O Partido Cineclubista ou
Que fazer?
O fim da
história
Já
faz um bom tempo, a gente dizia que era parte do Partido Cineclubista. Uma expressão
brincalhona; éramos todos – ou quase todos – comunistas, ou muito próximos
disso, e havia ali uma certa homofonia, que ressoava engraçada ou instigante, além
da coincidência com a sigla do Partidão. Mas era também mais que isso, a gente
se sentia realmente parte de um movimento político que tinha por vocação transformar
o mundo. Nosso objetivo não era apenas
derrotar a ditadura, mas sim fazer a
Revolução. O partido, ali, era (talvez não de maneira inteiramente consciente) o
partido segundo Gramsci, o partido lato
sensu, o Príncipe Moderno: o conjunto de instituições que conduziriam a
maioria da população à direção de um profundo processo de transformação da
sociedade. O cineclube era uma dessas instituições; o cineclubismo, nosso campo
de batalha, e o objetivo final – pouco visível - era um novo cinema, expressão de uma nova sociedade. Tudo isso meio
implícito, meio consciente na expressão espirituosa, mas também na nossa
militância cineclubista.
No
final dos anos 70 escrevi Hegemonia e
Cineclube[i],
onde definia o cineclube como uma instituição geradora de valores criada pelo
público. Na terra do comunista sardo, Fabio Masala e Filippo de Sanctis
aprofundavam a questão do associativismo democrático, que desembocaria na Carta dos Direitos do Público[ii]
alguns anos depois. Como já escrevi alhures, essa postura, que interpretava no
plano teórico as práticas do “partido cineclubista” que organizavam centenas de
cineclubes no Brasil e em outros países, principalmente da América Latina,
representava uma ruptura com o cineclubismo elitista e cristão, mistura das
heranças das grandes personalidades “cineclubistas” francesas – que vão de
Louis Delluc a François Truffaut, passando, claro, por André Bazin – e do
programa político católico para o cinema, lançado por Pio XI nos anos 30 e
tornado realidade pela OCIC[iii].
Mas a primazia dada ao público por nós também significava um reatamento, uma
atualização das atitudes fundadoras do cineclubismo operário e revolucionário
do começo do cinema, presentes em toda a trajetória histórica do movimento.
Hoje,
esse tipo de objetivo mais amplo está meio fora de moda; não é à toa que o
chamam de utopia: coisa desejável, mas irrealista, irrealizável. Ninguém, ou
muito poucos, propõem a Revolução, a transformação radical da sociedade, o
socialismo ou o comunismo (que não são utopias). Estes dois últimos termos
existem apenas como penduricalhos arcaicos nas denominações de algumas
organizações burocráticas que às vezes os sacodem em campanhas eleitorais nas
periferias ou quando se defendem de acusações de corrupção. Mesmo nos ambientes
proletários, nas comunidades da massa de excluídos do nosso sistema social,
reivindicam-se melhorias, reformas, mas nada que abale os fundamentos da
situação mesma que os exclui. Ninguém mexe no essencial. Se há alguma
totalidade envolvida na consciência que se propõe sobre sua condição, é uma ideia
vaga, meio metafísica, como a de Injustiça. Isso quando não se adota logo de
uma vez a regra do jogo e se parte para a busca do sucesso pessoal, através do
empreendedorismo – em que todos podem ser empresários de sucesso -, do futebol
- todos craques muito bem pagos – e até do cinema – todos realizadores com
prestígio – como ferramenta e caminho para a superação da exclusão e da
miséria, sempre numa perspectiva individual. Os que não conseguem, é porque não
merecem. Ou não têm a graça divina.
Porém...
(e tem sempre um porém, como dizia o Plínio Marcos) ao invés de termos chegado
ao “fim da História”, como queria aquele professor nipo-americano, o Francis
Fukuyama, a aparente dominante ausência de outras perspectivas não se manifesta
por uma acomodação social diante do triunfo final do liberalismo. Em toda parte
continuam os conflitos: abertamente, genocidariamente, nos campos dos países
mais (ou menos) pobres, na África, na Ásia, no Oriente Médio; no eufemismo da
violência social cotidiana, como no Brasil, entre tantos outros, ou travestido
de um terrorismo meio psicótico nas sedes políticas do domínio planetário. No
Brasil, que fica meio que na metade desse caminho, país de desenvolvimento
médio e top de desigualdade, marcado secular
e essencialmente pela dependência e subalternidade no processo econômico e
político mundial, esse quadro tem características muito próprias.
