segunda-feira, 30 de março de 2020

Exibição do filme biográfico de Edir Macedo para presidiárias


As igrejas, as esquerdas 
e os cineclubes
(pertencimento e hegemonia nas instituições populares do Brasil)

O milagre pentecostal

Embora o protestantismo esteja intimamente associado ao desenvolvimento da mentalidade capitalista desde seu surgimento e faça parte das práticas cotidianas e das instituições oficiais e públicas dos grandes países anglófonos, especialmente dos Estados Unidos, a implantação e o crescimento de sua vertente pentecostal no Brasil é surpreendente pela rapidez e extensão, tanto geográfica como social.

O protestantismo de Lutero, e especialmente de Calvino, coincidiram e se ajustaram muito bem à formação de uma mentalidade de poupança e investimento – indicações terrenas da “graça” que identificava os eleitos para o paraíso celestial - que seria uma das bases ideológicas mais importantes para o desenvolvimento do capitalismo, particularmente em suas fases mais iniciais. Essa relação entre riqueza e santidade não servia, entretanto, para as massas assalariadas que se formariam em etapas subsequentes do desenvolvimento desse modo de produção. No século 18, no epicentro das transformações econômicas e sociais que preparam e depois sediam a Revolução Industrial, uma nova contestação à religião oficial (no caso a Anglicana, bem parecida com a Católica) se desenvolve, sobretudo a partir de John Wesley: o Metodismo. Uma de suas principais características é que refutava a predestinação lutero-calvinista e garantia o acesso ao Céu a todos que se arrependessem de seus pecados. O atrativo da Salvação diante das terríveis condições dos primeiros proletários, e uma certa dimensão de acolhimento, também diante da perda de referenciais – como a expulsão das terras em que trabalhavam para irem constituir a mão de obra fabril –, nos templos e comunidades bem mais informais que as da igreja oficial, fizeram desse ramo da sublimação ideológica um sucesso entre os trabalhadores. Cem anos depois, o Pentecostalismo, herdeiro direto do Metodismo, apareceria em meio às contradições de uma nova etapa do capitalismo, agora nos EUA, e de uma classe trabalhadora que se adaptava à modernidade e velocidade da vida urbana, da produção em massa, do cinema... A massa proletária era agora, no plano simbólico, público.

Logo a novidade chegou ao Brasil, por volta de 1910. Mas sem muita aceitação: as primeiras seitas eram muito estritas e distantes da nossa forte tradição católica, que as Assembléias de Deus, por exemplo, combatiam acerbamente. Uma segunda “onda”, nos anos 50, trouxe uma primeira vaga de pastores audiovisuais: o uso do rádio acelerou a difusão das múltiplas seitas. Essas divisões são características, aliás, do pentecostalismo, ligadas à informalidade e maior proximidade – real e midiática - dos templos e congregações, e à possibilidade de enriquecimento autônomo de cada igreja (e de cada líder). A terceira onda seria a dos grandes grupos fundados por pastores brasileiros. São exemplos as igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, entre muitas outras, tantas que algumas são até mesmo formadas por um único templo e pastor, nos cantos mais remotos do Brasil. Entre suas características principais, além das que percorrem toda a tradição evangélica, estão a chamada Teologia da Prosperidade – uma espécie de versão contemporânea das expectativas milenaristas, a promessa do reino de deus nesta Terra agora traduzida em esperança financeira – e o uso intenso da televisão. Se no início do século 20 os católicos correspondiam a 98% da população, os pentescostais chegaram a ser 13% em 1990 e, 30 anos depois, já são mais de 30% dos brasileiros: um crescimento em torno de 10% ao ano.

Esse fenômeno impressionante, de triplicar seus adeptos num período historicamente curto, tem algumas explicações prováveis, a meu ver. Elas já estão sugeridas nos parágrafos anteriores. O pentecostalismo se expande diante do distanciamento que caracteriza uma igreja católica que abandona, em grande medida, suas posições – geográficas, sociais e teológicas – mais próximas dos ambientes e vivências populares (ainda que esboce reações, justamente adotando, em sua vertente dita carismática, diversas práticas do pentecostalismo). Não terá sido pura concidência que esse sprint evangélico ocorra logo após o abandono da Teologia da Libertação pelo Vaticano. No mesmo sentido, o período coincide com a falênca das expectativas geradas pelo processo de derrubada da ditadura militar e pela não concretização das promessas de maior democracia social esboçadas na Constituição de 1988. Diante disso, as grandes seitas pentescostais de hoje prometem segurança econômica para os que contribuam para a igreja. Mas não parece uma promessa vã - nem passou tanto tempo assim para que o crente avalie. As congregações onde o pastor é uma figura mais próxima e informal – até, frequentemente, pela pouca formação –, oferecem e constituem de fato um ambiente comunitário em que o aderente pode se sentir acolhido, se reconhecer num meio que o adota e o reconforta. Esses ambientes criam uma esfera de pertencimento. E nisso substituem a incapacidade demonstrada não apenas pela Igreja católica, mas igualmente pela tradição revolucionária proletária, o comunismo – hoje identificado com o termo “esquerdas”: no plural, mais um índice da sua fragmentação. É essa espécie de  reconforto, de alívio da dor mesmo, que o jovem Marx chamou de “ópio do povo”, referindo-se não às propriedades oníricas do alcaloide, mas a seus efeitos anestésicos e soporíferos – mais conhecidos na primeira metade do século 19.

