Sai da frente!
domingo, 12 de junho de 2022
Pressupostos indiscutíveis
postos em questão[1]
Muitos dos textos que temos debatido, particularmente
de autores nacionais, repetem diversos conceitos que, no entanto, nunca são analisados
ou explicados pelos responsáveis, que os tomam aparentemente por evidentes.
Essa “evidência” muitas vezes ultrapassa até mesmo os textos, e o País,
constituindo denotações consolidadas nos nossos tempos e lugares. São sentidos
hegemônicos. Acho que é uma doxa, ainda que frequente no ambiente acadêmico, e
não uma episteme. Considero que vários desses conceitos indiscutidos
constituem, na verdade, formas ideológicas, e mesmo, que sua adoção automática também
indica esse caráter preconceituoso. Em outros casos esse conteúdo não se
expressa em conceitos tidos como irrefutáveis, mas perpassa como um sentido
igualmente inquestionável certas formulações: são bases implícitas,
subjacentes, de argumentações que subentendem seu compartilhamento pelos
leitores. São estruturais, no sentido com que se aplica esse adjetivo ao
racismo que perpassa nossa cultura, por exemplo. De fato, penso que os dois
processos – conceitos e pressupostos - se imbricam, se somam, em diferentes
níveis de sua enunciação ou naturalização. É o que quero discutir neste texto. Os
temas que identifico aqui são, por vezes, muito complexos e amplamente
elaborados em obras de prestígio. Minha intenção é mais modesta: como militante
comprometido com a teoria que norteia minha práxis, quero expor minhas
reflexões e críticas no âmbito dos trabalhos que desenvolvemos no PEC.
Arte - estética
O conceito de arte que perpassa praticamente todos os
discursos decorre da valorização de particularidades, que se passou a distinguir
a partir da Renascença e do capitalismo mercantil. Sua sistematização mais
científica – outro conceito fortemente ideologizado – é de Baumgarten, em
meados do século XVII, com sua Estética[2].
Essa “ciência”, marca daquela transição de paradigmas, veio a calhar: serviu
para explicar (e aí nasceu também a “crítica”) e justificar a atribuição de
valores – estéticos e monetários – às pinturas e esculturas expostas nos
grandes salões da época. A originalidade – de certa forma a aura, conforme
Benjamin[3] - das
obras de arte, foi a primeira base do seu valor nos tempos modernos. Originalidade, claro, quer dizer autoria,
através do estilo, técnicas, etc., que embasam o caráter único daquela
mercadoria. Embora hoje esse valor tenha sido acrescido de outras características,
como a raridade (autor morto vale mais), o lugar no mercado, etc., e o processo
seja escandalosamente evidente, ainda usamos uma outra valorização, mais nobre,
asséptica, muitas vezes transcendente, metafisizada, para tratar com esses
objetos. Seu valor de uso, que é subjetivo, quando transubstanciado pelo
mercado, nos aliena, nos separa do objeto e introduz uma espécie de caráter
sublime, fora da realidade material e tangível, especialmente no discurso que
utilizamos. Sensibilidade como processo imanente da consciência, como expressão
da Ideia e do Espírito.
Antes do capitalismo a arte tinha outro sentido, mais
enraizado no social: reconheciam-se as habilidades, a “arte” de produzir certas
obras, reconhecíveis pelo seu valor de uso. A autoria era um conceito raro e
praticamente inútil – na maioria dos casos ele foi atribuído mais recentemente,
retrospectivamente, dentro dessa mesma lógica de identificação e valoração.
Homero ou Heródoto são construções, aproximações sobre uma larga tradição oral.
Já em outro momento, quem sabe o nome dos arquitetos das grandes catedrais
medievais?
