sexta-feira, 10 de maio de 2024

 Uma concepção proprietária da cultura

O dia 10 de maio é reconhecido em alguns meios como o Dia do Público. A data é baseada nos eventos desse dia em 1849, conhecidos como a revolta ou os motins do Astor Place. Essa história pode ser melhor conhecida em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2011/05/o-texto-que-segue-e-base-de-uma.html.

O conceito de público não é lá muito bem compreendido. Na realidade atual, no nosso momento histórico e no estágio de desenvolvimento do nosso modo de produção, o público – dos espetáculos, dos esportes, da informação, mas também da exploração de sua intimidade, de suas informações pessoais e do controle do seu comportamento, tudo isso pelo dispositivo das mídias digitais – é basicamente o conjunto da população. Confunde-se com o que Marx chamava de proletariado, entendido também este como a classe fundamental que tinha a tendência de incorporar todos os outros segmentos da sociedade[1] sob a exploração da outra classe fundamental, a burguesia. É sinônimo do que Martín-Barbero[2] identifica como povo; ou os oprimidos, segundo Paulo Freire[3].   Neste dia, entre outras abordagens, é oportuno compreender e divulgar que o público - o povo, a classe trabalhadora ou outros sinônimos – está, em essência, ausente da concepção e das ações que baseiam as políticas públicas do governo brasileiro para a cultura, desde a criação do Sistema Nacional de Cultura, em 2005, até a promulgação do seu “marco regulatório”, em 4 de abril deste ano.

O texto que segue se organiza, de forma sintética, em diferentes tópicos que buscam se articular, se complementar, no sentido de embasar rápida e simplificadamente as ideias de que não há espaço para o público na pretendida organização da cultura no Brasil, o que compromete seu caráter supostamente democrático

Propriedade privada e superestrutura

Relembrando o mais básico: a organização da forma de reprodução da vida cotidiana, em cada época histórica, é sempre determinante para a formação das estruturas mentais, simbólicas, ideológicas da sociedade. São os conhecidos conceitos marxianos de base e superestrutura. Essa ligação não é estritamente mecânica, nem simultânea, mas é sempre dedutível a partir de uma observação rigorosa.

Historicamente, um dos principais elementos dessa determinação foi a criação da propriedade privada dos meios de produção. Sobre essa apropriação se estruturaram as primeiras divisões de classes sociais. A propriedade privada aliena o ser humano do fruto do seu trabalho e dela derivam diversas formas de submissão e exploração de uma ou mais partes da sociedade por determinadas minorias de sua época. E, a partir dessas relações de domínio e subalternização, igualmente se constituem diferentes formas de consciência – ideológicas - da referida situação. 

Patrimonialismo na formação brasileira

Como já foi dito, essas formas de consciência produzidas pelas relações de produção, não são nem construções mecânicas nem simultâneas. Muitas derivam de passados até distantes e parecem se eternizar, adaptando-se de alguma forma a novos cenários sociais. Um dos grandes benefícios do conhecimento histórico é precisamente a possibilidade de compreendermos a evolução dos elementos que vêm a constituir a forma da falsa consciência dominante, a ideologia hegemônica de nossa época. Nesse sentido, o clássico de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder[4], percorre um longo trajeto desde a herança visigótica na formação de Portugal até a atualidade mais ou menos recente do Brasil. Não é o único autor a desenvolver o sentido da herança patrimonialista na nossa cultura nacional, mas é dos mais instigantes. Resumindo muito o texto de Faoro, ele mostra como o caráter militar autoritário e as relações de compadrio na administração, a partir do chefe absoluto, transmitiram-se na criação de estamentos de apaniguados, o que nos leva a pensar também nas relações do homem cordial de Raízes do Brasil[5].

No entanto, no tratamento weberiano de Faoro, o patrimonialismo é uma ferramenta arquetípica, que se aplica bem para as relações mais estritamente políticas e administrativas, e não como uma descrição do processo social total, concreto. Assim, mais uma vez bem simplificadamente, no Brasil, especialmente os mais completamente excluídos - indígenas e escravizados, e depois a classe trabalhadora moderna - não fazem completamente parte do acordo que legitima as dependências mais típicas do patrimonialismo. Sem esquecer a orientação dominante do capital estrangeiro[6], que sobredetermina essas relações. O conceito patrimonialista, contudo, tem uma importância até hoje inevitável ao considerarmos os ambientes políticos institucionais e de parte importante da administração pública, além de outros aspectos.

