O Dia do Público
Um dia após o outro
Recentemente têm sido propostas novas efemérides da área cinematográfica. Acho que a última que vi foi o Dia do Curta, cuja origem confesso não conhecer. Já há algum tempo vimos comemorando e promovendo nos cineclubes o Dia da Animação, aqui representando a animação de imagens, herança de Émile Reynaud que antecede de alguns anos o próprio cinematógrafo na história das imagens em movimento.
Outro dia, a respeito da morte do grande cineclubista Antonio Gouveia Jr., escrevi que “as comunidades de diferentes naturezas, ao construírem, reconhecerem sua identidade, projetam-na em conjuntos de fatos, pessoas, mitos, que perduram na memória coletiva e cimentam o reconhecimento do que lhes é comum”. Datas também são um símbolo importante para esse reconhecimento de uma memória e identidade comuns. Quando e quanto mais plenas de significação, tornam-se ocasião de reflexão, mobilização, demonstração dessa identidade, em termos de consciência, representatividade e força das comunidades que partilham essa herança, esse símbolo.
O Dia do Trabalho ou do Trabalhador, assim como o Dia da Mulher, por exemplo, têm uma carga emotiva, um apelo simbólico, um significado histórico indiscutíveis. Foram criados por entidades representativas dos interessados e referendados na prática por estes. Já o Dia do Consumidor, é de outro tipo: é mais uma apropriação oportunista dos direitos dessa figura particular produzida pelo mercado capitalista, revertendo qualquer disposição de resistência e outorgando conteúdo e direção aos donos do poder. É como esses conselhos de “auto-regulamentação”, em que proprietários, patrões e predadores em geral se reúnem para cuidar dos “interesses” do rebanho. O Dia do Consumidor foi criado por decreto pelo presidente John Kennedy, dos EUA.
No terreno do cinema a coisa ainda está meio em disputa, pode-se dizer. Não há propriamente um Dia do Cinema, refletindo talvez o forte conteúdo ideológico e nacionalista que cerca a atribuição do “nascimento” do cinema à exibição dos irmãos Lumière, de 28 de dezembro de 1895, que não foi nem a primeira projeção, nem pública e nem mesmo paga... No Brasil se dizia que o Dia do Cinema Brasileiro era o 5 de novembro – e confesso de novo que não sei a razão – mas a ANCINE deliberou solenemente que é 19 de junho (1), já não pensando em exibição, mas em produção: a data seria a da primeira “filmagem”, em 1898, supostamente feita pelo italiano Alfonso Segreto, na baía da Guanabara. Tudo isso tem suas significações, ainda que não pareça emocionar muita gente. Mas os diferentes aspectos que se procura valorizar, ao decidir-se o que há para comemorar, são indicações de como se quer entender o que é o cinema. É comércio? É a criação? O autor - e quem é o autor? É a produção? Poderia ser a relação entre o filme e o espectador – ou com o público?
Na verdade, essas cristalizações quase sempre arbitrárias da História em datas precisas não refletem a realidade, que é processo, matiz, ubiqüidade. Mas, como disse no início, fazem parte de uma luta ideológica que se dá em todos os níveis, e constituem símbolos, ferramentas mesmo de afirmação identitária, comunitária. Por tudo isso, me parece necessário e oportuno pensarmos em um Dia do Público.
O Público
Não vou entrar numa análise muito extensa do que seja o público, que já esbocei em outros textos – mais recentemente no trabalho que apresentei à 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes, Tarefas dos Cineclubes na Mudança do Modelo de Cinema (2). E também na apresentação (Sobre a Carta [3]) da Carta de Tabor, que produzi em 2008 para a campanha cineclubista dos Direitos do Público, de que lembro o seguinte trecho:
“...nunca os meios e produtos de comunicação audiovisual – da televisão ao cinema, dos DVDs aos celulares – tiveram uma tal disseminação em todo o mundo. Por outro lado, especialmente nos países “em vias de desenvolvimento” ou mesmo “emergentes”, o acesso à qualidade e à pluralidade das formas de comunicação e expressão do conhecimento e da arte estão cada vez mais restritas e sendo restringidas pela privatização e controle da circulação das obras de arte e dos bens culturais. Diante de uma incrível diminuição de distâncias de comunicação e de uma inédita diversificação de meios e produtos culturais, cada vez mais a “otimização” de segmentos de mercado, o controle dos “direitos de propriedade intelectual” e, enfim, os preços absolutamente abusivos, relegam a quase totalidade das populações de países como o nosso à periferia do conhecimento e da cultura universais, a uma posição colonial diante da circulação da cultura, a uma proletarização no acesso à comunicação, à cultura, à cidadania.”
Em Uma leitura da Carta dos Direitos do Público (4), que complementa o texto anterior, acrescento: “O público – que no mundo moderno praticamente se confunde com o conjunto da população – é encarado e relegado ao papel de platéia passiva, de espectador submisso, de consumidor desprovido de interesses e inteligência, mero objeto e nunca sujeito do processo de comunicação.”
Duas coisas, ainda têm que ser acrescentadas a estas breves considerações. Em primeiro lugar, que o público não se limita ao público do audiovisual. Embora o público moderno tenha se formado no processo de desenvolvimento e institucionalização do cinema, esse público serviu e tornou-se paradigma de todo o público, do público do conjunto das indústrias culturais, das linguagens, suportes e formas de relação entre a criação e a recepção, cuja intermediação é apropriada pelo capital. O público é a totalidade dos que não possuem os meios de produção e distribuição da informação, do conhecimento, da cultura. Hoje ainda são as diferentes formas de expressão audiovisual – herdeiras, de certa forma, do cinema – que quantitativamente melhor espelham essa relação de subalternidade, de passividade, de espectatorialidade e exclusão do poder, do público. Mas o conceito compreende todos os que estão submetidos a essa relação de dominação: dos leitores de todo tipo de publicação até a televisão e a internet, ou as platéias de espetáculos esportivos, passando pelo teatro, a música, a dança, etc. O público é a expressão de uma relação de dominação que separa os proprietários dos meios de produção da comunicação da grande maioria da população, cujo tempo livre, atenção, consciência, subjetividade se transformam em mercadoria e espaço de colonização.
Outra questão fundamental é que o público não é inconsciente, passivo, inerme: o público não é mero espectador. A ação permanente de exclusão e dominação do público é também ininterruptamente combatida por este. A maior e mais visível demonstração disto, hoje, é a resistência absolutamente generalizada, em todo o mundo, à privatização da internet e dos bens culturais – através do controle dos chamados “direitos autorais”. Mas a História mostra muitos outros exemplos de resistência, de luta e de criatividade do público (os cineclubes são produto e exemplo dessa criatividade) nessa disputa pelas consciências que é, talvez, a expressão mais completa da longa trajetória humana em busca da liberdade e da felicidade.
O Dia do Público
É nessa História do Público que podemos procurar um símbolo que represente bem essa luta, que englobe o sentido de resistência, de consciência do público. E que tenha uma ressonância emocional que possa ser sentida e compreendida por todos os públicos, representando num fato histórico transcendente, simultaneamente a essência da questão da luta pela autonomia da consciência do público, do povo, de todos os povos. Penso que há um acontecimento que preenche de forma exemplar essas condições todas: é a Revolta do Astor Place (pronuncia-se “pleice”) ou do teatro Astor .
Noel Burch (5) é talvez quem melhor analisa esse evento marcante na própria trajetória de formação do público moderno, do público de massas que só se constituiria em toda a sua plenitude com o advento do cinema. Mas o sentido dessa revolta é partilhado por todos os analistas e estudiosos. Como diz Bruce McConachie (6), da Universidade de Pittsburgh, foi, em síntese, uma luta “dos ricos contra os pobres”.
Em 10 de maio de 1849, em Nova York, aconteceu uma grande revolta popular, que deixou pelo menos 22 mortos e uma centena de feridos (Burch fala em 35 mortos e 150 feridos, há outras versões). Foi a primeira vez que a milícia estadual foi mobilizada contra o povo. Essa revolta marca uma mudança, uma inflexão na história do espetáculo e do público.
O massacre tem sua origem trivial na rivalidade entre dois atores shakespeareanos: William MacReady era o grande astro inglês, tradicional e identificado com a hegemonia britânica no terreno artístico e cultural; Edwin Forrest, o maior ator americano, acusado de “tomar liberdades” com o texto do “divino bardo”, justamente por procurar aproximá-lo de um público mais popular. MacReady era a imagem não apenas da metrópole e da aristocracia, mas era o “queridinho” – pet of princes como dizia sua propaganda - da burguesia americana ascendente, que procurava emular a classe dominante inglesa. Forrest era a expressão de um patriotismo proletário, de um gosto das camadas médias e dos trabalhadores.
No dia 7 de maio, McReady se apresentou na Astor Opera House diante de um público de fãs de Forrest que havia se organizado para vaiá-lo. O ator inglês decidiu, então, interromper sua turnê e voltar para a Inglaterrra, mas foi demovido da idéia por uma petição, assinada por 47 personalidades da alta sociedade. O próximo espetáculo, no dia 10, encontrou diante do teatro uma multidão de mais de 10 mil pessoas. A apresentação aconteceu, para um público seleto - depois de uma rigorosa triagem -, mas em condições muito difíceis, claro. MacReady saiu disfarçado, pelos fundos, ao final. Temendo perder o controle da cidade, as autoridades chamaram as tropas que, ameaçadas pela populaça, acabaram abrindo fogo à queima-roupa (7).
“Esse cisma entre cultura de elite ultra minoritária e cultura de massa certamente abriu caminho para o florescimento de artes “populares”, que pouco deviam ao gosto das grandes famílias do Leste do país que detinham de fato o poder financeiro, industrial e político. Mas as formas de espetáculo que então se desenvolveram numa esfera de entretenimento diferente das classes dirigentes não deixavam de servir também aos interesses destas”(8).
Memória, identidade, sentido
Acredito que a Revolta do Astor Place, como ficou conhecida, tem, como nenhum outro acontecimento, as características que devem estar associadas à criação de um símbolo importante e permanente para unir e identificar uma comunidade – o público -, sua história e sua luta. O fato é consensualmente identificado com essa oposição – e tomada de consciência – da autonomia do público em relação aos poderes dominantes. Bem documentada, ao mesmo tempo está distante no tempo o suficiente para não se confundir com interesses menores, desta ou aquela linguagem artística ou segmento do público. É geral enquanto cultura, pois gira em torno da interpretação da obra de Shakespeare, que é indiscutível patrimônio de toda a humanidade. E é emocionalmente tão significativa quanto outras datas marcadas pela violência, pela vitimização de verdadeiros mártires anônimos que tão bem simbolizam o que é realmente uma luta, nossa luta, e que necessita desse tipo de insígnia simbólica e moral para nutrir sua memória e incrementar sua disposição.
Que 10 de maio, dia da Revolta do Astor Place, seja eleito e considerado, a partir de uma iniciativa dos cineclubes brasileiros e ibero-americanos, e por ocasião do VI Encontro Ibero-Americano de Cineclubes, o Dia do Público. Porque o público somos nós.
Felipe Macedo - Montreal, maio de 2011.
Notas:
1) Bom, tem também o “Dia do Cinema Brasileiro” criado pela empresa Cinemark, principal oligopólio estadunidense no campo da exibição. Nesse dia o ingresso fica a preços razoáveis e só se exibem filmes brasileiros. É uma adorável maneira de festejar uma contradição evidente: nos outros 364 dias do ano o valor do ingresso é inaccessível para a grande maioria da população e a quase totalidade dos filmes é de produção hollywoodiana.
2) Esse artigo está disponível no blog http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/ e, em versão mais concentrada, Cineclube, público, cinema e vice-versa, no arquivo de textos da lista de debates dos cineclubes brasileiros, cncdialogo@yahoogrupos.com
3) Esse texto está nos anais do I Encontro Internacional pelos Direitos do Público, de João Batista Pimentel Neto (org.), 2011, Atibaia: Associação de Difusão cultural de Atibaia, Difusão Cineclube e CNC.
4)Ibidem.
5) Noel Burch é autor fundamental para o estudo do cinema, com uma dúzia de livros e um número um pouco maior de filmes, mas muito pouco divulgado no Brasil. Apenas seu primeiro livro, Práxis do Cinema, de 1969 (!), foi publicado em português. Os comentários sobre a Revolta do Astor Place estão em seu La lucarne de l’infini – naissance du langage cinématographique, 2007 (1991). Paris: L’Harmattan, p. 121-123 e seguintes.
6) http://www.shakespeareinamericanlife.org/transcripts/mcconachie1.cfm
7) Burrows, Edwin G. e Mike Wallace. 1999. Gotham: A History of New York City to 1898. New York: Oxford University Press; Toll, Robert. 1976. The First Century of Show Business in America. Londres e N. York: Oxford University Press, e Cliff, Nigel. 2007 The Shakespeare Riots: Revenge, Drama, and Death in Nineteenth-Century America, New York: Random House.
8) Noel Burch, ibidem.