Nas
equivocadamente chamadas mídias sociais, essas manifestações absurdas,
repugnantes ou grotescas do aparato bolsonarista também são tratadas, no mais
das vezes, com muita superficialidade, quase que numa espécie de simetria com
os pretensos seguidores do nosso hitlerzinho de fancaria, repetindo apenas as
críticas mais óbvias para um auditório já convencido, limitado nas e pelas
bolhas da internet que, numa certa extensão, realimenta-se, afirma-se nesse
processo.
Como se sabe, o material audiovisual sobre Bolsonaro,
seu governo e seguidores já é farto, rico e atraente, e penso que na mesma
linha que as fontes de arquivo do nazismo: se não há um evidente genocídio, o
ódio racial está presente, assim como outras destruições maciças, como a dos
recursos naturais. O racismo, que atinge indígenas, negros (visados pela
promoção da violência policial) e vira homofobia e outras formas de preconceito
– inclusive o incentivo à hostilidade sobre outras etnias importantes no
Brasil, como os asiáticos. O nosso fascismo, claro, tem sua originalidade –
como tudo em países que não conseguem desemvolver seus próprios projetos
nacionais. Tem os militares e sua ideologia machista de honra corporativa, seu
desprezo imenso pela vida e sua subserviência aos poderosos, daqui ou de mais
ao Norte. Tem as milícias, manifestação “informal”, pelo crime, de uma cultura
que bebe naquela outra. E tem os evangélicos e outros fanáticos religiosos, com
sua própria simbologia de absurdos e pesado carregamento de intolerância e
preconceito. Mas o importante aqui, é demonstrar que esse ajuntamento de
interesses resulta, guardadas algumas proporções, no mesmo fenômeno simbólico
produzido pelo nazismo.
Análises originais e profundas também não faltam – embora
apareçam pouco e comuniquem menos ainda. Mas existem. Exames instigantes,
especialistas que sabem se comunicar. Questões fundamentais para o público
estão ainda a se desenvolver e pedem pelo esclarecimento: os efeitos da
destruição de direitos em vários níveis, a eliminação dos principais elementos
de distribuição de renda, o desmate da educação, da cultura e da ciência, o
ataque à Amazonia... E as imagens e discursos produzidos neste pequeno período
de domínio também abundam: Bolsonaro ensinando “arminha” para uma criança; suas
ligações (e fotos) de longa data com as milícias e o crime – inclusive o nexo
lógico com a assassinato de Marielle Franco -; as patacoadas audiovisuais do
ministro da Educação; as declarações da ministra de Direitos Humanos, do
titular do Meio Ambiente, de Relações Exteriores, além, é claro, da trajetória
intelectual do farsante Olavo de Carvalho, astrólogo kierkegaardiano e gramscista, mentor intelectual de grande
parte dessa gente.
Um ano de Bolsonaro – ou mais, se contarmos a campanha
sem debate, o “atentado”, o culto à tortura e os símbolos de violência, e ainda
excertos de sua juventude irrefletida (isto é, as três décadas desde que foi
expulso do Exército) – dá mais reflexão, dá mais cinema e talvez tenha
produzido mais imagens interessantes que todos os protagonistas anteriores.
Certamente minha ideia não é nada original, mas desconheço e gostaria de ver
algo nesse sentido que tenha sido produzido. Pergunto aos meus tantos amigos
realizadores, roteiristas, produtores: cadê o documentário que pode ganhar o
próximo Oscar?