As artes, as diversas formas de expressão de sentidos,
de linguagens que reconhecemos desde sempre, certamente existem em sua dimensão
própria. Mas, ao invés desse caráter excepcional e individual que assumem em
boa parte do discurso, creio que constituem um dos atributos do ser humano
genérico, como diziam Marx e Engels: são formas de expressão, linguagens
desenvolvidas numa escala muito mais avançada que outros animais (que, no
entanto, manifestam essas capacidades de muitas maneiras[4]). Descrevê-las
como “mais avançadas” talvez seja também uma espécie de abordagem ideológica,
no caso antropomórfica, já que valorada sob essa perspectiva. De qualquer
forma, seu desenvolvimento se deve às formas especificamente humanas, baseadas
no trabalho – na transformação da natureza para sua subsistência – e nas
relações sociais, atributos e determinantes do ser humano genérico. O ser
humano não desenvolveu apenas a fala – de fato, uma mistura de oralidade e
expressão corporal – mas igualmente outras formas de comunicação e expressão,
para compartilhar sentimentos, desejos, fantasias, medos, etc. As religiões
nasceram nesse ambiente, por exemplo, entre outras instituições.
Para não ficar só em Marx, talvez se possa seguir isso
através das ideias de Nelson Goodman[5],
que propôs uma teoria dos símbolos para o estudo do que chamamos de
Estética como um conjunto de linguagens. Para Bakhtin, a fala, ou mais
precisamente a enunciação, isto é, o sistema de símbolos orais e gestuais em
sua realidade concreta de comunicação social, constitui a linguagem mais
essencial: todos os outros sistemas de símbolos, como as artes e outros,
operando em níveis diferentes de representação do real –
sensações, intuições, alucinações - são apropriados em última instância,
referidos e dialogados socialmente através da palavra[6]. Até
mesmo o que ele chama de discurso interior, o inconsciente para Freud. E esses
sentidos, produzidos por todas as linguagens, são produtos do diálogo social, determinados
pelas relações sociais, e estas, pela organização do trabalho nos diferentes
contextos históricos. As incontáveis Estéticas produzidas desde Baungarten
são justamente tratados que buscam entender e explicar as linguagens que
chamamos artes – e eventualmente, em certos casos, buscar uma essência imanente
comum a todas elas, fora do social. A classificação das artes varia também
conforme o contexto histórico: pode incluir ou não a culinária, a costura... O
cinema levou décadas para ser reconhecido institucionalmente, embora o público
o tivesse adotado quase imediatamente.
Essa ideia de arte está presente, sobretudo
subjacente, a uma tradição que afeta, influencia, orienta de muitas maneiras o
cineclubismo, seja nas suas formas mais cinéfilas e elitistas ou mesmo nas
práticas consideradas mais progressistas. Os pares ideológicos que
discuto a seguir apoiam-se, em muitos casos na hoje bastante diversificada práxis
de inspiração cineclubista, nesse alicerce ideológicamente corrompido.
Gosto popular como evidência de mediocridade – e seu
corolário, a superioridade do gosto burguês
Na categoria do ideológico subjacente, impronunciado, estrutural, está essa concepção da vulgaridade – a palavra já diz tudo: do vulgo – do popular, das massas, que só existe conceitualmente em relação dialética com seu oposto: a superioridade do gosto burguês. Porque o gosto, no capitalismo em que vivemos, é burguês, parte importante da hegemonia da classe dominante. A prevenção contra o gosto das massas é uma postura de superioridade que implica numa adesão subliminar à classe dominante, que se reserva outras esferas, outros gostos, outra “cultura”[7]. O cineclubismo da cinefilia foi construído sobre essa premissa. E contamina, aparentemente de forma imperceptível, os cineclubes e quejandos até hoje. Noel Burch tem citações do desprezo que Louis Delluc enunciava pelo populacho[8]. Jesús Marin-Barbero enfatiza essa questão no campo da televisão na América Latina[9]. A contradição desse preconceito é evidente no caso do cinema, como adiantei no final do outro “verbete”. Os inventores da cinefilia culta propugnavam por um cinema que não se reduzisse aos limites estabelecidos pelo comércio: pela experimentação, pela originalidade, e pela autoria, em oposição ao primado do interesse financeiro, que supostamente atendia à vulgaridade desse cinema consagrado pelo gosto popular. Mas não resistiam a Chaplin e outros produtos americanos apreciados pelas massas, ou aos filmes do expressionismo alemão, gestados na UFA e, também estes, grandes sucessos. E muito do cinema que rejeitavam foi reconhecido em outros contextos, como as séries de Feuillade (Fantomas, Judex, Les Vampires), por exemplo, pelo movimenturrealista.