O cinema começou com uma platéia de curiosos em festas populares e revistas teatrais, crescendo depois, exponencialmente, quando se implantaram suas salas exclusivas (seus templos?), junto a um enorme público proletário que, pela primeira vez, incluía também mulheres e crianças, para depois se expandir ainda mais, juntando outros segmentos sociais e formando finalmente um público universal. Numa certa analogia, o pentecostalismo brasileiro começou a se implantar nos ambientes mais miseráveis e necessitados, se expandindo para segmentos populares cada vez mais amplos e buscando, finalmente, nos dias de hoje, um alcance generalizado na sociedade. A expansão do cinema, contudo, foi muito mais impressionante.

O recuo da classe trabalhadora

Os últimos 30 anos, mais ou menos, também coincidem, no Brasil, com um progressivo recuo da classe trabalhadora – enquanto identidade, consciência autônoma de si. A ditadura militar reprimiu ferozmente e feriu, aparentemente de forma irrecuperável, a espinha da tradição política e ideológica da classe trabalhadora brasileira, o Partido Comunista. Cindido em diversos grupos e facções, inexpressivas na sociedade brasileira atual, contribuiu também, com algumas dissidências – algumas de origem até mais antiga, como as facções stalinistas e trotskistas – para um último (neste período) avanço dos  trabalhadores com o partido que passou a carregar esse nome.

O Partido dos Trabalhadores construiu uma alternativa político-eleitoral para a classe trabalhadora brasileira como nunca houve na história deste País. Como se sabe, a composição inicial do PT tinha três vertentes: o movimento sindical do ABC paulista, representatividade depois ampliada por todo o território nacional através da CUT (que havia quebrado o princípio de unicidade sindical); as bases da Igreja católica identificadas com a Teologia da Libertação e bem implantadas nos meios populares, e, finalmente, diversos grupos originados direta ou indiretamente de dissidências do PCB, adeptos da luta armada durante a ditadura. De fato, o PT sempre teve uma postura anticomunista – presente em todas as suas vertentes – pelo menos enquanto se podiam identificar as gerações que compuseram o PCB favorável a uma ampla política de alianças e contrário à luta armada como método de luta contra a ditadura. Apesar disso, o PT adotou alguns dos elementos mais discutíveis da tradição comunista, como o culto da personalidade do líder e a supervalorização do papel do Estado, por exemplo.

Como já disse, a Teologia da Libertação, enquanto aparato de intervenção social, sofre intervenção da cúpula da Igreja e do papa Wojtyla (o mesmo que tanto contribuiu para a queda do socialismo na Polônia) e desaparece. Com os governos do PT – de 2002 a 2014, e também nos estados e municípios – grande parte das lideranças originais do movimento operário se transforma em políticos e administradores ligados ao governo; há uma crescente descaracterização do caráter reinvidicatório dos sindicatos – como se nota claramente, por exemplo, nos festejos de 1º. de maio, que se tornam grandes espetáculos politicamente anódinos – e um distanciamento de suas atividades em relação à vida de seus representados. Os antigos grupos revolucionários aderem e se adaptam ao jogo político de Brasília, fornecendo inclusive alguns de seus nomes mais importantes, ou atuam como facções minoritárias dentro do partido. Aos poucos, alguns desses grupos se separam formalmente e constituem novos partidos. Fora desse processo, o PCB se descaracteriza completamente, não apenas mudando de nome – para PPS – mas tornando-se finalmente numa linha auxiliar das agremiações ditas liberais do campo reacionário brasileiro, PSDB e DEM, principalmente. Característica única nessa nossa cissiparidade comunista, temos ainda o PCdoB, oriundo do segmento stalinista do PCB (cisão ocorrida no final dos anos 50, quando são denunciados os “crimes de Stálin), hoje praticamente uma linha auxiliar subalterna do PT, e o PCB, pequeno grupo que não tem maior representatividade nos meios populares ou ressonância social significativa.

