segunda-feira, 2 de agosto de 2010


Vontade Política:
um cinema popular
em cada comunidade




“Um Brasil cheio de pequenas salas de cinema de qualidade. Fruindo o cinema nacional e tantos outros com muita dignidade.”
Gizely Cesconetto, mensagem 16383 da lista cncdialogo@yahoogrupos.com.br

Várias mensagens, na lista convivial dos cineclubes brasileiros, têm abordado a questão da falta de cinemas no Brasil e o sonho natural dos cineclubistas de superarem esse problema em suas cidades, em suas comunidades. Acho que quem começou foi o Paulo Rodrigues, esse Hermes ituano da lista cineclubista, seguido por comentários da Fernanda Lopes, da Ana Vidigal, uma bela crônica de Abrahim Baze, para citar os de que me lembro agora. De vários pontos do País. Até o Capitão Miranda, nosso inesquecível Vigilante Rodoviário, se manifestou. Acho que é perfeitamente possível termos um cineclube em cada comunidade brasileira (e de muitos outros países com condições semelhantes), com conforto, qualidade, dignidade. A mensagem da Gizely Cesconetto, que resume tão bem esse nosso sonho na frase que serve de epígrafe a este texto, também aponta o que penso ser simultaneamente o problema e a solução da questão: vontade política.

Temos o mau costume de identificar essa faculdade tão básica, a vontade, como atribuição do governo. Talvez, no caso, por que vem associada ao adjetivo política. Política como “arte de governar”, como trato das questões do Estado. Mas, na sua origem, o termo deriva de cidade, sem ornamentos administrativos; identifica-se com a reunião dos cidadãos, que é o exercício básico da política. Em ambos os casos, trata-se, enfim, de resolver os problemas da cidade, do conjunto da população. Assim, creio que pensar em vontade política, aplicada à questão da inexistência de cinemas, remete a, pelo menos, três ordens de consideração. Há a vontade política governamental, expressa nas – ou na ausência das – políticas públicas. Existe uma questão de vontade política do movimento cineclubista, como segmento organizado politicamente em entidades locais e nacional que o representam politicamente. E tem a vontade política da comunidade, que a cada cineclube incumbe personalizar, e essa última vontade se incorpora na militância de cada cineclubista que participa desse coletivo. A militância é expressão mais pessoal da vontade política. Evidentemente essas coisas só se separam na exposição do pensamento, porque lá fora, na realidade, estão fortemente imbricadas. Vou tratar rapidamente desses três ou quatro aspectos da vontade política.

Vontade política do Estado e do governo

No meu artigo O Modelo Brasileiro de cinema, procuro mostrar como a compreensão dos problemas do cinema brasileiro, no plano institucional (isto é, nos meios acadêmicos, na imprensa, nas diferentes esferas dos governos), ao longo dos tempos, sempre foi confundida com - e reduzida à - questão da produção. Isso se deve à hegemonia do modelo de Hollywood (em que a produção se localiza na origem do modelo econômico do cinema (1)) no plano ideológico, e à importância, o predomínio do ponto de vista dos produtores/realizadores brasileiros no espaço político e público de discussão do cinema brasileiro. Para além de qualquer “culpa”, esse já é um preconceito enraizado na nossa “cultura”, na maneira preponderante de vermos a questão do cinema. Um caso bem explícito de hegemonia ideológica. Claro que isso também está estruturalmente ligado à exclusão, igualmente “cultural”, dos interesses do público na questão.
Em outras palavras, a política pública para o cinema brasileiro sempre foi, quase exclusivamente, de investimento na produção, de sustentação da produção. Nunca houve uma política de apoio à exibição (2) e apenas controles bem frouxos da distribuição (cotas de tela, “Lei do Curta”). Defender o cinema brasileiro, nas consciências “cultas”, virou sinônimo de fomentar e proteger a produção. “Cinema brasileiro” virou produção...
Mesmo atualmente, com a inevitável tomada de consciência (num mercado exibidor que é 20% do que foi há 30 anos, e o público 6 vezes menor (3)) sobre a importância da exibição, ela ainda é vista como corolário, extensão do apoio à produção. Como o mercado não exibe filmes brasileiros - não porque o público não tem acesso ao cinema -, há que se criar mais salas de cinema. O público, cuja exclusão do “cinema brasileiro” (na verdade, exclusão do cinema e do processo cultural em geral) é gritante, constitui apenas um álibi conveniente: é sempre considerado como estatística, como platéia receptora desprovida de consciência, de interesses e de projeto para a comunicação audiovisual no Brasil. Pode-se até criar mais pontos de exibição, mas não é o público – e sim os ingressos (ou relatórios de público) – que interessa.
Esse é o cerne dos programas da Ancine de criação de salas de cinema, que não questionam o modelo desse mercado - antes procuram irrealisticamente reproduzi-lo. Pela primeira vez na história deste país será uma medida de apoio à exibição, mas apenas pontual, não estrutural, não questionando o modelo em vigor, e beneficiando setores bem específicos entre os exibidores (os projetos excluem a sociedade organizada em entidades sem fins lucrativos). Da mesma forma, a orientação do programa Cine+Cultura, de distribuição de sistemas de projeção “amadores” é, essencialmente, promover a circulação de curtas-metragens (sobretudo os produzidos com recursos públicos), cuja produção cresceu exponencialmente com as políticas públicas mais democráticas do atual governo e com a criação de novos espaços políticos no Estado, basicamente ocupados por essa mesma produção, antes mais marginalizada (4).

Vontade política do Conselho Nacional de Cineclubes

Estes questionamentos, especialmente quanto ao Cine+Cultura, aborrecem, incomodam algumas pessoas, principalmente dirigentes do movimento envolvidos com o projeto, e algumas entidades que foram beneficiadas pelo próprio. Nesse sentido, é importante compreender duas coisas. Primeiro, que a crítica é uma atividade indispensável, particularmente para a prática cultural. Abolir, esconder, recalcar a crítica, ao invés de contribuir para o desenvolvimento das “políticas públicas”, implica na sua extenuação e na criação de uma atitude de acomodação e subserviência. Segundo, que a atitude crítica não debilita a posição do movimento junto ao Estado ou ao governo. Ao contrário, é a manifestação consciente e representativa de um movimento atuante que o qualifica como interlocutor do Estado. Mais importante que o ilusório e efêmero acesso ou diálogo entre dirigentes e funcionários é o peso do movimento como expressão de uma prática social e de uma parte da população, ou do público. E esta última frase vale para os dois lados: o cineclubismo, na luta por suas reivindicações, e o Estado, na busca de uma gestão democrática e eficiente.
Resumindo muito, o que o movimento, através do CNC, estabeleceu nos últimos dois anos foi uma forma de relacionamento bem definida com o Cine+Cultura em especial, com a Secretaria do Audiovisual do MINC (5) e, de outra maneira, com o governo de modo geral. A relação com o Cine+Cultura é praticamente simbiótica: grande parte das lideranças nacionais e regionais cineclubistas são responsáveis (diante do programa, não do movimento) - e demissíveis - pela aplicação e administração do programa. A ação política organizativa da entidade nacional reduziu-se e praticamente se limitou à “administração” das questões do Cine+Cultura – uma espécie de terceirização das funções acessórias do programa, agora despolitizadas, como produção de oficinas e “monitorias” burocráticas. Em detrimento de ações autônomas, publicações, encontros, eventos (6) de intercâmbio e fortalecimento do movimento em suas bases. O caso mais gritante é o abandono da distribuidora do movimento cineclubista, a Filmoteca Carlos Vieira. Paralelamente, a direção nacional do movimento também se esforçou muito para prestigiar alguns setores e iniciativas do ministério, algumas muito pertinentes, como a reformulação da lei Rouanet ou dos direitos autorais (7), outras bem menos, como a aprovação do PL 29, da televisão por assinatura. Mas descurou quase completamente dos interesses originados no próprio movimento.
A “vontade política” do movimento, expressa pela sua entidade, limitou-se aos setores (e questões) com que já tinha “diálogo”, abolindo qualquer tipo de confronto, de reivindicação que extrapolasse o que já estava sendo oferecido, na relação com o Estado, e reduzindo a interlocução com a sociedade exclusivamente a determinados segmentos do cinema. Assim, ainda que propale slogans de defesa dos direitos do público, o “movimento” (como identidade nacional) não procurou nem estabeleceu relações com entidades e movimentos sociais, reivindicativos, comunitários, camponeses, operários, de negros, de mulheres... Em uma palavra: do público (8).

No campo governamental, o cineclubismo brasileiro “estabeleceu-se” em duas secretarias e alguns gabinetes do MINC, incapaz de oferecer reivindicações e trazer para a conversa áreas como Educação, Relações Exteriores, órgãos, agências e programas voltados para os segmentos e necessidades da população a que já me referi logo acima.

É claro que seria fácil demais ficar elencando o que faltou, e injusto exigir de qualquer gestão uma ação permanente e onipresente, no âmbito do Estado como da sociedade (9). Mas o direcionamento da prática política está bem evidenciado. E há áreas e questões em que a inação, a ausência de vontade política não se justifica. É o caso da ANCINE, agência regulamentadora e estimuladora do cinema, responsável pela área da exibição – até pela desistência do secretário Da Rin em sua gestão – em todos os aspectos. E é o caso, mais especificamente, dos projetos de criação de salas de cinema nos municípios que não as têm.
Como fica mais uma vez evidente no interesse manifestado justamente nestas últimas mensagens entre cineclubes, se essa questão é muito importante para os cineclubes, é exatamente porque ela é vital para o público brasileiro. Neste caso faltou de forma escandalosa vontade política à nossa entidade. Não apenas por não se manifestar, mas por ignorar arrogantemente reiteradas demandas do próprio movimento: em carta à diretoria de 14 de setembro de 2009, quando ainda se estava articulando o “Programa de Expansão do Parque Exibidor de Cinema” da ANCINE, eu pedia esclarecimentos e atitudes do CNC. Voltei ao assunto em 31 de maio deste ano (10), mas nunca tive qualquer resposta – e creio que uma resposta teria sido de interesse do movimento, não uma atenção pessoal a mim.

Os projetos da ANCINE, cujo conteúdo não vou discutir aqui para não alongar o texto (11), independentemente de várias outras inadequações, excluem expressamente qualquer iniciativa não comercial e, portanto, precisamente os cineclubes. Essa exclusão se deve, justamente, à forma de vontade política do governo e, mais especificamente, à falta de vontade política, ou incapacidade de manifestá-la, da parte dos cineclubes brasileiros. Creio, particularmente, que se o CNC e o movimento tivessem (e acho que ainda podem fazê-lo) se manifestado, poderíamos, no mínimo, ter sido incluídos nas possibilidades de financiamento que os projetos prevêem.

