sábado, 10 de julho de 2010

Sistema do Sistema

Deu no jornal Folha de São Paulo de hoje (10/7/2010): os recursos públicos diretos destinados ao “sistema S” este ano serão da ordem de 11,3 bilhões de reais. Somados a outras fontes de receita, o orçamento do “sistema” deverá chegar, segundo o jornal, a 16,1 bilhões de reais.

O Sistema S reúne as organizações assistenciais dirigidas pelas associações patronais da indústria (SESI, SENAI), comércio (SESC, SENAC), transportes (SEST, SENAT), agricultura (SENAR), pequena e média empresa (SEBRAE), fomento à exportação (APEX), ao desenvolvimento industrial (ABDI) e cooperativas (SESCOOP).


Se fosse um país, o Sistema ocuparia o 103º. lugar entre os produtos nacionais brutos - a totalidade da produção econômica – de uma lista de 194 países (dados encontráveis na Wikipedia, com dados do Banco Mundial, FMI e outros). À frente de vários países que falam português, do nosso vizinho, Paraguai, assim como da Islândia, Jamaica, Geórgia, Bósnia, Senegal... É um valor equivalente a mais de 10% de todos os investimentos previstos no orçamento da União para 2010 (151 bilhões). O Sistema supera também, em cerca de 2 bilhões de reais, a quantia destinada ao Bolsa Família, que é de 14,3 bilhões. E é umas 8 vezes maior que o orçamento do ministério da Cultura para 2010 – que, no entanto, é o maior da história daquele ministério, com crescimento de mais de 60% sobre 2009.

Este ano os recursos do Sistema cresceram bastante, devido ao aumento da mão-de-obra registrada, mas nada que fuja da ordem de grandeza normal que é gerida, desde os anos 40 (caso das instituições “S” mais importantes, da indústria e do comércio; algumas são mais recentes, mas bem menores, comparativamente), pelas grandes entidades patronais brasileiras, como as Confederação Nacional da Indústria, do Comércio, etc, e suas poderosas congêneres estaduais, como a FIESP, FIRJAN, etc.

Em passado recente houve uma tentativa de reformar esse “sistema” que substitui, privatiza e/ou usurpa funções do Estado em favor de um setor da economia (o capital, o patronato) e da sociedade (a classe dominante), praticamente sem controle. Segundo o jornal, as contas do Sistema são uma “caixa preta” em que a Controladoria Geral da União e o Tribunal de Contas da União sempre apontam irregularidades, sem conseqüência. Assim também aconteceu com a acanhada proposta de reforma, rapidamente abortada pela força de lobby do Sistema e pela tradicional sabedoria governamental de não cutucar a onça sem considerar cuidadosamente o tamanho da sua própria vara... Aliás, como aconteceu com a Ancinav e a Lei Geral das Comunicações – e tem tudo a ver com a atual discussão inicial dos “direitos autorais”. A disputa pelo controle das comunicações, da circulação da cultura, do acesso do público ao conhecimento, à informação, à cultura e à arte remetem imediatamente à essência do modelo social e econômico e à hegemonia na direção da sociedade.

A comparação com o orçamento do MINC cabe porque esses recursos do Sistema – a maior e mais sistemática apropriação privada de recursos públicos no Brasil – destinam-se a ações de “qualificação, educação e cultura” dos trabalhadores dos vários setores da economia nacional. O que o cotejo evidencia, é que a “iniciativa privada” tem uma capacidade de intervenção no plano da formação da população trabalhadora várias vezes superior à do Estado. E veja-se que esses recursos vêm do Estado (isto é, dos contribuintes), e ainda são complementados pelo modelo de fomento da ação cultural em vigor (em resumo, a lei Rouanet), que também privatiza as decisões de investimento.

Grande parte desta minha “reclamação rancorosa” poderia ser atribuída a um idealismo abstrato e ingênuo ou a um arcaico espírito conspiratório de tipo comunista, se as ações do Sistema estivessem à altura dos recursos públicos de que se acapara. Se o Sistema desse conta do recado. Ora, nada é mais notório que a absoluta insuficiência e profunda inadequação da formação da mão-de-obra brasileira, que hoje é talvez a maior responsável pelo desemprego e pelos “gargalos” de desenvolvimento produtivo em inúmeros setores da economia. Se considerarmos que essa - qualificação profissional - é a mais importante atribuição do Sistema e que mais diretamente beneficiaria suas empresas, se pensarmos nos valores disponíveis numa longa série histórica – de muitas dezenas de bilhões (e o Sistema ainda cobra pelos cursos) -, veremos que nossas “lideranças empresariais” não souberam aplicar nem gerir proveitosamente (para o público, pelo menos), esses vultosos recursos apropriados do conjunto da sociedade, e mais diretamente dos trabalhadores, ao longo de várias décadas.

Também no que se refere à formação cultural, o senso comum nada vê além das suntuosas (e relativamente bem equipadas) sedes dos SESIs e SENACs. Nesses espaços realmente se desenvolvem muitas atividades interessantes e proveitosas, mostrando que a questão da hegemonia moral e intelectual, nos termos de Gramsci, não é uma contraposição mecanicista entre o bom e o ruim, mas um terreno de meios tons e contradições, onde cabe o vanguardismo e até a democracia (pois servem para convalidar e justificar o Sistema), desde que circunscrita dentro de certos limites. Como já escrevi algures, o capital (isto é, a iniciativa privada) não produz cultura (que é fruto do trabalho), mas organiza e controla sua distribuição e circulação.

Da próxima vez que for ao SESC mais próximo assistir a uma projeção de um filme ou outra atividade cultural, pergunte a si mesmo o que nós, sociedade, comunidade, cineclubes, teríamos feito com um centésimo desses orçamentos aplicados durante vários anos...