O PT participou de várias eleições, e de todas as eleições presidenciais desde a Constituinte (que o PT, entretanto, não subscreveu), tendo Lula como candidato e defendendo uma pauta social bem clara. Em 2002, depois de três derrotas, Lula apresentou a famosa Carta aos Brasileiros, que marcava, segundo muitos analistas, sua submissão às elites e especialmente ao setor financeiro do País. Inaugurou-se um governo híbrido, num certo sentido. Por um lado, implementava pautas progressistas importantíssimas e políticas sociais inéditas, promovendo uma redistribuição de renda limitada, mas sem precedentes na nossa triste história de exclusão. Por outro lado, concentrados no papel do Estado, esses governos aderiram às práticas recorrentes da política mais reacionária – e mesmo corrupta – entre as elites dos três poderes. Concomitantemente, ao invés de mobilizar de forma autônoma a sociedade civil, foi criando programas de cooptação de diferentes setores – sindical, estudantil, cultural – e de suas lideranças, integradas ao Estado.

Ausência das esquerdas no cotidiano e nas organizações populares 

Para os comunistas, socialistas e anarquistas que formavam as grandes correntes politicas do movimento de trabalhadores até o início do século 20, a adesão a essas posturas polîticas e ideológicas constituía, no plano pessoal, um compromisso de vida. Especialmente para os últimos, a anarquia era uma visão de mundo e um modo de vida. A educação não se distinguia da propaganda, pois promover o novo ser humano era o mesmo que formar um verdadeiro anarquista – ou vice-versa. Mas, para qualquer militante, socialista, comunista, essa adesão era integral. Os comunistas, mais tarde, salientavam bastante a solidariedade comunista, que se estendia a toda a humanidade – com exceção dos seus exploradores. Essas atitudes, de maneira geral, perduraram até esse período de crise das esquerdas, sobretudo no final do século. Tantos jovens adeptos – e muitos que não eram - da luta armada deram sua vida em consequência de suas convicções, submeteram-se a todo tipo de torturas e indignidades. Uns poucos desses, no entanto, anos depois estavam trocando favores com os que os trairiam mais uma vez, mais de uma vez, com Temer, Bolsonaro... 

Quando Lula e Dilma foram à televisão vender a ideia de que a classe trabalhadora só queria ter seus eletrodomésticos e o filho fazendo doutorado no exterior (sic), estavam traindo os trabalhadores que lutavam por direitos políticos e os jovens que haviam morrido contra a ditadura. Mas estavam sobretudo retirando a ética comunista do cotidiano dos trabalhadores, substituindo-a pelo consumismo, e logo em seguida pelo empreendedorismo: suposta via de salvação do trabalhador, negação da emancipação como classe. A consciência da identidade de classe, a solidariedade que dela decorre, são valores básicos e centrais da emancipação humana; tergiversar sobre eles é debilitar essa mesma humanidade, contida no segmento social capaz de emancipá-la.

Distribuir empregos aos próximos e, a partir deles, formular programas de cima para baixo – repetindo a tradição sempiterna do patrimonialismo brasileiro – significa igualmente impedir a participação da sociedade organizada, substituindo-a por uma forma “renovada” de notórios especialistas, agora ligados, simpáticos ou simplesmente obedientes ao governo e ao partido. Com isso a sociedade civil recuou enormemente em relação a suas conquistas na luta de resistência contra a ditadura. Desarticularam-se formas de mobilização organizada, trocando-as por gestores reconhecidos pelo poder, especialistas na administração de entidades, no trato de programas e políticas governamentais – e não realmente públicas – que, paradoxalmente, atingiam um número muito maior de segmentos da sociedade, de regiões do País. A contradição é que, pelo vício inerente, tais políticas apenas ampliaram a desarticulação de uma parte importante da sociedade civil.

Grande parte das bases sociais das organizações da sociedade civil foram cooptadas, minadas; lideranças políticas progressistas, igualmente assimiladas ou marginalizadas, neutralizadas. O sistema se organizou – ilusoriamente, como verificamos – sobre a perspectiva de eternização eleitoral. Falsa hegemonia arranjada, negociada, ao invés de construída e garantida pelos trabalhadores.

Políticas importantíssimas também foram estabelecidas e suas bases lançadas. Ainda que esteja fazendo estas críticas, é forçoso reconhecer que, por comparação, os governos do PT e de Lula foram os melhores que já tivemos, com o Bolsa Família – paliativo, mas fundamental para elevar o nível de vida de incontáveis miseráveis brasileiros -; as cotas, que finalmente mexem com o preconceito e a exclusão atávicos do País; as universidades federais, os aumentos acima da inflação do salário mínimo, e muitas outras ações. Mas, ao mesmo tempo, isso equivale a dizer que esses “melhores” governos foram apenas os menos piores de nossa história, pois não atacaram essencialmente, e muito menos prepararam o assalto às raízes da desigualdade e da exploração que definem nossa sociedade. Nem no campo econômico nem no plano político nem na esfera ideológica.

