segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O texto abaixo é a segunda parte de um artigo mais amplo cuja introduçào, na lógica do blog, segue abaixo dele.

CINECLUBISMO EM CRISE (II)

Segunda Parte: O papel do CNC e outros ou o fim de um sonho

O cinema, comercial, capitalista, hollywoodiano e globalizado é contra o público. O audiovisual é uma arma, ou um arsenal mesmo, de diversas tecnologias de uma classe social dominante para alienar, controlar, explorar os povos do planeta. O cineclubismo é a forma de organização desenvolvida pelo público para se contrapor a essa dominação e construir um cinema que seja a expressão de todos: o cinema do público. Essa é sua essência, papel e vocação maior. Fora disso o cineclube cai na função de culto, hoje melhor exercida por outras instituições, ou de instrumento complementar e auxiliar da alienação e exploração do público.

Hoje, diante de uma hegemonia ideológica liberal da produção, de um modelo de atividades dependente do Estado e da fragilidade e complacência de sua direção, o cineclubismo brasileiro enfrenta uma crise talvez terminal, ameaçado de ser superado, ao menos momentaneamente, por formas que negam sua identidade e vocação, apropriando-se da denominação e das organizações cineclubistas para, junto e complementarmente às outras instituições e mídias comerciais controlar, paternalizar e reduzir o público à condição de platéia, de espectador, consumidor passivo da sua própria sujeição.

Este texto é a segunda parte de um artigo mais amplo em que já examinei as principais forças mais ou menos externas ao movimento que agem nesse sentido. Aqui se trata de discutir um pouco o papel da direção nacional do movimento nesse processo. E, evidentemente, nada disso acontece sem a participação, fundamentalmente por omissão – mas também por adesão – de grande parte dos grupos e atividades associados ao Conselho Nacional de Cineclubes. Esses grupos pretendem maior direito à denominação cineclube, também usada por animadores individuais, repartições públicas, organismos filantrópicos, atividades de lazer diversas, sessões “de arte” e/ou para públicos seletos em salas de luxo, nas comerciais, nas públicas e nas privadas do ambiente cultural brasileiro... Quem tem razão?

Dada a pouca prática de discussão, a inexperiência do debate político de muitos, as inferências de caráter pessoal contidas aqui certamente vão “mobilizar” mais alguns leitores, especialmente os que se reconhecerem em meus comentários. Embora essa dimensão exista, claro, pois faz parte do conjunto da política do movimento, não é o aspecto pessoal que me interessa, mas as linhas e tendências que se desenham no cineclubismo brasileiro, com repercussões internacionais inclusive. É o cineclubismo que está em crise, não suas direções que, parece, passam bem. Espero que a maioria dos leitores se interesse e reflita sobre o significado mais geral do conjunto destas minhas considerações, nas quais as eventuais particularidades só contam como parte do fluxo. E que delas possa resultar uma contribuição à compreensão de uma crise que muitos procuram ignorar ou mesmo ocultar sob um discurso ufanista completamente irrealista. Até que um cineclube do interior do País comece a lamentar, sem compreender muito bem, o fim de um sonho...

Sem debate cineclubista não há movimento cineclubista

Os anos da ditadura militar são possivelmente os mais ricos da história dos cineclubes brasileiros, sob vários aspectos. Marcaram o surgimento de um novo tipo de cineclube, de caráter popular, que reelaborou a herança do cineclubismo puramente cinéfilo de tradição francesa. Deram origem a um modelo original de estruturação do cineclubismo como movimento nacional (e mesmo internacional, em certa medida), e de suas organizações, como a Distribuidora Nacional de Filmes para Cineclubes, DINAFILME. Esse período (1974-84) também foi o de maior sucesso político e institucional (sempre muito relativo) dos cineclubes brasileiros, assim como de sua dimensão: o CNC chegou a ter cerca de 600 cineclubes associados e a Dinafilme atendia a uns 2.000 “exibidores” de caráter cultural e comunitário. Em plena ditadura militar, o movimento cineclubista exerceu um papel e uma influência sobre o cinema e a sociedade brasileiros que não encontra paralelo em nenhum outro período da nossa história.

Outra característica dessa época foi o debate intenso. Intenso no sentido de sua extensão, com a publicação freqüente de boletins da entidade nacional e das federações, anais integrais das Jornadas e boletins CADINA (dos Conselhos de Administração da Dinafilme nacional e regionais), com relatórios da distribuidora e discussão de propostas para a sua gestão. Sem falar, claro dos boletins dos cineclubes, meio que inseparáveis da própria atividade naquela época. Mas igualmente intenso quanto ao conteúdo; propostas concretas só eram aprovadas depois de amplas discussões e em estruturas políticas de decisão e participação precisas: plenárias estaduais e nacionais, o Conselho de Representantes e os já mencionados Cadinas.

Além de um grau elevado de democracia que essas instituições do movimento atestam, a disputa entre propostas e visões que as embasavam implicava também numa grande diversidade de posições políticas, programáticas. Assim, o debate era também muito intenso no plano ideológico. Uma das grandes polêmicas da primeira parte desse período, por exemplo, era a do Nacional Popular e do cinema nacional, defendidos pelos comunistas e uma ampla gama de cineclubes sem uma “filiação” ideológica mais precisa, em oposição ao internacionalismo proletário e a universalidade da arte, dos trotskistas e outras correntes de cineclubes principalmente universitários. No contexto da Dinafilme isso se refletiu, por exemplo, numa postura meio censória destes últimos que, nas comissões Dinafilme (que dirigiam as “filiais” estaduais ou regionais) em que eram majoritários, recusavam-se a distribuir certos filmes brasileiros (como as fitas do Mazzaropi) por serem reacionários ou conservadores, do seu ponto de vista. Se chama a atenção dos jovens de hoje a inexistência de correntes menos de esquerda, digamos, devo avançar a hipótese de que, num regime autoritário, essas tendências praticamente não “aparecem” (embora evidentemente existam), mantêm-se afastadas dos movimentos organizados mais combativos, contestadores, pois se alinham ao status quo e/ou simplesmente se limitam a objetivos e ações imediatas, “despolitizadas”. Há pouco tempo, em debate com um diretor do CNC nesta lista, ele afirmava ter sido cineclubista naquela época e nunca ter ouvido falar do CNC (!); deve ser um desses casos. Hoje defende a coalizão Fora do Eixo – PCult e quejandos.

Estes exemplos de discussão e muitas outras questões ocupavam todos os espaços de que dispunha o movimento, em artigos e ensaios, réplicas e tréplicas aguerridas, irônicas, implacáveis. Essas disputas, como me parece óbvio, contribuíam e eram mesmo a manifestação mais evidente do grau de democracia que regia o movimento: independentemente de “hegemonias” locais ou nacional de uma ou outra tendência, quando havia, as oposições sempre tinham direito e espaços assegurados para se expressar. Tal é, de fato, a intenção e modelo do Conselho de Representantes, no CNC e a forma de administração ultraparticipativa que marcava – e às vezes até atrapalhava – a Dinafilme. Mas, quando interesses gerais do movimento estavam em jogo – como a manutenção dessas mesmas instituições, políticas (da organização) ou econômicas (basicamente a Dinafilme, mas também a organização de encontros), a unidade do movimento cineclubista prontamente se estabelecia. O maior e mais claro exemplo disso foram as mobilizações amplamente nacionais quando das duas invasões e apreensões na Dinafilme pela Polícia Federal, em 1977 e 79. E todas as Jornadas anuais - e as Pré-Jornadas entre elas -, organizadas praticamente sem patrocínio. Mas também o acatamento dos resultados eleitorais ou de propostas programáticas por eventuais minorias - que podiam ser bem numerosas ou majoritárias em determinadas regiões – em função da unidade geral em torno de princípios e conquistas comuns (1).

Esse debate começou a se enfraquecer sobretudo a partir de uma nova tendência no movimento, que não mais divulgava posições, não participava do debate escrito nem definia perspectivas programáticas. Sua força de coesão se estabelecia em reuniões fechadas a “estrangeiros” e, publicamente, suas posições eram mais de negação de algumas propostas de seus adversários do que propriamente a defesa de um programa (foi assim, por exemplo, que os cineclubes e a atividade com 35 mm foram afastados do movimento). Essa postura conquistou a direção nacional do movimento em 1984 (por um voto!), sendo sucedida – com seu apoio - na eleição seguinte por um grupo extremista meio anedótico (se não tivesse sido tão grave para o cineclubismo brasileiro), “gadafista”, que sequer conseguiu terminar seu mandato. Esse momento coincidiu e contribuiu (sem ser a única causa) para a desorganização do movimento e seu refluxo que iria perdurar até o início deste século.

Como disse, o período final da ditadura é o de mais intenso debate na história do cineclubismo brasileiro, principalmente pela importância e organização que os cineclubes atingiram. Mas, como também escrevi na primeira parte deste ensaio, o debate nunca esteve ausente de qualquer outra fase da nossa trajetória. Acredito, justamente, que esse debate está diretamente ligado ao vigor dos cineclubes; é fundamental e indispensável como motivação essencial, base motriz da formação da militância associativa em que se apóia o cineclubismo e cada cineclubista. E que a ausência desse debate (e das instituições que lhe estão associadas) representa ausência de democracia e compromete o ânimo e a própria sobrevivência do movimento. Os grandes momentos do cineclubismo - que tem entre suas características uma intermitência muito pronunciada, intercalada de refluxos profundos -, sempre foram marcados pela discussão, pelos fortes posicionamentos estéticos e políticos (isto é, ideológicos), pela produção escrita e por uma imprensa robusta.

A descaracterização, dissimulação das diferenças, a ausência do debate e o desencorajamento de suas oportunidades contribuem decisivamente para o retrocesso ou falência do cineclubismo. É o que acontece hoje, com uma certa “unanimidade” complacente, um ufanismo triunfante sobre “conquistas” pífias e uma “unidade” dependente que estão solapando paulatinamente as bases fundamentais da organização do público e vêm eliminando canais, práticas e instituições para a sua manifestação.

Muita diretoria e nenhuma direção

É claro que o enfraquecimento do conteúdo e das práticas do movimento cineclubista brasileiro não acontece apenas por causa de uma solércia extraordinária de algumas figuras influentes do neoliberalismo cultural tupiniquim amador, que abordei na primeira parte deste ensaio. Este processo acompanha a chamada reorganização do cineclubismo, desde 2003. O movimento cineclubista brasileiro inteiro é co-responsável, e o CNC especialmente cúmplice da solapa de várias características do cineclubismo que integram esse núcleo essencial da nossa condição: o associativismo sem fins lucrativos que tem o audiovisual como instrumento de organização e expressão do público.