Vontade política do movimento cineclubista

Apesar de pertencer a outra geração cineclubista, não sou dos que desvalorizam a de hoje – à qual também pertenço, porque estou (muito) vivo. De fato, se assim não fosse, há muito teria parado de escrever nas listas cineclubistas ou desistido de manter espaços na internet, onde procuro discutir o cineclubismo em seus aspectos teóricos e em sua prática contemporânea. Teria desistido porque a aparência é de que esses textos – ou qualquer outro – não suscitam interesse, não obtêm resposta, comentários, nem mesmo críticas ou refutação. As pessoas parecem ignorá-los ou concordar inteiramente com estes textos. Gozado, na prática, vem a dar no mesmo...
Mas não é assim: “minha” geração foi muito parecida, ainda que vivêssemos numa realidade de repressão e tivéssemos um movimento aparentemente menos homogêneo, manifestamente dividido em visões e tendências políticas e culturais. Também era uma minoria bem definida (talvez menor que a de hoje; também, com a internet, até eu...) que se manifestava por escrito. Mas, como hoje, os cineclubes afluíam em número e em peso a qualquer oportunidade de encontro, e todos se posicionavam enfaticamente sobre seus interesses. Criadas e abertas as formas de participação e convivência, em articulação com formas de organização regional e local, com poder real de influir no encaminhamento das grandes questões cineclubistas e na orientação de atividades práticas (publicações, distribuição, etc (12)), o movimento comparece e corresponde.

A participação e a democracia no movimento, de certa forma como no próprio cineclube, é uma relação dialética entre estímulo e oportunidade de envolvimento, por um lado, e uma constante reavaliação e aperfeiçoamento dos instrumentos dessa prática. Mas o movimento tem se encaminhado, fundamentalmente, na direção contrária: reduzindo encontros – em número e/ou periodicidade -, substituindo a presença maciça pela delegação de poderes, alienando para terceiros a elaboração e gestão de ações organizativas, numa suposta “profissionalização” de molde empresarial, dispensando a prestação de contas e o controle democrático, inclusive com a eliminação total de qualquer tipo de publicação.

Ainda mais grave que isso, como já desenvolvi um pouco mais no texto Tarefas dos Cineclubes Brasileiros na Mudança do Modelo de Cinema (http://felipemacedocineclubes.blogspot.com), há uma disseminação no movimento de uma certa cultura acomodatícia, subordinada, dependente, que espera do governo (ou até, contra todas as demonstrações da realidade, de empresas privadas) não apenas os recursos mas, com alguma frequência, até orientação para sua prática:
“Sustentabilidade é sinônimo de independência; o contrário (a gratuidade como princípio) leva necessariamente à dependência e/ou subordinação. No Brasil caíram praticamente em desuso: a gestão de associados contribuintes (elemento, aliás, importante, senão essencial, na própria organização da democracia interna do cineclube); a cobrança de taxas de manutenção em suas atividades (até mesmo a contribuição voluntária, “passar o chapéu”, virou raridade); a promoção de ações de financiamento, como rifas, “bailinhos”, etc… Mesmo os cineclubes que já tenham apoios devem ter ou criar essa condição de independência, sob pena, justamente, de orientarem sua ação em função dos limites estabelecidos pelo ‘patrocinado’.”

Ao se acomodarem a modelos de “financiamento” do governo, alguns cineclubes adotam acriticamente um modelo que, no limite (claro que a reprodução desse modelo não é tão comum, nem integral), representa exibição precária, sem conforto, com filmes escolhidos por uma instituição pública. A gratuidade da prática, que é inerente ao modelo, implica na provável incapacidade de aperfeiçoá-lo, acarreta – em círculo vicioso - a sua perenização. Ou mais provavelmente, a sua falência a médio prazo.

Vontade política da comunidade, do cineclube
Se a fé remove montanhas, a vontade política de uma comunidade bem pode criar um cineclube que atenda realmente às suas necessidades. Um cineclube que compreenda a si mesmo como a instituição audiovisual da comunidade, cuja função e objetivos comportam o acesso através do audiovisual (e em sinergia com outras formas de expressão e de comunicação), à informação, ao conhecimento, à cultura, ao entretenimento, e também incluem o conhecimento, a preservação e a expressão da cultura da coletividade.

Há muitos exemplos (13). Eu mesmo participei de diversos cineclubes que foram capazes de criar salas de cinema bem importantes: o Cineclube Bixiga, o Cineclube Oscarito, o Elétrico Cineclube, sem falar do projeto dos popcines. Todos os exemplos são de cineclubes bem coletivos; a maioria montou suas salas sem nenhum patrocínio, muitos antes mesmo de qualquer legislação de fomento. Creio que o combustível para essas iniciativas foi fundamentalmente vontade política: vontade de viabilizar sonhos sem esperar pela intervenção divina, estatal ou empresarial. Vou lembrar aqui algumas práticas cineclubistas que permitiram chegar a esses sonhos:

 Apesar da precariedade de equipamentos públicos no Brasil, existe um grande número de espaços sem uso num número muito grande de comunidades. Essa falta de uso se explica, em parte, por uma “cultura” pública de gestão: ou o Estado promove diretamente as atividades ou, o que é mais comum, não usa e não cede os espaços. Ou, como na “filosofia” dos projetos da ANCINE, só reconhece como interlocutor a empresa comercial. Em São Paulo, por exemplo, os CEUs têm auditórios superdimensionados que, entretanto, ficam a maior parte do tempo sem uso. Equipados até para projeção em 35 mm, umas poucas vezes sua programação foi entregue a distribuidoras comerciais de filmes, como a Warner Bros.(!). Mas existe um grande número de espaços menos ambiciosos – mas bem razoáveis – nas mãos de prefeituras, ministérios e secretarias estaduais, até do poder judiciário. Da mesma forma, instituições privadas também geralmente, historicamente, resistem ao compartilhamento do uso de suas estruturas com a sociedade civil. Entre as mais importantes – e com os melhores espaços – estão as unidades do sistema “S” (Sesc, Sesi, Sebrae, etc), as escolas de todos os níveis, as igrejas, clubes particulares, até hospitais e outros. Nos casos, raros, em que existe sala de cinema comercial na cidade, certamente a maior parte do tempo ela não é usada; há uma larga e forte tradição cineclubista de promover sessões próprias nesses horários disponíveis. A vontade política, aqui, se expressa pela capacidade de mobilizar a comunidade para reivindicar esses espaços, estabelecendo parcerias não subalternas (não se trata de prestar serviço de graça, mas de controlar a orientação e a programação de forma independente) que beneficiem a todos.

 Uma variante ou complemento desse método é o de conseguir a cessão de espaço (imóvel) ou terreno, para construção ou adaptação pelo cineclube. Há vários formatos legais para essa cessão: comodato, cessão por tempo determinado, etc, modos que geralmente variam segundo o costume da cidade (se prefeitura) ou outra instituição. Geralmente a câmara municipal é que autoriza. Os estudos que fizemos para o projeto dos popcines mostram que adaptações geralmente não são muito caras; a construção obviamente é bem mais custosa. E mesmo essas obras de adaptação podem ser feitas com vários expedientes de parceria (usando máquinas, insumos e pessoal da prefeitura) ou outras formas de colaboração, como mutirões. Em uma mensagem recente, fiz alguns comentários sobre essas adaptações (no caso, já tendo o material de projeção do Cine+Cultura), que rememoro aqui:

"Alguns desses aspectos implicam em investimentos mais importantes, outros nem tanto. Ar condicionado, poltronas e inclinação do piso são os mais caros, acho. Num projeto básico de uma sala PopCine esses ítens representavam mais ou menos 25% (ar condicionado) , poltronas (25%) e equipamento com tela (25%). Os demais 25% seriam as adaptações de cada espaço.
De qualquer forma, já tendo o espaço e o equipamento básico, o custo (para uma prefeitura, por exemplo) é realmente muito pequeno. Atenção: os custos de ar e de som aumentam exponencialmente com a área cúbica da sala. Isolamento acústico e de luz, numa sala comum, com portas e janelas normais, também é fundamental e pode colocar alguns problemas. Além do fechamento das janelas, o ideal é uma solução acústica para a porta, o que não é muito complicado.
A tela do Cine+Cultura é pensada para montagem/desmontage m, o que pode deixá-la meio bamba com o tempo; colocá-la numa "caixa" ou moldura, com caixa de som atrás, subwoofer embaixo, etc, é barato e muda toda a "psicologia" da recepção. Há uma disposição correta e ideal do sistema de som em relação à tela.
Se possível, é bom haver um espaço ou mesmo um palquinho para apresentações diversas, desde um animador ou conferencista, até o que der no espaço: mesas, teatrinho, etc... Também é preciso um pequeno espaço determinado para a operação do equipamento.
Poltronas podem ser conseguidas talvez por doação ou, numa pesquisa de comerciantes que têm poltronas velhas de cinemas fechados, auditórios, etc, compradas meio barato e reformadas. A lista cncdialogo pode ser um bom veículo para "rastrear" poltronas velhas de cinema. As cadeiras escolares e outras soluções precárias se tornam insuportáveis em filmes de longa-metragem ou programas de maior duração. Isso tem a ver com a própria capacidade de atenção e concentração, portanto com a capacidade crítica do público. A falta de um conforto mínimo, um espectador "fragilizado", tem bastante a ver com isso - e com o valor que se dá ao público na relação com a obra audiovisual e com a sua autoria.
A inclinação do piso é muito importante e é obtida com uma simples escavação (rebaixamento) na frente, ou com o levantamento do piso, com entulho, na parte de trás da sala, se o pé direito permitir.
Nos projetos PopCine sempre havia um espaço de convivência, barzinho, pipoqueira, etc. Creio que isso também é fundamental na relação do público com as ações desenvolvidas.

 O imóvel também pode ser alugado, desde que o cineclube seja capaz de produzir uma receita a partir de suas atividades em geral. Os estudos do CPCine (o cineclube “mãe” do projeto PopCine) indicavam que uma freqüência média razoável (inferior aos cinemas comerciais), com um pequeno número de sessões semanais e ingresso médio de R$ 2,00 (dois reais), são suficientes para pagar os aluguéis médios de cidades pequenas e/ou bairros não especialmente valorizados, além de remunera duas pessoas na operação das sessões. E isso sem contar com receitas de café, pipoca (na época – 2007 – o saquinho de pipoca era lucrativo a partir de R$ 0,37 [trinta e sete centavos]), videoclube, livraria, etc.

 Muitos dos cineclubes citados foram financiados pelos próprios sócios e redes de simpatizantes, que eventualmente seriam ressarcidos – no caso de contribuições maiores – com a sala em funcionamento. Há várias outras formas de arrecadação. O cineclube de um acampamento de sem-terras no sul do Pará pretendia usar para isso uma experiência que haviam tido: eles receberam em doação um bezerro, que engordaram e venderam mais caro. Mas pode-se organizar leilões, festas, rifas, dependendo não só da vontade, mas também da criatividade política. Uma sugestão interessante é a dedução do Imposto de Renda de pessoa física, que pode ser de 6% da renda. Há um documento padrão (que pode ser obtido na Receita Federal) para essa doação, que pode ser feita em qualquer altura do ano e descontada depois, na declaração. Assim, o cineclube pode visitar as casas a qualquer hora, pedir a doação – apresentando um belo folheto com o desenho da sala, projeto de atividades, etc - e deixar o documento para o doador descontar depois. Não é muiito difícil, porque cada doação é relativamente pequena e um morador que será beneficiado pelo cineclube não deve hesitar muito para doar uma quantia pequena e dedutível.

