terça-feira, 24 de janeiro de 2023


 

 O cineclubista orgânico

Cineclubistas, primeiras gerações


Antes do Chaplin Club, de 1928, um denso nevoeiro recobre a ideia de qualquer cineclubismo no Brasil. Assim, não podemos encontrar até agora – o que não quer dizer que não tenha existido - uma figura como Gustave Cauvin, fundador do Cinema do Povo[1], em 1913, e que militou nos cineclubes populares franceses toda a vida, até sua morte em 1951. É difícil afirmar alguma coisa sobre personalidades cineclubistas[2] brasileiras antes daquele importante cineclube do Rio de Janeiro.


Sem entrar em maiores abstrações, como se formou, então, uma ideia de cineclubista no Brasil? Creio que a palavra cineclubismo, além de aplicar-se a um movimento ou momento dos cineclubes em escala mais ampla – o cineclubismo brasileiro ou latino-americano atual, por exemplo – também significa a imagem, a reflexão que se faz sobre o conjunto dessas práticas. Nesse sentido, o cineclubismo varia historicamente como ideário motivador de seus praticantes, seguidores ou outros: o cineclubismo é a ideologia do cineclubista.

Então, para começar, há uma variação generacional. Uma primeira tradição cineclubista pode ser inferida da conhecida referência do contágio de Paulo Emílio Sales Gomes pelo cineclubismo através de Plínio Sussekind[3], membro do Chaplin Club e passador do bastão cineclubista para a universidade fluminense e para os anos posteriores. Paulo Emílio é a face mais visível do Clube de Cinema de São Paulo e também a interface com a cinefilia e o cineclubismo francês e europeu das décadas de 40 e 50. O cineclubista brasileiro copiava ou reproduzia – o próprio Paulo Emílio ironizaria, em outro contexto, nossa atávica incapacidade de imitar - o cineclubista europeu. Hoje talvez chamássemos isso de modelo colonial de cineclubismo.

Nos anos 50 e até o início da ditadura militar, o cineclubismo cresceu em todo o Brasil, seguido da fundação de entidades representativas regionais e nacional e da realização de Jornadas de Cineclubes. Críticos de cinema ligados ao cineclubismo, na imprensa de vários estados; revistas próprias importantes, como a Revista de Cinema do CEC de Belo Horizonte; o Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas[4]; inúmeros boletins, eventos, reuniões regionais e Jornadas consolidaram uma ideia de cineclubista muito parecida com a da França, a mais influente[5]. O cineclubista era, então, um cinéfilo: um amante do cinema, dotado de uma erudição muito particular, autodidata, acumulada com a visão constante de filmes, quando ainda não existiam, ou estavam apenas começando, as instituições de ensino universitário de cinema. Entre esses cineclubistas surgiram importantes críticos de cinema, um pouco em toda parte, Brasil afora. Essa tendência a acumular conhecimento com filmes tem a ver também com a criação de arquivos: as cinematecas de São Paulo e do Rio de Janeiro são os grandes exemplos. E nesse mesmo caldo, os primeiros festivais, e ainda, depois, os cursos universitários de cinema.

Havia, também, como na França, cinéfilos mais extremados, que exageravam na cultura inútil, afetada, nos detalhes sem significado dos filmes, das vidas dos realizadores, atores e atrizes, e que foram bastante criticados pelo mesmo Paulo Emílio em sua coluna n’O Estado de São Paulo. Com toda essa diversidade de cineclubistas, no entanto, certamente essa foi uma geração definidora do próprio conceito. O cineclubista era agora mais um personagem no panorama social brasileiro - sobretudo do cinema – e mesmo com vínculos mais ou menos fortes com cineclubistas de outros países.

Para essa geração, de maneira geral, o cinema brasileiro não contava muito; não tinha a legitimidade dos filmes estrangeiros. Não tínhamos o cinema de autor, consagrado pela cinefilia parisiense. Mas foi dentro dessa primeira grande vaga de cineclubismo que se formaram, justamente, os autores do Cinema Novo. Foi como que uma “segunda geração”, formada naqueles cineclubes, mas mais marcadamente politizada, e que trouxe, de certa forma, para o modelo cinéfilo de cineclubismo, a agenda das questões nacional e popular. O campo da Arte, nos cineclubes, incorporou o viés antropológico e político da Cultura. O cineclubista cinéfilo “erudito” recebeu uma tintura política mais definida.

No entanto, é importante nuançar essas afirmações. O humanismo da vertente católica, uma das principais forças do cineclubismo no Brasil, já se colocava desde os anos 50[6] com uma dimensão também claramente política, um tanto mais conservadora. Com a criação das federações regionais e do Conselho Nacional de Cineclubes, cineclubistas católicos e universitários se enfrentarão em todas as arenas políticas do movimento, até meados dos anos 60.

Cineclubistas na ditadura militar

O movimento cineclubista nacional que havia sido construído desde o final dos anos 40 foi se estiolando durante o regime militar. Com o endurecimento ainda maior da ditadura a partir do Ato Institucional no. 5 (1968), e com o recrudescimento da Censura, os cineclubes e suas entidades federativas praticamente desapareceram – com a honrosa exceção do Centro dos Cineclubes de São Paulo, dirigido por Carlos Vieira desde 1956, e alguns poucos cineclubes do interior desse estado. A ditadura foi uma ruptura em mais de um sentido, e uma nova geração de cineclubistas iria aparecer, no início dos anos 70.

Começando nas universidades, onde a atividade mais política era fortemente perseguida, os cineclubes logo se constituíram como arenas importantes de debate. Essa politização da ação cineclubista levou à organização de exibições em bairros de periferia, à procura do povo, um pouco como havia acontecido antes, como no caso dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes-UNE. Em meio ao crescimento dos movimentos e organizações sociais, essas projeções, esses projetos de cineclubes logo adquiriram autonomia e expressão próprias. Na Jornada de Caxias do Sul, a maior já realizada, em 1978, havia cineclubes universitários e do ensino médio, cineclubes de bairros das periferias das capitais e cidades grandes, cineclubes sindicais, cineclubes feministas e cineclubes gays, como se dizia então. Nessa época pode-se falar de um cineclubismo – e cineclubistas – populares. Mas ainda incipientes.

Os cineclubistas que organizavam todos esses cineclubes eram comunistas, trotskistas, feministas, do movimento negro, de todas as orientações sexuais e políticas. À parte os enfrentamentos, menores, entre algumas dessas tendências dentro do movimento, havia o grande inimigo comum: a ditadura. E junto com esse forte impulso democratizador, que levou o cineclubismo para todos os ambientes sociais, houve também uma grande articulação orgânica do movimento, com a constituição (ou recriação) de diversas federações estaduais e regionais; com a reorganização da entidade nacional, o Conselho Nacional de Cineclubes[7], em bases bem mais democráticas e efetivamente nacionais, e com a criação da Dinafilme, importante iniciativa de distribuição de filmes (na época em película, é preciso lembrar) que operou em todo o Brasil, atendendo centenas de cineclubes e mesmo mais de mil pontos de exibição[8] ligados a outros movimentos sociais.

O cineclubista dessa geração era sobretudo um militante político e cultural – com as qualidades e defeitos que os horizontes políticos da época representavam. Havia uma forte identidade entre os cineclubistas, mesmo os adversários ideológicos, dentro de um movimento plural e diversificado, mas unitário, que se reunia com muita frequência, criando solidariedade e companheirismos em que esses militantes se reconheciam. Como grande parte dos países latino-americanos experimentava situações semelhantes de autoritarismo, uma solidariedade cineclubista continental, especialmente, e até mundial, com a participação do CNC na Federação Internacional de Cineclubes, também se constituiu.

