Corrupção
Como problema ético, a corrupção fica na fronteira da
psicologia e da cultura, do indivíduo e do coletivo. Acredito que o primeiro, o
sujeito tomado isoladamente, se molda de forma autônoma no caldo de cultura do
ambiente social. Todos têm escolha, mas o bandido pobre é impulsionado pela
necessidade; o assaltante rico, pela oportunidade. A corrupção é uma forma de
roubo, também pode ser compreendida como a apropriação privada - individual ou
organizada – de bens ou direitos coletivos. Resquício de formas primitivas de
sobrevivência, ela se incorpora de diversas formas e em diferentes níveis nas
culturas das nações e, até certo ponto, da Humanidade.
Numa simplificação esquemática – como se requer nestas
redes privadas mas ditas sociais – podemos citar o exemplo da incorporação à
moralidade institucional dos países mais desenvolvidos economicamente dos
salários e benefícios tidos como aceitáveis para executivos, na ordem dos
milhões, dezenas e até centenas de milhões (em qualquer moeda forte) anuais e sua
tributação diferenciada. Nativos desses mesmos países se chocam com os hábitos
de propinas de 1, 2, 10 dólares necessários a cada passo de uma demanda
burocrática – liberar um produto na alfândega, obter um certificado ou
autorização – ou de pequenos serviços, em certos países da África, por exemplo.
No Brasil reunimos o pior desses dois mundos.
Herdeiros do Estado patrimonial deixado pelos portugueses (ou até pelos
visigodos e romanos, como dizia Raymundo Faoro), com predominância de estamentos
produtores e controladores de uma gigantesca burocracia, vivemos num paraíso de
regras e dificuldades que apelam para soluções “inventivas” e jeitinhos extracurriculares.
A enormidade de cargos públicos[i], o
volume de regras extensas e gongóricas, a extrema hierarquização e morosidade
do controle juciário, aliados a um éthos
de privilégios e exceções elitistas, introduz aquela pequena corrupção como
fator de igualdade e até de sobrevivência entre a massa de excluídos do sistema
produtivo dominante, e a adapta para os escalões da burocracia estatal, nos
poderes executivo, legislativo e judiciário. Ao mesmo tempo, o restante da
classe dominante – na indústra, no agronegócio, nas finanças – dispõe e
usufrui, ainda que em escala proporcional à sua própria grandeza relativa, dos
dispositivos de desigualdade de padrão desenvolvido. Ou bônus sem ônus.
Toda corrupção é nociva mas, evidentemente, os milhões
de dólares pagos como salário e bônus ao executivo de uma grande corporação ou
como propina para o deputado, prefeito ou ministro (entre outros) têm um peso
social muito diferente dos 10 ou 20 reais dados ao flanelinha que se apropria
do espaço público ou do trocado entregue ao vendedor de balas, provavelmente
roubadas, no sinal fechado. Quantias enormes subtraídas direta ou indiretamente
do patrimônio público pesam realmente nos orçamentos sociais: tiram dinheiro
dos investimentos em transporte, defesa, educação, de tudo um pouco. Ou um
pouco mais que um pouco. No caso da saúde, por exemplo, o dinheiro ou a falta
dele representam vacinas, remédios, tratamentos. Pessoas morrem ou ficam
inabilitadas por toda a vida por causa dos fluxos invisíveis desses recursos.
Na China existe a pena de morte para os crimes contra a economia popular. No
Brasil, tal como o inconsequente maconheiro ou o ocasional consumidor de
cocaína não sentem nenhuma responsabilidade sobre o estabelecimento do poder do
crime organizado nas comunidades populares, na “criação de empregos” no tráfego
e no crime em geral para crianças e adolescentes mais pobres, os políticos,
empresários, autoridades judiciais e religiosas também parecem – ou aparentam –
não ver relação entre as nebulosas operações financeiras e políticas de que
participam e as incontáveis mazelas que afligem nosso País. Não, essa corrupção
“de rico” é realmente um crime muito grave.
Qualquer cidadão minimamento informado – e não são
tantos assim - sabe que a quase totalidade dos partidos nacionais com
representação parlamentar é corrupta, nos termos acima descritos. Mais que
isso, a corrupção é a razão principal da existência de muitos partidos – em
número, a maioria das siglas – que existem apenas para receber recursos
públicos e negociar votos e espaços midiáticos, também públicos. Os partidos
mais à esquerda foram, durante muito tempo, exceção a essa “regra”, mas muitos
perderam essa característica já lá se vão muitos anos. Para parlamentares
evangélicos, qualquer ação se justifica por estar ao serviço do Senhor (como
ateu, essa ideia é para mim um mistério: será um deus qualquer ou aquele senhor
que manda na igreja?), para alguns mais à esquerda, a moralidade estaria nos
altos desígnios sociais que sua organização – e eventulamente sua generosa
pessoa – são as únicas a poder assegurar. Para a maioria, em todos os casos, é
mesmo uma picaretagem, tipo uma sujeirinha que deve ir para debaixo do tapete. PT,
PMDB, PSDB, PSD, PP, PR, PSB, PTB, DEM, PRB – para citar, em ordem decrescente,
apenas as dez maiores bancadas da Câmara federal – estão todos igualmente
imersos nessa cultura de corrupção[ii].
