Entrevista dada a Katiane Rodrigues, estudante do curso de pós graduação em Mídia, Informação e Cultura do Celacc, núcleo de pesquisa da ECA/USP.
Há quanto tempo está envolvido com o movimento cineclubista?
Como tudo começou?
Desde 1972. A Cinemateca Brasileira estava praticamente abandonada por causa da repressão do governo militar. A maioria dos intelectuais envolvidos com a Cinemateca estava sendo perseguida, exilada. A Lucilla Ribeiro Bernardet foi a mentora, então, de um grupo de jovens que resolveu colaborar voluntariamente para impedir o abandono total daquele acervo tão importante. Quem me levou para lá foi o Alain Fresnot, que já estudava e fazia cinema. Eu fui me envolvendo e, na verdade, fiquei lá até 1975. Como a Cinemateca tinha um acervo em 16 mm, emprestávamos esses filmes para os frágeis cineclubes que atuavam semi-clandestinamente na época. Um início de movimento foi se constituindo em torno dessa atividade, com a qual eu me envolvi cada vez mais, e disso resultou a reorganização do movimento cineclubista em São Paulo, e depois no Brasil (o movimento e as grandes entidades cineclubistas haviam sido destruídas logo após o AI-5, em 1968), entre 73 e 74. Saí da Cinemateca em 1975, assumindo a direção da Federação Paulista de Cineclubes, que fundamos. Em seguida, com aquele mesmo acervo 16mm, cedido pelo Paulo Emílio Salles Gomes, ajudei a organizar a Dinafilme, distribuidora de filmes para o chamado circuito alternativo, que foi a coluna vertebral de um amplo movimento cultural e de resistência, até a redemocratização do País nos anos 80.
O que significa ser cineclubista?
Creio que há mais de um sentido para a palavra. Em primeiro lugar, acho que cineclubista é quem freqüenta cineclubes com uma certa consciência de que isso representa uma relação diferente com os filmes, com o cinema. Implica uma adesão, um certo engajamento. Mas que está ligado fundamentalmente à curiosidade e ao prazer de conhecer mais e melhor o cinema; não é à toa que a cinefilia é um fenômeno cineclubista. Desse amor que também é engajamento resulta que os cineclubes, e particularmente os cineclubistas, estejam na origem de tantas instituições de estudo, divulgação, preservação do cinema, como a crítica e as publicações críticas, as cinematecas, os festivais de cinema.
Mas cineclubista também é usado no sentido de militante cineclubista, falando dos que se envolvem nos trabalhos de manutenção dos cineclubes e/ou na batalha pela sustentação e desenvolvimento do cineclubismo como um movimento cultural e social. O que é, enfim, um desdobramento da acepção anterior, não é?
Mais a fundo, podemos aceitar que o cineclubista também se defina num plano mais ideológico, como contraposição ao “espectador”, no sentido daquele que apenas assiste, sem participar, como objeto e não como sujeito do processo cultural ou comunicacional. Neste último sentido você pode encontrar exemplos históricos como o do cineclubismo católico, comunista ou operário, entre outros.
Qual é a função dos cineclubes?
Varia bastante histórica e geograficamente. Mas essa variação gira em torno de um eixo básico e comum: a organização do público. Os cineclubes nasceram exatamente no momento em que se consolidava um modelo dominante e dominador de cinema, no final da segunda década do século passado. Os cineclubes surgiram como reação à imposição de um modelo estético e de um discurso ideológico, consubstanciados no que chamamos de cinema clássico hollywoodiano. Os cineclubes nasceram como formas de organização do público para participar do processo cinematográfico. Louis Delluc, fundador de um dos primeiros cineclubes, responsável pela aplicação do termo cineclube a esse tipo de atividade (a palavra parece ter surgido bem antes, em 1907), foi também o criador da palavra cineasta, que tinha o sentido de “espectador integral”, que vê, estuda e faz cinema. Outro “pai do cineclubismo”, Ricciotto Canudo, também defendia essa “integralidade”, vendo no cinema a somatória ideal das expressões artísticas.
Então, eu diria que os cineclubes têm como função mais essencial superar a alienação do espectador, entendendo o público e a criação como um processo único e integral, apenas separados historicamente por um modelo de cinema que organizou o processo criativo e cultural em torno do lucro.
Nos diferentes momentos e situações, nos vários países em que os cineclubes existiram e existem, essa definição mais geral encontra manifestações bem concretas: os cineclubes têm funções educativas, de resistência política e cultural, de democratização do acesso ao cinema, entre muitas outras.