O fim da ditadura, com o restabelecimento de um regime democrático liberal, e as grandes mudanças tecnológicas no campo do audiovisual que se iniciavam nos anos 80 foram, a grosso modo, as principais causas do esfacelamento do cineclubismo do período imediatamente anterior. A retirada do inimigo comum – a ditadura - talvez tenha exacerbado as muitas diferenças entre os cineclubistas, transformando-as em incompatibilidades: o fato é que o movimento se dividiu, se polarizou, como diríamos hoje - antes de se desorganizar. Aqueles militantes, em grande número, foram atuar nos campos políticos que se abriam: o movimento estudantil e o PT, principalmente. Por outro lado, o meio, a mídia – dizíamos a bitola – que os cineclubes basicamente utilizavam (a película de 16 mm) foi sendo retirado do mercado e do uso, substituído inicialmente por suportes meio precários, como as fitas Betamax e VHS; só um tanto depois viriam os DVDs e as formas de arquivo e de exibição atuais. Até a tecnologia influiu na crise de identidade que afetou o cineclubismo, os cineclubistas. Até o final da década de 80 o movimento – nacional, organizado – se dispersou completamente.

Entre os anos 80 e 90

Pode-se dizer que restou uma espécie de “núcleo duro” de cineclubistas, mas já não eram em grande número nem seus cineclubes operavam nos mesmos tipos de comunidades. Entre meados dos anos 80 e o início dos 90, esses militantes organizaram os chamados “cineclubes 35 mm”, de funcionamento diário e, inicialmente, de estrondoso sucesso sobretudo em São Paulo, no Rio de Janeiro e algumas outras capitais e cidades importantes. Sua proposta era “enfrentar o touro à unha”, disputando o público diretamente com os cinemas comerciais, mas mantendo a estrutura cineclubista: democrática, sem fins lucrativos.

Em resumo: o projeto não funcionou. Mas se fracassou, o fez, de certa forma, em grande estilo. Localizados em regiões centrais ou culturais de cidades grandes, esses cineclubes tiveram inicialmente um sucesso muito grande: atraíam milhares de espectadores por mês[9], superando mesmo a maioria das salas comerciais. Era uma programação diferente, com os grandes filmes do cinema mundial – além da produção nacional - que a Censura havia roubado ao público durante cerca de 20 anos. Essa dimensão de atuação, os números de frequentadores, e provavelmente seu caráter genérico[10] tornavam difícil estabelecer uma nova relação realmente associativa dentro desses cineclubes. E seu sucesso mobilizou os concorrentes comerciais, os interesses imobiliários (que queriam basear os aluguéis das salas em participação na renda), entre outros. Aluguéis mais caros, necessidade de filmes de maior renda: um círculo vicioso. Numa certa analogia com o que acontecera na França décadas antes, esses cineclubes pareciam mais cinemas de arte que cineclubes propriamente ditos. A maior parte deles, contrários ou incapazes de se tornar atividades comerciais de pleno direito, desapareceu. Um apenas, talvez o de maior sucesso, criou um novo modelo de negócio, híbrido, com forte influência cineclubista, e acabou se expandindo por praticamente todas as capitais do País, tornando-se um importante circuito comercial, “de arte”, em certo sentido, mas exibindo todo tipo de filme. Os velhos cineclubistas (da década anterior) que protagonizaram esse período eram relativamente em pequeno número. Foram mais exibidores não comerciais profissionais do que os antigos militantes que, entretanto, nunca deixaram de ser. Muitos deles voltariam de novo, no início do novo século.

Cineclubistas nos governos Lula

Retrospectivamente parece meio evidente: temos que fazer uma ligação direta entre o ciclo de cineclubismo que vai de 2003 a 2010 e os dois primeiros governos Lula. Como causa e efeito, mediados pela vida social. O cineclubismo brasileiro se reorganizou – e depois se desarticulou – em consequência direta dos governos petistas, sua condição política mais determinante.

Os dois governos com Lula presidente foram, de longe, os que mais legislaram e trabalharam com políticas culturais desde a redemocratização do País – e desde a proclamação da República mesmo, muito provavelmente. Foram os únicos a estabelecer uma política de Estado (além dos muitos programas de governo, às vezes equivocados) de longo e profundo alcance, com a proposta de criação de um Sistema Nacional de Cultura, integrando as esferas municipais, estaduais e nacional e instituindo algumas formas de participação da população nesse processo. Ainda que o Sistema não tenha sido inteiramente aplicado, sua influência definiu os paradigmas institucionais que ainda vigoram na maioria dos estados e em um número muito grande de municípios. Mesmo no governo de inspiração fascista, anticultural, de Jair Bolsonaro, leis inspiradas naquele modelo – as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo – foram aprovadas pelo Congresso, por consenso ou grande maioria, e aplicadas.

Em 2003, o governo estimulou a retomada dos cineclubes, reunindo velhas lideranças – dos anos 80 e 90 – e novos animadores cineclubistas. Foi organizada uma Jornada, em novembro daquele ano, em Brasília. Dali os cineclubes passaram a retomar a organização do movimento, em grande medida sob o modelo da experiência dos anos 70 e 80. E ali também começou o aspecto negativo das práticas do governo: sua forte intervenção no movimento. Com uma primeira resistência do movimento cineclubista reorganizado[11], o apoio do governo se retraiu. Ficou praticamente suspenso até a segunda metade de 2008, quando lançou efetivamente seus programas para o cineclubismo brasileiro: a Programadora Brasil e o Cine Mais Cultura. A primeira era uma distribuidora de filmes brasileiros em DVD e o segundo, um programa de distribuição de kits de projeção para esses filmes. Na verdade, os dois projetos foram apropriações de propostas cineclubistas feitas a partir das Jornadas de 2003 e 2004, que passavam, assim, a ser controladas pelo governo. Em resumo, o movimento cineclubista se submeteu a essa tutela. Seguiu-se um relativamente curto período – 2009 e 2010 – de grande efervescência, com a distribuição de várias centenas de kits de projeção e o cadastramento de um número correspondente de iniciativas, chamadas de cines, junto à distribuidora governamental. Isso tudo foi descontinuado no governo de Dilma Roussef e o movimento cineclubista, mais uma vez, entrou em um processo de desorganização que, com pequenas ocorrências que não são o objeto deste artigo, continua até os dias de hoje.

Mas, e o que aconteceu com a ideia de cineclubista naquele período? Começando com o papel do governo, acredito que ele contribuiu – sem ser a única causa - para a descaracterização do cineclubismo que se desenvolveu então. No afã de obter resultados significativos e a confirmação do acerto de suas políticas, o governo como que aceitou a desorganização dos cineclubes, e até a estimulou em boa medida, eliminando a exigência de uma organização comunitária real como interlocutora e agente dos programas de apoio: os editais federais passaram a aceitar como proponentes – termo inadequado, já que não propunham, mas apenas aceitavam e reproduziam as propostas governamentais – as pessoas físicas. Disso resultou uma certa especialização dos tais proponentes, não mais organizações de base comunitária, mas supostos representantes e “responsáveis” delas. Os cineclubes, que já viviam um processo de desorganização[12] - no sentido de estruturação política democrática -, rapidamente deixaram de seguir normas democráticas de organização. Também uma certa profusão, enganosa porém, de recursos levou esses cineclubes a abandonarem suas fontes tradicionais de sustentação (que são também de organização) – associados, ingressos e outras -, passando a depender inteira e exclusivamente dos esperados recursos públicos.

Uma outra influência determinante na ressignificação da ideia do cineclube foi a influência dos realizadores amadores[13] de cinema que, em boa medida, determinaram o direcionamento dessas políticas do cineclubismo, e adotaram os cineclubes fundamentalmente como espaços de exibição (para seus filmes). Isso é parte da substituição da ideia de cineclube como público organizado pela de público receptor, ou plateia, para os filmes brasileiros, sobretudo os de curta-metragem.

Essas tendências ou processos que afetaram o cineclubismo brasileiro têm uma expressão ideológica, evidentemente[14]. A organização passou a ser vista como burocracia, e a palavra de ordem valorizada foi horizontalidade. A informalidade, expressão da falta de organização, serviu como justificativa para a incapacidade e até oportunismo de não se dar ao trabalho mais árduo da organização democrática. A falta de sustentabilidade, corolário da ausência de organização e antessala da dependência, passou a ser exibida como qualidade, e não são muito raros os “professores” de cineclubismo que afirmam até hoje que “cineclube é onde se exibe filmes gratuitamente”.  Informalidade, horizontalidade e gratuidade são os elementos ideológicos, os novos valores correspondentes às políticas de tutela do cineclubismo pelo governo e pelo segmento de produção amadora de curta-metragem. E isso tudo foi, também, determinante na sua dispersão.