As baixas motivação, mobilização e participação que caracterizam o movimento deste período permitiram a convivência com uma entidade nacional muito esvaziada que deu origem a uma direção extremamente centralizada – mais marcadamente até 2010 – e de escassa capacidade de ação. Desta condição deriva uma prática que se torna senão cabalmente autoritária, ao menos irrepresentativa: na falta de recursos, forças e vontade política para exercer uma direção participativa, o CNC capitaneou a abolição de práticas democráticas fundamentais do cineclubismo.

Os congressos nacionais anuais, as Jornadas, passaram a se realizar a cada dois anos, coincidindo com o mandato da direção nacional. Desta forma, os cineclubes só se reúnem por ocasião de eleições, e estas parecem consumir todas as suas energias. A “árdua” tarefa de composição de uma chapa substituiu a necessidade de um programa (a última plenária nacional a discutir um programa foi a de 2004!) e se tornou uma negociação e distribuição de “parcelas de poder” (2) em detrimento da discussão coletiva e nacional das questões de base que afetam ou interessam ao movimento. A Jornada de 2010, que marca um pequeno avanço na participação das regiões e lideranças locais na composição da diretoria é, entretanto e justamente, momento de consolidação e expressão dessa partilha de espaços, sem objetivos definidos de forma democrática pelo grande coletivo nacional dos cineclubes.

Claro que todo mundo que foi à Jornada, especialmente pela primeira vez, adorou a oportunidade de se reunir com companheiros de todo o Brasil e partilhar idéias, experiências, convívio. A Jornada constitui, em praticamente qualquer circunstância, um rico momento de aprendizado – daí a gravidade do seu espaçamento e esvaziamento. Mas como instrumento de organização e democracia esta última Jornada constituiu um retrato da preocupante descaracterização do cineclubismo brasileiro. Além de - e por - não ter discutido e elaborado um programa, a Jornada foi marcada também por uma grande desorganização, reflexo mais da situação e do nível político do movimento do que de sua baixa capacidade na “produção” do evento (atrasos, cancelamentos, etc.). Para mim, a organização do evento disse que havia 250 cineclubes inscritos, mas em nenhuma plenária o número de entidades chegou à metade desse número (3) ficando, normalmente, bem abaixo disso. Os 5 ou 6 grupos de trabalho, base para a elaboração dos debates plenários, reuniram um número médio surpreendentemente pequeno de participantes (em torno da dezena, um pouco mais, um pouco menos) num encontro dessa natureza e importância, como pode ser comprovado nos seus relatórios. Também a duração da Jornada, tradicionalmente de 5 dias, foi sendo reduzida, chegando a apenas três dias de trabalhos.

Condomínio de interesses variados e mais ou menos privados

O resultado final é a composição de uma “direção” sem Norte, cuja prática é definida pela negociação de influências dentro de sua estrutura sem, de fato, um propósito e direção concretos, um conjunto de objetivos consolidado. E sem qualquer participação efetiva dos cineclubes (4). O documento Planos de Trabalho do CNC, já citado na primeira parte deste texto, recém distribuído pela diretoria para marcar a primeira metade de uma gestão sem atuação significativa, é a tradução mais completa dessa soma desigual de propostas soltas ou fundamentadas em bases “externas”, de diferentes grupos ou mesmo de interesses mais limitados, até individuais (tem gente já em campanha para a próxima eleição, como certamente vêem os que têm olhos...), reunidas numa rala sopa “programática”. Para alguns, o cargo no CNC é “currículo” para uma carreira pessoal ou para a justificação de “especialização” na oferta de cursos, eventos, curadorias, etc. a eventuais patrocinadores.

Ao militantismo de outras eras substituiu-se uma certa “profissionalização” de um núcleo central de “produtores” (5) do cineclubismo em escala nacional, ligados à pequena política e a suas carreiras pessoais e/ou que vivem do Estado ou da sua condição de “representação” do movimento. Essa profissionalização de uns leva, por sua vez, a uma periferização, um distanciamento dos demais diretores, menos “profissionais” (e, em geral, menos militantes também, é forçoso admitir). E sobretudo do conjunto do movimento, na falta das instâncias intermediárias de participação. Grupos “especializados” por temas – GTs disso e daquilo - são criados formalmente mas, sem tarefas ou poder reais, não se estabelecem; ao contrário, só ajudam a consolidar o modelo. Outro aspecto dessa “profissionalização” é a cooptação pelas agências governamentais, o que ocorre talvez mais fortemente no plano regional, com a distribuição de funções nas oficinas do Cine+Cultura.

Certamente contribui para essa situação, assim como revela a concepção (ou falta de) que a embasa, a visível substituição do sistema de Conselho de Representantes, em que delegados eleitos proporcionalmente nas bases regionais (permitindo a representação de diferentes posições e grupos) se reúnem num conselho que deve(ria) interagir, complementar, contribuir e fiscalizar a ação ou inação da diretoria. Agora substituídos pelos “diretores regionais” - espécie de vice-reis que “representa(ria)m” (pelo processo descrito de distribuição) grandes regiões do País. A última Jornada introduziu a mudança nos estatutos que consagra esse modelo. Deixo aos leitores a avaliação do comportamento de suas federações ou entidades equivalentes na promoção desse instrumento de participação, hoje substituído por esses “poderosos” representantes individuais que, afinal, também quase não têm participação. Embora o documento do CNC fale em uma diretoria de 20 e tantos elementos, com reuniões semanais pela internet, essas reuniões contam com um número bem menor e inconstante de participações – excetuado um pequeno núcleo central, é importante reconhecer, que efetivamente concentra as discussões, bem como a distribuição de participações em festivais e outros eventos, além de ocasionais reuniões com o Governo. E que “produz” os parcos eventos do cineclubismo brasileiro.

Processo gradual e progressivo

Mas, como disse, isto é um processo: desde 2004 e cada vez mais claramente, as diretorias do CNC desvalorizaram os mecanismos de participação e de orientação que deveriam nortear nossa entidade nacional. Além do processo de esvaziamento, de “politização” burocrática da Jornada e da falta de estímulo ao Conselho de Representantes, também a Pré-Jornada (com exceção de 2007, quando mais de 60 cineclubes participaram) acabou transformada, de fato e apenas, numa reunião bianual da diretoria. A atual diretoria, é verdade, tem procurado superar a situação escandalosa anterior, em que os relatos e prestações de contas das jornadas e pré-jornadas sequer eram divulgados (e cabe à Pré-Jornada definir estrutura e conteúdo da Jornada!), mas já termina a primeira metade de seu mandato protelando a Pré-Jornada. E ainda que se tenha colocado como tarefa a divulgação das atas de sua reuniões virtuais, elas acabaram se transformando em breves listas de tópicos burocráticos e esotéricos, que não informam sobre o real conteúdo das discussões e, de fato, omitem diversos assuntos, verdadeiros tabus (6), considerados muito graves para uma ampla (ou democrática) discussão...

Desde 2004, o CNC nunca se preocupou em cumprir o artigo 5º. dos estatutos, que o obriga a editar um boletim periódico em que contribuam os cineclubes; já o saite – que acumula uma quantidade apreciável de informações de todo tipo – é, como todos conhecem bem, uma preciosidade em termos de organização, clareza e facilidade de orientação. E divide sua função com mais uma meia dúzia de blogs, nings, círculos de amigos no facebook, espalhando dados que talvez confundam só a mim, notório dinossauro de um cineclubismo mais transparente. O único canal efetivo de comunicação acaba sendo a lista cncdialogo, extremamente interessante e rica para a troca de informações entre cineclubes, mas que não cumpre nem o papel de uma imprensa de discussão – os poucos debates, como este, morrem rapidamente com três ou quatro intervenções (e mais uma meia dúzia de mensagens dizendo “é isso aí”, “parabéns” e “concordo”) – nem o de canal de participação efetiva, pois não tem reconhecimento estatutário nem político. De fato, até a atual diretoria, o CNC nem se dava ao trabalho de responder a questionamentos feitos na lista.

Atrelamento ao Estado e subordinação aos interesses dos produtores

O relativamente pequeno número de cineclubes da fase de reorganização, entre 2003 e 2008, mas principalmente suas moderadas motivação, mobilização e participação, deram origem, inicialmente, a um espécie de círculo vicioso em que essas características se reforçam, comprometendo crescentemente a própria democracia das nossas entidades e, em última instância, a própria instituição cineclubista. O vigor de uma nova “classe” de produtores/realizadores audiovisuais (decorrentes das inovações tecnológicas e da democratização das políticas governamentais), sua condição essencialmente amadora e dependência dos públicos informais em que gravita a atividade cineclubista levaram a uma relativa simbiose entre os dois “movimentos”, caracterizada principalmente pela hegemonia ideológica dos primeiros. Que, por sua vez, se estende à direção dos programas de governo supostamente voltados para os cineclubes e, com a inauguração de um novo período do cineclubismo, na própria direção deste. Entenda-se bem, refiro-me aqui à hegemonia da produção “autoral”, individual, nos moldes tradicionais da instituição cinema capitalista. Embora haja diversas experiências visando uma concepção cineclubista de produção, de um cinema coletivo produzido pelo público organizado, elas não estão consolidadas e nem conseguem se fazer reconhecer ou influenciar o processo de produção audiovisual. ABD e CNC promovem essencialmente o chamado “cinema de autor”, eufemismo que caracteriza a reação pequeno-burguesa nacionalista ao monopólio hollywoodiano, que se exprime em formas igualmente empresariais de produção – ainda que infinitamente mais “modestas”.

Esta hegemonia, que vem se consolidando, portanto, há quase uma década, se traduz por uma apropriação e re-significação das bandeiras, das práticas e, como já disse, dos programas de cineclubismo adotados pelo Estado, com a sua intermediação e reestruturação efetivadas pelos realizadores. A reivindicação de uma distribuidora dos cineclubes tornou-se, sintomaticamente, uma “Programadora”, que controla em alguma medida a programação de seus beneficiários. O programa de equipamento, orientação e formação de cineclubes virou um projeto barato (cerca de 1/20 dos recursos dos Pontos de Cultura, por exemplo) de formação de platéias fundamentalmente para aquele segmento da produção (7). A defesa dos direitos do público reduziu-se a uma concepção utilitária de “acessibilidade” que mal esconde a ideologia de busca de uma platéia e um “mercado” para essa produção. Não é uma mera coincidência, mas uma relação de causalidade, que reúne nas mesmas pessoas as direções dos programas governamentais Cine+Cultura e Programadora Brasil e a organização “independente” da sociedade civil que “luta” pela cultura, o ben trovato Partido da Cultura que, por sua vez, celebra agora em dezembro seu “congresso”, dentro do também congresso da organização Fora do Eixo... Tampouco é por acaso que a “teoria” do jocoso pós-mercado industrial sustentável se apóie numa elaboração intelectual oriunda da produção audiovisual sustentada por essas e outras iniciativas da viúva – e não produzida pelos próprios cineclubes.