 Há três anos, entre cerca de 25 projetos de popcines desenvolvidos para diferentes imóveis, nenhum deles tinha custo total, de adaptação, montagem e equipamento, superior a R$ 150 mil, ficando a média em torno de R$ 100 mil. Como disse acima, nesses 100 mil, o ar condicionado representava mais ou menos 25%; as poltronas, outros 25%, e o equipamento com tela e computador para autoração, mais 25%. Os demais 25% se prestavam, em média, às adaptações de cada espaço. Esses valores totais são inferiores, por exemplo, aos recursos disponibilizados pelo programa Cultura Viva para os Pontos de Cultura (R$ 180 mil mais equipamentos). Um cineclube desses pode perfeitamente ser um Ponto de Cultura; um Ponto de Cultura pode ser um cineclube desses.

 Finalmente, mesmo antes que o CNC se mobilize – ou caso não se mobilize - pode-se conseguir junto à prefeitura ou outra instituição “reconhecível” pela Ancine, e/ou com um parlamentar com base na área da comunidade, algum tipo de contrato em que o cineclube fique responsável pela criação da(s) sala(s) prevista(s) nos projetos da agência governamental. Esses projetos estão disponíveis no saite da ANCINE, mas de forma propagandística, não tendo uma orientação precisa quanto a formas de participação e encaminhamento: é mais um pequeno tropeço no caminho da vontade política dos que não fuizeram parte desse acerto. Mas um advogado, um parlamentar ou um funcionário público interessado podem ajudar a deslindar esse mistério.

É claro que este texto compõe um roteiro empobrecido das possibilidades que a inventividade de cada militante cineclubista, de cada cineclube, de cada comunidade, podem descobrir e criar. Meu objetivo foi mais o de argumentar sobre o sonho e o desafio da Gizely:

Com vontade política, com compromisso militante, é absolutamente possível criar um cinema popular, isto é, um cineclube com qualidade, conforto e, sobretudo, dignidade.
Agosto/2010
Felipe Macedo

Notas:

(1) Esta é uma questão bem mais ampla e complexa, que não cabe aqui. Mas lembro não apenas as origens da MPAA na MPPA, sendo o segundo “P”, de producers, de 1908, mas igualmente a reação contra esse monopólio, que fez com que os então exibidores passassem para a produção, dando origem aos grandes estúdios e à metonímia de Hollywood.
(2) Embora os exibidores/importadores tenham, em várias ocasiões, desfrutado de liberdades cambiais verdadeiramente escandalosas, tema que também vai além deste artigo e que, afinal, beneficiavam mais o Capital em geral do que este ou aquele setor específico.
(3) As cerca de 2.100 salas de cinema que o País tem hoje não têm 1/5 dos lugares oferecidos nos anos 70, quando o Brasil tinha a metade da população atual e chegava a vender 300 milhões de ingressos, contra 100 milhões atualmente.
(4) Entre as diversas contradições do programa Mais Cultura que evidenciam essa subordinação aos interesses da produção, podemos citar duas. Os recursos alocados para o Cine+Cultura giram em torno de 10 mil reais para cada entidade contemplada. Esse dispêndio consolida um modelo de apresentação audiovisual relativamente precário, não considera conforto, segurança, nem as condições de sua manutenção e consolidação. Por quê? Porque, planejado no interesse da produção, procura economizar recursos para que esses sejam prioritariamente aplicados da realização de filmes, não na auto-organização do público. Comparativamente, o programa de Pontos de Cultura, voltado para a organização nas comunidades, disponibiliza recursos 2.000% (vinte vezes) maiores, mesmo quando beneficia expressões culturais eventual e aparentemente menos “sofisticadas” que o audiovisual, como a tradição oral (o que está certíssimo). Outro exemplo está na Programadora Brasil, ação complementar à distribuição de equipamentos – mas criada anteriormente. O próprio nome – Programadora – já é indício da intenção dirigista ou paternalista: quem “programa”, o Estado, os “autores”? Só depois de alguma reclamação é que cineclubistas foram incluídos, minoritariamente, nas comissões de seleção de filmes, onde não há outras representações do público como tal. Além disso, a Programadora, inicialmente voltada para a recuperação e disponibilização do patrimônio audiovisual, passou a dar crescente importância à compra da produção atual diretamente às ABDs, constituindo-se, dessa forma, em mais uma ação de fomento à produção.
(5) A ser inteiramente reconstruída com a demissão do secretário Sílvio Da Rin.
(6) Quando poucas dessas ações aconteceram, não se distinguiram pelo espaço ou participação dado às bases cineclubistas mas, ao contrário, para personalidades do(s) governo(s) ou do “cinema brasileiro”.
(7) É forçoso destacar, no entanto, que esse apoio foi marcado por um verdadeiro automatismo, sem crítica.
(8) Nos cineclubes, como é da sua essência, essa interação acontece ininterruptamente. Mas, justamente, não se articula no plano nacional, não organiza, não fortalece e não viabiliza um efetivo movimento nacional pelos direitos do público. Nos dois eventos organizados pelo CNC e nos vários de que participou, o “público” continuou sendo representado, intermediado, por cineastas e funcionários do MINC.
(9) Em que pese também o fato da direção executiva do CNC ser altamente centralizada e centralizadora, por um lado, e uma baixa “taxa de participação” e trabalho da maior parte da diretoria, por outro. Tudo isso expressão de vontades políticas...
(10) Esses documentos estão no blog: http://felipemacdocineclubes.blogspot.com, nas datas referidas.
(11) Embora essa discussão seja indispensável, inclusive para que ainda nos posicionemos como movimento cineclubista.
(12) Não pensando em gerações, mas em experiência histórica do movimento, a Dinafilme, por exemplo, foi administrada por um Conselho nacional articulado com conselhos regionais, os Cadinas, onde se organizava a seleção e distribuição de cópias, a promoção de mostras eventuais, a edição de um relatório periódico (o Boletim Cadina). O Boletim Cineclube, do CNC, foi bastante “animado” pelas polêmicas entre gramscianos e trotskistas, o “nacional-popular” contra o “internacionalismo proletário”... Isso formava os quadros cineclubistas, desde as questões teóricas culturais e políticas até a gestão da distribuidora.
(13) Por exemplo, os cineclubes pioneiros de Marília e de Avaré, nos anos 50 (existiram por mais de 40 anos), o Cineclube Barão (anos 80), em Campinas, e depois o Centro Vitória (anos 90), com várias salas; o Cauim (anos 70), de Ribeirão Preto, que provavelmente mantém hoje a maior sala de cineclube do mundo, com 800 lugares; o Metrópolis (anos 80), de Vitória (depois incorporado à Universidade); o Cineclube Estação, no Rio (anos 80, hoje sala comercial), para citar apenas alguns, de memória.

quarta-feira, 21 de julho de 2010


Tarefas dos cineclubes brasileiros
na mudança do modelo de cinema



”Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Não seria demasiado insistir sobre essa ideia numa época em que o entusiasmo pelas formas mais limitadas da ação prática aparece acompanhado pela propaganda em voga do oportunismo”
Lenin. V.I. Que fazer?

Apresentação
No devir das coisas, 2010 aparece como um ano especialmente significativo. Para o País e para os cineclubes, que partilham mais de uma coincidência. É ano de eleições majoritárias nacionais e ano de eleições nacionais no movimento cineclubista. Um momento especial para o Brasil, que ensaia passos de potência intermediária no baile das nações, consolidando sua economia e promovendo uma certa redistribuição da renda nacional. Momento que também se aparenta decisivo para os cineclubes, envolvidos num extenso programa de distribuição de equipamentos, que parece dar origem, da noite para o dia, a centenas de cineclubes e a um campo relativamente amplo de exibição para uma produção independente das relações tradicionais do mercado.

Mas, em outro paralelo, parece que não se trata apenas do Brasil, mas da “ordem mundial”, de impasses decisivos da economia capitalista nos centros tradicionais de decisão e de uma possível nova etapa da chamada globalização, em que entram em campo os times das nações – como essa grife dos BRICs, mas não só estes - que constituem a grande maioria da população mundial, com perspectivas necessariamente diferentes, pois que atendem a outros, “novos” interesses. No plano do cineclubismo, a questão principal também talvez não esteja em um programa do ministério da Cultura ou mesmo no aumento do número de cineclubes, mas numa crise muito mais ampla e essencial do próprio modelo da “indústria” do audiovisual no Brasil – e do dispositivo mediático no mundo.

Este texto pretende examinar estas questões, no quadro das decisões políticas que os cineclubes brasileiros deverão fazer por ocasião da 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes. Mas, independentemente dos resultados dessa Jornada, penso que estas reflexões podem ter validade e utilidade para a prática mais geral e a médio prazo de cada cineclube. Ou, pelo menos, para os cineclubes que se identificam com a idéia e o papel de organização e representação dos interesses do público, das grandes maiorias do público. E que reconhecem nesses interesses a necessidade de uma profunda e radical transformação do modelo de cinema hegemônico, que exclui a população, marginaliza a criação e impõe ideologias e comportamentos de subordinação e submissão. Os cineclubes que querem mudar o mundo.

Cultura (e) política
Cada vez mais o Brasil se afirma no contexto internacional – e toma consciência de sua importância crescente. As reformas, fundamentalmente do governo Lula, permitiram uma certa estabilidade, crescimento e, mais importante, distribuição de renda que, lentamente, vão mostrando seus resultados, extremamente importantes para a maioria da população. Essas reformas não deixarão de ter reflexos também no modelo vigente de cinema – e vice-versa.

No plano político institucional, essas reformas se apóiam numa aliança de classes tão ampla que se tornou praticamente absoluta (1). O presidente Lula, com justiça, tem índices de aprovação extraordinários, e nenhuma composição política questiona essencialmente o projeto de desenvolvimento adotado. Parece que o Brasil vive uma etapa avançada da sua revolução burguesa incomum, pacífica, negociada, de cima para baixo e até aqui sempre inacabada. É um momento particularmente feliz da consolidação do capitalismo brasileiro moderno (e esse processo tem mais de uma semelhança com a evolução do cineclubismo no País).

Esse “consenso”, no entanto, tem articulações mais ou menos precisas conforme o momento político, as áreas sociais e/ou econômicas, as articulações das classes sociais. Por isso, a mudança de governo representa mudanças importantes e, mesmo dentro de uma mesma aliança eleitoral, recomposições que podem afetar profundamente diferentes setores. A “situação” (PT- PMDB e mais de uma dezena de partidos) tem uma composição mais popular e uma vocação reformista no campo social muito mais pronunciada. A oposição principal (PSDB-DEM-PPS) é mais “burguesa” e, num certo sentido, mais “moderna” - em comparação, por exemplo, com os elementos mais conservadores da aliança governamental - e menos sensível às questões sociais. Além dessas diferenças, que podem representar mudanças fundamentais no destino de milhões de famílias num país como o Brasil, dentro de cada “aliança” disputa-se e distribuem-se setores, ministérios, empresas públicas, programas e ações governamentais que também influenciam, à vezes de maneira definitiva, o desenvolvimento de setores, regiões, populações inteiras.

Mas nestas eleições, como em um futuro visível, não se questiona essencialmente o modelo econômico ou as relações sociais. Existe um consenso no sentido da reforma, do aperfeiçoamento do statu quo.