Os cineclubistas desse período tinham, no entanto, um sentido de identidade. Essa identidade foi alimentada por cinco relativamente grandes Jornadas realizadas (2003, 2004, 2006, 2008 e 2010), que foram importantes espaços de convivência; pela valorização sentida no reconhecimento e diálogo com as instituições governamentais e, finalmente, por uma herança difusa das identidades anteriores dos cineclubistas: os cinéfilos conhecedores e os militantes políticos. Junto com os elementos mencionados no parágrafo anterior, tudo isso criou uma forte camada ideológica identitária. Que ainda é, mais ou menos, uma referência para as práticas dos dias atuais. Esse cineclubista pode até não ter um cineclube, mas carrega sempre esse sentimento (ou ideologia) de identidade.

Rescaldos das políticas do PT

Depois de 2010 não se realizou mais nenhuma Jornada regular, isto é, conforme os requisitos dos estatutos que regem esses eventos. Alguns encontros usaram o nome[15], mas foram eventos muito pequenos, sem representatividade, legitimidade e, sobretudo, bem inconsequentes: elegeram diretorias, mudaram estatutos, mas nada realizaram e, principalmente, passaram incógnitos pela vida cultural e mesmo cineclubista no País. Existem cineclubes em todo o País, como sempre nesses períodos de refluxo, mas talvez mais que em outras épocas, os cineclubes ressignificados neste século perderam grande parte da sua relevância social e cultural.

Como citei mais atrás, o Sistema de Cultura desenhado pelo governo Lula se manteve, pelo menos em parte, e se reproduz, também mais ou menos, em diversos estados e municípios. Versões estaduais e locais dos editais que visavam os cineclubes no final da primeira década deste século continuam a apoiar, mais ou menos precariamente, iniciativas por sua vez inspiradas nos mesmos modelos. Daí a sacralização da fórmula: filme e debate. Sem organização, sem sustentabilidade autônoma, e sem democracia, isto é, participação com responsabilidade. Assistir filmes e talvez usar a palavra numa sessão mensal de cinema é uma concepção bem limitada de participação social ou cultural...

A primeira Lei Aldir Blanc[16] e a Lei Paulo Gustavo também reproduzem tanto a força das propostas iniciais do Sistema, como o limitado alcance organizativo – ou estruturante, diriam os técnicos – de suas medidas, que incorporaram os vícios dos editais de que já tratamos[17].

Parece-me que o termo cineclubista, seja como conhecedor cinéfilo – papel que hoje passou em parte para os curadores – ou como militante do cinema político ou da comunidade organizada, não se aplica mais da mesma forma. Esses papéis tornaram-se, na expressão de Raymond Williams, formas residuais de cultura[18].

Crise do cineclubis(ta)mo cinéfilo

As raízes mais profundas do cineclubismo não estão no cinema, mas na organização da comunidade. O clube, a organização coletiva, democrática (com origem na Revolução Francesa), determina o cine, meio, mídia, mediação das relações entre o público – não a plateia passiva, nem o espectador abstrato, mas os participantes conscientes - do clube. Os primeiros cineclubes – que não tinham esse nome e, portanto, não correspondem exatamente aos modelos inspirados em prática posteriores – eram associações e cooperativas do público, fortemente identificadas com a classe trabalhadora, cujo objetivo era transformar radicalmente o cinema comercial, de dominação e alienação. Mudar o cinema – o cinema da primeira década do século 20 – era parte do programa de transformar a sociedade. O Cinema dos Trabalhadores, de 1911 (Los Angeles), o Cinema do Povo, de 1913 (Paris), e muitos outros, eram projetos integrais de organização de seus públicos para a transformação da sociedade com a superação concomitante do cinema comercial. “Divertir, instruir, emancipar”, era o lema genial e, até hoje tão atual, do Cinema do Povo. No Brasil também existiu a mesma proposta e o mesmo entendimento, e na mesma época, mas não há quase pesquisa nesse campo. Visto sob uma perspectiva contemporânea, esses cineclubistas eram militantes culturais que buscavam se apropriar, como classe social oprimida, de um novo e importante meio de comunicação. Antes do Cinema do Povo houve o Teatro do Povo, com a mesma proposta e alguns dos mesmos participantes.

Mencionei Gustave Cauvin[19], que começou fazendo projeções ilustrando palestras contra os efeitos do alcoolismo entre os trabalhadores, por volta de 1908 – uma questão importante na época -, participou da organização do Cinema do Povo e depois foi um importante dirigente do movimento dos offices (escritório em francês: hoje poderíamos dizer núcleos) de cinema educativo – que eram tipos de cineclubes voltados para crianças, para jovens, e para as comunidades. Desses núcleos surgiu a primeira federação de cineclubes, no começo dos anos 20. Cauvin, que era anarquista, virou comunista, participou da Resistência nos anos 40 e continuou organizando projeções até sua morte, em 1951. Ele encarna um cineclubista revolucionário, radical, orgânico, classista. Com outras marcas de sua época, como um certo moralismo, depois o culto do stalinismo: como todos nós, esse modelo de cineclubista é intrinsecamente histórico, e não um tipo de descrição ou valorização moral.


E historicamente foi suplantado pelo modelo que chamo de cinéfilo, não mais de negação absoluta do cinema comercial, mas de crítica a alguns de seus aspectos. Há uma diferença dialética fundamental: do combate ao cinema passou-se à defesa (“crítica”) do cinema. Creio que há uma forte analogia possível com as propostas anarquistas ou comunistas, que visavam a destruição do capitalismo, e as posturas ditas socialistas ou reformistas, que criticavam o capitalismo, mas propunham apenas sua reforma e humanização – com a sua manutenção. Estas últimas foram em grande parte responsáveis pelo chamado Estado de bem estar social, que incorporou, principalmente nos países centrais, reivindicações importantíssimas dos segmentos populares mantendo, porém, sua condição geral de assalariados, sob exploração e controle do capital. Pelo menos até a segunda metade do século passado, quando a onda neoliberal passou a destruir sistematicamente – e o vem fazendo até hoje - todas aquelas conquistas.


O cineclubismo, ou o cineclubista hegemônico, em todo o mundo, passou a ser o cineclubista cinéfilo, crítico, com importantes momentos de influência no cinema e na sociedade – como nos movimentos de vanguarda estética, de renovação na linguagem: a Nouvelle Vague, o Cinema Novo e tantos outros. Mas essa cinefilia abandonou – ou foi incapaz de restabelecer - os aspectos mais essenciais do cineclubismo original: seu compromisso orgânico com as classes trabalhadoras e com a apropriação do cinema por elas. O cineclubismo cinéfilo separou, afastou, enfraqueceu ou eliminou o cineclube educativo – que buscava o público mais jovem e o das comunidades (e foi o mais importante “concorrente”, em muitos momentos, da cinefilia[20]). O enorme circuito de clubes de trabalhadores no início da revolução soviética – onde também havia uma importante atividade pedagógica com o cinema[21] - foi ignorado pelo cineclubismo cinéfilo europeu, mesmo quando este valorizava esteticamente os realizadores de cinema da Revolução. O modelo cinéfilo também excluiu a produção de cinema – ou os clubes de cinema amador (e as Ligas de Cinema dos Trabalhadores[22]) nas décadas de 20 até 50. E nas seguintes, já em decadência. Depois disso, o cinema amador, o cinema militante e outras variações dos projetos que mobilizavam os públicos, passaram a ter existência independente, e às vezes até adversária do cineclubismo – ou vice-versa. Apesar de cinéfilo, aquele modelo também abandonou as questões de memória e de identidade, que se “especializaram” – geralmente a partir da transformação de cineclubes - como cinematecas, privadas ou estatais. Nelas, da dimensão comunitária, até classista, passou-se à de memória nacional, indistinta – e certamente essa é uma questão também bem complexa, que não vou tratar aqui. Mas, resumindo: o cineclubista cinéfilo é, como fenômeno histórico, essencialmente um cineclubista das classes médias e para as classes médias.