Musidora, como
Irma Vep em Les vampires; como Diana Monti, em Judex; René
Navarre e o cartaz de Fantomas.
O cinema brasileiro, aliás, viveu essa condição de “exílio estético” a vida toda. Paulo Emílio, que também foi preconceituoso por algum tempo, criticava o público popular nos anos 50, no Estadão[10]; mas alguns anos depois, na Trajetória no Subdesenvolvimento[11], mostrava que só superando sua postura colonizada e discriminatória poderiam as classes médias superar seu próprio atraso. Ele também já dizia, em suas primeiras andanças pelo cinema brasileiro, no tempo das primeiras Retrospectivas da Cinemateca, que não conseguia encontrar qualidades nos filmes de então, mas que as via em profusão nas fitas mais antigas, vistas com “outros olhos”. Nós também, hoje gostamos das Chanchadas, de Oscarito e Grande Otelo (às vezes até sem ter visto os filmes), do Mazzaropi, dos Trapalhões. Talvez a Xuxa seja um pouco mais difícil...
Mazzaroppi em Sai da Frente,
1952; cartaz de Amor, estranho amor, com Xuxa, 1982, e cartaz de Os
Saltimbancos Trapalhões, 1981
Tive a oportunidade de fazer o curso de Cinema Brasileiro com o Paulo Emílio, na primeira metade dos anos 70. Ele tinha uma didática muito especial. Para começar, dizia que “pretender ensinar alguma coisa era bobagem”. Seu curso consistia em vermos “tudo o que estava passando”, isto é, todos os filmes brasileiros que estavam em exibição nos cinemas comerciais. Isso queria dizer, basicamente, as pornochanchadas, as únicas produções nacionais que tinham interesse para os exibidores[12]. As aulas eram dedicadas a discutir os filmes vistos. Eventualmente, dessa discussão extrapolávamos para outras questões do cinema brasileiro. Mas o mais importante é que a base dessa pedagogia era a compreensão de que a “mediocridade” que identificávamos naqueles filmes era a mediocridade do Brasil, nossa e do nosso tempo. Não era uma realidade separada da mediocridade do discurso empolado e de difícil compreensão do Pasolini de Pocilga, por exemplo, que o Paulo Emílio tratou de “miasma intelectual” no Estadão, e por causa disso perdeu o emprego. Mojica, o Zé do Caixão, é cinema de arte? Candeias? Dias Gomes? Bom, este último inspirou uma Palma de Ouro. Filmes premiados em Cannes são de bom gosto, quase certamente, mas isso já não é tão certo para todos que recebem um Oscar (o Kikito do cinema americano).
A Super Fêmea, 1973; Esta noite encarnarei
no teu cadáver, 1967; Pocilga, 1969; Zézero, 1974; O
Pagador de Promessas, 1962.
Penso que esses exemplos demonstram que não há, na realidade concreta, dois ou mais níveis, ou fronteiras claras que separem como gostos, valores estéticos distintos, o que é visto num determinado contexto histórico – além das limitações econômicas, claro. Como, aliás, também mostra Antoine de Baecque: entre as diversas igrejinhas da cinefilia parisiense estavam os pepluns, com Maciste[13] e outros heróis de um certo cinema italiano. Não se trata de negar a existência da mediocridade ou de outras pulsões, mas compreender que elas fazem parte de uma totalidade que não pode ser separada conceitualmente numa hierarquia de pretensas qualidades construídas e divididas artificialmente.]
Maciste contra Hércules; Maciste contra o Fantasma; Maciste contra o Ciclope, todos de 1961
A ideia predominante, de resto internacionalmente, de
promover um cinema diferenciado, “melhor” que um outro (talvez se pudesse
abordar esse fenômeno a partir do conceito de alteridade) e de “ensiná-lo” a um
público menos preparado, continua sendo essencialmente a base das práticas
cineclubistas, ainda que muitas vezes sem uma clara consciência disso,
disfarçado, atenuado em discursos “progressistas”. Numa expressão que não é
minha: a ideologia enxarca nossos valores, sobretudo os das classes médias[14].