Cinema brasileiro, metáfora de classe
No segmento do cinema, essa composição tem uma personalidade muito própria. Nos últimos anos houve mudanças muito importantes na estrutura “representativa” do cinema no Brasil. A tentativa de criação da Ancinav, há uns cinco anos, provocou o fim de uma espécie de “modelo neoliberal”, digamos, em que todas as entidades do cinema participavam do Congresso Brasileiro do Cinema. A política do governo Lula – ou melhor, da composição tripartidária que dirige o ministério da Cultura - de tentar estabelecer regulamentações para todo o audiovisual, levou ao racha: saíram do CBC as empresas distribuidoras (Hollywood e coadjuvantes), os exibidores e os produtores de longa metragem que fazem parte desse concerto (ou acerto, em que levam 10% do mercado desde que associados ao sistema). A “economia”(2) do cinema saiu do Congresso Brasileiro de Cinema.

O modelo do cinema (3)continua igual, mas adaptou-se ao caráter contraditório deste governo. Por um lado o “cinema”, a economia, o mercado, continuam onde sempre estiveram, nas mãos dos mesmos: a exibição associada/dominada pela distribuição, sob controle de Hollywood. A novidade é a adesão dessa parcela importante da produção. E a essa ótica juntou-se a ANCINE (agência regulamentadora do setor). Esse é, então, o lado da “gente grande”. Do outro lado, reunindo as bases reformistas do governo (PT e PC do B, mais PV(4)), ficou o MINC, e um Congresso Brasileiro de Cinema fragilizado, mas sólido nos ambientes predominantemente de origem regional e principalmente abedista(5) (o que hoje se chama de “área cultural” do cinema – um eufemismo que mistura todas as ações que não encontram espaço no modelo comercial hegemônico), aos quais também se juntou a entidade dos cineclubes, o CNC, que antes “não existia” nesse nível. O público mesmo continua sem representação.

O exercício metafórico pode não ser exato, mas até que se aplica bem: poderíamos dizer que no cinema brasileiro existe uma espécie de burguesia econômica e institucional, representada por essa aliança “Ancine/longa-metragem-que-é-exibido”, e há uma pequena-burguesia, de diretores não cariocas (injustiça minha), curta-metragistas, professores e estudantes de cinema, cineclubedistas, produtores amadores e profissionais de projetos tipo Lei Rouanet e editais, que tem espaços e assentos no Minc (a não ser quando a Ancine manda tirar, como aconteceu recentemente com o secretário do Audiovisual). Finalmente, tem um proletariado, que não tem assento em lugar nenhum (só cadeirinhas de plástico ao relento em suas comunidades) e recebe “bolsa-cine+cultura”. É o público das comunidades, dos cineclubes, que são vocacionados para, mas certamente não representam efetivamente os 92% que não vão ao cinema - aliás, que não vão a quase lugar nenhum.

Gosto dessa metáfora. Porque ela deve vista como não excluindo a importância do cinema brasileiro de longa metragem, do seu espaço no nosso imaginário e na identidade. Ser contrário à burguesia não é ignorar sua contribuição, seu lugar no processo civilizatório. Da mesma forma, ser crítico em relação à pequena-burguesia não pode levar a desconsiderar seu papel deveras importante, pois é ela que reivindicou (e reivindica) e conseguiu em grande parte, uma importante ampliação e regionalização da produção de curtas, sem esquecer essa modesta, mas assim mesmo significativa, política de ampliação da exibição. Mas o público, que avançou um tiquinho graças a esses caminhos, ainda quase não tem voz, e seu projeto, para o conjunto do cinema brasileiro, ainda está para efetivamente ser construído e apresentado.

Teoria ou euforia
O movimento cineclubista parece passar por um momento de crescimento e reorganização; no Brasil, esse sentimento beira a euforia. Mas nossa história é, na verdade, feita de momentos mais ou menos brilhantes entremeados de silêncios bem mais longos.

No plano mundial, a década de 20 foi marcada por uma mobilização enorme do público em torno dos cineclubes, mergulhada num caldo de renovação estética, de influxo revolucionário, de resistência política e ideológica. Os anos 30 e 40, contudo, viram a vitória do modelo hollywoodiano de cinema e a dissolução de um movimento internacional cineclubista operário adoecido com o stalinismo e assassinado pela guerra. Os anos 50 e 60 trouxeram um novo fôlego de democracia associada à criatividade: delas nasceu um novo ciclo internacional do cineclubismo, houve a criação da FICC, o neo-realismo e os novos cinemas, um pouco em toda parte. O restante do século, contudo, assistiu a uma certa cristalização do cineclubismo e, finalmente, o declínio do associativismo, acompanhados pela crescente influência do liberalismo e do individualismo.

No Brasil, resumidamente, tivemos um tardio ciclo virtuoso nos anos 50, com a expansão da cinefilia, ou cultura cinematográfica, impulsionada pela geração de Paulo Emílio Salles Gomes, ao lado do estímulo da Igreja à democratização e moralização do cinema através dos cineclubes. Esta última entrou em estágio crítico com a criação da CNBB e o abandono da política de valorização do cinema (1962); a primeira faleceu não tanto pela repressão – que não pode, porém, ser ignorada – como pela perplexidade e incapacidade de propor novas perspectivas. O ciclo positivo que vai do início dos anos 70 à metade dos 80 também foi seguido pela atomização e desorganização do movimento por mais duas décadas.

O que acontece hoje no Brasil – e potencialmente em todo o mundo – vai permanecer, consolidar-se, frutificar? Ou vai ser mais um soluço histórico, um breve momento de emergência de um movimento social – supostamente do público organizado – que não consegue se consolidar, ainda que também nunca desapareça, vegetando, esporo incubado, por longos períodos, em iniciativas tão isoladas quanto ricas: organismos unicelulares que podem sempre voltar a germinar, mas incapazes de estabelecer uma cultura própria e sólida e, dessa base, evoluir?

Teoria e prática

Acredito que o fator desagregador principal do cineclubismo, a fraqueza que quebra o elã de seus impulsos formidáveis mas episódicos, a força determinante a impedir o público de se organizar de forma estável e estabelecer uma prática transformadora permanente tem sido sua incapacidade de formular uma teoria própria, uma alternativa histórica de emancipação. Penso também que, desde os anos 70 e 80 essa teoria se esboçava (6) – e a Carta de Tabor dos Direitos do Público (1987) é a expressão política mais visível dessa formulação -, mas o movimento cineclubista real ainda não teve forças para consolidá-la.

Será que temos hoje um movimento nacional, ancorado solidamente num público organizado em suas – as mais diversas – comunidades, consciente e reivindicativo, ou apenas uma multiplicação artificial de pontos de exibição estimulada de fora das comunidades que se mantêm platéias, por um setor da produção que não encontra outro canal para ser exibido? É neste impasse que possivelmente se inscrevem as opções políticas que se colocam agora para os cineclubes, menos na Jornada – que me parece já mais ou menos decidida (7) –, mas nas práticas de cada cineclube e na sua capacidade de se articular como um movimento nacional e popular que realmente represente um segmento importante do público, e seja capaz de expressar sua visão do mundo. Ou não.

A citação de Lenin que serve de epígrafe para este texto remete a uma realidade que, em meio ao ciclo de crescimento, pela imposição de um “silêncio político” combinado ao acerto em camarilha, pela agitação de slogans desprovidos de seus conteúdos (os direitos do público), contamina o movimento cineclubista brasileiro, subordinando ideologicamente sua visão, sua prática e seu público à produção, reificando seus direitos como mera acessibilidade – isto é, formação de platéias consumidoras – e reduzindo a política à sua expressão menor, às práticas imediatas, aos acertos de gabinete, o que conduziu ao atrelamento, dependência e virtual submissão a certos aparatos governamentais. O cineclubismo brasileiro está a se constituir não em real forma de organização do público, mas em “meio de comunicação”, correia de transmissão, aparato de difusão de conteúdos, a serviço do Estado e da produção(8).

O cineclubismo brasileiro, em seu topo, defende a circulação de filmes (organizada pelo Estado), mas não propõe a sustentabilidade dos cineclubes e/ou sua participação nos mecanismos de decisão e gestão desse Estado; se propõe a carne-de-canhão contra o ECAD - ajudando setores poderosos da economia -, quer mobilizar os cineclubes até para a aprovação da lei de TV por assinatura (!), mas não participa absolutamente da discussão de programas de salas de projeção populares; estimula a produção de relatórios de exibição (futuros mecanismos de remuneração da produção) para instituições do governo, mas descura da sua própria distribuidora de filmes, isto é, da organização autônoma do movimento (apesar de ter uma Dinafilme em sua história); divulga sem avaliação anúncios das agências governamentais, mas não cuida de uma publicação própria (como exigem os estatutos da entidade nacional), entre tantas questões... O “cineclubismo” participa de múltiplos eventos oficiais, mas não propicia encontros ou discussões entre os cineclubes; nas raras vezes que o faz, não disponibiliza os debates ou sequer suas conclusões. Muitas federações regionais praticamente não existem. Há uma insidiosa fragilidade escondida sob um manto de unanimidade festiva e de “conquistas” duvidosas.

Prática e teoria

Os conceitos de cineclube e de público, e sua relação com o universo audiovisual nunca foram, na verdade, discutidos sob a ótica apenas esboçada por alguns teóricos cineclubistas (9), a partir dos anos 70. Ótica mais ou menos expressa na Carta de Tabor, aprovada por um movimento cineclubista que não é exatamente o de hoje, nem no Brasil (que não estava presente) nem no mundo: a FICC tem hoje menos da metade de países membros que naquela assembléia de 1987.

Mas essa visão incipiente é (d)a essência do cineclubismo: aponta para o estudo, a crítica, a recuperação e a construção de uma concepção própria e nova do cinema, onde o público, contextualizado histórica, social e politicamente, é o elemento determinante (e não a produção, a linguagem, o texto ou mesmo o espectador abstrato da psicanálise ou do marketing). E do cineclubismo como forma de organização desse público, construída historicamente para se constituir numa instituição privada de hegemonia, como disse Gramsci: numa ferramenta de construção de uma alternativa histórica de emancipação.
Essa trajetória, sua dinâmica e conteúdo, está praticamente por ser edificada no plano teórico. Na prática, cineclubes em todo o mundo a constroem, de forma contraditória, desigual, no mais das vezes precária e efêmera. Mas com uma riqueza que nenhuma outra instituição cinematográfica – e talvez cultural – pode igualar. Sem, no entanto, consolidá-la (10).

Essa diversidade inesgotável de formas dentro de um mesmo movimento, instituição e conceito (característica básica do cineclube), essa adaptabilidade a diferentes momentos, conjunturas e mesmo dispositivos tecnológicos, dentro da modernidade e do capitalismo, aponta para o entendimento do público como força essencial de transformação de um modo de produção em que a informação, o conhecimento e o entretenimento – em duas palavras, a cultura (e/ou a indústria) audiovisual - se tornaram elementos centrais e fundamentais. E para a compreensão do cineclube como arquétipo de organização do público audiovisual.

