Entrevista a Gabriel Rodríguez Álvarez, da revista Luneta, México - maio, 2011
As suas primeiras experiências com o cineclubismo brasileiro deram-se nos momentos mais duros da ditadura e no começo da democracia. Com a distância do tempo, que importância acha que teve a luta cultural nesse processo?
Quando todos os canais de participação e representação política estavam proibidos, o associativismo cineclubista permitia práticas coletivas de debate, de formação, de organização. Nessa época, os cineclubes brasileiros mais ou menos adotaram um modelo popular, diferente do cineclube elitista, de connaisseurs. Portanto, sua influência nos movimentos populares, na resistência à ditadura, foi bem significativa. Quando o processo de redemocratização do país se definiu, em meados dos anos 80, grande parte dos quadros e dirigentes desses movimentos, de entidades que voltavam à legalidade e mesmo dos partidos políticos mais populares, eram egressos dos cineclubes e do movimento cineclubista.
Como chegaram ao conceito de Conselho Nacional de Cineclubes e que obstáculos enfrentaram?
Em 1961, durante a 2ª. Jornada de Cineclubes, tentou-se criar uma União Nacional dos Cineclubes. Divididos em tendências, os delegados à Jornada só conseguiram criar um “conselho”, uma comissão preparatória da entidade. O nome acabou permanecendo. Inicialmente era, na verdade, uma confederação, onde só tinham assento e voto as federações regionais. Bem mais tarde, com a reorganização do movimento já em plena ditadura, reformamos os estatutos, passando a direção nacional a ser expressão de cada um e do conjunto dos cineclubes, com as federações ocupando funções de acompanhamento e fiscalização do processo. Recentemente, em Recife, em dezembro passado, nova reforma dos estatutos do CNC enfraqueceu a participação dos cineclubes em favor da representação por região – não necessariamente federação – seguindo um pouco o modelo da entidade de realizadores amadores, a ABD. O “Conselho” não é um conceito, portanto, apenas uma denominação histórica cuja forma e conteúdo variam conforme a trajetória política e institucional do cineclubismo.
Como era esse encontro das regiões brasileiras dentro do cineclubismo?
Nos anos 60, talvez até pelas determinações geográficas, de comunicação, etc. – além das razões mais importantes, históricas e culturais – as principais regiões tinham federações com características muito próprias. O Rio de Janeiro, até então capital federal, sempre foi o estado com mais atividade de cinema. São Paulo, que seguia de perto, sempre foi o estado mais desenvolvido economicamente. Tinha uma tradição mais forte de cineclubismo, desde os anos 40. Minas Gerais e Rio Grande do Sul, estados mais distantes de uma economia nacional (inclusive cinematográfica) muito concentrada, eram dominados inteiramente pela Igreja. Por isso a composição das primeiras diretorias do CNC, como disse na questão anterior.
Nos anos da ditadura militar, o modelo institucional com ligação direta com as bases cineclubistas, ainda que propiciasse a criação de novas federações, dava um perfil mais unitário, um projeto mais “nacional”, definido pelas maiorias obtidas em reuniões freqüentes de cineclubes de todo o país e pela criação de diversos organismos intermediários entre as federações/regiões e as ações nacionais. O exemplo mais claro é o da Dinafilme, gerida por um diretor eleito em Jornada e por um conselho com representantes regionais, ligado , por sua vez, a conselhos regionais em cada federação.
Hoje é bem diferente, mas sua pergunta é sobre o passado...
A rearticulação cineclubista no Brasil, que começou em 2003, frutificou, mas continua sem resolver questões essenciais do acesso à cultura. Como se desenvolveram, em linhas gerais, as políticas públicas de incentivo ao audiovisual e em que falharam?
Nos governos de inspiração liberal mais tradicional (anteriores ao modelo mais reformista de Lula), a cultura, as instituições públicas de cultura, sempre foram um adorno, um acessório patrimonial, e uma moeda de troca na distribuição de cargos e sinecuras. O período atual, com um leque de alianças políticas extremamente amplo, permitiu a entrada de partidos e personalidades mais à esquerda, de certa forma mais modernos, mais voltados a uma visão mais antropológica e séria da cultura. A figura de Gilberto Gil, ministro da Cultura em dois períodos, é a marca e símbolo maior dessa mudança. As políticas públicas – projetos, programas - passaram a ser muito mais inventivas, criativas e, sobretudo, inclusivas. Falando do campo do cinema, um dos mais beneficiados por essas mudanças, houve um crescimento significativo de recursos para a produção, especialmente a amadora, sem perspectiva de mercado, e um esforço importante de descentralização, possibilitando a realização de filmes em estados e regiões do país onde ela praticamente não existia. Isso também é reflexo desse processo de maior participação, maior permeabilidade, nas instituições governamentais. De fato, o ministério, a agência nacional de regulamentação e algumas estruturas anexas foram virtualmente “ocupadas” por um pequeno número de partidos ditos de esquerda, com expressão limitada – mas real – no quadro político nacional, além de segmentos do PT (o partido majoritário no governo que é, ele também, e especialmente na área cultural, uma quase “frente partidária” de várias tendências oriundas dos tempos da ditadura). De uma maneira geral, esses quadros vêm do meio amador da realização, a maioria da já citada ABD, e de outros setores da produção. Portanto, ainda que as políticas públicas dos últimos anos tenham representado avanços importantes na democratização e diversidade (o que é uma redundância, não?) da produção, seu avanço também se detém aí, limitado pela visão e interesses dos pequenos produtores e realizadores. Os recursos destinados à criação e formação de novos públicos são muito pequenos (uma fração irrisória dos recursos destinados a uma produção que, por sua vez, não é praticamente exibida) e geralmente atrelados aos objetivos imediatos da produção (por exemplo, a Programadora Brasil, distribuidora criada para atender aos circuitos informais e populares, despende mais recursos na recompra de direitos de filmes já produzidos com recursos públicos que com a distribuição propriamente dita). Mesmo assim, os parcos recursos aplicados na distribuição e exibição não comerciais propiciaram uma grande agitação numa situação em que os recursos eram inexistentes. Com a distribuição de kits de projeção a centenas de localidades, grupos comunitários, prefeituras, etc, estão sendo criados centenas de pontos de exibição. São estruturas muito precárias, de sustentação muito indefinida, orientadas mais para a exibição da produção a que me referi. Mas são o caldo de cultura de onde nascem os cineclubes – e uma parcela importante desses pontos tem se aproximado efetivamente do movimento cineclubista. Mais adiante voltamos a esta questão.
Com o novo governo, empossado este ano, há uma grande instabilidade na área cultural do governo e diversos indicadores que apontam para um retrocesso e o eventual retorno de uma visão elitista da cultura.
A grande produção, aliada ao capital hollywoodiano e com o controle do mercado real de distribuição e exibição (cinemas, televisão, etc.), pouco se abala com as “políticas públicas”, que só atingem uma percentagem irrisória da população e não afetam as rendas. Ou o poder.
Hoje, quais são os enigmas e as forças de um movimento nacional tão heterogêneo?
A força principal do movimento está numa certa tradição de cineclubismo popular que informa, alimenta esse grande número de localidades que estão projetando filmes. A grande dúvida – se esse é o sentido de enigma na sua pergunta – é se esse circuito se manterá cineclubista. Por um lado, há várias forças que procuram enfraquecer o sentido associativo original do cineclubismo, fazendo uma leitura do cineclubismo como mera atividade de exibição de filmes – como disse anteriormente, extensão da produção. Por outro lado, e de fato de forma complementar, o modelo de organização dessas atividade é completamente dependente do Estado e sem estabilidade institucional; o programa existente pode ser suspenso a qualquer momento. Esse é o fantasma que ronda o movimento.
Que papel tem nesse processo a distribuição?
A distribuição é central para qualquer projeto de cineclubismo de alcance nacional. No Brasil, temos uma história muito bonita com a Dinafilme, que sustentava o movimento cineclubista dos tempos da resistência à ditadura. Agora, o Estado criou uma empresa de distribuição que tem sido fundamental para a sustentação dos pontos de exibição que o próprio governo tem estimulado. Numa análise mais profunda, eu teceria várias críticas a esse sistema, que não é transparente e, tendo sido originalmente uma proposta dos cineclubes, foi em parte adaptado para também fomentar a produção (como digo na questão 4). O próprio nome da distribuidora – Programadora Brasil – me parece manifestar essa inclinação dirigista, paternalista, de “programar” os cineclubes e seus públicos com filmes que não são escolhidos por eles. Mesmo assim, a capacidade do Estado de poder recuperar e fornecer boas cópias (digitais) é fundamentalmente positiva.
Mas o movimento cineclubista deveria criar uma distribuidora própria – de fato, é um projeto deliberado há alguns anos, mas nunca implementado pelo CNC, da mesma forma que a CineSud (a distribuidora internacional do movimento) também não tem encontrado muito apoio no Brasil. É imprescindível a existência de fontes independentes de filmes, que distribuam filmes não “adotados” pelo Estado: a produção internacional, os clássicos indispensáveis à formação do público. No Brasil, corolário dessa questão da “hegemonia da produção” na orientação do movimento cineclubista e sua dependência do Estado, a distribuição é voltada com muita exclusividade ao cinema nacional e, especialmente, ao curta-metragem.
Mas claro que isso é um pouco atenuado pela facilidade de acesso a outras fontes, sobretudo informais e especialmente pela internet.
Os estudos do público abriram um campo inédito em relação ao mero estudo das obras de arte?
Eu acredito que há praticamente uma nova teoria do cinema a se desenvolver a partir do estudo do público. Assim como acredito que ela ainda não existe. Uma teoria do público como contexto, complementar aos estudos do cinema como texto e mesmo da recepção como processo psicanalítico, cognitivo, etc. As feministas, principalmente, entre outros estudiosos de públicos determinados (nacionalidades, etnias, orientação sexual, etc.) têm trazido contribuições importantíssimas para mostrar o quanto o público é real e determinante na reconstrução e compreensão do cinema como arte e meio de comunicação que só tem expressão objetiva na relação social concreta entre a obra e o(s) público(s). Mas esse público no singular, sem adjetivos (feminino, gay, etc.), que evidentemente se formou a partir do cinema e é o principal paradigma da organização da comunicação (da economia à ideologia) na época contemporânea; esse público que Filippo de Sanctis e Fabio Masala chamaram de novo proletariado, ainda tem que ser melhor compreendido e estudado. E isso é “o estudo das obras de arte” pois, como disse, elas se definem, na sua acepção mais definitiva, exatamente dentro dos contextos, nas relações sociais que não apenas exprimem, mas fundamentalmente estabelecem com as sociedades de cada momento histórico
Que horizontes você vislumbra através da Internet?
A internet, mais ainda que recurso, tecnologia, é um campo de comunicação novo. Novo porque ainda não é totalmente real: a internet é também e ainda um campo de batalha, em que vivemos diariamente um combate contra a sua privatização e incorporação ao modelo hegemônico de comunicação. Acho que podemos fazer uma certa analogia com o período em que o cinema começou a atingir massas de trabalhadores e outros segmentos populares e tornou-se um verdadeiro campo de batalha, especialmente nos EUA, mais ou menos entre 1906 e a entrada daquele país na primeira grande guerra. E, como, no cinema, há uma grande possibilidade de que o final dessa disputa leve à constituição de mais um – e mais eficiente - meio de reprodução do modelo vigente, de dominação do capital privado; meio também de sujeição e alienação do público, numa extensão inédita. O rádio, nos primeiros tempos, era pensado fundamentalmente como um instrumento interativo, e nos anos 30 e 40 houve uma prática importante de radioamadorismo.
Em outras palavras, como outros meios, a internet também se define mais efetivamente pelas relações sociais que ela reproduz, ou reproduzirá mais claramente. Ainda que venha a ser significativamente privatizada, sempre será um campo de disputa, como são todos os meios de expressão. E só poderá ser um elemento de integração, participação, democracia – que promete tão amplamente enquanto potencialidade – se a sociedade mesma optar pela integração e democracia, repudiando o modelo de dominação por uns poucos e pela busca suicida do lucro.