Passado o governo Lula, com seu carisma e os ventos favoráveis da conjuntura econômica internacional, as insatisfações populares voltaram a se expressar – por exemplo no famoso junho de 2013. Mas, faltas de organização e direção, atiravam para todos os lados, expressando um descontentamento abstrato com a injustiça, a corrupção, os centavos do preço do ônibus... Era o caldo de cultura para a expressão da insatisfação cega, a revolta como catarse do mal estar recolhido, reprimido, indefinido. Era a oportunidade não para os trabalhadores, cujas organizações ainda existentes não conseguiam compreender, se posicionar e, menos que tudo, liderar ou dirigir a luta, mas para os agitadores de direita que, desde a primeira eleição de Lula – ou mesmo desde antes, desde a derrota da ditadura - se preparavam para intervir, promover esse tipo de revolta, a rebelião dos recalcados, a batalha pelo caos, contra o Comunismo.

Às manifestações difusas, que se multiplicam logo no início do segundo governo Dilma – instigadas pelo candidato derrotado, Aécio Neves, pelos liberais e, nas ruas, pela direita fascista ascendente – opuseram-se manifestações corporativas, estreitas, petistas, que não estavam à altura do novo desafio, tal como o próprio governo. Desde então mais claramente, as chamadas esquerdas parecem um pouco perdidas, distanciadas dos meios populares, incapazes de se articular com e dar uma direção para as insatisfações do povo brasileiro. Manifestações de rua, seguidas de manifestações de rua, parecem ser a única forma de expressão e organização das classe populares. E parecem também não obter maiores resultados, exceto a satisfação das bolhas facebookianas de uma intelectualidade apenas formalmente progressista, pouco engajada orgânicamente em movimentos ou organizações populares.

Mas, e os cineclubes nisso tudo?

Cineclube – uma introdução

Os cineclubes constituem um tema muito particular, curioso. Sabe-se muito pouco sobre eles e age-se como se esse nível de conhecimento, ou de ignorância, bastasse. “Cineclubes são grupos de pessoas que se reúnem para ver filmes.” “Essas pessoas são cinéfilos, isto é, gostam de cinema.” “E do bom cinema, não de qualquer coisa.” E mais, apesar de cineclubes aparecerem, de vez em quando, um pouco por toda parte, e desde há muito tempo, também ninguém se pergunta sobre isso. Não há (praticamente) livros sobre cineclube. Mas quem gosta de cinema, quem “conhece cineclube”, sabe que eles “começaram nos anos 20 do século passado, quando apareceu a palavra cineclube”. Tem gente que sabe até “quem inventou o termo: Louis Delluc”. Ah! “Tem também os cineastas da Nouvelle Vague francesa, que eram ligados a cineclubes”, ao que parece. Pouquíssima gente, no mundo todo, sabe mais que isso, mesmo os que estão – ou pensam que estão – participando de um cineclube.

Pois é, tudo isso está errado. Ou incompleto, misturado, confuso, mas essencialmente errado. Introduzo, então, o assunto com uns esclarecimentos ultrarrápidos. Os cineclubes nasceram e evoluíram junto com o cinema, desde o início: fim do século 19. Como o cinema também, têm antecedentes bem anteriores, pelo menos até o século 17, por causa dos usos das lanternas mágicas, uma espécie de projetor de imagens fixas, que logo foi empregado para fins educativos e também políticos. Os cineclubes surgiram como práticas educativas de organizações populares e de ações equivalentes da Igreja católica - e, especialmente nos EUA, de algumas denominações protestantes. À medida que o cinema se consolidava como linguagem e narrativa, e como indústria – produção, distribuição, exibição –, uma parte do público, não se sentindo contemplado ou representado nesse cinema, composta novamente pelos setores organizados de trabalhadores, resolveu criar seus próprios filmes e também os espaços para vê-los. Os primeiros cineclubes constituídos com a forma que vem até hoje datam do começo dos anos 10 do século passado. Eram organizações, como já disse, voltadas para a produção de filmes, exibição e discussão, ligadas a uma perspectiva de organização de classe: os primeiros cineclubes chamavam-se, por exemplo, Cinema dos Trabalhadores (1911, EUA), Cinema do Povo (1913, França), Clube da Periferia (1916, França). Seus membros e dirigentes eram militantes socialistas, comunistas, anarquistas, feministas. Tal como o cinema era um fenômeno mundial, havia cineclubes em muitos países, pelo menos nos mais desenvolvidos, onde a classe trabalhadora era mais organizada. No Brasil tentou-se fazer um Cinema do Povo em 1914, mas não há uma comprovação definitiva de que isso tenha prosperado.