Esse preconceito classista é o indicador mais
essencial, e também o mais profundo, tanto na análise mais acadêmica do cinema
e das outras mídias como na avaliação das práticas cineclubistas. No caso
brasileiro, essa prevenção solerte - porque ninguém admite, nem mesmo em seu
íntimo, e, de fato, provavelmente nem se dê conta - é vizinha do preconceito
racial, já que, no caso brasileiro, socialmente não é possível separar a cor da
pele da ideia de povo.
Entretenimento e lazer versus conteúdos
profundos e engajamento social
Este item é praticamente uma extensão do anterior. O
gosto popular, além da mediocridade, nessa perspectiva se confunde, se mescla
com a alienação, identificando no cinema apenas uma “função de distração”.
Kracauer, em O Culto da Distração[15],
escrito em 1926, já demonstrava a contradição da distração oferecida nos
palácios de cinema de Berlim; resumindo: a fuga que pretendiam oferecer ao
público, às massas de trabalhadores, apenas evidenciava o caos em que viviam: “(as
massas) ...apenas permitiam tão facilmente serem induzidas à estupidez
porque estavam muito próximas da verdade”. Hoje diríamos que os
super-heróis propiciam uma sublimação da condição de vulnerabilidade material e
moral do espectador. Independentemente da eventual identificação, projeção,
transferência da potência desses seres imaginários, será que eles não produzem
também, como aponta Kracauer, a sensação oposta, de fraqueza e insignificância,
a saída do cinema como o revertério de uma droga? No outro lado, e notem que estamos sempre
tratando de pares de sentido, ainda é o pensador alemão que faz
referência a práticas de uma cultura pretensamente mais elevada “que na
verdade apenas exercitam formas anacrônicas que fogem às necessidades urgentes
do nosso tempo”[16].
Pelo menos nos países periféricos, onde a maioria sequer tem acesso ao cinema,
e isso há quase duas gerações, os cineclubistas ainda falam do cinema sob sua
forma mais anacrônica[17],
e através dele, da “alfabetização do olhar”[18] e
da politização das consciências – o que a vem a ser mais ou menos a mesma
coisa.
Como se a frequência geralmente eventual de uma
cerimônia precária – como são, em sua maioria, as práticas cineclubistas em
nosso meio – pudesse criar uma consciência qualquer. Nem mesmo a distração que
revela o caos, o conforto do xópim e das “áreas de alimentação”, essas sim
impactantes em sua irrealidade diante da condição da maioria dos brasileiros...
Ademais, se 10% vão ocasionalmente ao cinema (79% deles estudantes
universitários das classes médias e alta[19])
no Brasil, e 1% da população vê filmes brasileiros nas salas comerciais, que
índice poderíamos atribuir aos cineclubes? Mas isso não se aplica nesses
termos, claro. Mais correto seria nos perguntarmos quanto da comunidade em que
o cineclube atua o está frequentando? E, afinal, medir a frequência de salas
escuras já tem, hoje em dia, muito de uma “forma anacrônica” de tratar da
comunicação audiovisual em país periférico. Gramsci usava a expressão
“superioridade intelectual e moral” para descrever a condição necessária para a
hegemonia cultural dos trabalhadores. Ele certamente não estava falando de um
estilo mais apurado, mas da necessidade de que as formas de produção, circulação
e recepção de sentidos criadas pelo povo fossem melhores, mais ricas e verdadeiras
ao representarem o real, e eticamente válidas.
Cinema comercial versus cinema de autor
Ainda mais ou menos no mesmo registro, o par dialético
cinema comercial – cinema de autor é uma construção posterior à sua origem
inicial: a cinefilia. Certamente a ideia de cinema de autor, isto é, a primeira
concepção de que a medida de valor estético do filme era a originalidade, a
sensibilidade única, do diretor, surge com o primeiro período da cinefilia, ao
longo dos anos 20. Se Delluc não inventou a palavra cineclube, criou o termo
cineasta[20].