A precariedade física e moral, prática e teórica, ou vice-versa, é o espectro que ronda o cineclubismo, em época de aparente vigor, mas na ausência de uma reflexão que permita compreender e consolidar suas incríveis potencialidades. Sem teoria não há movimento.

O público como classe
Há várias abordagens teóricas ou acadêmicas para o conceito de público (11), mas aqui não é o lugar nem o momento de examiná-las. Vamos resumir enormemente a que corresponde à experiência histórica cineclubista e embasa nossa proposta para o movimento:

O público moderno – o conjunto das relações interativas entre participantes (12) e as mensagens culturais a eles dirigidas - é um conceito estabelecido a partir da constituição do público de cinema, fundamentalmente no início do século XX, que lhe serve de paradigma. O público de cinema se constituiu através de um processo contraditório de luta pela hegemonia no controle dos meios de produção e circulação da reprodução simbólica da realidade, através do meio recém descoberto - as imagens em movimento -, que permitia não apenas um grau superior e inédito de re-produção da realidade, mas que tinha na reprodutibilidade mesma sua condição essencial de existência e de expressão (13). Inicialmente constituído pelas classes trabalhadoras, pelas ondas de imigrantes (nos EUA, principalmente) e pela assimilação de mulheres e crianças proletárias, paulatinamente (numa luta de classes acirrada, e documentada (14)) o dispositivo do cinema incorporou os setores médios, neutralizou ou domesticou as massas e suas vanguardas, estabeleceu e consolidou um modelo de recepção – isto é, de público – espectatorial, ordeiro e submisso, e uma linguagem ideologicamente alinhada, linear e mistificante. Formadas a partir desse modelo cinematográfico, as audiências das posteriores formas e linguagens de comunicação de massa (rádio, televisão, espetáculos em geral) se moldaram nos mesmos princípios: espectatorialidade, linguagem “clássica”, etc.

A marcada evolução do capitalismo neste último século implicou numa estruturação diferente das classes e segmentos sociais em relação à conceituação com que trabalhavam os primeiros teóricos socialistas. Com a diminuição da importância relativa do segmento fabril da classe operária, a extensão das relações corporativas ao campo, o aumento expressivo do trabalho no setor de serviços, muitos se perguntam sobre a constituição efetiva do proletariado contemporâneo e seu papel na emancipação do homem. Essa despersonalização e assimilação em grande escala tem muito em comum justamente com o processo de formação do público moderno.

Outra característica da sociedade contemporânea é a sua “mediatização” e a constituição dos espaços mediáticos (essencialmente audiovisualizados) como campo privilegiado do embate simultaneamente econômico, político e ideológico. Ora, nesse sentido, o público – basicamente o público do audiovisual, que corresponde à imensa maioria da população (ou, pelo menos, à parcela desta que participa do espaço midiático e da mediação social e política) – é potencialmente a expressão do proletariado moderno (15).

As classes sociais não se definem (exceto na visão econômica burguesa) pelo seu perfil estritamente econômico, por sua renda ou por seus haveres, mas pelo lugar que ocupam na reprodução das relações de produção. Numa sociedade em que os meios de representação simbólica se tornaram centrais na reprodução do modo de vida e das relações sociais, o proletariado moderno não se define apenas por não possuir os meios de produção, mas também especificamente por não possuir os meios de produção simbólica; não apenas por ter somente sua força de trabalho para negociar no mercado mas, igualmente e complementarmente, sua atenção, sua subjetividade (16).

As classes sociais ou blocos de classes são sujeitos sociais que se defrontam com outras classes ou blocos de classes. Nesse conflito, estabelecem sua hegemonia e/ou se definem como alternativa histórica. Ser capaz de formular uma alternativa histórica é o que define o caráter emancipador do proletariado, pois uma alternativa histórica é necessariamente revolucionária (17).

Ser capaz de formular uma alternativa histórica, expressar uma visão de mundo própria, indica também a construção de uma subjetividade consciente: a consciência de classe. A luta de classes contemporânea se dá, em grande parte, na disputa pela apropriação dos sentidos das coisas. A reificação, ideologização e incorporação da atenção como fator de reprodução do mundo versus a subjetividade autoconsciente como ferramenta de construção de uma alternativa histórica. O audiovisual é hoje o principal campo e instrumento de expressão dessa disputa ideológica.

O Cineclube como instituição do público

Os cineclubes têm origem nesse processo contraditório de formação do público, na dinâmica de recepção, resistência e apropriação do “cinema” em formação. Inicialmente introduzidaq como ferramenta de discussão, na tradição das conferências e debates em agremiações populares (18), que vêm desde a série das lanternas mágicas, a projeção foi ocupando cada vez mais o centro dessas atividades e, paulatinamente, se tornando o objeto mesmo do debate. Como já escrevi em outra parte, em 1913 surge “a primeira clara formulação de um objetivo de organização do público, que compreende o enfrentamento da questão central da apropriação do imaginário pelo cinema comercial... É a primeira experiência consciente de produção coletiva, do público como autor, com vistas à superação desse estado de coisas” (19).

Ao longo da década seguinte, foi se consolidando o que Gauthier (20) chama de protocolo cinéfilo, um conjunto de características em que reconhecemos vários elementos mais ou menos gerais e/ou permanentes da atividade cineclubista: associativismo, sistematicidade das sessões, debate, publicações, luta contra a censura, defesa do cinema independente (em vários sentidos: econômico, estilístico, etc), crítica da alienação e da dominação e, finalmente, produção de filmes que refletem esses princípios. Assim, a forma institucional derivada diretamente das organizações populares, o associativismo, adaptando-se a algumas características de sua atividade-fim, o cinema, consolidou-se internacionalmente. Os cineclubes brasileiros, alemães ou burquinabês têm a mesma constituição institucional que, por sua vez, não difere essencialmente do fomato do Cinéma du Peuple, de 1913 e, especialmente, do movimento de cineclubes dos anos 20.

Assim como o público do cinema constituiu-se como paradigma do público moderno em geral, o cineclube é o modelo básico de organização desse público. Por razões que caberia estudar melhor, o leitor, o público de teatro, de dança ou de qualquer outra linguagem e atividade artística, não consolidou uma forma institucional geral e permanente (21). Como os sindicatos, em relação às categorias de trabalhadores, os cineclubes, desta forma, corporificam um paradigma da (e para a) organização do público, em suas diferentes comunidades. Dos elementos essenciais de sua forma institucional podem ou devem derivar, se adaptar (como já acontece com os cineclubes nos diversos momentos, lugares e dispositivos tecnológicos), as características de outras formas de organização do público: associativismo democrático, ausência de finalidade lucrativa, compromisso ético (22). Particularmente grave, importante e urgente, é o fato de que os cineclubes, mesmo os que mais organicamente representam suas comunidades, ainda ocupam e exercem um papel extremamente reduzido em relação ao público audiovisual, já que não existem, praticamente, formas associativas em torno da recepção do cinema comercial e da televisão. Formas coletivas – não necessariamente associativas – embrionárias engatinham na rede cibernética do planeta.

O cinema morreu, viva o cinema
Além de, fundamentalmente, revelar o processo de formação e a imbricação do cinema e do cineclubismo, o destaque que escolhi para a abordagem histórica neste texto procura salientar pelo menos dois aspectos que julgo importantes para a compreensão e definição de algumas das tarefas que se colocam para os cineclubes na atualidade. Por um lado, as semelhanças, ou melhor, as associações possíveis entre o processo de desenvolvimento do “primeiro cinema”, à procura da definição e controle do seu mercado pela domesticação da recepção, e os caminhos do audiovisual hoje. Por outro lado, a criação da instituição cineclube e de um protocolo cineclubista de experiências de apropriação crítica do cinema, hoje bastante “desprestigiado” diante de uma vaga ideológica liberal e paternalista que procura, principalmente, impor o empreendedorismo como opção para o associativismo democrático e a dependência do Estado ou da empresa em detrimento da organização popular.

Como diz Lacasse (23), o cinema não nasceu mudo, mas em meio a narradores, explicadores, conferencistas – e, acrescento eu, vaias, conversas, manifestações organizadas -, além de uma grande intermedialidade com outras formas de expressão, como o canto, o teatro, a dança, etc. O público é que foi silenciado, à medida que o cinema estabelecia uma narrativa hegemônica. Da relação interativa do começo do “cinema”, entre o público e o filme, só o cineclube preservou não apenas a oralidade (o debate), mas todo um dispositivo ou protocolo de ações de apropriação crítica, condição essencial para a superação da perspectiva de dominação do cinema comercial e para a construção de uma visão própria e crítica, indispensável para a edificação de outro cinema: o cinema do público.

O que importa essencialmente na relação entre o público e o cinema, são as condições de apropriação crítica, e não o mero acesso aos filmes (condição necessária mas insuficiente) que, por si, corresponde apenas à necessidade de criação de platéias ou, em uma palavra: mercado. A questão da apropriação de conteúdos e sentidos, com vias ao desenvolvimento da sua capacidade de expressão, é a tarefa mais essencial que se coloca hoje, e desde sempre, para o público. E sua ferramenta para tal é o cineclube.
O dispositivo ou a instituição cinematográfica que se consolidou principalmente ao final dos anos 20 e com a implantação do som, e que foi objeto da maior parte dos estudos cinematográficos até hoje, morreu. O cinema “literário”, linear, cuja recepção se dava na tela do cinema, com a atenção exclusiva do espectador, não existe mais. A relação preponderante não é mais a do cinema, mas do audiovisual – como conjunto de formas de difusão e recepção, muitas ainda em desenvolvimento. De fato, ao tentar rentabilizar e controlar essas formas de difusão e recepção, que são ao mesmo tempo segmentos e mercados, o audiovisual recoloca várias questões que, de forma semelhante, existiram nos primeiros tempos do “cinema”: intermedialidade, direitos patrimoniais, etc. E, inclusive, o lugar e o papel (e a linguagem (24)) do cinema “em sala”.

É uma luta de classes, entre o público e as corporações planetárias de comunicação e entretenimento, que tem mais de um aspecto em comum com as batalhas que aconteceram nos nickelodeons e nos primeiros cineclubes. A mais visível dessas batalhas é a disposição do público, em todo o mundo, de acessar, copiar e interagir livremente com conteúdos audiovisuais, e as tentativas de repressão e controle dessas ações por parte das empresas de “comunicação”, entidades de classe patronais e organismos governamentais.

Essa disputa revela a existência de fragilidades e oportunidades, geradas inclusive nas tentativas de compreensão e controle dos novos mercados. Um exemplo bem claro é o do abandono relativo do mercado exibidor. Na procura da rentabilidade maior entre os segmentos do público de cinema de maior poder aquisitivo, assim como pelo controle da articulação entre os diferentes mercados (ou “janelas”: do DVD, tevê a cabo, tevê aberta, etc), o cinema hoje, particularmente (mas não exclusivamente) nos países menos desenvolvidos, abandonou a grande maioria da população. Portanto, outra tarefa fundamental para os cineclubes é a ocupação e a organização desse espaço audiovisual – que no Brasil é da ordem de 90% da população – em função dos interesses e das necessidades do público. O cinema morreu, viva o novo cinema!