Com o fim da 1ª. Guerra Mundial, os intelectuais que frequentavam esses cineclubes – ou conheciam a experiência (que ainda não tinha esse nome, embora o termo existisse, pelo menos, desde 1907) -  começaram a organizar um outro tipo de cineclube. Ricciotto Canudo e Louis Delluc fundaram dois deles quase ao mesmo tempo: o primeiro – o Clube dos Amigos da Sétima Arte - consistia fundamentalmente na promoção de jantares (suntuosos) onde se discutia a importância do cinema (coisa ainda não firmemente estabelecida); o de Delluc eram projeções organizadas para fidelizar uma revista, o Jornal do Cineclube, que logo mudou de nome. Mas o termo pegou e se difundiu muito. Esses cineclubes eram um pouco diferentes dos anteriores – e de outros, seus contemporâneos – mas como eram identificados com algum intelectual ou artista importante, “institucionalizaram-se”, isto é, passaram a ser reconhecidos nos principais meios – artísticos, intelectuais – e pelas instituições mais importantes, como a Imprensa, a Academia e os próprios governos. Ao contrário dos cineclubes identificados e enraizados nos meios populares, que combatiam o cinema -que os alienava, controlava, explorava - e propunham um outro cinema, que mostrasse “a vida real dos trabalhadores” e correspondesse a seus interesses, estes novos cineclubes elitistas agora defendiam o cinema, clamavam pelo sua valorização como arte, independentemente das questões sociais.

É claro que - simplificando rapidamente a questão - como sempre prevalecem os interesses das classes dominantes, foi esse modelo de cineclube que se expandiu mais livremente. Embora tenham continuado a existir cineclubes revolucionários, o modelo elitista tornou-se hegemônico, e sua influência contaminou, de certa forma, a quase totalidade dos cineclubes, em todo o mundo. Ah, sim! Também não se pode esquecer que esse modelo hegemônico também assimilou o paternalismo eclesiástico; em especial a Igreja católica o adotou e promoveu, complementando o papel das elites com a sua função de formar platéias para o cinema. O “bom” cinema, claro.

Há muitos outros aspectos nesse processo de hegemonia de um modelo de defesa, de  culto (uma espécie de reintrodução antecipada da aura, que Walter Benjamin definiria mais de um década depois) do cinema. Os cineclubes deixaram de tratar do cinema como produto social, que deveria ser apropriado pelo conjunto do público, e passaram a valorizar sua fruição mais ou menos passiva (manteve-se o debate, porém), especialmente para um segmento de especialistas conhecedores: os cinéfilos. Os demais, o público comum, devia ser ensinado a ver cinema, levado a reconhecer o bom cinema, sob a tutela dos “conhecedores”. Cineclube passou a ter a função exclusiva de ver filmes; fazer filmes era responsabilidade da indústria, do capital – ou dos prestigiosos autores que, afinal, funcionam dentro da indústria. Os cineclubes também não tratavam mais da memória, da identidade das comunidades em que se instalavam; isso passou a ser responsabilidade de arquivos, geralmente constituídos por cineclubes que buscavam um novo estatuto, mais profissional: o das cinematecas. E surgiram amadores de cinema – não confundir com cinéfilo, embora os termos sejam sinônimos, não é mesmo? – que deveriam fazer filmes de família com os formatos de consumo caseiro lançados pela indústria na mesma época em que surgiam esses cineclubes de elite. Com o correr do tempo, o público se apropriou desses novos recursos, mas já o fez dividindo-se em vários segmentos: cinema amador, experimental, documentário. Separação, divisão, isolamento. Face a uma indústria audiovisual que, cada vez mais, crescia, concentrava-se economicamente (num bairro de Los Angeles!), e se expandia geográfica e socialmente: televisão, vídeo, internet... Cada vez mais concentradas em umas poucas empresas, filhotes de Hollywood. Hoje diríamos: Alphabet, Microsoft, Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Disney...

O recuo dos cineclubes

Os cineclubes basicamente mantiveram o modelo criado nos anos 20 e que atingiu seu ápice no final dos anos 50, começo dos anos 60, do século passado: a idade do ouro do cineclubismo e da cinefilia. Depois dessa época entraram em decadência: lenta, gradual e certa. Continuam existindo em todo o mundo; em muito menor número, mas ainda são alguns milhares, considerando todo o planeta. Mas com pouca ou nenhuma ressonância social ou cultural. Exercem mesmo, em boa medida, uma atividade complementar ao cinema comercial, aparando algumas de suas contradições: oferecem filmes “alternativos”, não disponíveis nas cadeias comerciais do sistema; não raro homenageiam e promovem pequenos e grandes nomes da indústria, ou do “cinema nacional”, nos países onde se pode usar essa abrangente expressão.