Por tudo isso[23], o cineclubismo cinéfilo vem se desestruturando, se desorganizando, se informalizando. E desaparecendo, ainda que seja a principal influência – mas não mais, rigorosamente, o modelo de organização – que orienta, que ideologiza as formas sobreviventes, residuais, de cineclubismo. O cineclubista, como o próprio termo cinéfilo (que designava uma forma de erudição, nos termos de Antoine de Baecque), se descaracterizou – alguns dirão ressignificou-se – numa presença mais ou menos eventual na exibição “diferenciada” de um filme (ou de alguns filmes curtos), seguida de um depoimento ou palestra de profissional, ou de uma conversa idealmente centrada no filme.


Essa nova postura – que não creio chegar a constituir um modelo -, desorganizada, eventual, assistemática, também desistiu quase completamente da ideia de movimento social ou cultural, deixando de lado as organizações representativas do cineclubismo, mesmo em tempos de muita facilidade para a constituição de redes colaborativas virtuais.


A superação do cineclubismo cinéfilo

O desenvolvimento do cineclubismo exemplifica bastante bem a concepção dialética da mediação entre contrários como processo que gera em síntese um novo fenômeno histórico[24]. Cineclubismo como termo que designa tanto o processo social e as formas institucionais em que se consolida historicamente, como as formas ideológicas que acompanham a compreensão social desse processo e dessas formas. É o que este artigo vem procurando demonstrar.

Outra ideia que quero juntar a esta é a da centralidade da cultura e, especialmente, das mídias audiovisuais como mediações essenciais da sociabilidade contemporânea. Creio que isso está bem estabelecido desde Martín-Barbero[25], mas um texto de Stuart Hall é uma boa, e mais breve, introdução ao assunto[26]. Trazendo a questão para a nossa discussão, as mídias, sobretudo as que mais interagem e interferem na vida social contemporânea, podem ser mais ou menos resumidas como mídias audiovisuais. O processo de formação dessas mídias, aparentadas entre si justamente por essa condição audiovisual, começa com o cinema, e vem se estendendo, historicamente, pelo rádio, pela televisão, e por novas formas de registro e exibição que confluem todas elas (não em um sentido teleológico) para a geração eletrônica de imagens e sons e sua difusão planetária através da rede de dispositivos que reproduzem os sinais transmitidos.

Além da revolução tecnológica digital, que ainda está transformando as relações de produção, suas influências nas relações sociais já se tornaram determinantes: praticamente “ninguém vive” sem internet. E ninguém escapa a ela, igualmente: todos são estudados e explorados como consumidores; vigiados e controlados enquanto cidadãos. Voltando à dialética: há um evidente salto de qualidade na mediação cultural das relações sociais a partir do salto quantitativo do número de pessoas atingidas pelos meios audiovisuais trazido pela revolução digital.

O cinema, ao surgir, criou uma nova dimensão de público, igualmente em termos de quantidade e qualidade. As primeiras reações dos públicos, e os primeiros cineclubes, procuravam defender-se e contrapor-se àquele novo meio de dominação e de alienação – questões que dariam um outro artigo alentado, pelo menos – em busca da expressão de suas próprias vivências, necessidades, interesses, anseios. O sujeito dessas reações e organizações eram os públicos, o povo que assiste, que recebe; o cinema era o meio, a mediação para a sua potencial expressão com autonomia – ou dominação, como já foi dito.

O cinema não é mais esse meio, não é mais ele que, principalmente, exerce essa mediação. Esse papel cabe hoje ao dispositivo midiático, ao conjunto de mídias audiovisuais que funcionam de maneira integrada: na situação mais íntima do internauta e, simultaneamente, em escala planetária.

Superar dialeticamente o modelo ultrapassado, residual e mesmo decadente do cineclube cinéfilo consiste em retomar seus objetivos originais, bem resumidos pelo Cinema do Povo: diversão, educação e emancipação do público, lutando pela apropriação democrática radical das mediações audiovisuais da vida social. Se o cineclube cinéfilo foi a negação dialética dos primeiros cineclubes revolucionários, o cineclube contemporâneo deve ser a negação dessa negação. Hoje, o compromisso fundador do cineclubismo, em sua luta contra a alienação e o controle, deve ser ressignificado dialeticamente no combate pela superação do dispositivo midiático, que também é essencialmente de alienação e controle, mas quantitativa e qualitativamente em outras dimensões.

É importante compreender o processo de evolução histórica e social do cineclubismo, que aqui resumi, mais ou menos simplifiquei, nesses dois polos e no momento do “ainda não”[27] : os primeiros cineclubes, os cineclubes cinéfilos, e a crise que se arrasta há quase 50 anos. Duas negações e uma ausência... Essa ausência é a demanda mais que evidente que ninguém parece ou quer enxergar: a necessidade de um novo modelo de cineclube. E essa é uma necessidade dos cineclubes, do cineclubismo e dos cineclubistas, mas é igualmente de seus públicos – em grande parte ausentes dos cineclubes – que precisam de novas formas de organização com vistas à apropriação de um dispositivo de comunicação cada vez mais envolvente, alienante e opressor.

A busca por essas novas formas é ignorada e até negada tanto pelas instituições do cineclubismo – federações e entidades equivalentes -, que se apegam à cinefilia tradicional, como pelas práticas que se entendem cineclubistas e pelos cineclubistas que se identificam através delas: informais, “horizontais”, e dependentes. As tentativas incipientes de criação de novas formas de expressão têm vindo principalmente de iniciativas “externas” ao cineclubismo, que ignoram, não se identificam com e até se opõem aos cineclubes: coletivos de produção, cinemas comunitários, grupos de hackers e várias outras. Mas também essas seguem sendo incompletas, insuficientes.

Muitos artigos sobre cineclubismo dão conta da minha definição de cineclube como organização do público de forma associativa democrática, sem finalidade lucrativa, que visa a apropriação do cinema por esse público. Ainda penso que é sobre esses termos – dessa “equação” cineclubista – que se aplica a compreensão dialética da evolução, e da superação, dos modelos encontrados historicamente. Essa definição se aplica desde a formação dos primeiros cineclubes até o apogeu e crise do modelo cinéfilo, e mesmo até hoje, mas apenas parcialmente nas formas residuais desse último modelo.

Assim, para a construção concreta de um novo modelo de cineclube – e de cineclubista – é preciso retomar o associativismo democrático, com efetiva participação e responsabilidade, mas expandindo suas formas de ação, tanto presenciais – para públicos de diversos tamanhos e interesses, em diferentes espaços - como junto a um público “à distância”, na exibição de forma televisiva, territorialmente comunitária, ou “virtual”, capaz de integrar um público muito mais amplo, até internacional e planetário.

Nessa compreensão de um novo público é absolutamente imprescindível superar a estreiteza do cineclubismo pequeno-burguês, elitista e paternalista, substituindo-a pela ligação orgânica com os segmentos ditos populares, com as maiorias, nas comunidades onde vivem, trabalham e estudam. No caso brasileiro, as periferias – bairros, zonas mais rurais, comunidades tradicionais –, as organizações de trabalhadores e os movimentos sociais constituem o centro da busca das identidades que as mídias audiovisuais devem ser capazes de expressar. Mas o sentido pleno de comunidade só se realiza como parte da sociedade em sua totalidade: daí a perspectiva de classe, ou de público, entendido como o conjunto de segmentos da sociedade que não têm acesso aos meios de produção de sua vida concreta, nem aos meios simbólicos de representação de suas identidades diversas: de gênero, de etnia, de orientação sexual, de herança cultural... dentro de sua identificação geral como classe trabalhadora, numa sociedade dividida entre dois polos principais: capital e trabalho.