No plano estritamente político-institucional, o CNC tornou-se (8) no que minha geração descrevia com a expressão “correia de transmissão” do Estado. A entidade passou os anos de 2009 e 2010 a reboque das atividades do Cine Mais Cultura, intermediando a produção e monitoramento de oficinas de qualidade variável, absolutamente determinadas em seu conteúdo por intervenções da direção do programa governamental. Nem vou voltar à questão da eliminação do manual cineclubista, por “excessivamente cineclubista”, tranquilamente assimilada pela direção e mesmo pelo movimento dos cineclubes brasileiros. No final desse período, esse atrelamento se aproximou do mais puro peleguismo – usando outra expressão meio antiquada – com vários dirigentes da entidade abertamente aderindo a uma candidatura presidencial na lista dos cineclubes (até então apartidária), criando um ambiente de absoluta intolerância com outras posições e, já depois de definida a nova presidência do País, atrelando a própria entidade a pessoas que disputavam cargos na estrutura do ministério. Uma verdadeira première na tradição ética (ou no rompimento dela) do cineclubismo brasileiro.

Graças a esse atrelamento e à apatia política, boa parte do movimento seguiu, por adesão mesmo ou inércia, num clima morno de submissão ao que chamo de “ideologia da produção” – para distinguir da integração aos interesses do público. Apesar do freqüente emprego oportunista da palavra de ordem de defesa dos direitos do público, teoricamente baseados na Carta de Tabor, seu conteúdo foi reduzido ao “direito de acesso a filmes brasileiros”, especialmente de curta metragem... Nunca se discutiu (9), nestes últimos anos, os demais direitos: de ampla participação na elaboração, na gestão e controle das políticas públicas; de apoio à organização das entidades do público; de seu controle sobre a qualidade e a veracidade da informação e da cultura que recebe, para citar alguns temas bem rapidamente.

Os cineclubes apenas foram chamados para complementar demandas (de resto muitas vezes justas) da “produção” e reforçar suas posições em conflitos que, quando muito, diziam respeito muito indiretamente aos cineclubes: regulamentação da produção independente nas tevês, combate ao ECAD, e outras leis ligadas à produção e seus interesses corporativos. Que, numa perspectiva bem ampla de defesa do cinema nacional até interessam ao público, só que os interesses deste e dos cineclubes especificamente não fazem, ou apenas sutil e esporadicamente, parte das reivindicações encaminhadas pelo CNC (10). Ou então para secundar as bandeiras criadas pelo próprio ministério da Cultura. Nada contra, na verdade, não fosse isso, mais que qualquer coisa, a expressão de uma verdadeira utilização da “mobilização” cineclubista para valorizar a trajetória política de algumas de suas lideranças. Nada contra, não fosse o fato de que em nenhum momento o movimento, isto é, sua entidade, exigiu ser ouvido ou participar da elaboração de programas diversos de criação de salas de cinema; de uso do audiovisual no ensino (embora aprovado desde 2007/2008, a idéia da discussão de Cineclube, Cinema e Educação só teve início depois da Jornada e da publicação do livro homônimo, que não teve participação do CNC); da criação de praças de esporte e cultura (prioridade do atual governo), entre muitos outros diretamente ligados à problemática e aos interesses cineclubistas (11), inclusive o programa maior do MINC, dos Pontos de Cultura, tratados à parte do cineclubismo. Mesmo no único espaço de que participa, o informal e consultivo Conselho ou Comitê da Secretaria do Audiovisual, o CNC se abstém de propor a discussão da sua composição e formalização.

A ausência e apatia do CNC e dos cineclubes nesses programas propiciou a criação de várias divisões abstratas entre as organizações populares e comunitárias ligadas ao público. O que, evidentemente, só contribui – e muito – para sua fragmentação e enfraquecimento (mas embalado no discurso neológico triunfante do “empoderamento”). Daí a separação entre cineclubes, “cines”, “pontos de cultura com vocação audiovisual”, “iniciativas populares com audiovisual”, entre outras. A cada uma dessas abstrações (algumas criadas muito recentemente justamente pelo pessoal que compõe o combo Estado/iniciativa privada: Cine+PCult+ForadoEixo) corresponde uma “entidade representativa” e um eventual assento em conselhos governamentais. Antigamente brigava-se pela unidade sindical apartidária, agora a força popular é fragmentada por meras denominações, totalmente desprovidas de sentido! Mas com um sentido menos alardeado mas bem preciso: a “superação” do cineclubismo, a substituição do associativismo do público pelo empreendedorismo individual e variações em torno do tema.

De fato, nem a Programadora Brasil ou o Cine Mais Cultura, que dedicam uma pequena parte de suas atividades, mas uma parcela substancial do seu discurso aos cineclubes, jamais foram questionados, nunca receberam qualquer cobrança ou sequer propostas de aperfeiçoamento, embora estas brotassem espontâneas e numerosas em todas as ocasiões em que os “clientes” diretos, comunidades e outros, se expressavam (12). Por outro lado, a criação da Filmoteca Carlos Vieira, a distribuidora do próprio movimento, não passou do papel e do discurso, aliás triunfante. Talvez em nome de um vanguardismo irrealista (adotado sem qualquer discussão), de organizar a disponibilização via internet e ignorar a modesta distribuição de DVDs, como fazem todas as outras iniciativas de distribuição, inclusive a do Estado, nossa distribuidora nunca se concretizou e, ao que tudo indica, acabará – se acontecer - meio privatizada por um segmento do movimento, e não mais pelo seu conjunto. Isto é, se conseguirem as bases técnicas operacionais necessárias para esse projeto tão avançado...

Fraqueza do movimento

A fase de crescimento econômico e redistribuição de riqueza que também caracteriza este período (2004/2012) e governos, tem criado uma certa promiscuidade nas relações entre Estado e sociedade civil, e debilitado a capacidade de organização da sociedade. Sindicatos e movimentos sociais bem mais expressivos estão imersos nessa problemática e, um pouco menos, em sua discussão. Os setores mais frágeis, o que inclui inevitavelmente a cultura – e os cineclubes, que se destacam pela modéstia organizativa – caíram numa ciranda de dependência quase absoluta que, aliás, está entre as bases da rebeldia ensaiada com a mudança de governo e ameaça (ou realidade) de suspensão da sustentação integral de vários setores. Especialmente o programa Cultura Viva, um dos mais beneficiados na gestão anterior. Diversos projetos governamentais, que visavam dar uma estrutura inicial e garantir um período mínimo de consolidação e autonomia (como no caso dos Pontos de Cultura), chegam ao término contratual sem que as entidades tenham conseguido se estabelecer de forma independente. E agora querem a continuidade do sustento, o que coincide com teoria do pós mercado industrial sustentável (ver a primeira parte deste ensaio)... Não é o caso dos cineclubes (no sentido estrito, pois muitos participam de outros programas), cujos recursos exigem uma participação exclusivamente voluntária e só conseguem manter um nível mais ou menos precário de atividade.

Claro, no grande circuito de formação de platéias que constitui o Cine+Cultura e as interfaces com alguns outros programas, a grande maioria já não é constituída por cineclubes, mas por organismos públicos, para-públicos e/ou particulares (chamados de cineclubes de forma intermitente, quando convém). De qualquer forma, ainda que muito valorizados pelo discurso apologético triunfante das instituições e pessoas envolvidas (incluindo o Governo e o CNC), o número total de todos esses pontos mal chega à metade do número de exibidores populares atendidos, por exemplo, pela Dinafilme (a distribuidora do CNC), na virada dos anos 70/80, sob forte repressão e com uma população brasileira muito menor. E se considerados os espectadores (porque a maior parte é, realmente, de espectadores) do circuito atual, que tem platéias médias irrisórias, não apenas o público da Dinafilme, mas um só cineclube 35 mm dos anos 80/90 já superaria a soma final de todos esses “coletivos informais” somados.

Recente relatório da Programadora Brasil mencionava cerca de 300 mil espectadores atingidos desde 2007. As médias mensais de cineclubes como o Bixiga (8.000) ou Elétrico (15.000) já superavam esses números em períodos comparáveis. Uma única edição da Mostra Internacional de São Paulo ou do Festival do Rio também superam a platéia de quase 4 anos da Programadora.

O Cine+Cultura, seu principal braço exibidor, se baseia na atividade semanal sistemática de mais de mil pontos de exibição, segundo seus próprios dados. Ora, se considerássemos uma média de apenas 400 exibidores (porque o programa não nasceu com mil), e um ano de 40 semanas (ou 9 meses) teríamos 16.000 projeções por ano. Dividamos esses 300 mil espectadores por apenas 2 anos (mais uma vez procurando reconhecer a evolução do programa). O resultado é uma média de pouco mais de 9 pessoas por sessão. Se fôssemos aritmeticamente menos compassivos, essa média estaria mais perto das 5 pessoas por sessão, ou até menos. Creio que isso é uma boa base para reflexão sobre os programas governamentais e seu efeito sobre os “coletivos informais” que atende e orienta, o que inclui grande parte dos associados ao CNC. Embora também seja importante lembrar também que apenas cerca de 10% daqueles integram o movimento cineclubista formal, apesar da “intensa” colaboração entre o CNC e esses programas. O que também dá uma idéia da eficácia das oficinas alardeadas como sendo orientadas pela entidade cineclubista mas, na verdade, voltadas muito mais (com as exceções de praxe) para a mera constituição de pontos de exibição.

Por que programas oferecidos gratuitamente para um público que praticamente não tem acesso ao cinema não conseguem reunir platéias mais numerosas? Por que as oficinas de formação cineclubista orientadas pelo CNC não conseguem formar cineclubes? A resposta talvez esteja no fato de que cineclube não é apenas projetor e filme e saber operá-los, mas uma preparação e um compromisso muito mais profundos. Preparação e compromisso que não têm tido espaço, não têm sido discutidos no âmbito do cineclubismo brasileiro. Ou apenas muito superficialmente, em torno de slogans simplistas e ufanistas que moldam um “sonho” de contornos imprecisos, inconscientes, inconsistentes.