Mas aqueles editores de revistas, críticos e cineastas não se opunham ao cinema
comercial: reivindicavam uma abertura para as novidades, para a experimentação,
para as liberdades de estilo e linguagem – ao mesmo tempo em que defendiam a
indústria do cinema francês, na qual queriam ter seu espaço. A expressão cinema
de autor se institucionaliza mesmo no segundo grande período da cinefilia, ao
final da 2ª. Guerra Mundial e com o famoso texto de Truffaut, de 1954, nos Cahiers
du cinéma. É provável que a universalização do conceito de cinema de autor,
processo também propiciado pelo então grande número de cineclubes em todo o
mundo – a verdadeira vague daquela época – e pelo seu caráter mais
contestador, tenha naturalizado, de certa forma, essa oposição. Falsa oposição.
No entanto, como é evidente, o cinema de autor é um
cinema de ascendência pequeno-burguesa – e nessa medida se opõe parcialmente
ao cinema comercial, que representa o capital, a classe dominante. Os autores
em questão, em sua maioria (no caso parisiense Godard seria a grande exceção),
fazem um cinema sem engajamento social – e não estamos falando de cinema
militante – muitas vezes de invenção no plano da linguagem, outras vezes apenas
inócuo. Esse autor, como sua fração de classe, vive numa corda bamba, oscilando
ideologicamente entre os polos sociais mais relevantes. O que chamamos de
cinema de autor refere-se quase sempre a um cinema mais complexo e rico do que
a produção mais padronizada do cinema comercial. Também se confunde, por
extensão, com o cinema produzido fora da indústria, nos países que têm alguma –
como é o caso do Brasil. Nesses, a maior parte da produção – em títulos – é o
que chamam de independente (termo também bastante discutível). Esses autores,
assim como os de todos os outros países em que não há quase produção, até pela
situação periférica que ocupam, produzem um cinema muitas vezes mais instigante
em termos sociais e políticos. Mas raramente com ligações orgânicas com o povo[21]
que, ademais, tem menos acesso ao cinema e, particularmente, a esses filmes.
Em resumo, os autores, historicamente e, mesmo hoje,
em sua maioria, não se opõem ao cinema comercial, ao qual gostariam de ter acesso.
De fato, nos países mais avançados essa dicotomia já foi resolvida: os capitais
da grande indústria se associam aos chamados indies, independentes: lá o
cinema de autor aninha-se no cinema comercial[22].
A superação do cinema comercial, então, não passa por
essa falsa oposição, mas dependerá de um cinema ainda por ser construído – mesmo
que haja muitas experiências nesse sentido um pouco por toda parte e ao longo da
história do cinema. Penso que esse cinema se chamaria, provavelmente, de cinema
do povo.
Cinema amador e cinema profissional
Neste par ideológico, cinema profissional é mais simples de definir: é o cinema feito por quem sabe, tem formação, atende à demanda e às exigências do mercado, é produzido com intenção de fazer dinheiro: sob a forma de salário para os “profissionais”, e de lucro, para os donos dos meios de produção. A polissemia de cinema amador, contudo, é impressionante. A expressão nasceu com a criação do mercado caseiro de cinema, com o lançamento dos pequenos formatos, bem no início dos anos 20. Era um cinema para - na falta de uma expressão melhor, mais antiga, como a dos cinéfilos – os que também amavam o cinema, mas que, ao mesmo tempo, tinham que ter sua distância do mercado, isto é, do público, assegurada. Cinema amador, então, era o que hoje chamamos de filme de família ou doméstico. Como doméstico era o espaço a que ele devia se limitar. O investimento publicitário, na época, para consolidar essa esfera privada, foi impressionante. Mas alguns desses “amadores de cinema”, resolveram expressar-se através das novas tecnologias: o 16mm e o 9,5mm. Aí, cinema amador tinha que ser visto como algo incompleto, ou mal realizado – em contraposição ao profissional – e sobretudo diletante, sem expressão de valor, sem lugar no mercado. Até hoje essa é a maior barreira, a grande contradição, entre essa produção de certa forma livre e o mercado, onde os produtos encontram sua razão de ser: a condição de mercadoria. E, claro, o público, que consolida essa relação. Não apenas nas formas mais tradicionais de cinema essa condição persiste: mesmo nos espaços virtuais de comunicação, apenas uma minoria mais identificada com os valores do mercado alcança alguma audiência.