Ocupar e reorganizar o espaço audiovisual

Essa questão demanda amplas discussões e o espaço da Jornada é um dos mais importantes - ainda que apenas politicamente, pois a reflexão sobre esta questão deve ser sistemática e permanente, possivelmente através de seminários e textos que extrapolam um congresso eleitoral. Mas para a tomada de posição, para o estabelecimento de um programa básico de ação e um compromisso da direção eleita, a Jornada é a ocasião mais adequada. Para isso, mesmo que a discussão seja bem mais ampla, alguns pressupostos devem ser definidos inicialmente – e os incluo entre estas tarefas que estou elencando. Essas tarefas, como propõe o título deste artigo, cabem fundamentalmente aos cineclubes, na (construção de) sua relação com seu público. E às suas entidades representativas como expressão desse público em movimento.

Se o cineclube é a instituição do público, é preciso assumir essa condição em sua plenitude. Ou seja, o cineclube é uma instituição fundamental da sociedade democrática, não é uma atividade “filantrópica”, “experimental”, “juvenil”, “amadora” (as aspas indicam o emprego de um sentido pejorativo, de coisa de caráter especial, carente ou exótica, e principalmente desimportante) que se inclua entre as ações de beneficência ou assistência social. Não, o público é a maioria absoluta da população, e é categoria central no processo social, para a reprodução ou para a transformação das relações sociais. A ação cineclubista é central e essencial para a sociedade audiovizualizada. Se o audiovisual é central no processo político e social contemporâneo, a instituição audiovisual do público tem que ocupar uma posição central na organização desse público. E na política pública, como na “política popular”, para o audiovosual.

O cineclube deve estar presente em todas as comunidades e ter organização e meios para cuidar dessa intermediação do público e do audiovisual. Em todas as cidades, em todos os bairros das cidades um pouco mais importantes, em todo tipo de aglomeração campesina, nas unidades industriais e comerciais importantes, nas escolas de todos os níveis e em todas as associações profissionais e organizações de interesses comuns deve se organizar um cineclube.

Esse processo, que é responsabilidade essencialmente do público, deve obrigatoriamente (por meio de lei e disposição orçamentária) ser reconhecido e estimulado pelo Estado, em todos os níveis (federal, estadual, municipal, e agências, organismos e programas estatais nos três níveis). De fato, sem querer prejudicar qualquer conquista já obtida pelos setores da produção, o investimento governamental na constituição de organizações do público audiovisual é a política mais consistente para a criação de um ciclo econômico sólido e efetivo para a produção e exibição da produção audiovisual. Portanto, esta é outra tarefa programática para o movimento cineclubista: preparar e reivindicar legislação e disposições orçamentárias de reconhecimento e apoio aos cineclubes. Neste quesito, inclui-se tratamento equivalente para a manutenção das entidades representativas dos cineclubes, como associações municipais, federações ou organizações equivalentes e confederações nacionais – tal como já acontece com as centrais sindicais, entidades estudantis, etc.

Mas, do reconhecimento de que cabe essencialmente ao público a responsabilidade de se organizar, decorre a compreensão de que esse processo não pode depender exclusivamente do poder público ou de qualquer outro poder. Assim, por princípio e de uma maneira geral, os cineclubes devem ser auto-sustentáveis, estruturados em função do apoio e da autoconsciência de suas comunidades, evidentemente em articulação com políticas públicas e/ou privadas de fomento, apoio e outros patrocínios. Sustentabilidade é sinônimo de independência; o contrário leva necessariamente à dependência e/ou subordinação.

No Brasil, particularmente – o que me parece claramente corolário da subordinação tratada mais atrás neste texto – elementos do protocolo cineclubista, justamente referentes à sustentabilidade de suas ações, caíram praticamente em desuso: a gestão de associados contribuintes (elemento, aliás, importante, senão essencial, na própria organização da democracia interna do cineclube); a cobrança de taxas de manutenção em suas atividades (até mesmo a contribuição voluntária, “passar o chapéu”, virou raridade); a promoção de ações de financiamento, como rifas, “bailinhos”, etc... Mesmo os cineclubes que já tenham apoios devem ter ou criar essa condição de independência, sob pena, justamente, de orientarem sua ação em função dos limites estabelecidos pelo “patrocinador”. E, convenhamos, os recursos hoje atribuídos aos cineclubes, seja pelo governo federal e por alguns poucos estados, são muito modestos e limitados.

Tarefas cotidianas e permanentes
Como instituição audiovisual da comunidade, ao cineclube se colocam inúmeras responsabilidades, na perspectiva de apropriação do imaginário coletivo – e em função das oportunidades históricas a que nos referimos. Cineclube não é apenas exibição de filmes (o que poderia colocá-lo muito próximo do mero formador de platéias), mas apropriação do audiovisual em todas as suas dimensões. Destas dimensões, saliento algumas de imediato que, na prática, se confundem e se completam:

1. A exibição como ato de cultura: o tratamento do cinema e das suas obras individuais como um valor artístico e cultural em si, permanente, não perecível. Como instrumento de formação: o filme como veículo transversal na abordagem de segmentos do conhecimento (o próprio cinema, literatura, história, geografia, dança, etc); na abordagem da experiência coletiva (saúde, civismo, segurança...), e na construção da identidade (autoconhecimento da vida comunitária, sua história, etc). Como instrumento de informação: o audiovisual – cinema, tevê, internet, etc - como mediação e socialização, a crítica da imprensa e da informação em geral. Como instrumento de intercâmbio com outras comunidades, de todo o mundo.

2. O debate como instrumento convivial de compreensão e formação, através do compartilhamento das experiências do público. O cineclube, a meu ver, não ensina nem “alfabetiza” o olhar. O público já nasceu na frente da televisão e se socializa principalmente através das mídias audiovisuais. O “debate” – inventivo, informal – propicia e favorece a troca de experiências pessoais e comunitárias com vistas ao reconhecimento e construção coletiva da visão de mundo, dos interesses e identidade do público. Assim como das subjetividades individuais dos participantes. Acredito que toda pretensão de “ensino” de como ver ou entender um filme, além de vã, é autoritária.

3. A atividade cineclubista como espaço de convivência e identidade. O cineclube precisa ter (quando possível, como meta) uma sede (25). Um espaço de projeção de qualidade, com conforto. Deve ter espaço de convívio (sala de estar, barzinho, para material de leitura, jogos, televisão, computador...) e de aprendizado (bibliofilmoteca-arquivo da comunidade, espaço de montagem e produção), promovendo festas, saraus, leituras, cursos, oficinas, etc. É inadmissível deixar passar os projetos de criação de salas populares da ANCINE como estão formulados, excluindo os cineclubes e reproduzindo o modelo comercial (mesmo no caso de uso de tecnologia digital), aliás inaplicável nas comunidades a que se destina, hipoteticamente, a maior parte desses programas. O Estado faz “consulta” pública para obter apoio e organiza programas e investimento sem consultar ninguém (exceto o capital)? O cineclube também precisa construir um espaço virtual de interação e convívio, que não exclui formas individualizadas de fruição audiovisual – mas interconectadas num nível de diálogo e compartilhamento da(s) experiência(s).

4. A atividade cineclubista como tessitura de relações e instituições comunitárias. O cineclube deve interagir (26) com as demais instituições e iniciativas importantes da comunidade, reforçando-se mutuamente nessa ação. A(s) escola(s) me parecem a(s) mais importante(s) dessas instituições, e a discussão dessa relação deve ser também objeto de um espaço na Jornada e de deliberações programáticas específicas (27). Outras iniciativas culturais também me parecem prioritárias, isto é, a sinergia com grupos de teatro, de dança, de leitura, etc, que existam ou possam ser incentivados na comunidade. Essas iniciativas e suas diferentes práticas e linguagens podem ser incorporadas nas atividades do cineclube em diferentes níveis Mas nenhum outro campo está excluído, a juízo da deliberação do cineclube: hospitais, igrejas, comércio, segurança... A organização de atividades voltadas para a organização e autoformação de segmentos das comunidades em que tais casos se aplicam, também é muito importante: crianças, jovens, mulheres, homens, certas faixas etárias, subgrupos de interesses: política, esporte, literatura, história do cinema... Cineclubinho, teleclube, videoclube, netclube, etc.

5. O cineclube como arquivo da comunidade. As cinematecas nacionais consolidaram como missão a preservação da memória audiovisual “nacional”. Isto significa preservar, a custos com que só o Estado pode arcar, prioritariamente os filmes “mais importantes” (sobretudo de longa-metragem) e outros documentos da produção audiovisual mais relevantes ou mais ameaçados. No entanto, atualmente a produção audiovisual cresce exponencialmente, e se alastra pela sociedade, em documentos locais, familiares, etc. Não há mais limite para essa documentação e memória da sociedade. Sua preservação em um único arquivo é impossível. Portanto, como instituição audiovisual da comunidade, deve caber ao cineclube (e para isso deve receber formação e recursos, em convênio com instituições públicas e privadas) a salvaguarda da memória e, consequentemente, a preservação da(s) identidade(s) da comunidade. Acrescente-se que a memória das comunidades, dos segmentos menos privilegiados da população não é, hoje, valorizada e preservada, e que isso é igualmente parte fundamental do processo de apropriação do imaginário e autoconsciência popular. E vale lembrar que a idéia de colecionar e preservar é essencialmente de origem cineclubista: praticamente todas as cinematecas do mundo evoluíram a partir de cineclubes. Evidentemente, na medida do possível, esse arquivo deve ser disponibilizado para a comunidade, na sede do cineclube e através de empréstimo (com taxa de manutenção, lembro).

6. O cineclube como produtor coletivo de um cinema do público. Os filmes têm como produtor (no sentido de quem decide, possibilita e organiza – todas as três operações - a realização de um filme): o grande capital – no modelo Hollywood, Globofilmes, etc - ou o empreendedor mais ou menos independente (frequentemente o chamado cinema de autor), além do Estado, quando este exerce um direcionamento artístico e/ou ideológico - senão caímos nas alternativas anteriores. O que chamo de cinema do público é quando essa tríplice responsabilidade recai sobre a instituição da comunidade, o coletivo do cineclube. A criação de um novo cinema, ancorado numa organização alternativa (no sentido de alternativa histórica a que me referi antes) da economia do ciclo produção-distribuição-exibição (ou consumo) tem por base o cineclube, o público organizado. Nesse sentido, a produção é igualmente uma meta fundamental para os cineclubes. Na acepção de instituição da comunidade (não importando, portanto, se o roteiro ou a direção são individuais), os projetos e os esforços são decididos de forma coletiva e democrática, e tendem a responder (não necessariamente de maneira estrita ou mecânica) aos interesses e necessidades da comunidade. Com a facilidade relativa de produção que existe atualmente, a produção de um cineclube pode evoluir da documentação da história e da vida da comunidade em todos os níveis (elemento fundamental na recuperação da memória e construção da identidade da comunidade), até produções mais complexas e ambiciosas, ficcionais ou não.

Tarefas do movimento
A produção, como é claramente um momento da atividade audiovisual, talvez mais que outros aspectos da prática cineclubista, demonstra a necessidade de existência de uma articulação entre os cineclubes, de um movimento em nível local, nacional e mundial. Que é, por sua vez, a condição da expressão real de uma visão de mundo emancipadora e da construção de uma alternativa histórica democrática.