A esta fraqueza do movimento corresponde um modelo de cineclube cujas características predominam, de uma forma ou de outra, hoje no Brasil. Tal modelo nega e ameaça o próprio cineclubismo.

Cineclube precário, dependente, sem associados?

Como disse no início deste texto, o movimento brasileiro contribuiu na evolução do cineclubismo mundial com um modelo próprio. Herdeiro de uma tradição que o mundo acadêmico assimilou ao modelo cinéfilo e elitista dos grandes cineastas-cineclubistas impressionistas dos anos 20 ou da Nouvelle Vague dos anos anos 50 (13), os cineclubes brasileiros paulatinamente evoluíram para a retomada das raízes populares do cineclubismo e para a proposição de um cinema do público, tão mais claramente necessário na nossa condição de colônia cultural e extrema desigualdade social. Esse modelo consolidou-se nos anos 70 mais especialmente no Brasil, mas também em praticamente toda a América Latina, justamente quando o paradigma cinéfilo entrava em decadência nos países do “primeiro mundo”. A exclusão cultural que marca nossa situação propiciou também a reelaboração das salas de arte e ensaio em cineclubes mais “profissionais” (mas rigorosamente coletivos e sem fins lucrativos), em 35 mm, no período imediatamente posterior, entre os anos 80 e meados dos 90.

Com a retomada do movimento cineclubista já neste século, abriu-se a perspectiva da junção e evolução dialética dessas experiências. Num espaço cinematográfico em que mais de 90% da população não participa, cineclubes bem organizados, com salas simples mas confortáveis, poderiam corresponder às necessidades da maioria da população e constituir verdadeiras instituições das comunidades, atuando não apenas na exibição, mas também na educação mais ampla, na produção e preservação da identidade e da memória dessas comunidades, constituindo sua voz e representação, interagindo com outras linguagens e manifestações e integrando-se à vida e às lutas de seu povo. O cineclube integral, instituição do público e da comunidade, comprometido com a construção de um novo cinema: o Cinema do Público.

Três fatores principais, no entanto, conspiram associados e com sucesso contra essa perspectiva: a ideologia liberal dos produtores de cinema que hegemoniza as instituições do movimento e remete o público à condição de platéia; as políticas paternalistas e de cooptação do Estado, que eliminam ou neutralizam a iniciativa popular, e o oportunismo (14) dos dirigentes cineclubistas, que aderem e reproduzem essas condições.

A subalternidade, dependência e tibieza que disso resultam estão consolidando um modelo de cineclube gratuito, precário, dependente e sem caráter associativo. Ora, isso não é cineclube, é a negação do cineclubismo. E só não digo fim do cineclubismo porque acredito que nas bases do movimento – e em algumas de suas lideranças -, meio isolada e precariamente, subsiste sempre essa força histórica, que é do público, que retorna sempre à tona depois dos refluxos cíclicos que marcam a história do cineclubismo em todo o mundo. Mas não tenho dúvidas que estamos diante de uma crise seríssima que aponta claramente para o desmanche das instituições cineclubistas e do público e sua substituição por formas paternalistas ou autoritárias de “orientação” das platéias, sob gestão de tipo empresarial e/ou dependente, eventualmente travestidas daquelas informalidade e “horizontalidade” que fazem os “mobilizados” controlarem a iniciativa, sem a burocracia das votações e dos compromissos públicos...

A gratuidade das atividades dos cineclubes, hoje praticamente absoluta no Brasil (e, nesse nível, apenas no Brasil), tem inúmeras conseqüências. Em primeiro lugar, torna o cineclube dependente de uma fonte de recursos, seja ela o Estado – a mais comum – ou qualquer outra. Geralmente essa fonte não é permanente nem sistemática, já que depende de outros interesses ou conjunturas. Gratuidade significa dependência e precariedade. Mas, mais que isso, a gratuidade implica na retirada do poder do público: não só ele não sustenta – portanto não tem o poder de dirigir – o cineclube, como também não se envolve, não tem responsabilidade. A gratuidade é, na verdade, uma forma de afastamento do público do cineclube, que não reconhece como seu. Ainda mais, a gratuidade tem várias caras, como oposto que é da criatividade em criar formas de sustentação. Ela pode se manifestar na ausência de uma taxa de manutenção (ingresso), mas também, na eliminação da contribuição do associado – forma superior de participação do público. A gratuidade, nos cineclubes brasileiros de hoje, é uma das razões mais importantes da abolição do associativismo.

Mas, mais grave e resumindo tudo isso, o que a gratuidade exprime em última instância é a incapacidade dos animadores, dos cineclubistas como queremos nos chamar, de representar seus públicos – porque cada cineclube pertence e representa idealmente um público. Pois, mesmo quando não têm recursos para ir ao cinema, esses públicos se arranjam para desfrutar (em todos os sentidos) do audiovisual: compram DVDs piratas, assinam “gatos” de TV a cabo, etc. Muitas dessas “soluções” são, inclusive, meio coletivas. Enquanto que nem de graça parecem estar se interessando muito pelas programações que (com muitas exceções, mas minoritárias) o sistema de que dependemos oferece de mão beijada, a julgar pelas médias de público a que nos referimos anteriormente. A gratuidade representa a falência da capacidade de interessar e representar o público face às alternativas de alienação oferecidas pelas diversas formas de audiovisual comercial. É a aceitação da nossa “inferioridade intelectual e moral” diante da ideologia das classes dominantes. É manifestação da descrença na capacidade do público – que supomos representar – de propor uma alternativa à sociedade, ao modo de vida e ao sistema econômico pelo qual pagamos em dinheiro e outras formas diariamente.

A gratuidade leva a um modelo de precariedade, já que para a maioria dos cineclubes, com projetos pouco comerciais e/ou situados em comunidades “menos favorecidas”, a possibilidade de patrocínio privado é bem pequena. E o patrocínio estatal cada vez mais burocrático e difícil, além de essencialmente (nesta nossa “cultura” administrativa brasileira) oscilar com os humores de secretários, ministros, presidentes... Na situação atual, em que pese a ausência absoluta de investimentos no ano de 2001, o programa dos kits do governo promove um modelo de ação bem precário, com equipamento barato e limitado a um tipo de projeção superado, sem a chamada “autoração”, isto é, a possibilidade de agregar vinhetas, interação com o público, etc. E sem cuidar de aspectos como local, estrutura, continuidade.

Essas condições criaram um tipo de cineclube preponderante no Brasil em que já não há associados. Como dissemos na outra parte deste artigo, o modelo aponta para o cumprimento apenas burocrático do sentido de associação definido pela lei (15), isto é, registra-se um mínimo de sócios indispensável apenas para ter CNPJ ou o que seja, mas abandona-se o sentido real do associativismo, que é responsabilização e empoderamento do conjunto da comunidade, do público, na gestão do cineclube. Esses poucos “sócios” o são mais no sentido de donos mesmo do cineclube, controlado por um pequeno número que detém todas as “partes” (ações?) da iniciativa. É o modelo de empresa, consciente ou não. Dissimulado ou não pela desculpa da informalidade de “coletivos” que apenas o são em escala muito restrita, nunca envolvendo parcelas significativas do público mesmo. E “profissionalizado” num sentido perverso, em que a renovação do sustento da viúva torna-se indispensável para justificar esses mesmos poucos associados, num círculo vicioso infernal...

Não posso deixar de comentar rapidamente também certa ilusão quanto a algumas formas de horizontalismo, capítulo especial dessa informalidade que atrai e confunde muitos cineclubistas. É claro que não estou defendendo uma ossificação do cineclubismo em torno de formatos institucionais consagrados: a renovação e a invenção são da essência do nosso movimento e da sua integração com e no público. Mas a estrutura associativa que caracteriza os cineclubes (e as formas de organização sociais e populares em geral, isto é, a associação civil sem fins lucrativos) em todo o mundo e há 100 anos não pode ser descartada com ligeireza. Como disse acima, ela estrutura a responsabilização e o poder dos associados, organizando uma forma de gestão democrática e permanentemente reprodutível no seio de uma dada comunidade. A informalidade total frequentemente – independentemente das intenções envolvidas – leva ao descompromisso da grande maioria, à baixa participação e, ao final, ao predomínio de uma pequena minoria “mobilizada” que não precisa submeter-se nem prestar contas a uma comunidade com quem não tem vínculos definidos formalmente.

Conclusão

Pessoalmente sou muito pessimista quanto ao futuro próximo do movimento cineclubista efetivamente constituído e articulado com a representação do público organizado. Vejo claramente todos os indícios e acho bastante provável que, como na “feliz” expressão do companheiro Frank Ferreira, o CNC se torne, nas próximas eleições, um puxadinho oficioso da organização Fora do Eixo e seus sequazes, inclusive incorporando de última hora alguns dirigentes cineclubistas de outras origens, mas sempre "sobreviventes". Com tal direção, o cineclubismo brasileiro, enquanto movimento organizado institucionalmente – ainda que conserve a denominação (mas qual é o problema de usar o nome cineclube, não é mesmo?) - praticamente desaparecerá, recolhido a mais um refluxo de duração indeterminada.

Mas não será um refluxo como muitos anteriores pois, ainda que sem muita voz nesta estrutura atual, o público, em muitos cineclubes, dispõe de condições extraordinárias para se reorganizar em bases ainda mais avançadas. A democracia e os pequenos mas fundamentais avanços sociais no Brasil e na América Latina, as novas frentes de criação e expressão pelo audiovisual, além do próprio esgotamento das forças hegemônicas que controlam e exploram nosso planeta e nossos povos apontam para um renascimento do cineclubismo reforçado pela consciência do público organizado, criador, artista e senhor do seu destino.

Talvez estas reflexões até possam contribuir um pouco para isso. É a minha maior pretensão.

Montreal, dezembro 2011.

Notas:

1. Em 2004, por exemplo, isso já não aconteceu: a minoria que não conseguiu fazer parte da diretoria do CNC se retirou do plenário, da Jornada e do movimento. Ironicamente, parte desse grupo constituía a direção do CNC eleita em 1984 com apenas um voto de vantagem. Empossada normalmente, foi um dos diversos elementos que contribuíram para a desorganização do cineclubismo no Brasil nos anos que se seguiram. Sua liderança principal, em 1984 como 20 anos depois, era Diogo Gomes dos Santos, que hoje se insurge nesta lista de convívio e debates contra o reconhecimento da continuidade do CNC desde sua fundação..