Publicidades Pathé Baby e Kodak 16mm, para a família
Apareceram os “clubes de cinema”, que se distinguiam
dos cineclubes de cinéfilos: reuniam amadores de cinema. Porém, logo certas
empresas começaram a usar os pequenos formatos: houve uma onda de salas
comerciais de cinema em 16 mm, e mais tarde as televisões passaram a usar a
bitola para diversas finalidades. Surgiu um mercado para filmes em 16mm,
principalmente. E o cinema amador passou a se chocar diretamente com o campo
profissional. Pior que isso, os formatos associados ao cinema amador também
serviram a um cinema militante, com vocação para se estabelecer nos
meios populares e não nos mercados. Outros segmentos também já faziam parte
desse cinema: o filme experimental, o filme científico, entre outros.
O cinema amador é, portanto, um rótulo e uma construção
sócio-política e ideológica, que identifica (mal) um grande campo do cinema que
não se realiza, não se identifica com o mercado, mas com o público, seja na
esfera mais privada, nos usos não ou pouco monetizados – como educação, ciência
ou experimentação – ou no âmbito mais direto da disputa social e política. Curioso
que o cinema de autor nunca se confunda com cinema amador (exceto, talvez, nas
fantasias dos realizadores amadores, isto é, os que não chegam ao mercado). Se
é verdade que há um cinema do público a construir, uma nova organização
da comunicação através das mídias audiovisuais a organizar, e sua base social e
material deve ser popular, então o que chamamos de cinema amador é um dos seus
elementos fundadores. Outro, no plano da organização, é (ou pode ser) o
cineclube. Ambos nasceram juntos, nos cinemas proletários do começo do século
passado[23],
e voltaram a se encontrar, de forma mais definitiva, com a introdução da
tecnologia digital e o estabelecimento da rede mundial de computadores e outros
equipamentos. Depois de um longo desvio pela cinefilia, a produção voltou a
fazer parte das práticas cineclubistas.
O cineclube como metonímia na educação (e alhures)
Como têm revelado os trabalhos[24]
de levantamento e identificação de textos universitários sobre o cineclubismo,
a maior parte dessa produção diz respeito ao “cineclube na escola” ou na
educação. No entanto, dos muitos que tive oportunidade de ler, nenhum explica,
mostra ou propõe de alguma maneira as formas de organização concreta
desses “cineclubes”. Na verdade, o uso desse termo é uma metonímia: o exercício
de exibição e discussão de um filme no lugar de uma forma mais permanente de
organização do público – ou de um determinado público: geralmente o da sala de
aula. Nos meus tempos de “ensino primário” até se passavam filmes, geralmente
na biblioteca[25]:
eram filmes educativos, do tipo que ilustrava como evitar doenças, e
eventualmente atividades de lazer. Em sala de aula, usavam-se gravuras coloridas,
penduradas na frente da lousa, com as quais deveríamos exercitar descrição,
narração e outras formas de discurso escrito. Um exercício muito produtivo.
Creio que o “debate” de um filme sob a direção de um professor é um exercício
do mesmo tipo, e certamente válido. Mas tem pouco a ver com a estrutura – e o
termo é bem útil e esclarecedor aqui – que constitui, de fato, um cineclube.
Exercitar os alunos na produção de filmetes (o termo
não é pejorativo), introduzindo-os a alguns recursos básicos de linguagem,
constitui um avanço muito significativo em relação à minha escolaridade de 60
anos (!) atrás. E já não era sem tempo. Mas é também mais um recurso didático,
não um cineclube. De fato, se trocarmos a palavra cineclube, em qualquer desses
casos, por cinema, acho que estaríamos ganhando no sentido. Cinema na escola;
cinema como linguagem e como dispositivo cultural, cinema como paradigma da
comunicação audiovisual. Não se faz um sindicato em sala de aula, ou uma
cooperativa, a não ser, talvez, como metáfora. No meu primeiro ano fizemos um
simulacro da eleição para governador de 1958, com alunos representando os
candidatos (Adhemar de Barros, Carvalho Pinto e Auro de Moura Andrade), emulando
os debates entre eles, com nossos títulos de eleitor, mesas eleitorais e
cabines de votação. Não tenho realmente a menor ideia de como ganhei, na
ocasião. fama de “comunista” entre os coleguinhas: aos sete anos de idade
(incompletos) nem eu nem eles sabíamos o que era isso. Afinal, eu “fui” o
Adhemar de Barros na brincadeira pedagógica. Mas a eleição se deu lá fora (e o
Adhemar não tinha nada de comunista).