No Brasil, por exemplo, os cineclubes são os maiores responsáveis pelo surgimento e disseminação da cultura cinematográfica. É o Chaplin Club que traz para o Brasil os grandes temas do cinema discutidos na Europa dos anos 20. Depois do Clube de Cinema de São Paulo, em 45, espalham-se cineclubes pelos estados, dando origem à cultura cinematográfica e à crítica local e, posteriormente, às novas gerações, como a do Cinema Novo, formada naqueles cineclubes.
Nos anos 70 os cineclubes criaram um amplo movimento de resistência à ditadura, que atingiu mais de 2.000 pontos de exibição (é o tamanho do circuito exibidor comercial hoje) em todo o território nacional.
E hoje, ainda sem grande efetividade, é só nos cineclubes que se discute uma alternativa para um modelo de cinema completamente superado - em que menos de 10% da população têm acesso ao cinema em geral e, destes, um décimo logra ver algum filme brasileiro, ao mesmo tempo em que a produção se sustenta artificialmente no subsídio estatal e não chega a ser exibida.
Além de tentar propor uma alternativa, os cineclubes a estão construindo, promovendo exibições e organização do público lá onde o cinema comercial não chega.
Nos países subdesenvolvidos, a promoção do acesso ao cinema é corolário obrigatório de outras funções que os cineclubes exercem.
De que maneira os cineclubes contribuem para o desenvolvimento do espírito crítico e o desenvolvimento cultural das pessoas que o freqüentam e da comunidade local?
Como você definiria a experiência de ir ao cinema tradicional e a experiência de ir a um cineclube?
Durante muito tempo – especialmente a partir das diretrizes da Igreja Católica, nos anos 30, e também de significativos setores da esquerda – pensou-se que o público podia e devia ser influenciado na “boa” direção, com “bons” filmes e mensagens edificantes. Certamente esse também é o pressuposto do cinema hollywoodiano que, além de procurar responder a “instintos” e gostos subjetivos que seriam aferidos pelo mercado (“nós damos o que eles querem”), também tem a intenção bem definida de exportar valores e comportamentos: “Aonde for o nosso cinema irão os nossos produtos e o nosso modo de vida” – citando aproximadamente o discurso de Woodrow Wilson no Congresso Mundial de Vendedores de Detroit, em 1916. Assim, uns e outros pretende(ra)m fazer a cabeça dos espectadores, em diferentes direções.
Por incrível que pareça, é apenas por volta dos anos 70 que se vai “descobrir”, no mundo acadêmico, que o público reage de forma diferente às mensagens – da literatura ao cinema – segundo sua história e experiência de vida, classe social, gênero, etc. Não se faz a cabeça das pessoas, interage-se com elas.
Ou como o Paulo Emílio Salles Gomes dizia: “Transmissão de conhecimento é uma besteira. O conhecimento é uma conquista, uma experiência, a ligação de uma série de coisas que acontecem. O que o sujeito pode tentar é criar uma atmosfera para que as coisas surjam e que as pessoas aprendam”.
Os cineclubes, portanto, contribuem para esse desenvolvimento crítico fundamentalmente por propiciarem a experiência de um cinema diferente do monolitismo de Hollywood e adjacências - e/ou do audiovisual televisivo. Idealmente, um cinema plural, de todo o mundo, do Brasil, com diferentes abordagens e perspectivas de linguagem, temática, etc. Tudo aquilo que o nosso cinema comercial não traz, nem mesmo para a elite reduzida que a ele tem acesso.
A diferença na experiência de ir ao cinema tradicional (e aqui há uma dúvida, pois há um cinema de arte tradicional, além do estritamente comercial – mas, aquele é até mais elitista do que este) ou ao cineclube reside, então, fundamentalmente nessa orientação: o cinema comercial é essencialmente (não simplesmente) alienante. E as condições de sua apresentação, desde os tempos dos palácios de cinema até os modernos IMAX ou 3Ds, estão bastante ligadas à descontração e fuga que colaboram para esse fim último.
Mas não sejamos simplistas: espírito crítico não é fruto de desconforto. De fato, penso que todo o aparato das salas brasileiras de hoje, além da barreira econômica óbvia, que afasta a quase totalidade da população, também geram uma outra barreira de incomodidade, de classe e de raça, constrangendo quem não dispõe das indumentárias ou de outros códigos necessários ao trânsito confortável nos xópins da vida...
A precariedade de recursos a que têm estado sujeitos os cineclubes, por não contarem com praticamente nenhum apoio público ou privado, não é, portanto, uma qualidade, mas um impedimento muito concreto para o desenvolvimento e disseminação do seu trabalho. O que contribui como “atmosfera crítica”, na sessão do cineclube, além da programação diferenciada, é a informalidade, a visível produção em equipe, o compromisso com a comunidade, etc.