O golpe
Tivemos
– entre 2002 e 2016 - um governo populista que, como na tradição varguista,
promoveu reformas sociais importantes, mas limitadas. Isso ao mesmo tempo que
contribuía, acessoriamente, à maneira brasileira, para a divisão e
amortecimento dos movimentos populares, e para a descaracterização de seus
objetivos – fenômeno muito mais abrangente e profundo que vem, como sempre, dos
países centrais, que determinam a situação mundial. Mas, como sempre lembrava
Darcy Ribeiro, nossas classes dominantes são particularmente execráveis: nem
mesmo lucrando com um governo que, no limite, ajudava a abrandar conflitos
sociais, puderam aceitar os pequenos avanços sociais e uma certa resistência
institucional à retirada de direitos que dificultam o incremento da espoliação
dos trabalhadores. Um golpe, então, foi articulado e executado: acaba de se
consumar[iv]
com o afastamento da presidenta eleita e a entronização de um governo
provisório cuja mediocridade excede até mesmo o baixíssimo padrão da chamada
classe política brasileira. Para os golpistas, as próprias mazelas do governo
deposto e de sua base política devem, complementarmente, enfraquecer
substancialmente pelo menos suas bases partidárias, senão as sociais.
Mas
a insignificância intelectual e a mesquinhez ética não são os atributos em que
mais se destaca esse movimento golpista e nossas “elites”. Creio que seu pior predicado
é a ganância voraz revestida de total insensibilidade humanitária diante do
sofrimento que possa resultar de seu apetite financeiro imediatista. Como no
golpe militar de 1964, não hesitam diante da possibilidade de derramamento de
sangue. De fato, a derrubada de um governo legítimo, apoiado em votação
expressiva e pela clara manifestação de uma parcela significativa da população,
pode perfeitamente levar a uma forma de resistência mais robusta que as marchas
ou ocupações de espaços públicos, e mesmo estas podem resultar em conflitos
graves, com mortos ou feridos. A própria sombra de uma guerra fratricida nunca
esteve excluída, nem em 1964 nem agora, ainda que a própria tibieza do governo
deposto, bem como a desorganização das massas – para a qual contribuiu – não
indique uma probabilidade maior. Nada disso, contudo, jamais deteve nossas
classes dominantes. Compreende-se: qualquer conflito, no contexto de
fragilidade ideológica e política dos segmentos populares, produziria suas
vítimas apenas nas ruas e nas comunidades populares: essas ditas elites nunca
correriam nenhum risco. Elas vivem literalmente blindadas, e esse “custo” lhes
é indiferente. As esquerdas (ou ao menos seus eleitores) e os segmentos
populares, por outro lado, seriam as próprias vítimas; não podem, portanto, deixar
de considerar essa variável. Valeria a pena dar a vida por um programa de
governo que visa apenas a reformas limitadas? E, se valesse, há organização e
unidade suficientes para enfrentar as forças do golpe?
A
resposta para essas duas questões é negativa. A mudança social que os
trabalhadores e os excluídos necessitam vai muito além da geladeira e da
faculdade de má qualidade que constituíam o projeto do governo deposto. E mesmo
que assim não fosse, a organização social da maioria da população é hoje
absolutamente insuficiente e precária, sem número, sem unidade e sem direção
para elaborar e propor um projeto consistente de transformação radical da
sociedade. O problema é maior e mais complexo que isso. Enquanto boa parte das
esquerdas – admitindo-se que esse termo se refere aos setores sociais que
querem mudanças democráticas e progressistas – faz parte desse modelo
reformista limitado que mencionei, outra parte não assimilou ou não soube
traduzir em prática política a formidável experiência histórica que foi a queda
da União Soviética e a falência desse modelo de socialismo em praticamente
todos os países que o adotaram.