A “classe” artística

Um estamento que se liga estruturalmente ao conceito weberiano é o dos artistas de todos os tipos, geralmente vulneráveis e dependentes, na história, dos favores da classe dominante, sobretudo nos albores do capitalismo – ou, agora, das chamadas políticas públicas, nos sistemas institucionais mais modernos. No capitalismo contemporâneo, um pequeno segmento desse setor se liga diretamente ao capital, com pouca ou nenhuma intervenção do Estado, isto é, com uma certa dose de autonomia: são as grandes celebridades das artes, dos espetáculos, dos esportes. Mas a grande maioria segue dependente de estruturas institucionais de proteção. No nosso país, o Estado tornou-se fundamental para a existência desses artistas, e de forma muito própria. Até grandes produções, em diferentes linguagens, passam pela relação com o Estado através da renúncia fiscal, sobretudo pela lei Rouanet ou pela taxação de segmentos de mercado, como os mecanismos de financiamento do audiovisual. Mas grande parte dos artistas, dependentes diretos do Estado para o acesso aos meios de produção e de circulação dos bens que produzem, ocupam um nicho social próprio e bem definido. Muitos, não participando do mercado no sentido mais estrito, tendem a se identificar mais com a classe trabalhadora da qual, com alguma frequência, se originam. Certamente não constituem realmente uma “classe” artística, como muitos costumam representá-la (ou representar-se), mas sim um segmento especializado, e corporativo, da população – daí o cabimento do conceito weberiano. O Estado brasileiro, como os de muitos outros países, em sua clássica função de regular os conflitos sociais preservando ou promovendo os interesses das classes dominantes, criou uma rede de assistência, que é também de dependência, vital para a sobrevivência de uma ampla gama de práticas culturais ou artísticas.

A autoria como propriedade

Como trabalhadores, os artistas produzem bens e serviços – as chamadas obras: de literatura, música, cinema e outras, e as apresentações, como espetáculos, exposições– cujo aproveitamento social é, principalmente, mas não exclusivamente, controlado pelo capital, pelas companhias de edição, de produção musical, audiovisual, etc. Mas esses trabalhadores têm uma particularidade, uma diferença significativa em relação aos demais: artistas constituem apenas uma parte relativamente pequena dos consumidores finais, com os quais, aliás, em geral não se confundem. Produtores e consumidores, no esquema produtivo capitalista, são partes iguais de uma mesma equação econômica e social em que apenas se distinguem como descrição: o consumo é produtivo, o trabalhador é o consumidor. E não há dificuldade para que se identifiquem nos dois papéis.

Poucos artistas, porém, se reconhecem, se pensam como público, isto é, como consumidores – embora o sejam. A forma de consciência mais comum vê as manifestações artísticas como fruto de um talento ou sensibilidade especiais, exclusivos e, de certa forma, como uma forma de propriedade, dos artistas. De fato, em seu formato mais flagrantemente ideológico, essa noção de propriedade, dita intelectual ou autoral, não evitou – antes, facilitou - que ela se tornasse transferível para o capital que controla de fato sua circulação social. Essa forma de propriedade, hipereufemisticamente chamada de direitos autorais, é cada vez mais central no sistema atual de apropriação da produção humana, e definidora do estágio atual do modo de produção capitalista. Aqueles artistas que, com ou sem consciência, defendem essa ideia apenas reproduzem e disseminam a ideologia da classe dominante: a chamada arte, ou artes, como propriedade.

André Reszler[7] tem uma citação de Piotr Kropotkin sobre a arte:

“A arte da idade média, como a arte grega, não conhecia esses armazéns de curiosidades que chamamos um museu ou uma galeria nacional. Esculpia-se uma estátua, fundia-se um bronze ou pintava-se um quadro para serem colocados em seu lugar próprio num monumento de arte comunal. Aí a obra vivia, era uma parte vivente do todo, e contribuía para a unidade da impressão produzida pelo todo.”

O teórico anarquista descreve justamente a circulação da cultura, das “artes” e das obras como propriedade comum e como processo social em que estão imersos todos os produtores e talentos individuais criadores. Michael Spitzer, igualmente, destaca o processo histórico que levou à “especialização” dos talentos sobretudo no Ocidente, abafando a capacidade criativa da maioria, dos públicos[8]. A circulação desses conteúdos entre a espécie, justamente, é o que distingue o ser humano como animal social. Produzimos sentidos, conteúdos, pela nossa relação intersubjetiva com nossos semelhantes, organizando-nos socialmente para produzir e para nos reproduzirmos. É essa circulação, coletiva, social, que cria, e quando reconhecemos um produtor em especial dessa criação, é certo que ele está indissoluvelmente inserido nesse processo coletivo, em que é um elo de uma produção que o antecede e que a ele sucederá. A conhecida frase de Gramsci: “todo homem é filósofo”, adapta-se perfeitamente à ideia de que todo humano é artista; apenas o modo de produção estabelece, “seleciona” especialistas.