O público, agora audiovisual, praticamente universal – todo mundo tem pelo menos uma tela para chamar de sua (e um algoritmo que o chama de seu) – já não é mais o público do cinema. Este se tornou apenas uma etapa da circulação do produto audiovisual: não é nem a plataforma mais acessada nem a de maior peso econômico. De fato, nem o filme é preponderante – embora seja sempre o paradigma narrativo básico – superado pelos jogos, os videogames.

Hoje, os cineclubes não vão aonde o público está. Herdeiros dessa influência elitista nem sempre consciente, fixaram-se exclusivamente na postura da exibição “clássica”, de meados do século passado, e não assimilaram, não se apropriaram de todos os recursos e oportunidades tecnológicas que atualmente, de fato, compõem uma realidade diferente. Todas as formas de organização comunitária – no sentido mais amplo dessa palavra – em torno dos meios audiovisuais, que surgem renovadas, atualizadas, se desenvolvem praticamente sem ligação com o cineclubismo: coletivos de hackers, saites, blogues e canais na internet, entre muitas outras. Essa separação, aliás, também as enfraquece, ao desconhecerem a tradição associativa do cineclubismo e, frequentemente, a importância do presencial. Mas são os cineclubes que ficaram parados essencialmente numa postura cinéfila dos anos 50 ou 60: eles são possivelmente o segmento mais atrasado dentre as novas formas de organização criadas pelo público para se apropriar do audiovisual. Isto é, dentre as formas de organização que hoje correspondem às das origens dos cineclubes e à sua finalidade mais essencial: criar um novo cinema, agora  um novo audiovisual. Por outro lado, os cineclubes têm características, e uma história, uma experiência que lhes são exclusivas.

Cineclube como esfera de pertencimento

Os cineclubes são instituições, iniciativas estruturadas, de comunidades. Comunidades no sentido mais completo do termo: grupos que apresentam características, que têm necessidades, interesses, objetivos comuns. Talvez mais frequentemente essa definição se aplique a um espaço, um território: um bairro, uma cidade. Pode ser um local de trabalho, de formação, de estudo, ou outra forma de atividade coletiva. Mas corresponde também a grupos que partilham traços identitários, que vão dos culturais, étnicos, aos de gênero, ou ainda os corporativos: de profissões ou atividades compartilhadas. Muitos expressam necessidades comuns, como aprender sobre um tema determinado ou em geral, e mesmo simplesmente ter acesso ao cinema, tornado um bem de luxo para muitos, ou a certos filmes. Uma comunidade pode ser inclusive de gosto: há um campo comum entre os que se interessam por filmes de terror, gostam de ficção científica, apreciam uma abordagem psicanalítica do audiovisual, ou curtem e seguem séries, telenovelas... Um cineclube pode se constituir em torno de uma dessas características de comunidades, pode reunir mais de uma delas ou, quem sabe, representar alguma de que me esqueci ou ainda não conheço.

O que estes traços comunitários têm, por sua vez, em comum, é que acesso, conhecimento, desfrute, identificação e partilha com outros representam formas de apropriação do cinema e/ou do audiovisual. Apropriação: tomar posse, ter integralmente, isto é, poder usar em benefício próprio. Apropriar-se do cinema era o objetivo que deu origem aos cineclubes: tomá-lo das mãos do capital, do comércio, para que atendesse a suas necessidades, interesses, e principalmente para que pudessem se expresssar através do cinema. Lembro o lema do mais que centenário Cinema do Povo: “Divertir, instruir, emancipar”. Divertir sem alienar; instruir com informação e cultura, conhecimento construído e compartilhado e não “depositado” na conta vazia do espectador, como diria Paulo Freire. E, sobretudo, emancipar. E o que significa emancipar? Emacipação é atingir a maturidade, poder ser autônomo. Ter plena consciência de sua condição no mundo, como pessoa mas também como grupo, como comunidade e, num sentido mais amplo como classe social. E, sobre essa consciência, poder atuar de forma independente, ser sujeito da vida e da história, e não apenas objeto, consumidor, espectador.

Se a consciência emancipada é, em última instância, a consciência de classe, ela se constrói no convívio social, principalmente no trabalho e na comunidade. De fato, esses dois elementos se completam: representam a condição de vida e da sua reprodução como parte da sociedade. É nas fábricas e outras formas de trabalho coletivo, assim como nos bairros e outras formas de convívio urbano que se observam e se toma consciência dos traços comuns que constituem a identidade social dos trabalhadores. Como dito mais acima, justamente trabalho e moradia, em sentido amplo, estão entre as principais formas de comunidade. O sentido de fazer parte, de pertencer e de formar essas comunidades é, também, uma das formas básicas de consciência de sua identidade. Exercer essa convivência é construir, reproduzir essa identidade.