Falência do socialismo
Aqui
é preciso abrir um pequeno parêntese: falar em falência do modelo de socialismo
é considerar que ele falhou em cumprir o que dele se espera ou o que ele mesmo
propõe: simultaneamente e em todos os níveis, justiça social e democracia em
valores absolutos. Esses objetivos ou foram efetivamente traídos ou não foram
alcançados, ou sequer eram claramente visíveis, mesmo depois de um período
relativamente extenso de implantação: o comunismo soviético durou mais de 70
anos. Essa falência não se define por
comparação ao modelo capitalista dominante, que se fundamenta justamente,
especificamente, na exploração da maioria por uma minoria e na reprodução
crescente de
práticas que levam à extinção da Humanidade.
Voltando
às esquerdas revolucionárias: elas mantêm, então, um discurso e prática que se
identificam com a - e constituem uma boa parte da - razão da “derrota do
socialismo”. Seguindo a formulação clássica marxista, aceitam que a luta de
classes se dá em todos os níveis da vida social: no nível da produção
econômica, no plano da ação e da representação política, e no âmbito dos
valores ideológicos – que vão da fala ao sonho, por assim dizer, passando pela
moral, pela religião, pela arte. O erro que contribuiu de forma importante para
a “queda do socialismo” e que não foi superado por essas esquerdas consiste na
supervalorização da esfera política (e da esfera política institucional, em
muitos casos) em relação às esferas econômicas e ideológicas da luta de
classes.
A
ideia de hegemonia implica em que não se pode estabelecer e manter a direção da
sociedade apenas pela força (domínio e coerção, esfera política) ou apenas por
um projeto de sociedade capaz de ser visto como melhor (direção e consenso,
esfera ideológica). As duas coisas são indispensáveis. Na estrutura capitalista
de hoje, além do monopólio da força, as classes dominantes conseguem como nunca
vender a superioridade e a inevitabilidade do sistema. Mas, apesar da força das
organizações e instrumentos de convencimento de que dispõem, somente o
monopólio e a censura combinados em diferentes níveis conseguem viabilizar esse
“convencimento” e a adesão das massas ao capitalismo. O elemento de força está
sempre presente em alguma medida e isso acontece essencialmente porque se trata
de um grande e essencial engodo, uma grossa mentira. Não há melhor exemplo,
acho, do que a verdadeira campanha – travestida de jornalismo - feita pelas
mídias brasileiras para derrubar o governo constitucional do Brasil. Além do
conceito de hegemonia, Gramsci falava da importância da superioridade intelectual e moral que devem ter as ações e
instituições de uma classe que pretende estabelecer sua hegemonia. A noção de
superioridade moral e intelectual parte do princípio de que a sua proposta deve
parecer verdadeira, eticamente justa, mas também melhor para a maioria. A educação,
a propaganda, até a religião podem contribuir para essa missão de sustentar um
sistema, mas, a longo prazo – e estamos falando de prazos históricos – o
elemento coercitivo da mentira, isto é, da inadequação essencial do sistema às
necessidades do conjunto dos seus integrantes, acaba prevalecendo. Isso porque
essa mentira não é apenas uma ideia produzida pela mídia, ou um preceito moral,
mas um fato social bem concreto, que se situa no plano da reprodução essencial
da vida, isto é, na esfera econômica. No caso do sistema capitalista, a mentira
é a mais-valia, a exploração de muitos, da maioria, por uns poucos,que é a
essência das relações sociais no plano mais básico, da economia.