Toda inovação tecnológica no campo da comunicação produz inicialmente um sentimento de potencial democratização, e um impulso de resistência à sua apropriação pelas classes dominantes. Geralmente seguidos do surgimento de organizações ou iniciativas sociais que buscam dar-lhe formas democráticas: o cineclube teve esse papel em relação ao advento do cinema; o rádio foi seguido por uma onda de radioamadores, inspirados pela potencialidade de interatividade e diálogo do novo meio; com a televisão veio a ideia da emissão de baixa potência e o projeto das tevês comunitárias. O mesmo aconteceu com a revolução digital e a internet, com o software livre e diversas formas de resistência que ainda subsistem e procuram evoluir, diante da privatização e controle dos espaços virtuais pelas plataformas, propriedade das que são hoje as maiores empresas do mundo.

O cinema, o rádio, a televisão, ainda que tenham provocado transformações importantes na vida social, não tiveram a extensão e profundidade do fenômeno contemporâneo: as tecnologias digitais provocaram uma revolução, transformando radicalmente a totalidade da produção econômica e das relações sociais correspondentes. Essas transformações incluem também o cinema, o rádio e a televisão, modificando essencialmente suas formas de produção, de difusão e de recepção. Outras inovações nesse campo afetavam os outros meios, a revolução digital os transforma, criando, ainda, novas formas de expressão e comunicação.

Pela primeira vez, a produção, difusão e recepção da comunicação audiovisual podem ser reunidas, integradas em um único dispositivo. Claro, antes também era “possível” fazer isso, mas era tão complicado e oneroso que se tornava virtualmente impossível (além das dificuldades artificiais produzidas pelo capital, que continuam presentes). Simplificando bastante uma história bem mais complexa, produzir, distribuir e exibir filmes era tão complicado, e caro, que a própria indústria se organizou em segmentos diferentes.

Há várias décadas, antes da revolução digital e sem uma verdadeira noção do processo concreto que realmente ocorreria, afirmei: “o cineclube é o embrião do cinema futuro, do cinema do público”. Hoje essa ideia se corporifica, assume elementos de concretude, de viabilidade. Dá para enxergá-la, e isso é, justamente, um elemento essencial da crise/oportunidade do cineclubismo. Agora é possível – em certo sentido, e comparativamente, até fácil – produzir conteúdos audiovisuais os mais diversos: filmes, reportagens, documentos, espetáculos filmados, videojogos, etc.; também não é difícil difundi-los em redes colaborativas ou mesmo nos espaços virtuais de alcance internacional, planetário, e pode-se exibi-los nos mais diversos dispositivos hoje ao alcance da maioria da população, até mesmo em países e regiões periféricos. Além, é claro, do calor e estímulo inigualáveis que vêm do compartilhamento presencial – tão caro ao cineclubismo - também bastante simplificado. Que nome dar a esse núcleo revolucionário que reúna produção, difusão e recepção? De certa forma, esse nome não foi criado, como já havia ocorrido também com as primeiras entidades operárias de cinema. Mas se formos considerar a experiência histórica mais próxima e concreta, a palavra é, justamente, cineclube. O termo resiste: cine de movimento, do real reproduzido, inclusive nas mídias audiovisuais; clube de coletivo, de democracia e de organização. O cineclube é o embrião da instituição audiovisual da comunidade, e do público do presente, do futuro, de uma nova sociedade.

O cineclubista como público consciente de seu papel social e histórico

Superar dialeticamente os modelos anteriores, ressignificar o conceito de cineclube é inseparável da superação/ressignificação de todos os seu elementos. Entre os principais, historicamente: a cinefilia, a produção, a preservação e a participação.

A cinefilia

Os primeiros estudos sobre a cinefilia foram os que, finalmente, a legitimaram para a Academia[28]. Podemos falar em dois momentos principais, duas “ondas” de cinefilia: a dos anos 20, em Paris e outras capitais europeias, em torno dos artistas e jornalistas da época, e a do Pós-Segunda Guerra, inicialmente também em Paris, em torno da Cinemateca Francesa, de alguns cineclubes da capital e da revista Cahiers du cinéma. Ainda que bastante referenciada nos cineclubes (por Baecque, para os anos 50), a “primeira cinefilia”, dos anos 20, é mais corretamente associada (por Gauthier e por Abel[29]) aos jornalistas, críticos, cineastas, e todas as suas iniciativas: revistas, cineclubes, salas “especializadas” (hoje diríamos cinemas de arte). Em 2010, veio a crítica acadêmica àquela concepção, tratada como elitista por Jullier e Leveratto[30]. Em outra ponta, a crítica da cinefilia coincidiu também com uma série de eventos importantes do cineclubismo mundial e com a adoção – ou recondução - da concepção de cineclube como organização do público[31]. A crítica da cinefilia foi, nesse contexto, uma consequência da revisão crítica do cineclubismo dos anos 20, antes tido como fonte absoluta dessa atividade ou movimento.

Recentemente há um certo esforço de revalorização da cinefilia entre os cineclubes. Esse é um termo bem vago, que carrega uma ambiguidade vinda do senso comum: cinefilia como “amor ao cinema”. Creio que, desde que tenha acesso, praticamente todo mundo gosta de cinema. O sucesso inicial do cinema, que continua e se reproduz hoje em outras formas de difusão, deve-se justamente a isso: uma espécie de cinefilia de todos, a cinefilia da pessoa comum. Usa-se o termo cinéfilo nesse sentido, para distinguir levemente quem frequenta mais o cinema, não propriamente um especialista. Não há um equivalente para quem gosta muito de literatura, de teatro, de dança; talvez haja para a música: melômano? Mas aí não é amor, é mania, talvez, que estaria mais próxima do genérico , por sua vez derivado de fanático. Penso que o termo cinéfilo está ligado em parte à plasticidade etimológica da palavra e do prefixo: cinema, cine, que se combinam facilmente com outros prefixos e sufixos – e tantos foram criados! Mas, mais provavelmente, deveu-se ao incrível fenômeno de público que está associado ao aparecimento do cinema: já em 1910, um terço da população americana ia pelo menos uma vez por semana ao cinema; em 1920 eram 50%. As palavras cinemafilia, cinematofilia e cinefilia apareceram na França já no final da primeira década do século passado. Mas, tal como democracia, o emprego de cinefilia exige mais precisão, sob o risco da ambiguidade. Há esse uso diário, o cinéfilo que gosta ou vai bastante ao cinema, mas no ambiente cineclubista, sem uma adjetivação (que não tem sido empregada), o sentido prevalente é o do cineclubismo francês “clássico”: erudito, elitista, paternalista. No limite, bancário, na expressão de Paulo Freire[32].

O gosto pelo cinema precisa ser ressignificado em diversos níveis. De um já tratamos: não se trata mais de cinema, mas de mídias audiovisuais. Mas cinema também tem sua ambiguidade, marcada fortemente pela ideologia (e um pouco de confusão idiomática: cinema e moving pictures, cinema e film, etc.). Nas línguas latinas, pela influência da produção teórica e do cinema franceses, o cinema já foi uma invenção curiosa; depois, principalmente filmes científicos; mais tarde, filmes (exclusivamente) de ficção, evoluindo ainda para incluir o documentário. Hoje, nos ambientes de estudo e de conservação, já se agrega mais, chegando até o filme publicitário, o filme amador e o doméstico. Mas a maioria dos cineclubes ainda está no estágio anterior: cinema é sinônimo de filme; e filme é ficção ou documentário. Nesses cineclubes, cinema é filme, e filme é autor – uma compreensão dos anos 50. Daí a resistência para o trato do cinema tal como sua explosão em mídias deixou claro: o audiovisual (como o cinema sempre foi) pode ser notícia, reportagem, entrevista, diálogo ou monólogo, blogue e podcast, videojogo, documentação direta de esportes, manifestações, espetáculos, etc. Cinema não é “arte” naquele sentido abstrato, metafísico, da aura que se dá para o termo, base para o seu culto; cinema é uma forma de expressão e um meio de comunicação. E isso em nada diminui sua importância ou o prazer, eventual, que produz.