Nesse sentido, algumas práticas e alguns espaços podem ser identificados como esferas de pertencimento: espaços onde acontece, se constrói, até se sente essa identidade, essa consciência subjetiva quase palpável. São as comemorações, as festas, os saraus, alguns sindicatos e outras associações comunitárias, até mesmo certos bares. E certamente muitos cineclubes. O cinema, a sala de cinema, nunca ou quase nunca constituiu um desses espaços de convívio realmente integrados à comunidade. As pessoas vão ao cinema pelos filmes – e esses produzem outro efeito semelhante, a identificação, de caráter sobretudo individual (e que não vou estender aqui) -, as salas importam pouco, exceto quanto ao conforto, recursos técnicos e pela pipoca. Alguns cinemas de arte tinham um pouco essa característica: os famosos templos de cinefilia, como o Cine Paissandú, no Rio de Janeiro, o Coral ou o Bijou em São Paulo, entre outros. As pessoas criavam um vínculo com esses espaços, sentiam-se um pouco “em casa” neles, alguns tinham até seus lugares na terceira fileira...

Os cineclubes, ao contrário, são quase sempre espaços diferenciados onde o público é estimulado de várias formas a se autoconscientizar. Para começar, o espaço não é uma sala de uma cadeia de comércio, mas uma adaptação de algum local comunitário ou, no máximo, uma ocupação – pela comunidade organizada –, ainda que temporária, de um espaço público. A organização da sessão é “amadora”, a técnica é mais ou menos transparente, muitas vezes visível, até sujeita a acidentes. Geralmente se fala  com o público e, claro, o mais importante, ele pode falar, é estimulado a falar, isto é, a ter voz. A tradição cineclubista – hoje muito enfraquecida – é a da associação dos frequentadores, que se tornam, assim, “donos”, responsáveis, têm voto sobre o que se passa. O frequentador, e especialmente o associado, adquirem o costume de ir ao cineclube, reconhecem e interagem com os outros, internalizam em alguma medida o hábito e subjetivamente incorporam como uma sensação de pertencimento o estatuto democrático real que embasa a instituição do cineclube. E os filmes, claro, sobretudo, são pontes que todos usam, juntos, para aceder ao mundo e além dele. Os cineclubes constituem esferas de pertencimento das comunidades. Promovem e geram consciência da participação de cada um em uma identidade coletiva – ao mesmo tempo que estimulam sua autonomia individual.

Cineclube como aparelho de hegemonia

Mas essa identidade da comunidade, discutida mais acima, não está dada, ela é frequentemente, quase sempre, alienada, enviesada, parcial e dirigida. Ela é substancialmente dependente da ideologia dominante, que lhe é externa, mas que se insere nas consciências individuais e nas formas de convívio de múltiplas maneiras: pelas relações de trabalho, pelas instituições que participam da vida cotidiana – como as igrejas, especialmente as evangélicas, mas também as escolas e, hoje, especialmente os meios de comunicação: a televisão, os computadores, os celulares, etc. Uma identidade emancipada geral não existe ainda; ou melhor está escondida, subalterna, sob outras formas dominantes, pois as forças hegemônicas representam fundamentalmente o que é externo à comunidade, à sua identidade e aos seus interesses. De certa forma, há que construí-la, resgatá-la dos escombros, libertá-la do entulho ideológico que a recobre.

Essa cultura de certa forma subterrânea, a cultura dos segmentos subalternos da sociedade, a cultura popular enfim, é, em grande medida, oral. É uma das razões de sua não permanência, e de não alcançar ou não ser significativa nos meios institucionais dominantes – aos quais, em princípio, não tem acesso, pois não tem os meios para os produzir. A própria cinefilia elitista se faz institucional justamente pela via da escrita e da autoria, da identificação de um empreendedor, de um proprietário, de um autor. A cultura oral, por outo lado, é essencialmente coletiva, anônima, democrática, uma cultura de todos transmitida informalmente dentro do seu próprio ambiente, comunitário. Vulnerável em seu formato não fixado por nenhum suporte físico – e pela ausência de reconhecimento institucional. É também, principalmente, local, no sentido de que praticamente não circula através dos grandes meios sociais de comunicação, controlados pelo capital. Apesar disso, tem uma dimensão social bem mais ampla, pois corresponde a uma realidade partilhada com o conjunto dos trabalhadores.

São justamente os meios audiovisuais que tornam possível o registro, a divulgação e a conservação da cultura oral e local: a fotografia, o registro sonoro, o cinema e todos os outros. Só mais ou menos recentemente, e hoje como nunca antes, tornou-se possível tirar da marginalidade e do esquecimento as diversas manifestações culturais do povo. Mas, como o problema na verdade não é técnico, mas político, isso ainda não acontece.