Nos cineclubes os freqüentadores são estimulados a criar seu próprio filme utilizando as novas tecnologias?
Como eu disse mais acima, o cineclube nasceu na perspectiva da unidade e integralidade do artista e do espectador. Parafraseando Gramsci, “todo homem é artista, mas só alguns exercem essa função na sociedade”. Idealmente, então, a perspectiva do cineclubismo não é nem o cinema do capital, do produtor, nem o “cinema de autor” (que ironicamente surgiu nos cineclubes): é o público como autor. É a proposta do cinema como obra coletiva, integrada à experiência e vivência do público – ou da comunidade, do povo... – na perspectiva de integração do particular com o universal.
As novas tecnologias cada vez mais nos aproximam dessa possibilidade, simplificando, barateando, democratizando o acesso aos meios de criação, de expressão audiovisual – em que pese os esforços poderosos e ininterruptos das grandes corporações de comunicação para controlar e restringir esse processo.
Na realidade imediata, uma das características do movimento cineclubista contemporâneo, especialmente o brasileiro (que é um dos mais importantes do mundo), é justamente a existência de cineclubes formados a partir de iniciativas de realização, pequenas produtoras ou coletivos que passaram a organizar projeções mais ou menos sistemáticas, chegando dessa forma ao formato de cineclube – ao invés de serem, como seria mais “tradicional”, iniciativas coletivas para ver filmes que, eventualmente, levam à produção.
Quais as perspectivas para o cineclubismo no Brasil e em São Paulo nos próximos anos?
Indiscutivelmente o movimento cineclubista brasileiro vive seu melhor momento desde sua reorganização, em 2003. No plano federal, algumas medidas governamentais (distribuição de equipamentos de projeção, disponibilização de filmes e oferta de oficinas de formação) apontam para um crescimento significativo de cineclubes em todo o País. Ainda são programas com poucos recursos e que necessitam de muitos aperfeiçoamentos, mas reafirmam uma trajetória de crescente reconhecimento da importância do cineclubismo. E os cineclubes têm demonstrado fartamente que conseguem fazer muito com muito pouco. Dialeticamente, o crescimento dos cineclubes e a consolidação de suas entidades – federações estaduais e Conselho Nacional de Cineclubes – reforçam a perspectiva de melhor diálogo com o governo. No entanto, os valores alocados são ainda muito pouco significativos (inclusive comparados a qualquer outros programas semelhantes) e o nível de institucionalização desses programas é muito pequeno, sujeitando-os à descontinuidade com as mudanças comuns na administração pública brasileira. Acredito que o melhor fiel dessa balança futurológica será o crescimento do movimento cineclubista e sua capacidade de organização e representatividade em relação às necessidades do público.
O mesmo raciocínio se aplica a São Paulo onde a equação é um pouco diferente. O Estado não tem política para o cineclubismo e não estimula, em geral, o diálogo com a sociedade civil. No entanto, tal como no plano nacional, os cineclubes paulistas estão em crescimento. A federação paulista, reorganizada em 2007, reúne mais de 70 entidades e vive um momento de bastante atividade. Se não tem espaço no plano estadual nem na capital, tem criado condições de diálogo com diversos municípios, com outras entidades e com os legislativos.
Uma característica muito atual dos cineclubes – e da ação cultural em geral – tanto em nosso estado como no País, me parece prejudicar bastante a perspectiva de fortalecimento do movimento cineclubista de forma independente em relação ao Estado. Há um hábito bastante generalizado de entender que a atividade sem fins lucrativos deve ser necessariamente gratuita. Isto coloca toda ação desse tipo numa situação de dependência estrutural e permanente em relação a um patrocinador, geralmente estatal. Poucos cineclubes arrecadam alguma forma de contribuição do público – de forma a serem sustentados por suas comunidades, de maneira independente – e praticamente se extinguiu a associação, como forma de participação e sustentação consciente dos aderentes às entidades.
Haveria, talvez, uma terceira variável nessa equação: a chamada iniciativa privada – especialmente através das diversas formas de renúncia fiscal. Não acredito muito nessa via. As empresas têm preferido investir em eventos e outras atividades pontuais, pouco ou nada alocando em ações mais permanentes e sistemáticas, que se enraízem nas comunidades. No plano da exibição audiovisual, o padrão é o investimento em exibições itinerantes, que dão um retorno mais imediato e mais visível: exibir filmes muito esporadicamente em praças públicas de comunidades carentes, como no caso dos circos, sempre mobiliza o pessoal e garante uma grande assistência. Mas não tem continuidade, não deixa saldo, não deita raízes.