terça-feira, 22 de junho de 2021

 

 

             Cineclubes? Presentes!

                     


500.000 mortos, e provavelmente mais uns 30% não comunicados devidamente. O que é “30%”? São outros 150.000. Mortos. Certamente vamos ultrapassar os Estados Unidos em mais um ou dois meses: seremos campeões! Pátria amada, Brasil! 

Foram cerca de 18.000.000 de contaminados – também subestimados. Os especialistas avaliam que cerca de 15% destes – quase 3.000.000 - estão sequelados, em diversos níveis de gravidade, e levarão meses para se recuperar. Isto é, os que se recuperarem, pois alguns – uma minoria, ora, desses 3.000.000 - terão problemas permanentes. Haveria que se contar igualmente os que sofrem de outras doenças ou precisam de intervenções ou tratamentos hospitalares e que morrem por falta de atendimento, de vagas em UTIs e de outros procedimentos clínicos. Aí também morreram centenas de milhares. Quantas pessoas são atingidas afetivamente, moralmente, financeiramente por esses “números”? Quantas famílias perderam sua principal fonte de sustento? Quantas crianças ficaram órfãs? Milhões...

No entanto, fora desses “poucos” milhões atingidos diretamente – no total “apenas” uns 10 ou 15% da população brasileira – estamos tratando essa questão como estatística mesmo, como números abstratos, como um tsunami que acontece na China, um terremoto na Indonésia, países onde as vidas valem pouco no ranking do capitalismo global, no mundo controlado, explorado e desprezado pelas classes dominantes dos países euronorteamericanos brancos, cristãos. Como nós, que estamos adormecidos, insensibilizados, ou de tal forma explorados que praticamente não podemos oferecer resistência. O mesmo acontece com o outro genocídio, esse permanente, secular, de negros, de pobres, de miseráveis, da população LGBTQIA+, das mulheres... Os vulneráveis como se gosta de dizer, os dispensáveis, os invisíveis, que são, no nosso País, mais de 70% da população. Os jornais dão como notícia quase corriqueira que, neste último ano e meio, 52% da população brasileira tiveram, pelo menos, “alguma dificuldade” para se alimentar! 10% passam fome mesmo!

         Mas não. Não é uma questão de insensibilidade nem de alienação. Nossa situação é especialmente difícil: nossa história de escravidão e exclusão; de domínio ideológico de religiões autoritárias – católica, evangélica -, vendendo uma salvação ao alcance de quem se submeta sem questionar; de fragilidade das classes sociais, com uma burguesia oportunista, subserviente e, sobretudo, sempre cruel, e com os setores populares superexplorados, desprotegidos juridicamente, perseguidos por uma polícia ineficiente, corrupta e assassina. Desorganizados. E além disso ainda temos um boçal na presidência, cercado de fascistas, civis e militares. Não é pouca desgraça.

 Eu sabia, ao começar a escrever este texto que, além da emoção por tantas mortes evitáveis, estaria também preso a uma certa obviedade, uma repetição de comentários sobre o que todo mundo que poderá ler isto já conhece, já sente. Mas que talvez não esteja conseguindo transformar em ação real, política, na direção absolutamente indispensável de derrubar esse aprendiz de ditador e levá-lo, junto com seus asseclas, à justiça e à prisão.

 Muita gente resiste, é claro. Segundo matéria da Folha de São Paulo, a segunda manifestação contra Bolsonaro, pela vacinação e auxílio emergencial de 600 reais, teve o dobro de participantes em relação à primeira. Foram, segundo o jornal, 750.000 em todo o Brasil – acho que foi mais, mas como saber realmente? O mesmo jornal publicou outros números – e as fotos da ocasião, principalmente o discurso de Bolsonaro no Ibirapuera, mostram bem -, desta vez com uma fonte bem séria: o pedágio por que todos os bolsomotociclistas passaram. Os brucutus (uma ofensa ao personagem dos quadrinhos do meu tempo) nunca foram mais de 6.000 (do outro lado, na Avenida Paulista foram pelo menos 100.000).

A resistência existe, cresce, se expande, marcando um avanço importante na consciência popular. Mas esse avanço ainda é insuficiente – e a cada dia morrem mais de 2.000 pessoas. É preciso dobrar os números de novo, e redobrar, decuplicar. Só o povo derruba esse troço!

Às vezes o óbvio se esconde em plena vista. Vivemos numa pandemia. Vivemos no país do Bolsonaro. Muita gente se indaga se haverá um golpe. Ora, que ele, o Bozo, pensa o tempo todo em articular um golpe é evidente. A sua capacidade de fazer isso pode ser debatida, mas a intenção é indiscutível: e é certo que haverá violência – com sua provável derrota nas urnas, mas possivelmente até mesmo em caso de vitória (argh!). Seus seguidores: o movimento fascista; os PMs ressentidos e seus primos, os milicianos; setores das forças armadas (cuja extensão ignoramos); os facínoras armados com mais de 1.000.000 de fuzis, pistolas e revólveres postos em circulação por este governo, vão sair por aí atirando. Em pessoas. Matando, como fazem em seu cotidiano de policiais sanguinários e/ou em seus sonhos ressentidos de machos inseguros. Não estamos em um normal da pandemia ou da pós-pandemia; é uma emergência, é preciso agir! Agora!

     Uma vez, conversando com o cineasta chileno Miguel Littín, conhecido por seus filmes sobre a ditadura em seu país, ele comentou como uma espécie de piada: “Naquele tempo a gente passava quase qualquer filme e debatia... Pinochet.” Fazíamos o mesmo nos anos 70 e 80, contra a nossa própria ditadura. A situação atual é muito parecida, mas ainda mais mortal, mesmo se comparada à ditadura chilena que, nesse quesito, nos ganhou de longe naquela época (se é que é possível comparar). Por isso falo dos cineclubes. Há uma certa mobilização cineclubista no ar, não apenas nas sessões e debates virtuais, mas também em encontros, oficinas, debates organizativos que se tornaram muito mais fáceis com os recursos midiáticos de hoje. E qual é o papel social prioritário dos cineclubes?


Não há tempo a perder: tempo é morte no Brasil


Então lanço um apelo: não é hora de “alfabetizar o olhar”, de discutir linguagem[i]. É urgente mobilizar consciências! Nós, cineclubes, temos que engrossar esse movimento de avanço da consciência democrática e transformadora. Não há tempo a perder: tempo é morte no Brasil. O papel dos cineclubes, nesta hora, é muito importante. Não é por isso que fazemos cineclubismo, ainda que de formas e com concepções diferentes? Pela vida.

Os debates, as lives precisam mobilizar as mais amplas parcelas do público! Não é hora de debater Bergman, mas sim de desnudar o nosso aspirante (por enquanto) a Pinochet. A linguagem cinematográfica, importante sem dúvida, fica para depois da tragédia, na reconstrução. Oficinas de formação, ou para participar de editais, devem ser articuladas com a organização e mobilização da resistência: não é uma coisa técnica.

É hora de fazer uma programação política, combativa, comprometida com a causa da defesa da democracia e da vida. Bem sei que não é o filme que resolve isso, é o debate. Mas desconfio que essa linha de trabalho, neste momento, com filmes que remetam à discussão do que todos estamos vivendo, provavelmente reunirá mais público, aproximará muito o cineclube e a comunidade.

Creio ainda que esses debates, com o público ou entre cineclubes e redes, devem ser realmente interativos, deixar fluir livremente as opiniões e as emoções (porque o Brasil nos emociona): essas lives com um grupinho de convidados que fala, em que os participantes – o público – só pode escrever comentários no chat, deveriam ser realmente interativas. Todos devem poder falar, mesmo sob o que alguns veem como risco de perder um pouco o controle, a ordem. Afinal, que ordem se está querendo preservar?

Os cineclubes, que hoje incorporaram a capacidade de produzir, precisam documentar nossa tragédia em sua própria comunidade. Encontrar suas manifestações locais, documentá-las, divulgar, denunciar, discutir com suas comunidades. Para além das construções mais elaboradas dos documentários, os noticiários e cinejornais são uma tradição dos cineclubes operários dos anos 20 e 30 (as Ligas de Cinema dos Trabalhadores, que existiram em todo o mundo, por exemplo), que se estende pelos grupos militantes latino-americanos, do Cine de Base argentino até o Grupo Ukamau, da Bolívia, ou o Chaski, do Peru, hoje em dia. Como foram atingidas as famílias locais, que ações de solidariedade material e proteção sanitária foram criadas pela comunidade? O público gosta de se ver na tela, como todos sabem; a questão real é que o público deve ocupar as telas! Deve ser o sujeito das suas narrativas.

Uma outra tradição cineclubista e proletária, que vem até de antes, do século 19, é a dos Tribunais. Hoje a gente descreveria esses tribunais como performances, teatralizações de temas: problemas, ou indivíduos e organizações que os provocam, que afetam as comunidades. Monta-se um tribunal, com juiz(es), advogado(s) de acusação e de defesa, e testemunhas. Provas são apresentadas e discutidas; os jurados são o público[ii]. A questão em julgamento pode ser o Bolsonaro ou outro político, o combate à pandemia, um caso de racismo, um abuso... O que, enfim, o cineclube decidir que é relevante, oportuno. Uma variante de tribunal pode ser a organização de uma CPI – uma Comissão Popular de Inquérito – com atores (pessoas da comunidade ou mesmo profissionais) representando diferentes figuras: o Pazuello, a Capitã Cloroquina, o Renan Calheiros, os senadores bolsonaristas e por aí afora. Além disso poder ser realizado virtualmente, como na CPI do Senado (e em muitos tribunais de verdade), filmes e matérias jornalísticas podem intercalar as intervenções, constituir provas.

Bom, essas são apenas algumas sugestões, contribuições se ajudarem de alguma forma: a imaginação dos organizadores e a participação do público é que determinam o acerto e o sucesso de todas essas iniciativas que, de certa forma, ousei propor. Peço desculpas pelo texto longo, mas talvez muito incompleto; é em boa parte um desabafo diante dessa indescritível tragédia em que se transformou nosso País.

Abaixo Bolsonaro!

Vacinação para todos!

Auxílio emergencial digno até que todos estejam vacinados!

 

junho de 2021, Ano II da Pandemia

 

 



[i] Todas essas expressões: “alfabetizar o olhar”, discutir linguagem ou “programar Bergman” são simplificações que não devem ser entendidas literalmente, mas como uma provocação e uma incitação a uma prática mais politizada, também no sentido mais amplo – e, ao mesmo tempo urgente - deste termo. Trata-se de articular os recursos e os saberes dos cineclubes, como estes puderem organizá-los, para ajudar a promover uma mobilização social suficiente para deter este presidente genocida e combater a pandemia. Só o povo organizado...

[ii] Há uma cópia ruinzinha, mas que vale muito a pena ver, do filme Tribunal Berta Lutz, do João Batista de Andrade, cobrindo o tribunal organizado por feministas e pelo Cineclube Nós Mulheres, em 1982: https://www.youtube.com/results?search_query=tribunal+berta+lutz