O audiovisual, ou melhor ainda, o conjunto de meios de comunicação que existem hoje levaram o patamar da representação audiovisual da realidade a um nível muito mais amplo do que o cinema fazia – ou do que era legitimado como cinema. Essa representação é fundamentalmente tributária do cinema, ou mais exatamente do filme, principal base narrativa das formas que reúnem imagem, som e escritura. Mas novas formas também já estavam em germe no cinema – ele mesmo também tributário de outras formas de expressão. O jornal, em suas formas filmadas, radiofônicas, depois televisivas. Os espetáculos - que também eram filmados, como as lutas de boxe que fascinavam o público feminino bem no início do cinema -; o futebol e outros esportes dos cinejornais e dos sábados ou domingos na televisão; as óperas que se veem nos cinemas de hoje. Coerentemente com a visão elitista preponderante, essas formas menos legítimas, de interesse sobretudo popular, também foram abandonadas pela grande maioria dos cineclubes (embora a produção de noticiários, por exemplo, fosse uma das principais atividades de muitos cineclubes operários nos anos 30, e de coletivos de produção mais ou menos cineclubistas até a atualidade).  

Os cineclubes que fica(ra)m presos a um modelo cinéfilo, elitista, datado, reduzem as  dimensões de sua esfera de pertencimento. Perdem, ou abandonam, o público mais amplo do audiovisual: de fato, muitos cineclubes giram em torno de comunidades etárias mais reduzidas ou de grupos de cinéfilos de vários tipos, até os “politizados”, que não constituem uma amostra representativa das comunidades mais amplas onde atuam. Ou limitam-se a trazer públicos mais amplos de forma extremamente esporádica, efêmera, como nos projetos com crianças, presidiários e semelhantes. A atividade exclusiva com o próprio cinema – ou mais exatamente o filme – implica hoje numa redução dessa esfera, pois o “audiovisual do povo” – ou ao contrário, o audiovisual contra o povo, aquele que lhe é imposto – reúne muito mais formas de apresentação, representação e recepção. Restringir-se à exibição de filmes equivale a demitir-se da dimensão de criar, de se expressar pelo cinema e pelas múltiplas formas audiovisuais. Implica em receber (em não produzir) notícias e interpretações comprometidas com o poder vigente, em não conhecer nem divulgar as notícias locais ou de interesse da comunidade do cineclube. Significa não coletar, conservar e promover as formas da cultura, da memória, da identidade de seu público. Atuar exclusivamente com filmes de cinema implica em excluir as formas seriais veiculadas em streaming ou na televisão, acarreta  a recusa dos espaços de convívio virtual e real dos jogos audiovisuais, as formas de comunicação pela internet e todas os formatos de recepção que não o da grande sala retangular. Cada um desses casos representa um espaço de pertencimento perdido, uma possibilidade de autoformação crítica abandonado, um público excluído. Um recuo ideológico e político.

Na ausência da produção e divulgação da cultura do público, o que existe, as instituições que fazem o papel que seria do cineclube, mas com sinal inverso - isto é, para alienar, aliciar e controlar o público - são os meios controlados pela indústria do audiovisual. O cineclube é essencialmente o seu avesso, o embrião de uma futura expressão e comunicação audiovisual livres. A vocação do cineclube é substituir completamente o cinema e o audiovisual do sistema – e não gerir pequenas capelas de culto ou de “alfabetização” para o bom cinema. A atividade do cineclube constitui-se na construção de um novo audiovisual em todos os seus sentidos e possibilidades – e como tal, faz parte da construção de uma nova sociedade. Representa a edificação de uma instituição fundamental dessa sociedade futura. Antonio Gramsci, teorizando sobre o processo de hegemonia, salientava a importância da construção dessas instituições, pois esse processo é parte da viabilização da própria sociedade futura. Mas ele também lembrava que uma instituição só pode se tornar hegemônica se for superior “moral e intelectualmente” à existente. Em outras palavras: o cineclube, a instituição audiovisual do público, tem que ser melhor, e superar as diferentes práticas e instituições que compõem o audiovisual a serviço da classe dominante. Ser melhor significa corresponder, responder melhor às necessidades e possibilidades das suas comunidades, do seu público. E fazê-lo de forma mais eficaz.

Hoje, mais que nunca, o cineclube tem condição de exercer esse papel – ainda que tenha um bom caminho a percorrer. Tem essa possibilidade porque, para começar, representa embrionariamente a superação da divisão de trabalho – e consequente alienação - criada pelo sistema comercial. A superação da divisão entre produção e consumo, entre criação e recepção ou entre autor e espectador estão ao alcance com a revolução digital e a universalização da rede de comunicação autônoma. Podem-se unificar no cineclube todas as ações separadas pelas formas que priorizam o lucro privado sobre o valor social real. Hoje, mais do que nunca, é possível visualizar a integração entre criação, produção, difusão, recepção e preservação num mesmo espaço - real e virtual - dirigido e controlado pelo público.

Felipe Macedo                                         
Montreal, 30 de março de 2020 (em quarentena)