Movimento se opõe, em certa medida, à idéia de rede como forma e objetivo de organização. Não me interesso pela exegese semântica aqui, mas penso que movimento demanda sentido e direção, enquanto que a idéia de rede pode implicar apenas na tessitura de relações que se “amarram” em si mesmas. É evidente que as redes virtuais existentes constituem um instrumento fundamental de relacionamento entre as pessoas e organizações – elas são indispensáveis. Mas é importante não ficar no plano do mero contato sem conseqüência, não cair na interrupção do diálogo propiciado pela falta de comprometimento (que é facilitadora em outros níveis) do meio. Além das redes de intercâmbio, os cineclubes precisam de outros instrumentos de participação e mobilização, se querem efetivamente representar o público e se pretendem participar e influir no desenvolvimento do audiovisual no Brasil. Não basta tecer relações, é preciso transformá-las em energia e direção de transformação (e/ou resistência).

As listas de cineclubes, por exemplo – especialmente a lista nacional, “cncdialogo” -, têm exercido um papel fundamental da divulgação dos cineclubes e do movimento, favorecem a circulação de informações, “dicas” de programação e de contatos. Eventualmente serviram para uma mobilização específica: o abaixo-assinado. Mas me parece evidente que têm se mostrado ineficientes na promoção da discussão de questões importantes – o debate morre depois de duas ou três manifestações – da mesma forma que para a organização de certas ações solidárias – como nos casos de proibição de eventos e outras pressões exercidas sobre cineclubes: o apoio dos congêneres falece depois de poucas adesões, expondo mais a fraqueza que a solidariedade cineclubista. Também como elemento de democracia interna, a lista não é eficiente, mas aqui, creio que a responsabilidade cabe mais à direção do CNC. A entidade não se relaciona organicamente com o movimento, publicando informes sem sistematicidade, de importância variável e mesmo questionável. Informações sobre deliberações correntes da diretoria são escassas; resultados e deliberações de eventos importantes (como a Pré-Jornada) praticamente não são divulgados; as listas também não servem muito – ou só discriminatoriamente – para esclarecimento e diálogo entre os cineclubes e sua entidade nacional.

De qualquer forma, o que releva aqui é a necessidade de elementos complementares e específicos de reflexão, debate e informação do movimento, o que implica democracia e capacidade de elaboração teórico-prática, de mobilização e intervenção.

1. Publicações – Tal como obriga o artigo 5º. dos estatutos do CNC, o movimento necessita de uma publicação periódica de informação e debate, aberta a todos os cineclubes. O estatuto distingue claramente publicação impressa e virtual, e exige ambas. Por ser disposição estatutária nem precisaria ser repetida aqui, mas... A própria experiência parece demonstrar que o caráter menos transitório da reflexão impressa, o compromisso aparentemente mais definitivo no papel, assim como as faltas e ausências melhor notadas numa totalidade editorial, são uma necessidade premente para o movimento. Isso, sem mencionar a interação com o restante da sociedade: movimentos sociais, entidades de cinema, governos, etc. A Jornada deve, até para fazer cumprir os estatutos, debater e deliberar sobre formato editorial, periodicidade, etc, de pelo menos uma publicação oficial do movimento. Tradicionalmente era o Boletim Cineclube.

O movimento também precisa editar um Manual do Cineclube. Esse assunto tramita dentro da diretoria do CNC desde que o manual preparado para as oficinas do programa Cine+Cultura, em 2008, foi censurado. O projeto do Pontão Cineclubista (que vai sair a qualquer momento...) prevê sua edição. Caso isso não se ocorra, também creio que a viabilização de uma publicação desse tipo (28) deva fazer parte do programa para a gestão 2010-2012 do CNC. E a publicação de outras versões, regionais, locais ou que reflitam concepções diferentes, devem ser avaliadas pelas outras instâncias do movimento cineclubista.

2. Encontros, seminários – Na maior parte da história do cineclubismo brasileiro a Jornada Nacional foi anual. Diante da dificuldade de obter recursos, a direção do CNC propôs à assembléia nacional do cineclubes e fez aprovar a bianualidade do Encontro, alternando-se, ano sim, ano não, com a Pré-Jornada (que antes também era anual e ocorria seis meses antes, para preparar cada Jornada anual). Com isso, a primeira Pré-Jornada depois daquela deliberação foi um evento de grande participação, “uma verdadeira Jornada”, com mais de 60 cineclubes de todo o País. Na Pré-Jornada seguinte, porém, atendo-se às exigências mínimas dos estatutos, reuniram-se apenas alguns delegados formais, e suas deliberações não foram divulgadas (29). Ora, durante os governos dos generais Médici, Geisel e Figueiredo, por exemplo, as Jornadas foram anuais; a necessidade de reunião dos cineclubes não deve ser definida pelo maior ou menor acesso a patrocínios automáticos, mas responder à capacidade de organização e inventividade do movimento. Não acredito que hoje essa dificuldade possa ser maior do que no tempo da ditadura. E o movimento, pela sua própria juventude, seu caráter popular, sua capacidade de improvisação, pela riqueza do convívio e intercâmbio que possibilita a Jornada, precisa enfrentar essa dificuldade e voltar a se reunir anualmente. Também é muito importante ter pelo menos uma Jornada, em cada gestão, sem eleições (bianuais), possibilitando a discussão mais livre dos grandes temas cineclubistas. De fato, no modo atual, reduziu-se drasticamente a possibilidade de participação, portanto a democracia do movimento, assim como diminuiu a riqueza da experiência de convívio e intercâmbio interpessoal.

Mas o movimento precisa de encontros semelhantes em nível regional, e mesmo municipal nas cidades com vários cineclubes (30). As federações e associações precisam retomar a prática de assembléias mensais ou bimensais, conforme seu território. Essa prática está diretamente ligada à superação de uma postura de expectativa, de dependência de favores públicos, e favorece o estímulo à inventividade e criatividade baseadas na força da ação coletiva, propiciada pelo convívio mais estreito e freqüente, e pelo compartilhamento de forças e recursos entre os cineclubes.

Outros encontros, com diferentes finalidades, podem e devem ser organizados tanto pelo CNC como por outras organizações, inclusive por cineclubes com mais estrutura, em localidades mais propícias, municipalidades mais interessadas ou onde haja maior diálogo com poderes e estruturas locais. Temos chamado esses encontros, genericamente, de seminários, voltados para a discussão de um tema preciso: os direitos do público; cinema e educação. Penso que a Jornada deve definir um calendário mínimo de encontros ou seminários desse tipo, assumidos não apenas pelo CNC, mas pelos outros níveis de organização a que me referi acima. O que implica que federações e cineclubes (por isso também a importância da Pré-Jornada e do processo de discussão e preparação para cada Jornada) devem preparar e levar suas propostas à Jornada, para o estabelecimento desse tipo de calendário e realização desses encontros. Tal como levam propostas de sediar a próxima Jornada, depois de estudar e conversar com possíveis apoiadores locais. Uma proposta já existente, que deve ser avaliada, aperfeiçoada ou descartada, é a do Seminário Cinema e Educação – Cineclube, Escola, Comunidade, já mencionado.

Acho importante destacar, porém, que esses seminários devem ter método e oportunidade para uma efetiva participação dos cineclubes e seus militantes, ser ocasião para troca de experiências e aprendizado, não sucumbindo à tentação ou vício de organizar “mesas” que mais homenageiam personalidades do que trazem contribuições ao entendimento do tema. Já houve até seminário sobre os direitos do público em que este não estava representado. A articulação metodológica de mesas e grupos de trabalho, quando possível, me parece importante e desejável.

3. Cursos e oficinas – Outra forma de encontro são cursos e oficinas. Estas distinguem-se (de seminários, por exemplo), idealmente, pelo comprometimento direto dos participantes na atividade, às vezes implicando na produção de resultados e/ou avaliações. À dimensão do convívio acrescenta-se a experiência de uma “mudança” pessoal compartilhada no decorrer do curso. O movimento cineclubista tem se limitado muito às oficinas e ao modelo das oficinas do programa Cine+Cultura. Estas estão voltadas fundamentalmente para a motivação dos participantes, uma rápida compreensão da prática de exibição e o treinamento para o uso das facilidades do projeto: equipamentos e filmes da Programadora Brasil. A questão filosófica ou política – no sentido de concepção cineclubista – do sentido e da orientação do trabalho cineclubista foi descontinuada (31). Faltam, portanto, muitas dimensões e aspectos da atividade cineclubista, cujo tratamento não cabe nem deve ser atribuído a terceiros, mas diretamente ao CNC, às demais organizações cineclubistas e aos próprios cineclubes. Entre esses temas incluem-se produção (que, dependendo dos recursos, método e enfoque, pode ser abordada em mais de uma oficina), documentação, preservação, edição de publicações, edição de audiovisual, montagem de ambientes e/ou blogs, gestão cineclubista, autoração, programas de compartilhamento de filmes na internet, análise de filmes, etc. Temas como a história do cinema, do público e do cineclubismo, ou ligados a aspectos definidos do cinema e/ou do audiovisual, como linguagem, história, movimentos cinematográficos, me parecem caber mais em cursos (definidos em âmbitos geográficos mais restritos, de grupos de interesse formados localmente) que propriamente oficinas.

Gostaria de lembrar o exemplo do Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas, com duração de um ano, que foi organizado em 1958 pelo Centro dos Cineclubes (antepassado do CNC). Esse curso teve um efeito exemplar na formação de toda uma geração de cineclubistas, críticos de cinema e cineastas, sendo mesmo uma das grandes fontes e causas do desenvolvimento de uma “cultura cinematográfica” efetivamente nacional, com a expansão dos grandes cineclubes em todos os estados, nos anos seguintes à sua realização. Penso que uma adaptação dessa idéia, incorporando todos os recursos modernos, deveria ser parte do programa da nova gestão do CNC (ou ser considerado por uma ou mais federações e/ou cineclubes): o desenvolvimento de um projeto de Curso de Formação Cineclubista com maior profundidade e extensão (combinando presença física e virtual), a ser realizado em um número determinado de cidades centrais, no período do mandato.
4. Distribuição – A circulação de filmes é a base mais essencial para a articulação de uma rede e um movimento de cineclubes. A Dinafilme, distribuidora dos cineclubes, foi a primeira medida prática empreendida pelo movimento nos anos 70; ela permitiu um desenvolvimento ainda não igualado dos cineclubes, mesmo sob intensa repressão, e a criação de um circuito de pontos de exibição mais ou menos sistemática mas não organizados como cineclubes, que chegou a cerca de 2.000 localidades do País. A distribuição é base da autonomia cineclubista (como também é o mecanismo de domínio de Hollywood sobre o mercado comercial), nos termos que tratei ao longo deste texto. É condição para a criação de um circuito onde circule um cinema que retrate, expresse e promova o diálogo entre as diversas comunidades – um objetivo que vai muito além das propostas governamentais ou dos realizadores individuais que, no entanto, também são parte fundamental desse sistema de circulação. O intercâmbio internacional é outra dimensão absolutamente fundamental que está ausente de qualquer outro projeto de distribuição existente, excetuados os de instituições diplomáticas.