A questão central da atividade cineclubista não é o gosto pelo cinema – que explicita fundamentalmente uma opção subjetiva, pessoal – mas o compartilhamento, o caráter pedagógico do cinema, que inclui a fruição, o entendimento (como, em parte, a cinefilia), mas sobretudo o compromisso social e histórico. Cinefilia é culto, pedagogia é práxis. Esta última se compartilha igualitariamente (segundo Freire), a primeira se transmite, hierarquicamente na tradição dominante.

Nesse sentido, o cineclube cinéfilo é a negação do cineclube que podíamos chamar de pragmático, onde o cinema que reúne o público se une concretamente a seus problemas, carências, necessidades, projetos: é práxis transformadora. Nos anos 20 do século passado, o modelo do cineclube cinéfilo afirmou-se essencialmente em contraposição, e excluindo, o cinema educativo e todas as outras formas de engajamento, de proselitismo. O modelo excluía a práxis e consolidava o culto. Portanto, descartou a produção.

A produção

Um adjetivo que também tenho associado aos cineclubes revolucionários do início do século passado é o de cineclubes integrais, isto é, que se constituíam tanto de uma práxis integral – produção, distribuição, exibição (e debate) – como de um projeto igualmente totalizante, de transformação radical do cinema e da sociedade. Partindo dessa ideia de integralidade, de totalidade, uma das características mais marcantes do cineclube cinéfilo, que veio a estabelecer outro modelo, foi a compartimentação, a especialização. Estes cineclubes, surgidos nos anos 20, afastaram-se e paulatinamente excluíram diversas experiências suas contemporâneas que se tornariam, então, atividades “diferenciadas”, não consideradas como cineclubes: a atividade pedagógica, a preservação, a produção.

Parafraseando Cavallo e Chartier[33], “o poder não está em ver filmes, mas em fazê-los”. A capacidade de expressar necessidades, projetos, desejos, supera em importância a possibilidade de consumir, seja como for, o meio de comunicação a que aplicarmos esse raciocínio. Mas sem esquecer que a capacidade de se exprimir advém, em grande medida, do convívio crítico com o meio. Em suma: a expressão pelo cinema, fazer filmes, seria o objetivo maior de um cineclube – sem excluir todos os outros.

Os cineclubes cinéfilos, o próprio termo cinefilia, têm uma leitura fundamentalmente receptiva. Com aqueles, fazer filmes tornou-se apanágio dos autores, no cimo da pirâmide hierárquica que se apoia, abaixo, nos cinéfilos, cultuadores dos primeiros, e na base, no espectador, que precisa ser orientado na apreciação verdadeira dos valores acima dele naquele edifício. É também a revolução digital que vem recolocando a questão da produção para os cineclubes, através do processo de integração – e interatividade - das tecnologias audiovisuais ao sistema produtivo. Mas, como outros impulsos democratizantes de inovações tecnológicas, o acesso relativo a esses potenciais “meios de produção”[34] é bastante condicionado aos recursos financeiros dos produtores, dentro da ordem estabelecida pelo sistema hegemônico. Assim, uma primeira onda nesse processo é de produtores individuais, inspirados em grande medida pela “ideologia do autor”. De fato, ainda que sob diferentes formas, essa concepção do cinema como manifestação subjetiva individual tem estado presente em praticamente todas as manifestações de criação não comercial e mesmo a conhecida como militante, desde o lançamento dos “pequenos formatos”[35], há cem anos, até as primeiras câmeras digitais, passando pelos diferentes momentos de melhoria técnica e de portabilidade dos equipamentos. Além dessa dependência ao conceito de cinema de autor, e até certo ponto, decorrência dele, há também os preconceitos quanto à ideia de cinema, reduzida ao filme de ficção ou documentário – como já foi aqui tratado.

Assim, os elementos estão dispostos na realidade: há que se incorporar criativa e criticamente a produção - condição, senão maior, indispensável para dar consequência a um cineclubismo do tempo presente e base do futuro. Sem negar a contribuição de cada indivíduo, e a dimensão de seus talentos, há que se construir uma concepção e um método de produção coletiva a partir das individualidades organizadas dentro do coletivo comunitário e social. A capacidade de expressão audiovisual nasce na práxis do cineclube, desde o “consumo” das experiências disponíveis até a criação ficcional, passando pela coleta e preservação da memória e identidade da comunidade e do todo social. Dessa práxis nascerá o “cinema do público”.

Memória e identidade

A cultura, como a palavra já indica, é o resultado do processo de trabalho sobre a natureza – o cultivo – com o qual desenvolvemos nossas características únicas, nossa identidade humana. Cultura ainda supõe um caráter social essencial dessas características e, por ser processo social, é necessariamente histórico: as formações sociais variam no tempo. Cultura significa tudo isso.

Menos evidente é o fato de que a trajetória histórica passou pelas diferenciações sociais e culturais, em diferentes sistemas que estabeleceram hierarquias e conflitos entre classes sociais, divididas segundo seu papel no processo de trabalho e sua apropriação. O relativo equilíbrio histórico – a duração do domínio de uma ou mais classes sobre as outras – passou a diferenciar também “culturas” desses segmentos, cuja estabilidade se baseia igualmente na existência histórica dessas classes: nobres, sacerdotes, escravos, indígenas, proprietários de terras, camponeses, capitalistas, proletários... Continua existindo a cultura como identidade humana, mas essa definição tornou-se mais complexa, já que admite a existência de uma diferenciação (dialética) interna, ainda que haja traços dominantes –  aquilo que Antonio Gramsci chamou de hegemonia: a cultura dominante em cada diferente momento histórico é, em equilíbrio mais ou menos instável, a cultura da classe dominante.

Pode-se dizer que as culturas, nesse sentido de classe social, incorporam - mas situam dentro do segmento – o mesmo sentido da cultura mais genérica: elas reúnem e expressam a identidade das classes. Ainda que sob a hegemonia da cultura dominante, há várias culturas mais ou menos extensas, e misturadas, conforme suas bases sociais: comunitárias, regionais, nacionais, étnicas, de gênero, etc. No capitalismo em que vivemos, por serem determinadas, em última instância, pelo papel das classes no processo do trabalho, essas culturas fazem parte – de maneira bem complexa, não necessariamente harmônica – da cultura da classe fundamental do processo produtivo: o proletariado.

Os cineclubes são organizações culturais criadas pelo proletariado a partir do advento do cinema no sistema de reprodução econômica do capitalismo, tanto na base produtiva como no plano simbólico (a superestrutura ideológica). São organizações culturais que se instalam no plano das comunidades (de território, de etnia, de gênero, etc.), sob um mesmo paradigma organizativo: associação democrática, sem finalidade lucrativa, que visa a apropriação do cinema (das mídias audiovisuais) pelo público. A integração dessas comunidades, na construção de um campo simbólico – e uma sociedade – que expresse seus interesses e necessidades, se dá através da constituição de redes de colaboração política, físicas e virtuais.

Da mesma forma, operam no plano local ou comunitário no sentido de coletar e produzir, reproduzir, as expressões locais da cultura popular (ou proletária), essencialmente num sentido geral decolonial, como se diz atualmente, pela crítica e superação da hegemonia da cultura dominante, da classe dominante internacional, de dimensão planetária.

É importante salientar que a cultura popular, justamente por não ter acesso, de diversas maneiras, aos meios de sua própria reprodução, desde a palavra escrita até os meios de comunicação mais sofisticados, geralmente se isolou, ou foi isolada, num certo sentido, na oralidade – que, por sua vez, transformou numa miríade de expressões riquíssimas. A oralidade é difícil de reproduzir fora do contato direto e, portanto, bastante limitada em termos de difusão e de preservação. Só os meios audiovisuais são capazes de reproduzir, difundir e preservar integral e fielmente a cultura oral. Por isso, também, sua importância fundamental para a cultura popular.

Assim, além de produzir conteúdos audiovisuais em geral, o cineclube deve coletar, reunir, preservar e difundir o patrimônio cultural da comunidade - em grande medida oral – que constitui parte essencial de sua memória e, portanto, de sua identidade.