Com o desenvolvimento da chamada Inteligência Artificial, a autoria perde seus últimos traços de originalidade aparente, de sensibilidade imanente: os sofisticados sistemas algorítmicos usados atualmente pelas grandes empresas cibernéticas – as chamadas Big Techs - reproduzem ou mimetizam de forma automatizada os processos de interação social de produção de sentido, que estão na origem da criação das diversas linguagens e manifestações artísticas: são generativos, como se diz. É cada vez mais difícil distinguir, assim, a “autoria” da máquina daquela produzida pelo processo social – o que comprova outra vez o caráter falacioso da própria noção. Se essa noção especializada de autoria não existia antes da Renascença, parece que deverá desaparecer novamente da história em futuro próximo. O capitalismo pode destruir o intermediário – o artista – que ele mesmo criou.

Uma condição colonial

Mais uma vez de maneira muito simplificada, podemos dizer que o Brasil nunca superou uma espécie de condição colonial que, apesar de mais de 500 anos de história, se reproduz, se reinventa a partir de uma situação inarredável de dependência, subalternidade e atraso. Continuamos a exportar produtos brutos – hoje dependentes até na nomenclatura: commodities – e a importar os bens de consumo final, inclusive no campo das ideias. Em muitos sentidos, o País nunca teve, realmente, uma revolução burguesa: as transformações fundamentais que têm maior relevância para nós aconteceram na Europa ou na América do Norte, e mesmo em partes da Ásia. Nossa burguesia nacional nunca foi capaz de liderar um processo autônomo de independência e desenvolvimento. Nem nossas classes trabalhadoras conseguem propor efetivamente um projeto alternativo de justiça social e emancipação ao conjunto da sociedade. Parte importante do Brasil é moderna, somos completamente capitalistas de modo bem próprio, mas apenas construímos nossa realidade de forma reativa, dependente, subalterna, determinada pelas classes dominantes no plano mundial.

A questão da hegemonia

Também vou ser breve, simples e esquemático neste item. As revoluções, isto é, as transformações sociais profundas, radicais, quase sempre violentas e rápidas (historicamente), são produto da acumulação de transformações parciais, muitas vezes localizadas, geralmente pacíficas e de mais longa duração. De fato, o capitalismo, que tem algumas origens distantes no ressurgimento das cidades durante o feudalismo, ou no desenvolvimento da chamada etapa mercantil – ou de acumulação primitiva – já era institucionalmente dominante em muitos aspectos da economia e da sociedade quando a insatisfação com os problemas do feudalismo finalmente atingiu os níveis insurrecionais (um pouco diferentes entre si nos casos clássicos de revolução burguesa) indispensáveis para a conclusão do processo. Ao contrário do que parecem pensar o que chamamos de esquerdas em nosso País, o caminho para uma mudança revolucionária da nossa condição colonial não se constitui apenas de eleições periódicas e de manifestações “nas ruas”. Estas exigem um arcabouço ético e ideológico que motive as massas, sustente sua disposição diante das dificuldades e derrotas parciais em suas lutas políticas. Em suma, instituições capazes de reunir as comunidades de trabalhadores[9], gerar e fazer circular entre eles valores e ideias que permitam seu autoconhecimento, seu reconhecimento como classe e como agente social e histórico da única transformação realmente possível em nossa sociedade. Hoje cada vez mais urgente, sob a dupla ameaça de aniquilamento nuclear ou de extinção pela destruição planetária.

É claro que tampouco uma rede de instituições culturais é por si só suficiente para promover a revolução. O conhecimento e a indignação que mobilizam para as transformações revolucionárias não são mero produto de um processo de certa forma educacional: a consciência de classe se forja, dialeticamente, e por saltos qualitativos, nas lutas concretas. Depende da interação, portanto, das formas de organização com base econômica, ideológica e política. As direitas - aplicando a mesma forma de tratamento usada mais acima - estão vencendo essa disputa, ocupando espaços comunitários com seus templos milenaristas, usando muito mais ampla e eficientemente os meios digitais de comunicação, enchendo “as ruas” com alienados alucinados, dominando o Congresso e, em grande medida, determinando os limites da própria governabilidade, da democracia capitalista liberal e dependente.