Na China, muitos desses deputados seriam fuzilados – e
isso estaria de acordo com a consciência cívica que por lá se promove, diante,
inclusive, de um grau elevado de corrupção, em parte beneficiado pela opacidade
do governo e por outros atavismos culturais. Os brasileiros somos mais
tranquilos quanto a isso, aqui só executamos corruptos (e mesmo alguns
desafetos) em sonho ou na internet. A corrupção é percebida socialmente – e
promovida pelos poderosos, muitos deles corruptos - como falta menor. Assim, o
tratamento da corrupção em termos políticos e mediáticos tem sempre sido
relativizado, abrandado, abafado – agora também por grande parte da esquerda.
Mas em certas ocasiões, acontece o contrário. Os governos e instituições com
presença ou influência progressista são atacados justamente pelos focos centrais
da corrupção por... corrupção. A pecha da corrupção é das mais produtivas
calúnias: mesmo – ou especialmente no caso de – não haver provas, ela se insinua
e cola no difamado, de forma parecida com as insinuações sobre sexualidade
perversa. O ato de denunciar já funciona como demonstração: “onde há fumaça, há
fogo”. Virou um fator meio clássico na desestabilização política e social no
Brasil. Essa era a marca da UDN, partido conservador que existiu entre 1945 e o
Golpe Militar de 1964, de que foi a principal base político-institucional. O
PMDB – e toda uma coorte de políticos indiciados e condenados de outros
partidos – reinterpreta a farsa da UDN meio século depois. E, para distrair o
público de seus próprios crimes, apresenta os do PT (com quem aqueles mesmos
políticos articularam e prevaricaram à farta) como únicos e especialmente
danosos.
A manobra é diabólica, audaciosa, impudente mesmo. E
brilhante, diante da posição em que coloca os setores progressistas da
população brasileira. A traição dos antigos aliados do PT na corrupção se
traveste de movimento ético-político para justificar o aniquilamento do
ex-aliado e legitimar o ataque inédito aos direitos sociais. Se não formos
capazes de uma mobilização que esclareça essa situação, é bem provável que o
plano golpista dê certo. Mas boa parte dos setores mais organizados da oposição
ao golpe estão ou foram ligados ao governo derrubado e não conseguem superar
essa ligação. A relativa injustiça (por ele ser tomado como bode expiatório)
que se comete contra o grande líder desse segmento, Lula, obriga seus antigos
apoiadores a defendê-lo como centro da questão política – e, dessa forma, a estreitarem
a base de resistência ao golpe, confundindo os interesses e direitos da maioria
da popúlação com o projeto político partidário que a maioria da população não
apóia. Confundem PT e direitos sociais, Lula e democracia. Mobilizam a rua não
contra o golpe e as classes dominantes corrompidas até a medula, mas são
obrigados, até certo ponto, a fazê-lo sob as bandeiras do PT e de setores a ele
ligados, empunhando imagens de Lula e Dilma, o que confunde e impede uma
mobilização mais ampla e sobretudo mais eficaz. É a chamada sinuca de bico.
Lula deve ser defendido na Justiça e nos foros
político-institucionais com todo o vigor de que dispuserem seus partidários,
mas a luta política mais geral tem que se concentrar na realização de eleições
o mais breve possível, como expressão da recusa enfática pelos brasileiros de
um governo ilegítimo e de um programa político que assalta o País não mais sob
a forma de mutretas corruptas, mas como projeto institucional de ampliação e
aprofundamento da exploração da maioria da população.
[i] O Brasil tem 23.579 cargos
públicos em comissão, comparados a 8 mil nos EUA, 4 mil na França, 600 no
Chile, 500 na Alemanha, 300 na Inglaterra (Revista Veja, 19, nov., 2011,
disponíevl em(http://veja.abril.com.br/brasil/brasil-tem-23-579-cargos-de-confianca-o-triplo-dos-eua/ . Nossa Constituição tem 28 anos,
250 artigos, com 93 emendas constitucionais; a estadunidense tem 227 anos, 7
artigos e 27 emendas. A lei que regulamenta os contratos do governo federal tem
282 páginas na versão impressa pelo Tribunal de Contas do DF:
(http://www.tc.df.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=475ad4d0-5a80-4701-9bba-5cd0b1ed4075&groupId=657810 . O tempo médio de tramitação de um
processo de execução fiscal é de 8 anos, 2 meses e 9 dias apenas na Justiça
Federal de Primeiro Grau: (http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110331_comunicadoipea83.pdf)