Participação: público e cineclubista

Como já foi dito, a ação cineclubista é essencialmente pedagógica, no sentido de construir formas de compartilhamento democrático e produtivo do conhecimento com a finalidade de superar as formas sociais baseadas na exploração de muitos por poucos. Não se trata de repassar conhecimentos de forma unilateral, mas de ensinar aprendendo e, simultaneamente, aprender ensinando. Não é uma relação baseada no professor, no tutor, mas num animador, que ajuda a estabelecer a dinâmica organizativa do cineclube segundo o momento e as condições, necessidades e possibilidades da comunidade. Possibilidades que, justamente, serão alteradas pela própria ação do cineclube.

O sujeito dessa ação não é o indivíduo, mas o coletivo – e este não elimina aquele, que aliás, como ser humano social, sempre se definiu, sempre se identificou na relação de ser parte desse coletivo social, como demonstra Bakhtin[36]. O problema – a ser superado – é que no sistema atual, o indivíduo é promovido como explorador do coletivo, ou como explorado dentro dele. E essas relações se dão através da propriedade, da separação (ou apropriação, privatização) entre o produtor/criador e o fruto do seu trabalho. Daí a legitimação ideológica do empreendedor, do autor, do tutor e outras formas de apropriação do trabalho, da criação, do conhecimento.

A noção de coletivo não elimina, não apaga nem enfraquece a ideia do indivíduo: na verdade a recoloca, a ressignifica como expressão independente, responsável, consciente e ativa dentro da comunidade. O indivíduo se reconhece e se identifica no coletivo, na comunidade, na sua classe social e no seu papel na história, seu lugar no público.

Esse processo é permanente, pois toda prática modifica seus autores, mas o projeto do cineclube integrado em sua contemporaneidade é esse: a construção permanente da identidade individual e coletiva, comunitária e de classe através da transformação da sociedade, isto é, das vidas de todos.

O indivíduo é superado dialeticamente pelo coletivo; o espectador é superado pelo público. O cineclubista orgânico é (ou deve, ou pode ser) a expressão individualizada desse público organizado e consciente.



[1] Para maiores informações sobre o Cinema do Povo, ver https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html 

O estudo mais completo sobre o Cinema do Povo – pois há vários trabalhos sobre essa experiência – é a tese de doutorado de Mundim, Luiz Felipe, O público organizado para a luta : Cinema do Povo na França e a resistência do movimento operário ao cinema comercial (1895-1914), acessível em https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/158300/001021074.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[2] Há que se considerar, entretanto, entre outros aspectos, que “personalidade cineclubista” é uma noção um tanto contraditória: dado o caráter coletivo e democrático, a instituição cineclube é basicamente anônima nesse sentido, pouco destacando lideranças. Além disso, sua constituição, especialmente antes da hegemonia do cineclube cinéfilo,  em ambientes populares também só excepcionalmente – ainda mais no Brasil – atraiu a atenção de pesquisadores e mesmo da imprensa mais formal de sua época.

[3] Ver Souza, José Inácio de Melo, 2002, Paulo Emílio no Paraíso, ps. 126-128. RJ e SP: Editora Record.

[4] Ver, para a Revista de CinemaRibeiro, José Américo. 1997. O cinema em Belo Horizonte do cineclubismo à produção cinematográfica na década de 60. Belo Horizonte: Editora UFMG, e Siqueira, Cyro. 2001. “Revista de Cinema: levantamento histórico”, em Coutinho, Mário Alves e Gomes, Paulo Augusto. Presença do CEC. 50 anos de cinema em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Crisálida. E, para o Curso de Dirigentes Cineclubistas: Zanatto, Rafael Morato, O Curso para dirigentes de cineclubes (1958): Momento decisivo para a formação dos cursos universitários de cinema no Brasil (UnB e ECA-USP), acessível em https://periodicos.uff.br/ciberlegenda/article/view/51645

[5] A Introdução do livro de Baecque, Antoine de. 2010. Cinefilia, São Paulo: Cosac & Naify, apresenta de forma bem completa essa concepção de cinefilia e de cineclubismo que tanta influência teve – e tem - no Brasil.

[6] Na verdade, poderíamos localizar essas posturas, e iniciativas de tipo cineclubista, desde 1912, pelo menos. Ver Almeida, Cláudio Aguiar. 2011. “A Igreja Católica e o Cinema: Vozes de Petrópolis, A Tela e o jornal A União entre 1907 e 1921”, em Capelato, Maria Helena et alli, História e Cinema. São Paulo: Alameda. Mas poucos são os trabalhos com esse nível de pesquisa.

[7] Fundado em 1961, o CNC era basicamente um conselho das diretorias das federações. Em 1974, mudados os estatutos, conservou o nome, mas transformou-se numa federação nacional de cineclubes (também com a participação das federações regionais).

[8]Essas eram realmente exibições seguidas de debates, atividades eventuais ou periódicas de diversos movimentos sociais que, no entanto, não constituíam cineclubes organizados. Era um grande campo de exibições mais ou menos irregulares que a distribuidora de filmes dos cineclubes alimentava. Dessas atividades também nasciam, eventualmente, muitos cineclubes. Nos “arquivos” da Dinafilme, que hoje consideramos perdidos, havia uma clientela de cerca de 600 cineclubes e algo em torno de 1.400 desses pontos de exibição menos estáveis.

[9] Em São Paulo, por exemplo, o Cineclube Bixiga manteve uma média mensal de público de 8 mil pessoas durante alguns anos; o Cineclube Oscarito fazia 6 mil pessoas no início – esses dois tinham salas com cerca de 100 lugares -, e o Elétrico Cineclube, que somava mais de 400 lugares em três ambientes (um só para VHS), atraía 15 mil espectadores mensais (com um recorde de 21 mil). O Estação Botafogo, do Rio de Janeiro, provavelmente superou até mesmo esses números, antes de se tornar uma empresa privada.

[10] O público desses cineclubes era todo o público mais cinéfilo – no sentido comum da palavra - da cidade: como comunidade era muito difícil de identificar; mais ainda, de organizar. Esse cineclubismo – tal como a cinefilia dos anos 50, mas em outro momento, em um contexto diferente – marcou bastante aquele público, e em quantidades inéditas, mas não se constituiu como uma forma de organização, de representação e de expressão de um público sobretudo constituído pelas classes médias.

[11] Uma Jornada (o congresso nacional dos cineclubes) realizada em dezembro de 2004 na capital de São Paulo, com a participação de cineclubes de todo o País, reorganizou o Conselho Nacional de Cineclubes.

[12] É importante observar que desde o governo de Fernando Henrique Cardoso já vinha havendo uma progressiva burocratização e oneração da organização de entidades da sociedade civil. E isso prosseguiu, com algumas características próprias, durante os governos petistas.

[13] Chamo de realizadores amadores aqueles cineastas que, vindos da tradição do documentário e do curta-metragem brasileiros, sem espaço no mercado de exibição comercial, buscam formas de sobrevivência e reprodução de sua produção. O governo Lula criou diversas políticas de estímulo, descentralização e democratização dessa produção, que se juntou ao desenvolvimento e simplificação desenvolvidos com as tecnologias digitais, criando todo um novo segmento de produção, mais amplo e democrático, mas sem um mercado correspondente. A necessidade da exibição, até mesmo para justificar os investimentos feitos, exigia esse mercado, ou um espaço de exibição. E esse acabou sendo o dos cineclubes, e também os inúmeros festivais de cinema. Hoje há um mercado importante para certo tipo de produção de média e curta-metragem: a televisão. Por isso também, a produção que não é aceita nesses mercados reveste-se de mais um aspecto de amadorismo. Não tem a ver com qualidade, mas com a forma estrutural dos mercados no Brasil. Neste sentido específico, as políticas dos governos petistas não questionaram a dependência estrutural do cinema brasileiro em relação à indústria audiovisual internacional; na verdade submeteu-se a ela e até a consolidou ainda mais.