Um Sistema Nacional da Cultura – representação e políticas

Se combinamos o caráter patrimonial, de estamento e, ainda, a noção de intimismo à sombra do poder – que Carlos Nelson Coutinho empresta de Lukács[10] - talvez fique mais fácil de compreender o que segue. O último conceito, de que ainda não nos ocupamos, refere-se, neste caso, à ausência de questionamento - por parte dos beneficiados pelos programas governamentais para a área da cultura comunitária - desse mesmo governo e das bases político-ideológicas das suas chamadas políticas públicas. Em que pese um certo sentido progressista, dito genericamente de esquerda, dos partidos que orientam e administram esses programas voltados para várias formas de produção cultural comunitária, eles foram fortemente influenciados por ideias neoliberais, como as de empreendedorismo, economia criativa e outras sobejamente adotadas nos discursos, nas disposições e mesmo na administração de instituições federais. Assim, a ideologia subjacente e corporificada pela legislação que cobre esse tema – a cultura – reproduz a lógica, a dependência e a reprodução do mercado na produção mais comercializável, e oferece uma postura paternalista de “proteção”, de “orientação” ou de “educação” dos públicos populares e comunitários, nos quais não reconhece, de fato, iniciativa e autonomia. Eles participam do Sistema através dos artistas, “profissionais” ou especialistas supostamente mais representativos e gabaritados que os públicos – as pessoas comuns - às quais se reserva o papel de objeto, plateia ou “beneficiada” das políticas ironicamente chamadas de públicas.

Aqui também parece haver uma contaminação de tipo estruturalista. Muitas vezes mal comparado a outros “sistemas”, como o de Saúde, que é assistencial por definição, o “sistema” acaba por substituir o processo participativo, engessando a dinâmica social própria da cultura. O Sistema Nacional de Cultura, iniciativa ainda do primeiro governo Lula, constrói um edifício relativamente complexo de relações entre entes culturais: federais, estaduais, municipais e, finalmente, individuais, supostamente estabelecendo, dessa forma, uma representação democrática do conjunto da população. A iniciativa é, em alguma medida, positiva, especialmente no campo administrativo: procura organizar as relações entre as instâncias públicas, assegurar certos fluxos de recursos, propiciando um avanço inédito em vários aspectos da gestão estatal principalmente da produção artística – incluindo a considerada artesanal. Esse avanço representa uma sistematização, uma reforma importante da burocracia da cultura. Mas subsistem questões essenciais, equívocos fundamentais de análise política, e vícios burocráticos encrostados na administração pública.

Esse “sistema” estabelece várias instâncias de suposta participação cidadã. No entanto, os diferentes tipos de conselhos e alçadas de participação são, de forma geral, majoritariamente constituídos por funcionários públicos ou indicações das instituições ou gestores governamentais. Ou são meramente consultivas. Da mesma forma, as conferências municipais, estaduais e nacional, promovidas com recursos governamentais para considerar propostas originadas no aparelho estatal, acabam substituindo as iniciativas populares pela mobilização partidária militante e por diferentes oportunismos que facilitam a cooptação, talvez não buscada, mas facilmente assimilada. É o Estado que, em grande parte, seleciona, organiza, gere e, em última instância, direciona as formas de organização, participação e deliberação dos participantes

No entanto, a questão mais fundamental é a ausência do público, do povo mesmo, nesse processo. Reproduzindo o viés proprietário, elitista e excludente (com roupagens populares, quase que literalmente) – principalmente corporativo e, no limite, conservador – as “bases” do sistema, as conferências e conselhos são constituídas basicamente por artistas e outros profissionais ou especialistas, e não pela população mesma ou, em outras palavras, pela totalidade das classes trabalhadoras, isto é, do público. Não se prevê a participação de sindicatos, associações de moradores, movimentos sociais e muitas outras formas de organização popular, privilegiando os artistas, estimulando um caráter corporativo – e dependente. A interpretação da participação democrática é feita de forma proprietária: uma espécie de voto censitário, em que a propriedade indispensável para legitimar essa concepção de cidadania é a pretensa autoria, o suposto talento, a diferenciada sensibilidade artística.