2. Esse é também o modelo da entidade dos produtores e realizadores de curta metragem, a ABD. Mas esta representa um segmento corporativo da produção, enquanto o cineclubismo é movimento e deveria representar o público, as comunidades.

3. E representados em sua quase totalidade por um único delegado, também uma “nova prática” que substitui as grandes delegações tradicionais às jornadas de outros momentos, quando cada cineclube vinha com vários integrantes, preparado para participar de várias frentes de atividades durante seu grande encontro nacional.

4. Um bom exemplo é o projeto de seminários de Cineclubismo e Educação, que evolui “em privado”, não tendo sido discutido abertamente, na Jornada ou fora dela, e sequer disponibilizado no espaço do GT desse nome – criado especificamente para esse fim!

5. Mais uma influência do mundo da produção de curtas, tornada possível apenas pelas políticas complementares, governamentais e privadas, de editais e licitações. Mas há ainda e também uma “profissionalização” dos que representam interesses mais definidos, de tipo partidário ou faccional.

6. Como o Pontão Cineclubista, por exemplo, o maior volume de recursos recebido pelo movimento desde a sua reorganização.

7. O mesmo acontece nos poucos estados que reconhecem e dão alguma atenção aos cineclubes. Em Pernambuco, por exemplo, um Edital do Audiovisual do estado reservou 5 mil reais (!) para fomento de cada cineclube contemplado, num total de 8. Ou seja, um cineclube para cada milhão de pernambucanos. Essa quantia (40 mil reais) corresponde a uma fração infinitesimal do valor alocado ao “audiovisual”, isto é, à produção. E isso é festejado como uma importante conquista do cineclubismo e, na Jornada, as autoridades (não me lembro do nome ou cargo exato da contemplada) foram homenageadas com o prêmio Paulo Emílio, por sua notável contribuição ao cineclubismo brasileiro...

8. Principalmente a partir de 2008 - depois de amargar 4 anos de isolamento por parte do governo federal (que é uma outra história...) e da criação dos programas de fomento à produção e distribuição (Programadora Brasil) e de formação de platéias (Cine Mais Cultura)

9. A II Jopacine, encontro dos cineclubes paraenses que se realizou enquanto eu finalizava estes comentários, discutiu e aprovou resoluções que contemplam diversos pontos da Carta de Tabor, importante e isolada exceção ao que afirmo neste parágrafo.

10. A nova Lei do Direito Autoral é um exemplo expressivo. Sua primeira redação, colocada em consulta pública, foi alardeada pelo CNC como “contemplando todas as reivindicações dos cineclubes”. No entanto, ela obrigava e limitava os cineclubes à atuação exclusivamente gratuita, despojando-os da possibilidade de auto-sustentação. Agora, em nova redação, exige que os cineclubes “sejam reconhecidos pelo MINC”, vaga expressão de claro conteúdo autoritário. Ainda assim, o texto da Lei – cuja tramitação provoca várias dúvidas, mas não é o tema deste texto –, ao sugerir uma cláusula de exceção para os cineclubes, constitui um avanço importante em relação à situação vigente.

11. E isso apesar de repetidas cobranças na lista cncdialogo, o que demonstra que não houve falta de informação. E comprova mais uma vez a ausência de canais efetivos de democracia.

12. Um pequeno exemplo é a reivindicação de um computador no “pacote” e de programas de autoração, aliás proibida pelo “sistema”. Mas há várias outras reivindicações.

13. Os cineclubes chiques (mas não menos importantes) de Louis Delluc ou Riccioto Canudo conviviam, na verdade, com um movimento mais amplo e anterior, de bases populares, como o Club du Faubourg ou Os Amigos de Spartacus; o círculo de cineclubes ligados às revistas Cahiers du Cinéma e Positif não ultrapassava uma dúzia de entidades concentradas em Paris, em meio a milhares de cineclubes naquela cidade e em toda a França.

14. Oportunismo é um conceito político e não estritamente ético, compreenda-se bem. Mais frequentemente, o oportunismo é causado pela desinformação ou ingenuidade que pelo mau-caratismo. Eppur si muove...

15. Ou nem mesmo isso: muitos “cineclubes”, na verdade, sequer se constituem sob qualquer forma que seja. Uns poucos amigos passam filmes informalmente para algum tipo de comunidade num sentido mais “filantrópico” que organizativo. Mas sentem-se plenamente justificados, “eleitos” sem escrutínio para “alfabetizar o olhar” dos outros...

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

da lista convivial dos cineclubes brasileiros, cncdialogo@yahoogrupos.com.br

CINECLUBISMO EM CRISE

Primeira Parte: O Cineclubismo Ensaboado

          O recente lançamento pela companhia Unilever do xampu Seda Pós Alisamento Químico – Tratamento de Choque[i] praticamente coincidiu com a divulgação na lista dos cineclubes do conceito de Pós Mercado Industrial Sustentável, uma espécie de tintura teórica para o embelezamento das práticas de um segmento da cadeia neoprodutiva do audiovisual brasileiro amador. Fugindo um pouco ao elevado nível teórico do debate suscitado por este novo produto, à formalidade e à postura cordial ou “politicamente correta” que o de-limitam, o texto que segue pretende trazer uma contribuição menos teórica e mais política mesmo, procurando localizar a importância concreta da idéia, da tendência Fora do Eixo e seus apaniguados diversos, bem como de suas práticas no ambiente ideologicamente fragilizado dos cineclubismos no Brasil.

          Na segunda parte, que divulgarei logo, coloco essa visão mais factualmente nos contextos histórico e político do atual momento do cineclubismo brasileiro e das suas direções, notadamente o CNC.
Independentemente da posição do leitor, acredito que o texto é estimulante - apesar de um pouco longo para os adeptos exclusivos da cultura audiovisual. Muitos tópicos que abordo nunca são tocados - por educação, naturalmente - no ambiente cineclubista, e são absolutamente ignorados nessas house lists de cines e circuitos sob tutela e controle do programa de formação de platéias do governo federal também conhecido sob a marca Cine Mais Cultura. Às quais não tenho acesso, claro; seria muito interessante se alguém se dispusesse a repassar-lhes este artigo. Os dois textos ficarão disponíveis no meu blog: http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/

Os paradoxos do subalterno

          O jornalista Elio Gaspari tem um espaço na Folha de São Paulo em que evoluem alguns personagens que lidam com a nossa língua. Madame Natasha – que fechou sua ONG de defesa do idioma - é uma referência freqüente: ela combate as formas gongóricas de expressão, geralmente adotadas por porta-vozes de empresas ou instituições públicas – isto é, de segmentos das classes dominantes. O exemplo deste último domingo citava a frase: “houve intermitência no serviço”, usada por uma companhia qualquer para referir-se à interrupção de seus serviços por várias horas.

          Este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas temos uma certa tradição própria nesse estilo de expressão, uma herança colonial de Portugal e, evidentemente, de classe: os colonizados de instrução “superior”, ou os que os mimetizam, adornam suas frases de berloques para se distinguirem das camadas “inferiores” – ou para se “identificarem” com as superiores. Faz-se o mesmo com roupas e todo tipo de acessórios do cotidiano.

          Mais utilitariamente, também está presente um sentido eufemístico, como neste exemplo da intermitência, que serve para contornar problemas e dificuldades, dissimular, ocultar ou enterrar aspectos negativos dos temas abordados. É muito comum em comunicados oficiais, releases e, claro, na propaganda em geral. É, de certa forma, uma maneira “elegante” de mentir. Subprodutos freqüentes de ambas modalidades são os estrangeirismos e tecnicismos inúteis ou redundantes que aparecem mais destacadamente (mas não exclusivamente) em alguns meios, como entre os publicitários e tecnocratas. E também não podemos esquecer os antepositivos greco-latinos, como paleo, neo e pós, notadamente, surgidos no meio acadêmico para descrever de forma erudita, mas precária, fenômenos de fato não compreendidos: negam de certa forma a condição essencial que, no entanto, reafirmam no substantivo que os sucede: pós-moderno, neoliberalismo, paleotelevisão, etc.

          A forma mais degradada e degradante desse estilo, ou da conjunção de todos esses aspectos é, para mim, a da mimese, a do lacaio “mais realista que o rei”, dos subalternos que procuram aderir e se identificar ao dominador, ao ocupante, tentando distinguir-se de seus iguais. Ou como já dizia, num contexto um pouco diferente, há mais de 40 anos, nosso Paulo Emílio: “Rejeitando uma mediocridade, com a qual possui vínculos profundos, a favor de uma qualidade importada das metrópoles com as quais tem pouco o que ver, esse público exala uma passividade que é a própria negação da independência a que aspira”[ii] (o sublinhado é meu).

          Como expressão mesmo dessa subalternidade e mediocridade, a falta de domínio pleno de uma linguagem que já é por si dissimuladora, esquiva, leva às vezes a formulações pouco claras: não expressam idéias coerentes, misturam asserções ou constroem conceitos contraditórios; até mesmo carentes, às vezes, de qualquer conteúdo ou sentido. Creio que uma manifestação divertida, com o devido distanciamento crítico, e mais conhecida sobre tal processo é o Samba do Crioulo Doido, criado em 1968 pelo Sérgio Porto, o velho Stanislaw Ponte Preta. No plano antropológico cultural e artístico, curiosamente, esse processo está presente e sempre deu uma contribuição significativa e peculiar, antropofágica, à formação da nossa cultura: a chanchada que o diga (mas isso é conversa para outra ocasião...). Já no plano político, certamente tem muito a ver com a degradação à moda brasileira dos partidos políticos e movimentos sociais, incluindo o cineclubismo.

          Como o PSD, o novo partido nacional do prefeito paulistano Kassab, também essa tendência do “cineclubismo”[iii], estabelecida em vários segmentos culturais sob diferentes denominações – mas que muitos reconhecem, mesmo que com certa dificuldade - “não está nem à direita nem à esquerda”, muito pelo contrário (expressão que também demonstra e ironiza o que vimos comentando). Ideologicamente, no entanto, ambos estão no campo do tradicionalíssimo liberalismo (que muitos querem novo), no time da “renovação” sempre na ordem do dia para a sobrevivência do capitalismo. À direita, claramente, e em contradição com a própria essência do cineclubismo, que é o associativismo sem finalidade lucrativa, ou seja, a auto-organização do público fora do quadro da economia de... mercado.

A rebimboca da parafuseta para aplicação ideológica (indolor)

          O “conceito” de pós-mercado industrial sustentável é um exemplo bastante explícito de tudo que foi dito acima. Convido os leitores a desconstruir meio rapidinho essa idéia um tanto esdrúxula:

          “Indústria” é uma palavra que se usa com vários sentidos. Hoje em dia se fala até da indústria do artesanato ou das pet shops, o que, aliás, também tem a ver com o exposto de início. Pode-se falar de pós-mercado industrial no sentido estrito de que o que hoje predomina no processo econômico são os controles financeiros, os bancos, e não mais as indústrias, no sentido restrito de instalações fabris. Em mais de um sentido, a hegemonia do capital financeiro identificou, reuniu e controlou os campos da agricultura, da indústria e dos serviços. Mas a expressão é uma liberalidade, que permite mais salientar esse caráter financeiro, tão central na atualidade, do que realmente descrever a superação da indústria fabril (ou da agricultura ou dos serviços), que segue sendo uma força produtiva essencial para a sobrevivência da gente, seres humanos. Pós-indústria, então, e apenas nesse sentido estrito, incompleto e relativo, vá lá. Mas, pós-mercado?

          Não vamos aqui entrar numa discussão mais densa de teoria econômica, o absolutamente óbvio me parece suficiente: o trabalho e os bens e serviços materiais que ele produz se trocam no espaço abstrato denominado mercado, e essa troca é propiciada e mediada por um valor equivalente universal, o dinheiro. Não superamos ainda o mercado, frase que me sinto meio ridículo de ter que enunciar. Pós-mercado, como descrição da realidade contemporânea é uma tolice “de proporções industriais”, como se diz, aparentada àquela teoria do “fim da História” de Francis Fukuyama, antigo assessor de Ronald Reagan. Um verdadeiro “pós-mercado” só seria possível se eliminadas as condições essenciais da sua existência: a divisão da humanidade em classes sociais e a apropriação do trabalho pelo capital - e consequentemente, o dinheiro (mas isso, como a chanchada, também é conversa para outra ocasião...).

          Resta o sustentável. Sustentar tem dois sentidos principais: um, o de garantir as condições de existência e reprodução de alguma coisa, processo ou pessoa como faz, por exemplo, a comida na manutenção da vida de cada um de nós. Outro sentido é o de fornecer essas condições: apoiar com as condições indispensáveis (não acessórias ou complementares: acessório não sustenta), por exemplo, sustentar no sentido do que faz o “coronel” com sua amante. Sustentável, portanto, quando aplicado a organismos culturais – e cineclubes – refere-se à eventual capacidade destes de gerarem, e gerirem, as condições indispensáveis para a sua existência e continuidade. Receber “de fora” seu sustento, no segundo sentido aqui descrito, não é ser sustentável, mas ser sustentado.

          No mercado, como vimos, as condições de sustentação de qualquer atividade dependem da obtenção das condições referidas acima ou, mais usualmente, dos recursos financeiros, do dinheiro para adquiri-las. Bem, o modelo “consagrado” de dependência do Estado que hoje prevalece entre as atividades culturais, incluindo as comunitárias – e nos cineclubes, com a abolição dos associados contribuintes e de qualquer outra forma de contribuição (participação na sua sustentação) – se traduz pela sua sustentação praticamente integral através de recursos concedidos pelos governos, principalmente o federal. Não é um modelo sustentável, mas sustentado. Incapaz de se reproduzir sem o que o Elio Gaspari chama de a Viúva. E mais: é precário, instável, efêmero, como são as políticas governamentais – que no Brasil mal chegam a estatais e estão bem longe de ser públicas.

          É claro que trivialmente se diz que o dinheiro do Estado é dinheiro de impostos, do público. Neste caso se poderia aceitar, mas apenas como eufemismo, uma sustentabilidade “que não dependeria diretamente do mercado”. Essa “sustentabilidade” concedida se daria pela intermediação – entre o público e as entidades - do Estado e dos governos. Ora, o papel essencial do Estado é justamente esse, está mesmo na sua origem e não tem nada de novidade. O Estado existe para intermediar, regular e controlar as relações sociais, entre as classes, sob a aparência de uma “neutralidade” acima dessas classes. E como quase todos sabem, porque é também óbvio, empírico, vivido por quem trabalha: o Estado é controlado pela mesma classe, ou classes, que controlam essencialmente a sociedade. O Estado – e os governos – pela sua própria natureza, apresentam contradições que, em última instância, servem justamente para adequar e permitir a continuidade, no essencial, das relações sociais e econômicas dominantes. Como todos também sabem, um dos aspectos fundamentais desse estado das relações sociais se expressa justamente através do mercado e de sua função “permanente” de compra e venda. Mas o Estado não substitui o mercado. Nem virá um após-o-mercado; são instituições que refletem diferentes níveis das relações sociais: um político, outro econômico. Ser sustentado pelo Estado – ou pelos governos – é uma relação política, e está mais para a relação de dependência conjuntural que é o modelo predominante de gestão da cultura nos países capitalistas mais maduros (nos atrasados não cabe propriamente falar de gestão da cultura). E esse modelo procura neutralizar as organizações do público - dos cineclubes às redes sociais -, transformando-as em empreendimentos geridos segundo modelos de negócio comercial, sob controle e recebendo em troca a “estabilidade” e as facilidades dos favores do coronel...

          Resumindo: pós-mercado industrial sustentável é uma expressão desprovida de qualquer significado real, uma construção ilógica e paradoxal que reúne sentidos contraditórios, propondo exatamente a sustentabilidade na dependência. Mas não é uma mera incoerência, é um artifício ideológico com finalidades definidas, tendo como eixo combater e abolir o caráter associativo e a autonomia da ação política e cultural do público, retendo-o na condição de platéia. Promovendo a ideologia liberal e a perenidade do capitalismo, sustentadas pelo Estado. O mesmo velho esquema, travestido de novidade para este carnaval.

          Note-se que não ignoro também a crença difundida entre muitos adeptos dessas pós-modernidades de que a “revolução digital” superou as relações sociais capitalistas tradicionais, abolindo as classes sociais e a apropriação da produção pelo capital financeiro, abrindo a “inédita” possibilidade de um amplo, democrático e auto-regulado relacionamento entre pequenos capitalistas individuais (ou moderadamente “coletivos”), empreendedores livres num mercado idem, que não seria mais mercado, mas o tal de pós-mercado. Uma espécie de Adam Smith (1723-1790) up to date, um hiperneoliberalismo que se acanha em dizer seu nome. Mas é a mesma, sempre reformada, tautologia: agora, desta vez, acabou (ou promete acabar) a exploração e começa um novo mundo, o melhor mundo possível. E bastou a tecnologia, não tivemos que fazer nada para isso! Não é mesmo confortável? Uma seda... Mas, cá entre nós, se as classes sociais acabaram, os povos grego, português, irlandês, espanhol, italiano... e todos os cadáveres africanos (e os nossos), estão pagando a dívida de quem? E para quem? Os “mercados” – isto é, o capital financeiro (que é a classe dominante principal) - que orientam todos os Estados, selecionam e substituem governantes e operam esta crise mundial, estão sendo superados, vislumbrando uma nova realidade de oportunidades e igualdade para todos? Ou está aí, mais evidente do que nunca, uma camada mínima de superpoderosos internacionais que fazem do mundo o que querem e o, ou nos, estão levando à própria destruição?

          Bom, esse Seda já produziu mais espuma do que se poderia esperar de uma reunião entre amigos no Rio de Janeiro. Que importância concreta, afinal, tem essa discussão aparentemente abstrata para os cineclubes de todo o Brasil?

Práticas perniciosas e modelo anticineclubista

          O demônio me ajude, diante de tanta e tão falsa bonomia! Pois de “colaboração”, “solidariedade” e “tudo-junto-e-misturado” – os argumentos mais usuais e complexos desse discurso sedoso - está calçado o inferno. Tal como o caminho que leva ao abandono das características essenciais do cineclubismo.

          Por que falsa bonomia? Porque, ainda que muitos dos que acreditam nos bordões emocionais desse paraíso sem classes sociais antagônicas o façam sinceramente, movidos por um genuíno sentimento de cordialidade, isso não se aplica às direções, informais, ocultas, promovidas ou acolitadas no Estado, de Foras dos Eixos, PCults, CinesMaisCulturas e outras denominações do mesmo fenômeno que proliferam nos últimos tempos. Porque na hora de combater as idéias e ações discordantes, esses mesmos “capitalistas solidários” não hesitam em se dissimular, afastar, eliminar, retirar condições de sustentabilidade, neutralizar de qualquer maneira toda forma de contestação. Porque seus métodos e práticas políticos, complementarmente a essa eliminação sistemática, são os do entrismo (que já foi discutido nesta lista), da infiltração e solapa das entidades; do uso de posições e recursos públicos para finalidades partidárias; da dissimulação de idéias e projetos.

          A nota que deu origem a esta reação e debate na lista cineclubista ostenta esses elementos. A autoria não ficou clara para a maioria dos leitores, embora o texto original indicasse claramente que se tratava do relato de um diretor do CNC. Que curiosamente não se identifica, não se reconhece e nem coloca o CNC como participante no referido convescote, como também não inclui nem cineclubes nem sua entidade nacional como “protagonistas” desse pós-mercado (deveríamos agradecer...?), embora se lembre até de lan houses, entre outras “aglomerações” (cf. mensagem 25.126, de 1/11/11 na lista cncdialogo).

          Esse mesmo diretor, contudo, assina o projeto da diretoria de Articulação do CNC recentemente divulgado nesta lista (mensagem no. 25.096, de 30/10/11, Planos de Trabalho da Diretoria do CNC – 2010/2012). E aí fica clara essa prática de dissimulação: é um texto imerso nas mesmas concepções do encontro sedoso, que propõe os mesmos princípios de descaracterização e cooptação pelo Estado, e evita a maior parte do tempo a palavra cineclube, substituída (ou “superada”) consciente e cuidadosamente por “coletivos formais”. Isto porque o referido diretor do CNC não acredita em cineclubes. Perdido em meio aos anexos da comunicação do CNC, parece que ninguém o leu (embora a diretoria afirme ser fruto de profundo debate, o que me parece realmente inquietante), mas acho o pequeno trecho - aqui reproduzido em nota de rodapé - bastante revelador[iv].

          Mas já falamos disso tudo antes, o tema “Fora do Eixo e quejandos” foi bastante discutido nesta lista como bem sabem os atentos leitores. Ainda que nunca seja demais lembrar e denunciar práticas políticas antiéticas, elas não constituem propriamente novidade em nenhum movimento social. Também não há nada de inédito na polêmica, mesmo a mais acerba, entre concepções, posições, tendências ou práticas dentro do movimento de cineclubes.