[14] Foi também em 2008 que os cineclubes brasileiros tomaram conhecimento da Carta dos Direitos do Público, aprovada anos antes pela Federação Internacional de Cineclubes a partir de uma proposta da principal federação italiana (de autoria de Fabio Masala e Filippo de Sanctis). A Carta propõe o reconhecimento do público como principal agente formador de sentidos no campo da expressão audiovisual e propõe diversos direitos de organização e participação no processo de gestão das políticas para o cinema e para as mídias audiovisuais. Sob a influência dos realizadores, e participação das principais lideranças cineclubistas de então, a leitura da Carta foi reconfigurada na ideia de que direito do público era apenas o acesso: poder assistir os filmes que estavam sendo produzidos. Tornou-se mais um reforço ideológico.

[15] Foram chamadas de Jornadas três encontros: em 2013, em Vitória (ES), em 2015, em Itaparica (BA) e em 2019, em Viçosa (MG). Em cada um deles se elegeu uma diretoria do CNC, entre outros cargos. Nos três casos compareceram cerca de 30 pessoas, ou menos (as Jornadas historicamente sempre reuniram pelo menos uma centena, ou mais, de participantes). O último encontro reformou os estatutos, estabelecendo a realização das Jornadas a cada 4 anos (e o respectivo mandato da diretoria também, claro) – o que é um caso único em todo o mundo: no Brasil as Jornadas sempre foram anuais ou bianuais, com uma reunião intermediária menor, mas de alcance nacional, a chamada Pré-Jornada.

[16] A Política Aldir Blanc (também chamada erroneamente de lei Aldir Blanc 2), no entanto, se diferencia bastante dessas, e cria novas formas de proposição e participação comunitária. Abordei esse tema com mais profundidade no artigo disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html

[17] Esse comentário refere-se às políticas para o campo especificamente comunitário da cultura, bastante marginal no caso da Lei Paulo Gustavo, voltada basicamente para a recuperação de todos os recursos para a produção cinematográfica retidos durante o governo Bolsonaro.

[18] Williams, Raymond. 2011. Cultura e Materialismo, p.56-59. Ed. UNESP

[19] Há várias referências a Gustave Cauvin, as principais sem tradução em português. Por exemplo : Bourde, Raymond e Perrin, Charles, 1992, Les Offices du Cinéma Éducateur et la survivance du muet 1925-1940, Presses Universitaires de Lyon, ou Almberg, Nina e Perron, Tangui. “La propagande par le film: les longues marches de Gustave Cauvin » na revista 1895, n° 66 - primavera 2012, p. 35. Mas há um artigo em português sobre os primeiros anos e atividades de Gustave Cauvin: Mundim, Luiz Felipe, “As marchas de Gustave Cauvin – a primeira forma sistematizada e regular do cinema militante” na Revista Mundos do Trabalho | vol. 9 | n. 18 | julho-dezembro de 2017 | p. 83-98.

[20] Nos anos 50, a idade do ouro da cinefilia, existiam cerca de 10 mil cineclubes na França, organizados em várias federações nacionais diferentes. A maior delas, com 8 mil cineclubes, era a federação dos cineclubes educativos. Todos juntos, tinham um público (obrigatoriamente constituído como associado) anual de alguns milhões de pessoas.

[21] Estimulado por Lênin e outras lideranças bolcheviques na área cultural, promoveu-se, no início dos anos 20, a chamada Cineficação: um amplo leque de medidas de acesso ao cinema, envolvendo exibições itinerantes de diversos tipos e um circuito de cineclubes (sem essa denominação) em milhares de clubes de trabalhadores em toda a União Soviética.

[22] Organizações de trabalhadores, entre os anos 20 e 30, inicialmente constituídas em solidariedade à Revolução Soviética, dedicadas à exibição e produção de filmes com forte identidade de classe.

[23] Também não estou tratando também das questões específicas do cinema, dispositivo técnico e econômico, que sofreu um impacto fundamental com o advento da televisão, transformando profundamente a relação com os públicos nas décadas de 50 e 60. Essas mudanças tiveram, claro, igualmente um impacto no cineclubismo. A televisão, e depois as diversas formas de reprodução e consumo caseiro enfraqueceram enormemente o cineclubismo tradicional, particularmente nos países centrais. Esse mesmo fenômeno teve um impacto bem diferente na América Latina, por exemplo. Essas análises, contudo, alongariam demais este texto.

[24]   O terceiro princípio ontológico (de Engels), nos quais a emergência pode agora ser vista como resultado de contradições (“o desenvolvimento incompatível de elementos diferentes dentro de uma mesma relação”) que surgem das mudanças materiais e históricas, levando à “negação da negação”, uma expressão comum a Hegel, Marx e Engels. Na versão marxiana, a frase se aplica à maneira em que o passado faz a mediação entre o presente e o futuro no desenvolvimento material e histórico, produzindo uma dialética de continuidade. O próprio Engels referia-se à “forma espiral de desenvolvimento” que ocorre quando os resíduos do passado e os elementos ativos do presente combinam-se para gerar o que Ernst Bloch chamaria de “ainda não”. (a tradução é minha) Foster, John Bellamy. “The Return of the Dialectics of Nature: The Struggle for Freedom as Necessity” em Monthly Review – acessível em Monthly Review | Volume 74, Number 07 (December 2022).

[25] Martín-Barbero, Jesús. 2013. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

[26] Hall, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo, acessível em Microsoft Word - texto_stuart_centralidadecultura.doc (ufrj.br). O texto constitui o capítulo 5 de Thompson, Kenneth (ed.) 1997.Media and Cultural Regulation, Londres: Sage Publications.

[27] Ver nota 23.

[28] Baecque, Antoine de. 2010. Cinefilia, São Paulo: Cosac & Naify, baseado no artigo do mesmo Baecque e de Thierry Frémaux, “La cinéphilie ou l'invention d'une culture”, na revista Vingtième Siècle. Revue d'histoire. 1995, no. 46,  p. 133-142, e o livro, menos conhecido no Brasil, de Gauthier, Christophe. 1999. La Passion du Cinéma: Cinéphiles, Ciné-Clubs Et Salles Specialisées à Paris de 1920 a 1929. Paris : École Nationale des Chartes.

[29] Abel, Richard. 1984. French Cinema – The First Wave, 1915-1929. Princeton University Press.

[30] Jullier, Laurent e Leveratto, Jean-Marc. 2010. Cinéphiles et cinéphilie Une histoire de la qualité cinématographique. Paris: Armand Colin.

[31] Entre 2008 e 2010 aconteceram três Conferências Internacionais de Cineclubismo, duas no México e uma no Brasil. Na 2ª Conferência mexicana foi “redescoberta” a Carta de Tabor dos Direitos do Público (de 1987). E também duas importantes assembleias da Federação Internacional de Cineclubes-FICC, no Brasil (2010) e em Túnis (2013). Nesta última comemorou-se o centenário do cineclubismo, estabelecendo o Cinema do Povo como principal referência histórica para a definição do conceito de cineclube.

[32] Na concepção bancária de educação, o saber é uma transmissão hierárquica de conhecimento, em que os alunos recebem o “depósito” do conteúdo. Freire, Paulo. 1996. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra.

[33] No original, claro, os autores falam de ler e de escrever. Cavallo, Guglielmo e Chartier, Roger. 1998. História da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo: Ed. Ática.

[34] As aspas são por conta do fato de que, ainda que representem meios de expressão com grande potencial, as produções feitas fora do mercado ou controladas pelos mecanismos do capital – fundamentalmente as plataformas de difusão – não atingem públicos significativos ou têm seu conteúdo parcial ou totalmente neutralizado pelo próprio sistema (sobretudo a monetização) de exploração e controle dos espaços virtuais de comunicação.

[35] Como foram denominados os filmes e aparelhos de 9,5 mm (1921) e 16 mm (1923), o 8 mm (1932) e, posteriormente, o Super 8 mm (1965).

[36][36] Bakhtin, Mikhail (Volochínov). 2014. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec