sexta-feira, 20 de abril de 2012
Imagem (des)animada do cinema
do Brasil
Fico com a duvidosa láurea de ter o atrevimento de expressar o indizível nestas terras de autores, produtores, empreendedores de dinheiro público e outros formatos de heroísmo contemporâneo no campo do audiovisual sem participação do público.
do Brasil
Fico com a duvidosa láurea de ter o atrevimento de expressar o indizível nestas terras de autores, produtores, empreendedores de dinheiro público e outros formatos de heroísmo contemporâneo no campo do audiovisual sem participação do público.
A notícia (falo a partir da leitura do jornal Folha de São Paulo) da provável falência do chamado polo de cinema de Paulínia foi recebida com consternação unânime entre os que têm voz no campo do audiovisual: produtores, realizadores e jornalistas de cinema (mais ou menos o que se chamava antes de críticos). Já o jornal, fiel à sua tradicional postura colonizada, centra sua abordagem no que entende como mais uma demonstração da incompetência atávica do brasileiro. O mais “engraçado” é que o próprio diário parece também demonstrar esse tipo de inabilidade: na matéria de hoje (19/4/12) fala de um custo de 3 milhões para o festival da cidade, ontem orçava a mesma manifestação em 10 milhões. Creio que nenhum evento cinematográfico no Brasil chega neste último valor. E a Folha “chuta” livremente.
O fato – tal como a versão canhestra do fato -, realmente evoca, ou deveria, uma reflexão sobre aspectos importantes das relações entre cultura e Estado no Brasil, especificamente sobre o cinema, e destes com o público, que venho eu introduzir nessa mixórdia. Se o fato já pode ser examinado em sua completude – quer dizer, o ciclo completo: de nascimento, vida e morte –, ele oferece uma imagem (des)animada do cinema e do Brasil.
Nem a Folha, do alto do seu nihilismo reacionário, tem coragem de dizer claramente o que está em muitas bocas desse povo que não tem voz na questão. Fazer um festival de cinema caríssimo, e depois, sucessivamente pendurar-lhe adornos (uma espécie de opera house kitsch na cidade sem cinema; uma escola de cinema; estúdios; laboratório de animação, etc) improvisados, numa pequena cidade (80 mil hab.) sem qualquer tradição ou estrutura nessa área, ou na cultura, ou mesmo na educação, parece uma excentricidade, digamos, derivada de um devaneio muito pessoal de um prefeito longevo (vários mandatos no cargo) que dispôs liberalmente das facilidades derivadas dos impostos da importante refinaria – Replan - e atividades conexas com sede na cidade.
O atual prefeito, meio implicitamente, revela essa trivialidade falando da necessidade de “investir no social”. Apesar da riqueza aparentemente fácil, a cidade é notória pelo deficit habitacional e pela falta de creches, principalmente (segundo a wikipedia). Sem falar na poluição, claro. Mas uma das características marcantes da política brasileira é justamente dos políticos enterrarem as iniciativas de seus antecessores e estabelecerem novas, com sua marca pessoal. Como se o nome, a marca, tivesse mais importância que as ações reais. Nesse sentido, os políticos se veem um tanto como autores... Os administradores reveem e frequentemente cancelam o que foi feito antes, recomeçando um novo ciclo recorrente, sem continuidade. O atual prefeito, cassado e empossado sob liminar, não oferece melhores perspectivas nessa imagem da política cultural, ou puramente política, tupiniquim. Será que sua postura é coerente ou tão irresponsável – ao simplesmente abandonar, sucatear um patrimônio que bem ou mal já existe - quanto a de seu visionário antecessor?
O valor dos investimentos feitos pelas gestões do prefeito cinematográfico, Edson Moura, foi enorme: algo em torno de 490 milhões (versão da Folha) ou 550 milhões apenas entre 2005 e 2009, segundo o trabalho de Camila Caprini de Campos Pacheco, Paulínia: Investimento Público em Cinema como Propulsor Cultural, Social e Econômico, 2009, CELACC/ECA-USP disponível em http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/viewFile/155/188. O que mostra que estatísticas seguras também não são a melhor commodity disponível em nossa terrinha – outro componente nessa nossa imagem em movimento.
No arroubo do prefeito o cinema seria uma alternativa econômica para a dependência da cidade em relação à indústria petrolífera. Mas esse projeto estratégico começou pelo Festival, uma festa glamurosa caríssima cujos investimentos (premiação, sede, assessorias, etc) e brilho atraíram um consenso imediato e uma numerosa população cinematográfica de todo o País. Como o Festival não constituía exatamente uma infraestrutura econômica, seguiram-se outras iniciativas: fomento à produção de filmes, criação de escola, estúdios e centro de animação, além da incontornável film comission – e parece que havia ainda um museu em perspectiva. Como não se constituíram exatamente empresas locais, a maior parte dessa produção beneficiou o cinema brasileiro “em geral”, não exatamente a cidade. A Folha lista algumas dessas produções (e os recursos recebidos de Paulínia) que não me parece terem dado qualquer contribuição significativa, mais permanente ou estruturante, à economia (ou à cultura) da cidade: Ensaio sobre a Cegueira (2007 - $300 mil); Budapeste (2007 - $450 mil); Salve Geral (2008 - $900 mil); Jean Charles (2008 - $900 mil); Chico Xavier (2009 - $1,5 milhão); O Palhaço (2009 - $1 milhão); Bruna Surfistinha (2009 - $1 milhão), e cita mais 4,8 milhões em quatro produções de 2010. De fato, esse fomento exigia como contrapartida o emprego de mão de obra local. Infelizmente ela não existe, nem a “escola de cinema” criada em função dessa óbvia constatação teve tempo de criar. Segunda a Folha, “a maior parcela dos contratados locais acaba servindo de motorista e figurante”. Os estúdios, mesmo não sendo usados, garantem uma remuneração a conhecida empresa terceirizada – que não é da cidade - que os administra: em 2011 foram 20 milhões de reais só pela manutenção. E os estúdios de animação, espaços e equipamentos (custo de 29 milhões, diz o jornal), não chegaram a ser usados e já caminham para um possível sucateamento, servindo atualmente de depósito. A escola também está parada. E nada disso aconteceu agora, mas apenas virou notícia com o cancelamento do Festival.
É inevitável a lembrança da Vera Cruz, por tantas semelhanças aparentes. A empresa de São Bernardo durou grosso modo de 1949 a 1954; Paulínia de 2006 a 2011. Ambas situadas nas proximidades da capital paulista e de polos industriais, produziram cerca de uma vintena de longas-metragens. A primeira expressava a pujança do capital industrial paulista; a segunda, a riqueza da transformação do petróleo brasileiro.
Mas essas analogias superficiais escondem diferenças significativas. A Vera Cruz era parte de uma ampla representação no plano cultural - contemporânea do TBC e do MASP, vale lembrar - e institucional da força do capital industrial e da burguesia imigrante que o encarnava. O Polo de Paulínia é a apropriação de uma circunstância mais ou menos fortuita que foi a implantação da maior refinaria brasileira na cidade. Uma expressa um momento e um processo econômico, social e cultural, o outro está mais perto da iniciativa voluntariosa de um visionário, para uns, ou delírio de um pretensioso para outros. A produção da Vera Cruz tem uma identidade em vários níveis: exprime em última instância um projeto cultural, estético, ideológico de um grupo homegêneo e fundamental na estrutura social. No panorama do cinema brasileiro, a Vera Cruz é um fenômeno bem “paulista” – o gentílico aqui se identificando com essas características estéticas, que são igualmente sociais e históricas. Os filmes oriundos do Polo não têm qualquer unidade, sob qualquer ponto de vista – nem mesmo se caracterizam de forma visível pela utilização da infraestrutura local de estúdios. Apenas expressam uma relação com a oportunidade de financiamento; um caixa automático de bom tamanho produziria um ciclo de filmes de características e importância comparáveis no contexto da nossa cinematografia.
Penso que a avaliação comparativa dessas diferenças alojadas em semelhanças aparentes pode ser bem interessante e tratada com mais extensão e profundidade, mas não é o escopo deste artigo. Mesmo assim creio que, ainda neste contexto, sobressaem os aspectos comuns na questão da falência dos dois projetos. Hoje todos parecem concordar que a razão mais básica da ruína da Vera Cruz foi a falta de controle sobre a distribuição de seus filmes, entregue a empresa estadunidense. Isso fica mais claro por se tratar de uma fonte única de produção e de se poder traçar claramente o quadro da exibição e receita de cada um de seus filmes. Mas é evidente que o caso da Vera Cruz é apenas mais um na longa (permanente?) trajetória de submissão da produção nacional ao controle do mercado pela indústria dos EUA, consolidada no início da segunda década do século passado – de fato, escrevendo isso me dou conta de que 2012 é de alguma forma o centenário do fim da Bela Época do cinema brasileiro, marca o aniversário de cem anos do colonialismo audiovisual norte-americano no Brasil.
E é a mesma questão que subjaz à falência do polo petrocínico de Paulínia. Claro que, neste caso, a relação não é tão direta, portanto não tão evidente. No caso da Vera Cruz, a falta de rentabilidade (ou controle sobre esta) de seus produtos comprometeu diretamente a viabilidade da empresa. Simples: se os filmes não dão lucro, não se pagam, interrompe-se a produção. Empresa que não dá lucro é uma contradição absoluta.
Paulínia não é um empreendimento comercial privado, é uma iniciativa de fomento estatal (no caso, do município), visando criar condições para uma futura industrialização. Vamos deixar um pouco de lado questões como o planejamento desse processo indutor – partindo de um festival -, da escolha de uma cidade sem tradição no ramo (no caso da Vera Cruz grande parte da mão de obra foi importada) ou mesmo se e em que medida pode caber a um tesouro municipal um empreendimento desse alcance (criar não uma base industrial local, mas um verdadeiro centro produtor nacional). E vamos direto para a questão da industrialização do cinema no Brasil.
Simplesmente não é possível o desenvolvimento de uma verdadeira indústria cinematográfica brasileira no sentido tradicional e no quadro do modelo dependente vigente. O mercado brasileiro, que já é proporcionalmente pequeno - com a exclusão de quase 90% da população -, permite apenas a ocupação de cerca de 10% (média histórica) de seu espaço pela produção nacional. Este também é um assunto que já abordei em vários outros artigos[i]. Em 2011, o cinema brasileiro atingiu 18 milhões de espectadores, gerando uma receita bruta de 163 milhões de reais. Se considerarmos o retorno de cerca de 1/3 dessa receita para a produção (o resto é repartido entre exibidores e distribuidores), a receita total real para a produção foi de cerca de 55 milhões de reais. Isso apenas paga uns dez filmes modestos no contexto vigente. Na verdade, 90% dessa receita é realizada por dois ou três filmes, dependendo do ano. E em 2011 foram lançados 99 títulos brasileiros. Numa pura abstração aritmética, cada filme desses receberia espantosos 550 mil reais, o que não os qualificaria nem como filmes de baixo orçamento. Na verdade, a quase totalidade deles foi vista por um número irrelevante de espectadores, ficando pouco tempo em cartaz e recolhendo ainda menos receita que essa média irreal. E, no mundo real, numa “indústria cinematográfica” consolidada (sempre de tipo tradicional), tanto os orçamentos quanto as receitas – portanto as audiências – teriam que estar nos patamares atingidos apenas por menos de 1% de toda a nossa produção. Uma produção economicamente efetiva de dois ou três filmes anuais não pode ser chamada de indústria cinematográfica, não num país de 200 milhões de habitantes.
Ora, o que acontece no Brasil é que o Estado banca um situação economicamente inviável em função de vários fatores, que vão desde a necessidade estratégica de termos uma forma audiovisual de expressão da nossa identidade e cultura até nossa herança elitista que assegura uma posição de privilégio aos “artistas” geralmente oriundos ou ligados aos ambientes do poder. Por decisão política, o governo financia uma produção que não se realiza no plano da realidade econômica, e quase nada também no campo da cultura – já que pouco interage com a população. Essa “economia” artificial sustenta um cinema que é muita coisa, mas não industrial, no sentido capitalista. Mas se não tem muita relevância ao nível da distribuição e da exibição, onde o mercado é o normal, competitivo, privado, nosso cinema não é menos sonante no que se refere à produção. Mesmo que os filmes não sejam distribuídos e exibidos de forma eficiente, mesmo que não gerem receitas palpáveis, na produção são investidos recursos bem concretos, que sustentam uma classe cinematográfica bem real e uma produção que se situa entre as maiores do mundo – ainda que não seja vista. Só que, em vez de ser fundamentalmente remunerada pelos resultados dos filmes no mercado, tem sua base financeira assentada sobre o que chamei acima de vontade política do Estado. Estado de que, no sentido marxista de sociedade civil, essa classe faz parte. É importante lembrar que isso não é essencialmente diferente da grande maioria dos países, todos submetidos ao domínio da indústria imperial hollywoodiana: apenas mudam as proporções. Nesse sentido, infelizmente, o Brasil apresenta um dos coeficientes mais desfavoráveis na relação entre filmes que se pagam e os que são estimulados de forma postiça; os últimos constituem mais de 95% da produção, como mostrei mais acima.
O problema de Paulínia, então, está em boa medida na pretensão de criar e sustentar a partir dos impostos municipais um projeto estratégico de caráter e dimensão (e custos) nacional. Os artesãos da produção cinematográfica, claro, afluíram de todo o País em busca das condições para realizarem seu mister – como fizeram artistas e técnicos italianos a chamado da Vera Cruz -, e hoje sua desolação é unânime. Mas para a população pauliniense e para os políticos que tratam com ela certamente não foram tão visíveis os benefícios auferidos com o seu dinheiro, já que a cidade sequer tem cinema, exceto pelo vistoso e multifuncional Teatro Municipal, onde as produções do Polo obrigatoriamente são exibidas em première mundial e com grande fausto.
Fico pensando se essa aventura de muitas centenas de milhões seria possível com o consentimento e participação da população, do não-público local. Ou sem a... determinação de um prefeito bem estabelecido no cargo que ocupou várias vezes. Não seria meio previsível que quase qualquer outro político poderia encerrar essa iniciativa, voltando esses recursos para ações mais consentâneas com a história, as necessidades locais, e mais visíveis?
Do meu ponto de vista, Paulínia falece – se de fato o ciclo acabou – pela mesma razão, e condições diferentes, das da Vera Cruz e tantas outras ações e políticas públicas na história do cinema brasileiro: porque a miopia das elites políticas, o corporativismo egoísta de segmentos importantes da classe cinematográfica e a exclusão permanente da população, do público, levam a reduzir o cinema, esse paradigma fundamental da integração audiovisual da sociedade, a uma mera questão de financiamento da produção. Uma verdadeira conspiração elitista entre o poder e uma classe artística que, dessa forma, se distancia do próprio povo que alimenta sua criatividade – e seus estômagos -, pois todo esse dinheiro é público. E que de certa forma a leva ao suicídio, periódico, em crises cíclicas que de certa forma definem a longa trajetória dependente e subalterna do cinema nacional.
A grande questão do cinema não está na produção, mas no controle da distribuição e no modelo de exibição. Não são os autores, produtores, realizadores, intérpretes ou outros: a questão é o público. E só quando este tiver tiver voz e seus interesses estiverem representados na definição dos rumos do audiovisual brasileiro, da cultura brasileira, poderemos falar, senão em indústria no sentido tradicional dessa expressão – que não sei se é realmente o que nos interessa – mas em um cinema nacional enraizado em nossa cultura, vivência, diversidade, e com condições de se manter e reproduzir de maneira estável e duradoura, sustentado pelo seu público.
[i] Ver, por exemplo, Macedo, F. (2008). “O modelo brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”. In Moraes, G. (org.). O cinema de amanhã. Brasília, DF: Congresso Brasileiro de Cinema/Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural, p. 53-71.
quinta-feira, 8 de março de 2012
Entre a cruz e a caldeirinha
Pouca gente entende de cinema.
Não cinema filme, texto, linguagem. Que, nesse caso, parece que está cheio de voluntários esclarecidos, prontos a alfabetizar todo mundo.
Mas cinema sala, público, economia.
Para comprovar, a Folha de São Paulo deu matéria no dia 6 de março, simultaneamente confusa e interessante, sobre o fim da película no comércio cinematográfico, as providências para financiar o estabelecimento do novo processo digital de exibição e as iniciativas da Ancine quanto ao assunto.
Que interesse pode isso ter para o cineclubismo brasileiro e outras formas de exibição alternativa?
A matéria mostra que a adaptação do parque exibidor para a tecnologia digital é uma situação contraditória. Eliminando as cópias físicas, o processo barateia enormemente a distribuição dos conteúdos (tanto quanto facilita o controle centralizado destes, mas esse não é o tema da reportagem). Por outro lado, a adaptação das salas exige investimentos elevados.
Isso está sendo resolvido, nos países onde o processo está mais avançado, através de várias formas de colaboração entre distribuidores e exibidores. Tem a print fee, uma taxa que os primeiros pagam aos últimos em função da economia com a feitura de cópias. Há várias outras modalidades de empréstimo entre as empresas e, claro, a ajuda do Estado que, mesmo antes do pós-mercado industrial - esta contribuição tão original à teoria econômica - sempre se fez presente nestas ocasiões de grandes inversões nos fatores de produção.
Isso está sendo resolvido, nos países onde o processo está mais avançado, através de várias formas de colaboração entre distribuidores e exibidores. Tem a print fee, uma taxa que os primeiros pagam aos últimos em função da economia com a feitura de cópias. Há várias outras modalidades de empréstimo entre as empresas e, claro, a ajuda do Estado que, mesmo antes do pós-mercado industrial - esta contribuição tão original à teoria econômica - sempre se fez presente nestas ocasiões de grandes inversões nos fatores de produção.
A Folha, então, procura localizar essa situação no nosso mercado. Onde não há, creio, nenhum grande programa governamental de financiamento para a adaptação dos multiplexes em acelerada obsolescência. O maior jornal brasileiro sugere então que o programa Cinema Perto de Você, da Ancine, poderia cumprir esse papel. Ora, o programa da Ancine está voltado para a instalação de salas ou ampliação de complexos de exibição: a Agência sublinha a criação de novas salas e exclui especificamente meras reformas. Pode, então, financiar a instalação de salas digitais, mas não a adaptação das quase 2.000 que funcionam com película. Outros eixos do programa, que demonstram nossa assertiva inicial, determinam a criação dessas salas em cidades com menos de 100 mil habitantes, num ambicioso plano de estímulo ao acesso ao cinema, tema tão caro aos produtores nacionais e muitos dirigentes cineclubistas. No molho dessa salada, a Ancine localiza como objeto também a “nova classe C”, esse eufemismo triunfante que designa o crescimento do moderno proletariado brasileiro (com a saída de expressivos segmentos da população de uma situação de pobreza aquém desta nova condição que, contudo, é uma originalidade brasileira: em outros países essa faixa de renda é considerada baixa), o qual, penso eu, está mais presente justamente nas cidades mais populosas do que o objetivo precedente do programa almeja...
De fato, face ao que me parecem inadequações do programa da agência governamental, a Folha parece adivinhar e sugerir uma “adaptação” de interesse para o mercado tradicional (majoritariamente de exibidores estrangeiros, por sua vez controlados pela distribuição monopolizada por Hollywood). Por que não fazer desse programa um programinha gostoso entre o Estado e a exibição comercial, voltando-o para o financiamento da digitalização das salas existentes – e também novas, claro, pois o mercado está crescendo? Mas, e justamente, crescendo por causa dessa nova “classe” e nas grandes cidades.
Voltando aos cineclubes e exibidores não comerciais de caráter mais ou menos comunitário – que hoje constituem as poucas ou únicas alternativas na quase totalidade das localidades de menos de 100 mil habitantes -, que perspectivas se abrem diante dessa forma de ver o momento atual do cinema sala, público, economia, no Brasil?
Se triunfar a lógica de mercado, os investimentos serão carreados para o padrão tradicional, o modelo planetário de exploração do comércio cinematográfico. Ou seja: mais salas exibindo 90% de filmes hollywoodianos e 10% de filmes brasileiros e de todos os outros países do mundo, nos multiplexes, mas agora para um público ligeiramente maior, correspondente ao moderado mas consistente processo de crescimento e redistribuição de renda na nossa bem sucedida economia de exportação de matérias primas.
Se, contra essa lógica de mercado, a “salada Ancine” pudesse se implantar, teríamos o mesmo modelo de distribuição estendendo-se às cidades entre 20 mil e 100 mil habitantes, universalizando, de certa forma (71% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes, mas reúnem apenas 17% da população) o acesso ao cinema. E falo em salada, entre outras coisas, porque esse projeto mistura a obediência mais estrita aos preceitos do comércio – em especial proibindo explicitamente a participação no programa de empreendimentos sem fins lucrativos – com a etérea esperança de que isso poderia superar a dominação corporativa hollywoodiana e seu modelo mundial de cinema e de alguma forma mágica beneficiar o cinema brasileiro. É um pouco a mesma lógica capenga e dependente dos cineclubistas que vêm no mero acesso ao cinema o maior objetivo do público.
Nos dois casos, seja com crescimento do mercado nos moldes e locais do modelo atual de multiplexes em xópins ou através de uma suposta universalização desse mesmo modelo nas cidades que até agora não se pensava capazes de sustentar economicamente tal figurino, uma coisa é indiscutível: haveria um aumento estatístico do acesso ao cinema no Brasil. Como de fato já está havendo, mais ou menos no mesmo ritmo do crescimento da economia em geral e possivelmente um pouco mais acentuadamente devido à modesta melhoria das condições sociais. Cresce o acesso, mas a quê, e como?
Estas perspectivas, a realista e a dourada, decorrentes da leitura da Folha, empurram o cineclubismo e seus conexos recentemente inventados, os “cines”, para os guetos das pequenas comunidades e/ou das atividades mais especializadas e elitizadas, cinéfilas, acadêmicas.
Junto com a postura de precariedade e dependência que informam e prevalecem nos programas Cine+Cultura e Programadora Brasil, tudo relega o cineclubismo à condição de exceção especializada. Não de organização do público de todos os meios sociais, mas de muleta assistencialista sociocultural para os esquecidos de um modelo de exclusão que o cineclubismo contribui, dessa maneira, a consolidar. Exclusão de acesso, sem dúvida, mas sobretudo e essencialmente de participação. De poder.
Cresce a acessibilidade para o espectador, para a platéia, e diminui a participação do cidadão, do público.
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