          O cineclubismo nasceu do influxo dos movimentos populares anarquistas e socialistas em vigoroso choque com as iniciativas de educação e formação da Igreja ou igrejas – diferenças que se encontram ainda hoje. Dividiu-se entre o envolvimento mais social e um maior compromisso e profundidade no trato com o cinema (de que resultaram tantas instituições cinematográficas: a crítica moderna, as cinematecas, os festivais, a própria teoria acadêmica...). Foi mais exibidor ou mais crítico ou mais realizador. Oscila entre posturas paternalistas e autonomistas; religiosas, crentes, agnósticas e atéias; conservadoras ou progressistas; partidárias, independentes, apolíticas... Já brigamos feio por bitolas, suportes, formas de difusão; não admitimos a ausência do debate mais formal ou experimentamos sarau, poesia e cachaça para estimular as idéias e a identidade dos nossos públicos. Nossas diferenças parecem inesgotáveis. De fato, reconhecemos que elas são parte das características essenciais do cineclubismo, da sua identidade: a diversidade, a experimentação, o inconformismo, a renovação.

          Mas essa diversidade essencial se apóia num eixo comum a todos os cineclubes, em todos os países, em todas as épocas e situações: o caráter associativo e democrático e a prática sem fins lucrativos. Todo e qualquer cineclube se identifica por esse eixo; é sem essas características que qualquer atividade que parece semelhante se distingue e se afasta do cineclubismo. E é desse eixo que os arautos do pós-mercado sustentado pelo Estado nos querem afastar.

Contra o associativismo e a autonomia do público

          Nem mesmo os cinegufs, patética tentativa de cineclubes fascistas na Itália dos anos 30, contestaram o caráter associativo do cineclubismo. Mas os dirigentes do Cine Mais Cultura (que hoje constitui, por notável coincidência a “direção visível” do PCult) proibiram a publicação de um manual cineclubista porque “cineclube tem dono” (ver doc. CineMaisCensura, nos arquivos desta lista cncdialogo). O exemplo que me deu sorrindo, satisfeito e irônico, o gestor do programa de formação de platéias do MINC, foi o do seu próprio “cineclube”: como a lei estabelece que para criar uma associação é preciso ter 3 pessoas (embora qualquer hermenêutica jurídica explique que o sentido da lei é o de associar de forma permanente e crescente todos que têm “interesses comuns” – daí, inclusive, o conceito de comunidade), eles criaram uma “associação”, chamada de cineclube, com 4, uma de lambuja. Daí fica fácil apresentar projetos – de fato virou uma espécie de especialidade do referido “cineclube” - para empresas e editais, “profissionalizando” e sustentando até com uma razoável fartura os donos dessa que, por uma brecha inevitável da lei, é na verdade uma empresa de 4 sócios. É este o modelo dessa tendência, o “cineclube” empreendedor, privado, base do pós-mercado sustentado pelo Estado ou, com sorte (ou parentes na firma), por empresas.

          Outras manifestações, inclusive a proposta (já “aprovada”, sem nem leitura, estou certo, quanto mais discussão) da diretoria de Articulação do CNC, trabalham nesse diapasão – mas em expressões alusivas e elusivas, dúbias, que permitem manipulação. Uma matriz teórica importante, visível, é esse conceito de pós-mercado industrial sustentável, mais desenvolvido no texto[v] de Cézar Migliorin que alguns dos mobilizados de sempre ofereceram pronta e repetidamente na lista.

          Tanto a prática política de ir substituindo sub-repticiamente o termo cineclube, como o costume sedoso de apelar para a unidade “numa boa”, sem questionamentos, evitando chamar atenção para a mistura de cines com prefeituras, com pontos “de vocação audiovisual”, com “experiências populares de audiovisual” e, principalmente, com o empreendedorismo, são as marcas de uma trajetória que começou com o Cine Mais Cultura e Programadora Brasil em 2008, e prossegue com a organização Fora do Eixo, seus cineclubes, sua distribuidora (enquanto a Filmoteca cineclubista não sai do discurso vazio) e sua infiltração e ocupação de espaços em outras entidades. Como é o caso dentro do CNC: agentes infiltrados implantando “necessidades” de superação “dos interesses específicos do cineclubismo” ou inventando carência de “novos canais de relacionamento com outros movimentos e com o Estado” (superação do próprio CNC?), para aprender com quem tem a verdadeira “vivência dos problemas e suas conseqüências” (quem seria?), como diz o documento.

          A busca de “novas formas de coletivos formais”, supõe a superação da “forma” cineclube. É outra maneira de dizer o mesmo, ou apontar para formas em que não é o público organizado quem dá a direção, mas um grupo de amiguinhos empreendedores, acionistas de uma atividade que, fundamentalmente, os sustente. Dessa maneira, já nem importa se a finalidade é lucrativa, no sentido comercial tradicional, ou se é uma atividade cuja “renda” é garantida pelo Estado. O que se estabelece é uma cultura empresarial tipicamente capitalista, o cineclube gerido como um modelo de negócio e bancado pelo Minc, em que o Estado substitui as relações de mercado – que, contudo, são indispensáveis no plano da sociedade capitalista real.

          Evidentemente, isso só pode existir na dimensão muito restrita das atividades amadoras e marginais, “artísticas”, “culturais”. Porque em escala econômica (no capitalismo) só o mercado mesmo, nosso velho conhecido, é capaz de sustentar o modo de produção geral, o cinema de longa metragem, o audiovisual consumido pelas massas, e as ações que penetram em escala significativa no tecido social. Por isso também é que digo que tudo isso é uma teorização igualmente amadora: é a realidade vista a partir do mundinho dependente dos pequenos burgueses produtores de pequenos filmes, pequenos projetos, pequenas visões (com uns talentos no meio, tenho certeza, que cultura não é determinismo absoluto). Mas que, como bons adeptos do capitalismo, não conseguem abrir mão de explorar os outros: o público, claro – e, perversamente, de preferência os em “situação de vulnerabilidade” e outros eufemismos do gênero. O público usado como platéia, reduzido a indicador de “relatórios de audiência” para alimentar a justificativa da necessidade de recursos estatais para esse pós-mercado teúdo e manteúdo.[vi]. E os “direitos do público”, reduzidos à dimensão medíocre do simples acesso, isto é, ao direito de ser platéia e álibi desse pós-mercado sustentável. Sustentável se o público deixar, se for bobo. Mas, nós não somos o público...?

notas________________________________________
[i] http://www.seda.com.br/produtos/seda-pos-alisamento-quimico
[ii] Sales Gomes, Paulo Emílio. 1996. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, p. 110-111.
[iii] As aspas vão por conta de que essa tendência não se origina, não reconhece o cineclubismo e nem se propõe a ser cineclubista: é da sua essência mesmo a pretensão de “superar” o cineclubismo.
[iv] Um pequeno excerto do sucedâneo de programa do CNC no capítulo reservado à diretoria de Articulação: “...algumas ações que se fazem prioritárias: 1 – a criação de um “manual” dos modelos usuais de organização de coletivos formais (hum... isto me lembra o Manual do Cineclube vetado pelo Cine+Cultuira...); 2 – a publicidade desses coletivos formais para além dos interesses específicos, inerentes ao funcionamento dos cineclubes, para dar-lhes a dimensão de Movimento Sócio Cultural, extrapolando o caráter corporativo; 3 – criar um canal de interlocução entre os coletivos formais e a sociedade organizada e as três esferas de instâncias governamentais, nos três Poderes (o que são o CNC e as federações, não são esse canal?). São medidas que visam diminuir os gargalos que estrangulam o Movimento, mas que, ao mesmo tempo, poderão prestar relevantes serviços de ações proativas, não só para a formulação de novas propostas como também para solução de problemas nos Programas de Governo, como os experimentados nas relações entre cineclubistas e Cine + Cultura, NPD – Núcleo de Produção Digital, Programadora Brasil e muitos outros, com muito mais chances de encontrar saídas a partir de um diálogo mais estreito com aquelas representações (referência à própria organização Fora do Eixo?) que têm a vivência cotidiana desses problemas e suas conseqüências. Notas e sublinhado são meus.
[v] Por um cinema pós-industrial: www.revistacinetica.com.br/cinemaposindustrial.htm
[vi] Os artigos 7 e 10 da Carta dos Direitos do Público[vi] aqui são convenientemente esquecidos: “7) Público, autores e obras não podem ser utilizados, sem seu consentimento , para fins políticos , comerciais ou outros .Em casos de instrumentalização ou abuso , as organizações de espectadores terão direito de exigir retificações públicas e indenizações; 10) As associações de espectadores reivindicam a organização de pesquisas sobre as necessidades e evolução cultural do público .No sentido contrário , opõem-se aos estudos com objetivos mercantis, tais como pesquisas de índices de audiência e aceitação .”

sábado, 28 de maio de 2011

Entrevista a Gabriel Rodríguez Álvarez, da revista Luneta, México - maio, 2011

As suas primeiras experiências com o cineclubismo brasileiro deram-se nos momentos mais duros da ditadura e no começo da democracia. Com a distância do tempo, que importância acha que teve a luta cultural nesse processo?

Quando todos os canais de participação e representação política estavam proibidos, o associativismo cineclubista permitia práticas coletivas de debate, de formação, de organização. Nessa época, os cineclubes brasileiros mais ou menos adotaram um modelo popular, diferente do cineclube elitista, de connaisseurs. Portanto, sua influência nos movimentos populares, na resistência à ditadura, foi bem significativa. Quando o processo de redemocratização do país se definiu, em meados dos anos 80, grande parte dos quadros e dirigentes desses movimentos, de entidades que voltavam à legalidade e mesmo dos partidos políticos mais populares, eram egressos dos cineclubes e do movimento cineclubista.

Como chegaram ao conceito de Conselho Nacional de Cineclubes e que obstáculos enfrentaram?

Em 1961, durante a 2ª. Jornada de Cineclubes, tentou-se criar uma União Nacional dos Cineclubes. Divididos em tendências, os delegados à Jornada só conseguiram criar um “conselho”, uma comissão preparatória da entidade. O nome acabou permanecendo. Inicialmente era, na verdade, uma confederação, onde só tinham assento e voto as federações regionais. Bem mais tarde, com a reorganização do movimento já em plena ditadura, reformamos os estatutos, passando a direção nacional a ser expressão de cada um e do conjunto dos cineclubes, com as federações ocupando funções de acompanhamento e fiscalização do processo. Recentemente, em Recife, em dezembro passado, nova reforma dos estatutos do CNC enfraqueceu a participação dos cineclubes em favor da representação por região – não necessariamente federação – seguindo um pouco o modelo da entidade de realizadores amadores, a ABD. O “Conselho” não é um conceito, portanto, apenas uma denominação histórica cuja forma e conteúdo variam conforme a trajetória política e institucional do cineclubismo.

Como era esse encontro das regiões brasileiras dentro do cineclubismo?

Nos anos 60, talvez até pelas determinações geográficas, de comunicação, etc. – além das razões mais importantes, históricas e culturais – as principais regiões tinham federações com características muito próprias. O Rio de Janeiro, até então capital federal, sempre foi o estado com mais atividade de cinema. São Paulo, que seguia de perto, sempre foi o estado mais desenvolvido economicamente. Tinha uma tradição mais forte de cineclubismo, desde os anos 40. Minas Gerais e Rio Grande do Sul, estados mais distantes de uma economia nacional (inclusive cinematográfica) muito concentrada, eram dominados inteiramente pela Igreja. Por isso a composição das primeiras diretorias do CNC, como disse na questão anterior.

Nos anos da ditadura militar, o modelo institucional com ligação direta com as bases cineclubistas, ainda que propiciasse a criação de novas federações, dava um perfil mais unitário, um projeto mais “nacional”, definido pelas maiorias obtidas em reuniões freqüentes de cineclubes de todo o país e pela criação de diversos organismos intermediários entre as federações/regiões e as ações nacionais. O exemplo mais claro é o da Dinafilme, gerida por um diretor eleito em Jornada e por um conselho com representantes regionais, ligado , por sua vez, a conselhos regionais em cada federação.

Hoje é bem diferente, mas sua pergunta é sobre o passado...

A rearticulação cineclubista no Brasil, que começou em 2003, frutificou, mas continua sem resolver questões essenciais do acesso à cultura. Como se desenvolveram, em linhas gerais, as políticas públicas de incentivo ao audiovisual e em que falharam?

Nos governos de inspiração liberal mais tradicional (anteriores ao modelo mais reformista de Lula), a cultura, as instituições públicas de cultura, sempre foram um adorno, um acessório patrimonial, e uma moeda de troca na distribuição de cargos e sinecuras. O período atual, com um leque de alianças políticas extremamente amplo, permitiu a entrada de partidos e personalidades mais à esquerda, de certa forma mais modernos, mais voltados a uma visão mais antropológica e séria da cultura. A figura de Gilberto Gil, ministro da Cultura em dois períodos, é a marca e símbolo maior dessa mudança. As políticas públicas – projetos, programas - passaram a ser muito mais inventivas, criativas e, sobretudo, inclusivas. Falando do campo do cinema, um dos mais beneficiados por essas mudanças, houve um crescimento significativo de recursos para a produção, especialmente a amadora, sem perspectiva de mercado, e um esforço importante de descentralização, possibilitando a realização de filmes em estados e regiões do país onde ela praticamente não existia. Isso também é reflexo desse processo de maior participação, maior permeabilidade, nas instituições governamentais. De fato, o ministério, a agência nacional de regulamentação e algumas estruturas anexas foram virtualmente “ocupadas” por um pequeno número de partidos ditos de esquerda, com expressão limitada – mas real – no quadro político nacional, além de segmentos do PT (o partido majoritário no governo que é, ele também, e especialmente na área cultural, uma quase “frente partidária” de várias tendências oriundas dos tempos da ditadura). De uma maneira geral, esses quadros vêm do meio amador da realização, a maioria da já citada ABD, e de outros setores da produção. Portanto, ainda que as políticas públicas dos últimos anos tenham representado avanços importantes na democratização e diversidade (o que é uma redundância, não?) da produção, seu avanço também se detém aí, limitado pela visão e interesses dos pequenos produtores e realizadores. Os recursos destinados à criação e formação de novos públicos são muito pequenos (uma fração irrisória dos recursos destinados a uma produção que, por sua vez, não é praticamente exibida) e geralmente atrelados aos objetivos imediatos da produção (por exemplo, a Programadora Brasil, distribuidora criada para atender aos circuitos informais e populares, despende mais recursos na recompra de direitos de filmes já produzidos com recursos públicos que com a distribuição propriamente dita). Mesmo assim, os parcos recursos aplicados na distribuição e exibição não comerciais propiciaram uma grande agitação numa situação em que os recursos eram inexistentes. Com a distribuição de kits de projeção a centenas de localidades, grupos comunitários, prefeituras, etc, estão sendo criados centenas de pontos de exibição. São estruturas muito precárias, de sustentação muito indefinida, orientadas mais para a exibição da produção a que me referi. Mas são o caldo de cultura de onde nascem os cineclubes – e uma parcela importante desses pontos tem se aproximado efetivamente do movimento cineclubista. Mais adiante voltamos a esta questão.

Com o novo governo, empossado este ano, há uma grande instabilidade na área cultural do governo e diversos indicadores que apontam para um retrocesso e o eventual retorno de uma visão elitista da cultura.

A grande produção, aliada ao capital hollywoodiano e com o controle do mercado real de distribuição e exibição (cinemas, televisão, etc.), pouco se abala com as “políticas públicas”, que só atingem uma percentagem irrisória da população e não afetam as rendas. Ou o poder.

Hoje, quais são os enigmas e as forças de um movimento nacional tão heterogêneo?

A força principal do movimento está numa certa tradição de cineclubismo popular que informa, alimenta esse grande número de localidades que estão projetando filmes. A grande dúvida – se esse é o sentido de enigma na sua pergunta – é se esse circuito se manterá cineclubista. Por um lado, há várias forças que procuram enfraquecer o sentido associativo original do cineclubismo, fazendo uma leitura do cineclubismo como mera atividade de exibição de filmes – como disse anteriormente, extensão da produção. Por outro lado, e de fato de forma complementar, o modelo de organização dessas atividade é completamente dependente do Estado e sem estabilidade institucional; o programa existente pode ser suspenso a qualquer momento. Esse é o fantasma que ronda o movimento.

Que papel tem nesse processo a distribuição?

A distribuição é central para qualquer projeto de cineclubismo de alcance nacional. No Brasil, temos uma história muito bonita com a Dinafilme, que sustentava o movimento cineclubista dos tempos da resistência à ditadura. Agora, o Estado criou uma empresa de distribuição que tem sido fundamental para a sustentação dos pontos de exibição que o próprio governo tem estimulado. Numa análise mais profunda, eu teceria várias críticas a esse sistema, que não é transparente e, tendo sido originalmente uma proposta dos cineclubes, foi em parte adaptado para também fomentar a produção (como digo na questão 4). O próprio nome da distribuidora – Programadora Brasil – me parece manifestar essa inclinação dirigista, paternalista, de “programar” os cineclubes e seus públicos com filmes que não são escolhidos por eles. Mesmo assim, a capacidade do Estado de poder recuperar e fornecer boas cópias (digitais) é fundamentalmente positiva.

Mas o movimento cineclubista deveria criar uma distribuidora própria – de fato, é um projeto deliberado há alguns anos, mas nunca implementado pelo CNC, da mesma forma que a CineSud (a distribuidora internacional do movimento) também não tem encontrado muito apoio no Brasil. É imprescindível a existência de fontes independentes de filmes, que distribuam filmes não “adotados” pelo Estado: a produção internacional, os clássicos indispensáveis à formação do público. No Brasil, corolário dessa questão da “hegemonia da produção” na orientação do movimento cineclubista e sua dependência do Estado, a distribuição é voltada com muita exclusividade ao cinema nacional e, especialmente, ao curta-metragem.

Mas claro que isso é um pouco atenuado pela facilidade de acesso a outras fontes, sobretudo informais e especialmente pela internet.

Os estudos do público abriram um campo inédito em relação ao mero estudo das obras de arte?

Eu acredito que há praticamente uma nova teoria do cinema a se desenvolver a partir do estudo do público. Assim como acredito que ela ainda não existe. Uma teoria do público como contexto, complementar aos estudos do cinema como texto e mesmo da recepção como processo psicanalítico, cognitivo, etc. As feministas, principalmente, entre outros estudiosos de públicos determinados (nacionalidades, etnias, orientação sexual, etc.) têm trazido contribuições importantíssimas para mostrar o quanto o público é real e determinante na reconstrução e compreensão do cinema como arte e meio de comunicação que só tem expressão objetiva na relação social concreta entre a obra e o(s) público(s). Mas esse público no singular, sem adjetivos (feminino, gay, etc.), que evidentemente se formou a partir do cinema e é o principal paradigma da organização da comunicação (da economia à ideologia) na época contemporânea; esse público que Filippo de Sanctis e Fabio Masala chamaram de novo proletariado, ainda tem que ser melhor compreendido e estudado. E isso é “o estudo das obras de arte” pois, como disse, elas se definem, na sua acepção mais definitiva, exatamente dentro dos contextos, nas relações sociais que não apenas exprimem, mas fundamentalmente estabelecem com as sociedades de cada momento histórico

Que horizontes você vislumbra através da Internet?

A internet, mais ainda que recurso, tecnologia, é um campo de comunicação novo. Novo porque ainda não é totalmente real: a internet é também e ainda um campo de batalha, em que vivemos diariamente um combate contra a sua privatização e incorporação ao modelo hegemônico de comunicação. Acho que podemos fazer uma certa analogia com o período em que o cinema começou a atingir massas de trabalhadores e outros segmentos populares e tornou-se um verdadeiro campo de batalha, especialmente nos EUA, mais ou menos entre 1906 e a entrada daquele país na primeira grande guerra. E, como, no cinema, há uma grande possibilidade de que o final dessa disputa leve à constituição de mais um – e mais eficiente - meio de reprodução do modelo vigente, de dominação do capital privado; meio também de sujeição e alienação do público, numa extensão inédita. O rádio, nos primeiros tempos, era pensado fundamentalmente como um instrumento interativo, e nos anos 30 e 40 houve uma prática importante de radioamadorismo.

Em outras palavras, como outros meios, a internet também se define mais efetivamente pelas relações sociais que ela reproduz, ou reproduzirá mais claramente. Ainda que venha a ser significativamente privatizada, sempre será um campo de disputa, como são todos os meios de expressão. E só poderá ser um elemento de integração, participação, democracia – que promete tão amplamente enquanto potencialidade – se a sociedade mesma optar pela integração e democracia, repudiando o modelo de dominação por uns poucos e pela busca suicida do lucro.


domingo, 8 de maio de 2011