Seria possível radicalizar esse raciocínio, e reconhecer o uso de cineclube como metonímia em várias atividades dispersas que, em muitos casos, contribuem ideologicamente para a descaracterização da tradição de organização do público para apropriar-se do cinema (ou em sua versão contemporânea, das mídias audiovisuais). Isso se dá com a redução metonímica do cineclube ao ato ou exercício de projetar um filme e debatê-lo: “vamos fazer um cineclube às 18hs”, “toda primeira quarta-feira de cada mês tem cineclube” ...
A superação dos modelos de escola e de cineclube
Eis aí outro vasto tema que apenas pode ser indicado
neste texto. No mesmo artigo[26]
que citamos em nota um pouco atrás, depois de várias considerações sobre os
usos possíveis de literacia e termos conexos, Mônica Fantin propõe:
“Ao abrir suas portas para outras direções além da
socialização de conhecimentos, a escola permitiria a entrada das mais variadas
culturas: a das mídias, a das ruas, a clássica, a moderna, a contemporânea em
suas mais diversas manifestações, e isso pode fazer a diferença. Atuando em
parceria com organizações culturais, associação de pais, professores e
moradores, cinematecas, universidades, as mídias poderiam aí ser usadas para
ampliar a expressão das vozes da triangulação estudantes-escola-família. Como
espaço para produção de rádios e jornais comunitários, vídeos e outros
materiais, as salas informatizadas da... (escola) ...também seriam espaço de cultura
"real e virtual, a que a comunidade tivesse acesso.”
Esta citação serve para resumir a ideia, de resto exposta de modo bem não muito preciso. Mas conciso como cabe aqui. Essa “escola”, então, estaria (estará?) na direção de superar a fronteira – conceitual e política - com um Estado radicalmente democrático, que também percorreria a trajetória da sua extinção. Voltando a Gramsci, a concepção do Estado ampliado, e a construção do Estado socialista que prepara um futuro em que ele mesmo deve se dissolver, vai nessa direção de juntar diversas práticas e instituições sob a direção de formas coletivas de gestão. Marx e Engels já chamavam os clubes de trabalhadores de formas do estado proletário, na metade do século 19[27]. O grande problema da citação acima é propor uma transformação, que deve ser radical, usando como exemplos e conservando as instituições como são atualmente. Elas também se transformarão, necessariamente. Penso que o cineclube – aliás sequer mencionado (em seu lugar estão as cinematecas), o que mostra um pouco sua falta de prestígio e sua desimportância social relativa – está vocacionado para reunir numa nova instituição, a instituição audiovisual da comunidade, os elementos constitutivos do dispositivo social de comunicação audiovisual. Ou seja: produção, circulação, recepção e conservação. A escola deverá ir na mesma direção, integrando-se, com outras práticas, na e sob a direção da comunidade.
[1] Comentários no contexto dos
textos discutidos no grupo de estudos sobre cineclubismo PEC-Ponto de Encontro
Cineclubista.
[2] 1750. Baumgarten, Alexander
Gottlieb.
[3] Benjamin, Walter. 1936. A
Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica
[4][4] Muitos pássaros decoram seus
ninhos, os exemplos de danças de acasalamento existem em várias espécies.
[5] Languages
of art – an approach to a theory of symbols. 1968. Indianapolis: Bobbs-Merryl Company
[6] Marxismo e Filosofia da Linguagem.
2014, (Volochínov) São Paulo: Hucitec
[7] Produto ideológico do século
19 com raízes da pseudociência da frenologia: cultura da testa larga, curta e
média (Highbrow, lowbrow, middlebrow).
[8] Burch, Noel. 2007.De la
beauté des latrines – pour réhabiliter le sens au cinéma et ailleurs. Paris : L’Harmattan
[9] Martín-Barbero, Jesús e Rey,
Germán. 1999. Los ejercícios del ver – Hegemonía audiovisual y ficción
televisiva. Barcelona: Gedisa Editorial
[10] Sales Gomes, Paulo Emílio. 2016. “Perplexidades brasileiras”, em Uma
Situação Colonial? São Paulo: Cia; das Letras.