Evidentemente, os produtores de bens e serviços chamados de artísticos necessitam, na organização social em que vivemos, de proteção e apoio: o mercado não os ajuda, antes os enfraquece e até combate – o Estado, então, o substitui no papel de “instrumento e local da conciliação de classes”[11]. Mas, como a realidade tem demonstrado, as necessidades econômicas corporativas influenciam fortemente nos processos de cooptação, de intimismo e, afinal, de substituição da representação mais radicalmente democrática.

O desenvolvimento dessa concepção é, em grande parte, decorrência das primeiras experiências com programas culturais de base comunitária, como o programa Cultura Viva e seus apêndices, que serviram de base para a formulação do Sistema Nacional de Cultura. Ali já estavam em germe todas essas contradições, que continuam a influenciar os novos textos legais, sem um efetivo desenvolvimento crítico. Ao contrário, uma nova legislação[12], fruto indireto do período bolsonarista, acaba sendo adaptada a posteriori, sobretudo quando esses textos legais passam à fase de execução, através dos decretos regulatórios e, especialmente, dos editais. Produzida no Congresso – uma vez que o Executivo era anticultura – procura-se adequá-la posteriormente a um centralismo característico dos governos progressistas recentes. Aí se percebe mais um desvio de orientação: os editais interferem e modificam os textos legais, reintroduzindo um protagonismo estatal que exclui, acrescenta ou substitui parte das disposições originais da lei.

Conclusões

A cultura não é uma atividade ou profissão. Muito menos um mercado. É um processo social muito mais amplo e complexo. Não é responsabilidade dos artistas, mas de todo o povo, de todos os públicos – tal como a guerra ou a ordem social não podem ser responsabilidade exclusiva de militares ou policiais. A concepção proprietária da produção cultural serve bem ao capital que, com essa forma, se apropria do valor produzido pelos produtores culturais e determina seus beneficiários. Politicamente, o poder real continua fora do alcance das grandes maiorias. A presença destas é apenas simbólica, representada através de alguns aspectos formalmente democráticos, parcialmente populares, pouco significativos em termos de participação e, sobretudo, de ação transformadora radical.

Essa crença é manifestação subsidiária da ideologia das classes dominantes e dela decorre, em última instância, a orientação seguida pelo governo brasileiro. É claro que esse arcabouço administrativo e vários aspectos dessa política constituem-se em avanços relativamente a praticamente todos os outros governos da República. Este texto não é contra os artistas, que são uma parte significativa nesse processo, mas sim a favor do público, que constitui a real totalidade. Em que pese seus avanços, contudo, essa política, esse Sistema não trata do essencial, não representa uma mudança na orientação ideológica dominante e não busca a sua superação, promovendo, de fato, a sua reprodução.

 



[1] Marx, Karl. 2012 (1844). Manuscritos económico-filosóficos. São Paulo: Boitempo.

[2] Martín-Barbero, Jesús. 2013. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ.

[3] Freire, Paulo. 1994. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra.

[4] Faoro, Raymundo. 2000. Os Donos do Poder. São Paulo: Publifolha (Editora Globo)

[5] Holanda, Sérgio Buarque de. 2008. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras

[6] Fernandes, Florestan. 2008. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global.

[7] Reszler, André. 1974. La estética anarquista. México: Fondo de Cultura Económica, apud Hardman, Francisco Foot. 1984. Nem Pátria, nem Patrão! (vida operária e cultura anarquista no Brasil). São Paulo: Ed. Brasiliense. Não consegui acesso gratuito ao livro de Reszler: a citação pode ser de Kropotkin, P.  2009. Ajuda mútua: um fator de evolução. São Sebastião: A Senhora.

[8] Spitzer, Michael. 2021. The Musical Human – A History of Life on Earth. Londres, Oxford, Nova York, Nova Delhi, Sidney – Bloomsbury Publishing.

[9] O termo, no Brasil, inclui trabalhadores formais e informais, desempregados e excluídos da própria condição de trabalho, por diversos motivos econômicos e preconceitos ideológicos – como gênero e outros.

[10] Coutinho, Carlos Nelson. 2005. Cultura e sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A Editora.

[11] COUTINHO, Carlos Nélson, op. cit.

[12] Considero aqui fundamentalmente a Política Nacional Aldir Blanc. Os textos chamados de Lei Aldir Blanc 1 e Lei Paulo Gustavo foram propostos sobretudo para mitigar os problemas da Pandemia e, no segundo caso, principalmente para compensar as perdas da produção audiovisual nacional durante o governo criptofascista. Ver mais em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html