No
caso do comunismo de inspiração stalinista, o sistema que começou com a
eliminação da exploração econômica não foi capaz de gerar práticas e
instituições nos planos político e ideológico que acompanhassem, exprimissem
essa nova condição. Ora, essa divisão entre econômico, político e ideológico é
uma abstração, a realidade é uma totalidade em que os níveis se imbricam e se
influenciam, determinados, em última
instância, pelo fato social mais essencial e mais concreto, a produção
econômica da vida. O autoritarismo gerado inicialmente em defesa da Revolução
(função de domínio) nunca se superou em novas formas de repesentação política que
promovessem o consenso – ao contrário, matou muito perto do nascedouro as
potencialidades dos conselhos populares, os sovietes, ossificando-os numa
camada de dirigentes que, num sentido bem prático, restabeleceu uma espécie de
classe dominante. A perspectiva do fator ideológico da hegemonia se perdeu na
transição para o stalinismo, transformando o regime numa ditadura stricto sensu, exercida por supostos
representantes do proletariado. Daí eu falar em supervalorização da esfera
política: o Estado como aparelho de dominação substituiu o coletivismo do
espírito comunista, substituiu a sociedade em todos os níveis – econômico,
político e ideológico. Tornou-se incapaz de gerar novas instituições,
instituições socialistas, que expressassem novos valores, baseados na solidariedade
coletiva, que representassem um novo sistema. A falta de liberdade, erigida ela
mesma em sistema, impedia a própria evolução do sistema. E quando se tentou
abrir o sistema, ele implodiu – com uma decisiva ajuda dessa mesma “comunidade
internacional” que hoje bombardeia o Oriente Médio... Não havia criado o
consenso necessário à sua estabilidade.
A
queda da União Soviética foi literalmente capitalizada e transformada numa
vitória da ideologia do século 18, o liberalismo. Um dos seus efeitos mais
nefastos foi a desestruturação generalizada das esquerdas socialistas,
resultando na capitulação total de uma maioria de partidos ao reformismo a que
me referi anteriormente, na divisão e enfraquecimento de outros e numa
perplexidade e confusão do próprio pensamento de esquerda diante dos
acontecimentos. Só não diminuiu o sofrimento da maioria da população, agora
submetida a uma única superpotência policial mundial e à aliança militar dos
principais países do Norte. Ao contrário, a exploração se espraiou vertical e
horizontalmente, ampliando a fome - quando, paradoxalmente, pela primeira vez o
mundo atingiu a autosuficência alimentar -; mantendo ou restabelecendo todas as
formas de exclusão e preconceito, especialmente as de raça, gênero e cultura;
acelerando, ao invés de deter, a produção de poluentes e de produtos nocivos à
saúde – enquanto restringe o acesso e a pesquisa de medicamentos. Em uma
palavra: destruindo o planeta e a
vida que o habita.
No
Brasil, em grande parte devido à prevalência de um grande partido não marxista
entre as esquerdas, o patrimônio intelectual da classe operária e dos
trabalhadores em geral foi
muito mal compreendido, e pior copiado. Alcançando o governo em 2002, o PT – em
parceria com o PCdoB – mesmo dentro das limitações de suas amplas alianças com
as classes dominantes, logo aplicou a primazia da política, através do Estado,
nos poderes Executivo e Legislativo.
Arremedo do processo soviético, incorporou e contratou as grandes lideranças
sindicais, estabelecendo uma relação de proximidade/cooptação com as
organizações classistas. Apesar de ceder setores importantes da economia à
iniciativa privada, com privatizações e projetos de infraestrutura, passou a
estatizar, por exemplo, todos os níveis de prática cultural: chegou a “inventar”
um novo segmento da cultura, o dos Pontos de Cultura, criado com a apropriação pelo
aparelho estatal das práticas de entidades variadas da sociedade civil e também
com a cooptação de personalidades do meio cultural em sentido amplo. Como tenho
escrito reiteradamente desde 2008, bem antes do começo da agonia, isso levou à
dependência quase total e, rapidamente, ao encerramento de muitas dessas
iniciativas – e o cineclubismo é um caso exemplar. Na produção cinematográfica,
ao mesmo tempo que o governo estabelecia um acordo de “partilha” (90% para a
MPAA[v],
10% para a produção nacional – e essa mesma em parte controlada pela entidade
estadunidense) do mercado, estatizava a produção excedente, de curtas-metragens,
financiando todo o processo: produção, distribuição e exibição, ainda que com
inúmeras precariedades, em especial na ponta da recepção, do público. Esse
modelo, como o eslavo, ruiu antes mesmo da crise política atual, mas também
ajudou a derrubar o governo que, apesar – ou justamente por causa - da
cooptação, não conseguiu motivar suficientemente a população e, diante do
golpe, teve pouco mais que o apoio dos mesmos setores que ajudou a afastar das
bases mais amplas.
Que fazer?
Vivemos
um período histórico muito difícil, particularmente doloroso ao nos propor
dilemas ético-políticos inéditos. Saddam Hussein era um ditador sanguinário,
mas foi substituído pelo genocídio da população iraquiana; a derrubada de
Muammar Gaddafi transformou a Líbia em terra arrasada; na Síria, nem os EUA, do
alto de seus drones assassinos,
consegue distinguir direito a quem matar. Metade do mundo árabe está em
escombros, a outra metade sob ditaduras que a “comunidade” e imprensa
internacionais não questionam. No Brasil, nesse quadro democrático em que “não
há golpe” porque o Supremo Tribunal indiscutivelmente dele participa, temos que
sair à rua para defender um governo bastante ruim, mas legítimo no quadro legal
vigente, diante da perspectiva de uma situação muito pior, que agora entra em
nova etapa.
O
curto mandato do presidente usurpador – como já ficou claro na sua interinidade
– deve, antes de mais nada, deter ou descaracterizar as investigações sobre
corrupção nos meios políticos e empresariais. Depois, tem fundamentalmente dois
objetivos, que afinal fundem-se num só. Primeiro: desarticular a presença e
influência do PT no aparelho do Estado, tanto no plano federal como nos estados
e municípios, aproveitando-se das eleições municipais, do apoio cúmplice da mídia e do enfraquecimento
do próprio
PT. Segundo: quebrar a institucionalidade dos grandes direitos trabalhistas –
que não são uma “conquista dos últimos anos”, mas resultado de uma luta secular
dos trabalhadores[vi]
– e outros que entravem a apropriação dos resultados do trabalho. Os dois
objetivos convergem para a viabilização de um projeto de governo para as
eleições nacionais (e estaduais) de 2018, numa possível conjuntura de maior
estabilidade econômica – para a qual todas as “classes produtivas”, isto é, o
capital nacional e internacional, contribuirão – e sobre uma base
constitucional mais legítima, ou seja, idealmente sem grandes contestações.
Que
fazer diante desse quadro? Devemos ir às ruas para defender a reversão do
processo e a reinstalação da presidenta deposta? Penso que esse objetivo é de
difícil realização, diante da importante mobilização de grandes setores da
população insatisfeitos com a gestão de Dilma Roussef e do suporte que têm por
parte da imprensa, do empresariado e da grande maioria da “classe política”.
Essa perspectiva levaria ao impasse e à periclitação da estabilidade social, à
possibilidade de violência que, mais uma vez, só beneficiaria o recrudescimento
da repressão e o avanço das medidas antipopulares. Mesmo a hipotética
reinstalação de um governo que foi ardilosamente derrubado só levaria à
prorrogação infinda de um período de instabilidade e ingovernabilidade. Como já
foi dito, ainda que nada justifique sua remoção, esse governo também não
incorpora a expectativa, nem a capacidade de uma transformação radical da
sociedade.
Por
outro lado, o povo não pode recuar diante da grave ameaça que se está
consolidando. Não podemos deixar a coisa esfriar e ser esquecida, como se fosse
possível “tocar a vida” para a frente. Porque estaremos sendo tocados para
trás, perdendo nossos direitos, sujeitando-nos mais, a cada dia, sob esse novo establishment. Esquecer é ser dominado. Por
isso, o objetivo imediato, a palavra de ordem para a resistência – que,
dialeticamente, deve significar também avanço – tem que ser ampla - para poder
ser hegemônica – e motivar não apenas os adeptos do PT, ou as esquerdas já
constituídas, mas aquela grande maioria que está engolindo um Michel Temer que
não quer e que deverá crescer a cada nova medida impopular do governo, nos
próximos meses. A palavra de ordem deve ser, também, de simples compreensão,
mas rica em significado, de forma a permitir o aprofundamento do seu sentido
através da própria luta, contribuindo para o crescimento da autoconsciência
popular.
Essa
palavra de ordem é “Eleições Presidenciais Já!”. Sem cair na armadilha de
dividir esse programa, tal como propor junto uma assembleia constituinte ou
eleições para todos os cargos. O período que se abre será um momento de graves
definições, de rearticulação dos setores populares, hoje extremamente divididos.
Rearticulação essa que não está de forma nenhuma garantida; muito ao contrário.
Também será, como disse acima, um tempo de enfrentamento e teste para as
classes dominantes em vista da implantação de uma sua posição mais sólida e
definitiva em 2018. A mobilização permanente, mas ao mesmo tempo objetiva, da
população, é fundamental como passo inicial para a rearticulação dos liames
entre povo e organizações políticas, movimentos, partidos. A pressão
parlamentar da minoria de oposição deve estar vinculada a essa mobilização – e
não ser vista como um fim em si mesmo, isto é, a mera armação de alianças do
estilo que acaba de se mostrar errado e inútil, para não dizer oportunista. O
desafio é enorme. As primeiras indicações do PT são contra a realização de eleições
e a favor do esquema lulista de alianças eleitorais[vii]
de vistas curtas. Mas isso é superável se houver uma clara manifestação do
interesse das massas que, creio, já coincidem com a proposta de eleições já.
Que, afinal, é uma tradução mobilizadora da expressão mais vaga: “Fora, Temer”.
A
probabilidade de alcançar essa meta é bem pequena, dada a pouca organização da
maioria da sociedade e o enfraquecimento e divisão das instituições a ela
ligadas. Mas a própria luta é um exercício e um caminho para um objetivo de
organização superior. Um pouco como foi a campanha das “diretas já”, derrotada
num primeiro momento, mas vital no processo de derrubada da ditadura militar.
E os cineclubes?
Se
há, por paradoxo, um lado positivo nesse golpe, é que ele elimina o que possa
ter restado de ilusão entre as iniciativas culturais comunitárias sobre o papel
do Estado. O movimento de cineclubes entrou de cabeça nessa quimera incentivada
pelo governo populista. A tal ponto que, mesmo depois da falência das chamadas
“políticas públicas” para a cultura – que, para os cineclubes, duraram de 2008
a 2010 – as principais lideranças cineclubistas continuaram a mendigar os
favores do governo que, no entanto, nunca mais vieram. O mais trágico disso é
que várias práticas cineclubistas, fruto de sua experiência secular, se
perderam quase totalmente, realimentando o processo de estiolamento do
movimento. O maior dano veio da perda dos vínculos com suas comunidades, com o
abandono do associativismo organizado e da sustentabilidade pelas bases – ao
invés da dependência suicida do Estado. A comunidade, dessa forma, deixa de ser
público auto-organizado e passa (ou volta) a ser plateia das atividades
promovidas não por ela, mas para ela – por melhores que sejam as intenções
beneméritas com que também se calça o inferno... Mas, como esse governo já
deixou tão claro desde suas primeiras trapalhadas no campo da cultura, agora
não cabe mais nenhuma ilusão.
Para
os cineclubes, a possibilidade de terem uma participação significativa na
resistência ao avanço da exploração da população coincide com a definição do
seu papel na construção de uma sociedade justa e democrática – e na invenção de
um cinema que represente e exprima as necessidades, interesses e sonhos de
todos, não de alguns. A grande lição de Gramsci é que o socialismo se constrói
todo o tempo, e não depois de uma tomada de poder. Que, de fato, a criação de
instituições não capitalistas, superiores a estas moral e intelectualmente,
constitui um dos pré-requisitos fundamentais para a construção da sociedade
futura. Quando a burguesia derrubou revolucionariamente a nobreza, a maioria
das instituições, e as mais eficientes, já eram burguesas. A ação política
extrema, certamente indispensável – porque ninguém entrega o poder docilmente –
apenas culminava a construção de uma nova ordem, já em grande parte hegemônica.
Assim, a par de mobilizações de massa, de participação parlamentar, é
absolutamente essencial construir e consolidar instituições em que a sociedade
se organize, se represente, se expresse. Em que exercite e desenvolva a
consciência de sí mesma, como indivíduos e como comunidade. Essas instituições
têm que ser melhores que as instituições capitalistas, que deverão substituir,
em todos os níveis: econômico, político e ideológico. Ou não sobreviverão.
Os
cineclubes são esse tipo de instituição. São uma atividade econômica, mas não
comercial; política, sob a forma do associativismo democrático, e ideológica
por expressarem os interesses do público, não do capital. Surgiram como uma
alternativa ao cinema comercial por necessidade e iniciativa do público. E
estabeleceram as bases para a superação do modelo capitalista: a eliminação da
divisão social do trabalho (produção-distribuição-exibição-consumo), da
alienação entre criação e recepção (autor e público) e o estabelecimento do
controle pelo público (associação no lugar da empresa). O cineclube é o embrião do cinema futuro, expressão de uma nova
sociedade – como dizíamos nos tempos do partido cineclubista.
Os grandes desafios do cineclubismo
brasileiro (e mundial) são a reconstituição dos seus vínculos com a comunidade
– abrindo-se e conseguindo construir uma ampla participação coletiva e
democrática em suas comunidades e alicerçando sua sustentabilidade nessa
relação – e a expansão de suas ligações com todas as outras formas de
organização independente da sociedade civil, de forma a constituir não apenas
uma rede, mas um verdadeiro novo tecido político-social, base de uma sociedade
nova e uma nova Humanidade. Consolidar-se nas cidades sem cinema – grande
maioria dos municípios brasileiros -, nos bairros das cidades maiores, nas
escolas de todos os níveis, nos sindicatos e movimentos organizados, nas
empresas, hospitais, quartéis, ocupações rurais e urbanas, em toda parte,
fazendo da experiência coletiva do cinema um exercício, diversão e aprendizado
corriqueiros da vida em comunidade – apropriando-se da riqueza e poder do
audiovisual para expressar a liberdade, ao invés de projetar submissão. A
sustentabilidade dos cineclubes deve vir da sociedade, e não do Estado (sem
abdicar das verbas públicas, quando isso couber), através das contribuições de associados,
de taxas de manutenção, da contribuição no “chapéu”, e da composição com outras
iniciativas independentes, com iniciativas comuns como feiras de arte, festas
comunitárias, ilustração de cursos e oficinas e tantas outras. O cineclube tem
que ser “melhor” que o cinema que vai substituir, não apenas no conteúdo da
programação, mas igualmente na relação com o conteúdo exibido, isto é,
garantindo um conforto razoável para uma sessão de duração razoavelmente longa.
Para isso deve negociar, conquistar, ocupar, os espaços comunitários – em
colaboração com teatros, sindicatos, associações de bairro e outras
organizações populares que possuem sedes ou espaços próprios – e públicos,
muitas vezes subutilizados – como
cinemas e teatros estatais, auditórios de escolas, de bibliotecas
públicas, de instituições profissionais apoiadas pelo Estado (como as de
advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, entre outros).
Assim, de certa forma, se
reconstituiria aquele nosso partido cineclubista, vocacionado para se
identificar e compor com outras inciativas populares, convergindo numa grande
vontade política de transformação, de libertação individual e coletiva, de
preservação de toda vida e salvação do planeta. Nada mais, nada menos.
Felipe Macedo
[iii] Organização Católica
Internacional de Cinema.
[iv] Este texto foi escrito entre
31 de agosto e de setembro de 2016.
[v] Motion
Pictures Association of America.
[vi] Estão sob ataque
principalmente a CLT, Consolidação das Leis Trabalhistas, dos tempos de Vargas,
e as atuais disposições da Previdência Social.
[vii] A Direção Nacional do PT já decidiu
contra a chamada de eleições; os jornais de 1º. de agosto falam das
articulações de Lula no Congresso com vistas a 2018 – e não “por um projeto de
País”, como costuma alegar aquele partido.