[11] _____________________ . 2001. Cinema:
Trajetória no Subdesenvolvimento. São Paulo: Paz & Terra.
[12] Aqui há mais que simples
gosto popular: os exibidores pagavam os filmes, geralmente produzidos na Boca
do Lixo, a preço fixo. Por isso, além da frequência que alcançavam, sua parte
nas receitas não crescia proporcionalmente ao seu eventual sucesso, como era o
caso dos filmes estrangeiros, pagos com uma porcentagem sobre a renda.
[13] Maciste contra Hércules, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=X1mqQRG3a5o&t=19s. Mas houve realmente uma onda de
filmes do tipo.
[14] Trabalhei no departamento de
marketing da Rede Globo nos anos 80. As “análises” lá produzidas partiam do
axioma de que o gosto da classe A era idêntico ao das classes D e E (segundo
classificação da ABDV, Associação Brasileira de Dirigentes de Vendas). Os
setores médios é que são mais “sofisticados”.
[15] Kracauer. Siegfried. 1926.
“Cult of Distraction: On Berlin’s Picture Palaces”, em Frankfurt Zeitung,
março, 4. Publicado também em The
Mass Ornament, 1988. Cambridge: Harvard University Press. Há edição
brasileira.
[16] As traduções da versão em
inglês são minhas.
[17] No limite, há mesmo vários
casos de atividades de caráter cineclubista em 16mm ou em Super 8 mm.
[18] Recentemente vimos aqui no
grupo o texto de Mônica Fantin - em que ela faz uma e verdadeira exegese dessa
expressão, dissolvendo e relativizando seu sentido mais corrente que é o de
transmissão de códigos de leitura do texto fílmico para quem não os conhece.
[19] Duarte, Rosália. 2002. Cinema
& Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 14.
[20] Aristarco, Guido. 1961. História
das Teorias do Cinema. Lisboa: Ed. Arcádia, p. 113.
[21] Muitos cineastas e coletivos
de produção – que, entretanto, no mais das vezes não abandonam a superestimação
do autor – existiram e ainda existem, procurando estabelecer vínculos reais com
ambientes populares, sobretudo nos países periféricos e colonizados ou em
situações de forte mobilização social, como em 1968 na França e outros países,
ou tempos de ditaduras, essa paisagem tão latino-americana. No entanto, esses
exemplos são numericamente pouco relevantes dentro do amplo universo do cinema
de autor, são como exceções que confirmam a regra, e o caráter oscilante de sua
fração de classe.
[22] Poderíamos, ainda, debater
sobre quem é, efetivamente, o autor. Aqui estamos questionando a figura do
diretor, com quem geralmente se identifica esse personagem. No entanto, esses
diretores foram, originalmente, mais que isso: verdadeiros empreendedores, que buscavam
e reuniam as condições financeiras e técnicas para efetivar um projeto que eles
lideravam. Em diferentes contextos, compõem em variadas medidas com o sistema
de produção predominante em seus respectivos países. Até, como indiquei, quando
esse sistema prevalece. Mas esse já era o caso quando os Cahiers de cinéma
descobriram autores em plena Hollywood.
[23] Várias histórias do cinema
documentário estabelecem como marco inicial a produção do Cinema do Povo,
também considerado o primeiro cineclube por muitos.
[24] Sobretudo a pesquisa nos
arquivos acadêmicos oficiais, feitos por Alex Santos, e as que se estendem
mais, até a internet, como o trabalho de Gizely Cesconetto, ambos membros do
PEC.
[25] Fiz meu curso primário –
equivalente ao ensino fundamental 1, hoje em dia – no Instituto de
Educação Caetano de Campos, uma escola com muita estrutura, e um corpo docente
bastante capacitado, no tempo em que certas escolas públicas eram melhores que
todas as instituições privadas e a gente saia alfabetizado, no sentido
tradicional do termo, ao fim do primeiro ano.
[26] “Os cenários culturais e as multiliteracies
na escola”, em Comunicação e Sociedade, vol. 13, 2008, pp. 69-85
[27] Comunicado do Comitê
Central à Liga Comunista, 1850.