Hoje, o próprio termo distribuição (32) tornou-se menos adequado, face às mudanças existentes ou brevemente possíveis de difusão das imagens e sons. Mas a idéia subsiste: o movimento cineclubista precisa criar uma articulação permanente entre os cineclubes que permita a circulação de filmes ou conteúdos audiovisuais. É necessário um centro, que reúna, estoque e preserve matrizes, que sistematize e edite informações, e as “autore” nas cópias a serem enviadas para reprodução em centros regionais e/ou diretamente para os cineclubes com menos estrutura . É importante um sistema de gestão: a administração financeira e de prioridades (aquisição de equipamentos, investimentos em regiões), a captação e seleção (quando se fizer necessária) de filmes, o diálogo com os produtores (cineclubes, realizadores e empresas), etc. Essa gestão, além de profissional, deve ser sujeita ao controle e à participação das federações e dos cineclubes, que a ela, por sua vez, aderem. A experiência histórica da Dinafilme (33), extremamente importante, pode ser uma fonte de idéias e exemplos, como o do Conselho de Administração da Dinafilme (CADINA) e os Cadinas regionais, que serviam como canal de participação, de democracia e de formação de gestores e técnicos.

Parece que o Pontão Cineclubista pode ser lançado proximamente, nas vésperas da Jornada. Seu projeto contempla a instalação e equipamento de um escritório central para a Filmoteca Carlos Vieira (34) e a viabilização de uma equipe básica. Mas o movimento não discutiu ainda a forma de gestão, de participação e de controle democrático da nossa distribuidora. Acredito que esse modelo de gestão deve superar uma concepção meramente contábil-administrativa (mantendo, é claro, as práticas básicas e normais de gestão), calcada no padrão da empresa comercial e do lucro, e deve ver essa atividade com sua componente política, sobretudo de participação, na construção de um circuito efetivamente popular e nacional para um cinema do público.

Assim, penso que a definição de um sistema de gestão e participação na Filmoteca Carlos Vieira, seu Regulamento, deve ser ponto central de deliberação da Jornada e, no que couber, suas conclusões devem ser integradas aos Estatutos do CNC e fazer parte do programa de gestão do CNC no próximo período.

Notas:

1. Esse é um fenômeno mundial, sem dúvida, que desde o ascenso do chamado neoliberalismo, nos anos 70, seguido da queda do bloco de países soviéticos, foi minando as grandes diferenças ideológicas e programáticas entre os partidos. No Brasil, contudo, o fenômeno vem juntar-se a uma tradição de conciliação e composição “pelo alto”, geralmente sem a participação popular, que sempre marcou as grandes transições da nossa História.

2. Ironia minha: quero dizer o dinheiro, o segmento do cinema que “existe” no mercado. Não confundir com a “economia da cultura”, conceito meio confuso usado, justamente, pela intelligentsia dos órgãos públicos federais.

3. Ver Macedo, F. (2008). “O modelo brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”. In Moraes, G. (org.). O cinema de amanhã. Brasília, DF: Congresso Brasileiro de Cinema/Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural, p. 53-71.

4. Esta composição é bem particular. Simplificando um pouco, o PT é representado essencial e majoritariamente por quadros partidários da classe média e egressos do cinema amador, especialmente do curta-metragem e da ABD: deu o tom na importante ampliação do estímulo à produção dita cultural e regional, no qual acessoriamente se inserem as iniciativas de distribuição e exibição “alternativas”. O PC do B, contraditoriamente, é dominante na ANCINE, onde perfila com os interesses de Hollywood e da “indústria” nacional mas, no MINC, fora da área estritamente audiovisual, é o maior responsável pelo programa de Pontos de Cultura, voltado para a organização cultural das comunidades . A tradição do “centralismo democrático” stalinista parece resolver essa contradição. E o PV, que nem é propriamente da base governamental, entra nessa composição pelo alto, pela trajetória particular do ex-ministro Gilberto Gil – que inaugurou uma gestão dinâmica, propositiva, sofisticada e de vanguarda, com muitos quadros importantes com origem no estado da Bahia.

5. Aqui também a simplificação é acentuada: diversos realizadores de longa-metragem, assim como empresas produtoras independentes (no sentido de que normalmente não se associam à Globo e às distribuidoras estrangeiras) também participam do CBC, além da presença de representantes do ensino e da pesquisa de cinema.

6. No entanto, essa semente sempre esteve presente, constituiu desde o início a força que originou os cineclubes sem, contudo, encontrar uma formulação completa e definitiva que fosse assumida pelo movimento e capaz de orientar a sua prática.

7. As eleições da 28ª. Jornada mais que provavelmente irão consolidar o predomínio dos realizadores (ABD) e do Estado (Cine+Cultura) sobre a entidade nacional dos cineclubes brasileiros. Essa preparação/armação, que inclui mudanças importantes nos estatutos, corre em segredo há meses e previsivelmente será endossada pelo “cineclubismo real”.

8. Talvez ainda seja necessário esclarecer que nem o Estado nem a produção nacional são nossos adversários; pelo contrário, frequentemente estabelecem conosco parcerias muito produtivas e mesmo preferenciais. O que compromete o desenvolvimento do cineclubismo é a sua subordinação a orientações e interesses setoriais, corporativos ou político-governamentais que, na prática, limitam e/ou excluem a expressão dos interesses do público.

9. Principalmente da Itália, como Filippo de Sanctis e Fabio Masala, e do Brasil.

10. Há mesmo, concretamente, setores que tentam impedi-la e a combatem energicamente, com plena consciência e/ou por mero oportunismo. A demissão de Felipe Macedo do CNC se inscreve nessa problemática.

11. Sobre a questão, ver Esquenazi, Jean-Pierre. 2003. Sociologie des publics. Paris – La Découverte.

12. Uso o termo participante porque espectador tem, justamente, um viés passivo, não interativo.

13. Ver Benjamin, Walter, 2005 [1939]. “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade” em Teoria da Cultura de Massa. Costa Lima, Luiz. São Paulo – Paz e Terra. Também Kracauer, Siegfried 1987 [1926). “Cult of Distraction”, em New German Critique, vol. 40, inverno, p.92, citado por Hansen, Miriam. 2004. “Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade”, em Charney, Leo e Vanessa R. Schwartz. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo – Cosac & Naify.

14. A historiografia do cinema só mais ou menos recentemente começou a rever esse processo. O público popular do “primeiro cinema” sempre se expressou ruidosamente, e mesmo organizadamente, quanto a seus interesses e gostos. O estabelecimento de um cinema-instituição, do cinema “clássico-hollywoodiano”, é uma trajetória de repressão, controle e convencimento das massas, que se estende até o final dos anos 20. Uma ótima introdução geral está em Burch, Noel. 2007 [1991].La lucarne de l’infini. Naissance du langage cinématographique. Paris – L’Harmattan.

15. Masala, Fabio. 1992. “Una Carta Internacional para los Derechos de um Publico Nuevo” em Ponencias, Comunicaciones y Conclusiones, 3º. Congresso de Cineclubes del Estado Español, Barcelona - Ed. Federació Catalana de Cine-Clubs, citado por Macedo, Felipe. 2008. “Sobre a Carta dos Direitos do Público”, circular do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros.

16. De Sanctis, Filippo. 1986. “Per uma riccerca-transformazione con el publico dei mídia”, em Masala F., Publico e comunicazione audiovisiva, Roma – Bulzoni, citado por Macedo, Felipe. 2008. “Sobre a Carta dos Direitos do Público”, circular do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros. Ver também o trabalho de Beller, Jonathan. 2006. The Cinematic Mode of Production: attention, economy and the society of spectacle. Hanover – University Press of New England.

17. Uma alternativa que não signifique a transformação radical das relações de produção – com o fim da sua essência, a propriedade privada e a exploração do homem pelo homem – não é, afinal, uma alternativa, mas continuidade.

18. Há mesmo que se considerar com uma certa reserva a idéia de que o “cinema” teve uma primeira etapa de exibição sobretudo em feiras. Frequentemente, essas projeções pioneiras eram feitas em espaços permanentes de entretenimento popular (como os vaudevilles norte-americanos) e associações de caráter classista, políticas e/ou religiosas.

19. “Cinema do povo, o primeiro cineclube”. 2010, em http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/

20. Gauthier, Christophe. 1999. La passion du cinéma – Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. Paris : Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma et École des Chartes.

21. O que não quer dizer que elas não existam. Clubes de leitura e bibliotecas comunitárias, grupos populares e cooperativas de teatro ou de dança, escolas de samba, rodas e tantas outras formas de associação popular em torno de manifestações culturais – assim como as diferentes formas de “redes” de relacionamento na internet – também constituem experiências mais ou menos bem sucedidas de organização do público. Mas apenas o cineclube consolidou uma forma institucional universal.

22. Ver Macedo, Felipe. 2004. “O que é cineclube”, em http://cineclube.utopia.com.br/, rubrica cineclube.

23. Lacasse, Germain. 1998. “Du cinema oral au spectateur muet”, em Cinémas, vol. 9 n. 1

24. O que André Gaudreault e Tom Gunning identificaram como cinematografia de atrações nas primeiras décadas do cinema, ocupa cada vez mais a narrativa do espetáculo cinematográfico, enquanto nos videogames parece ocorrer a tendência inversa, o aumento da narratividade.

25. Nos dias de hoje, toda comunidade, sem exceção, deve ter um espaço cultural de referência, um ou mais centros culturais. Conforme a situação local, as iniciativas comunitárias podem ter seus próprios espaços ou compartilharem instalações e euipamentos.

26. Paulatinamente, na medida de suas possibilidades; no ritmo, direção e limites ditados pela decisão consciente da comunidade (dos membros ou associados) e em função de seus interesses; e preservando sua independência.

27. Incorporo nesta reflexão os princípios estabelecidos no projeto do Seminário Cinema e Educação: Cineclube – Escola – Comunidade.

28.É importante esclarecer que existe um certo número de “manuais” disponíveis para publicação, de diferentes autores e procedências, inclusive estrangeiros.

29.Como tenho denunciado reiteradamente, o conteúdo das discussões e deliberações dessa Pré-Jornada - que determinam a organização e temário da próxima Jornada, nunca foram divulgados. E foram cobrados por um único cineclubista, deixado sem resposta aparentemente em face da despreocupação com o assunto por parte do conjunto dos cineclubes brasileiros.

30. Saúdo o a 1ª. Jornada Paraense de Cineclubes e o processo de fundação da Federação Paraense de Cineclubes!

31. De fato, constituiu uma crise no início do programa, cujos dirigentes exigiram o afastamento do coordenador de conteúdos, representante do CNC, no que foram atendidos. Esse coordenador é o autor deste texto.

32. Veja-se, por exemplo, como a denominação da distribuidora governamental, Programadora Brasil, expressa, possivelmente de forma involuntária, mas reveladora, sua inclinação paternalista.

34. Ver em http://cineclube.utopia.com.br/ , na rubrica História, o texto Da distribuição clandestina ao grande circuito exibidor.

35. A denominação de Filmoteca parece contemplar bem a idéia de um acervo básico, a ser disponibilizado por não importa qual sistema ou recurso, existente ou que venha a existir.