Quando
vejo organizações nacionais ou encontros representativos de cineclubes se
manifestarem “em defesa do cinema de autor” ou de um “cinema de qualidade”
percebo que muitos cineclubistas ainda não realizaram em toda a sua extensão o
que representa o público, e sua relação com o cineclube e o cineclubismo. Essas
expressões entre aspas estão presas a concepções estéticas elitistas originadas
no impressionismo francês dos anos vinte e superadas pela última vez ao final
do ciclo da Nouvelle Vague. Ou se prendem a uma postura essencialista e
paternalista ancorada na noção do “bom cinema” do espectador cristão, falecida
pouco depois. A autoria, como categoria ontológica, nada mais é que uma
justificação filosófica para a propriedade privada econômica, ou moral, como
fator de prestígio social.
Assim,
muito sucinta e esquematicamente, resolvi escrever este pequeno artigo, um
estímulo e uma provocação à reflexão sobre o cineclubismo nestes tempos de
revolução técnica, antesala do caos ou da Revolução.
O Cinema do Público
Nos anos 70, à medida que crescia o movimento
cineclubista comprometido com a resistência à ditadura militar, e que deitava
raízes nos movimentos sociais e meios populares, surgiu a percepção de que os
cineclubes eram uma forma de organização do público, resultantes da expressão
de suas necessidades, de seus interesses e do fato de que o cinema comercial
não atendia esses objetivos, pelo menos para além da sua própria dependência da
produção de lucro.
Compreender o cineclube como uma organização do
público representou uma ruptura com a concepção dominante de cineclube como uma
instituição voltada ao culto do cinema. Isso aconteceu um pouco em toda parte,
sobretudo no terceiro mundo, e muito especialmente na América Latina. Mas
talvez o cineclubismo brasileiro, que atingiu naquele período um nível muito
avançado de organização, tenha sido o que mais claramente demonstrava essa
concepção e prática, e que começou a sistematizá-la como teoria. Na Itália,
talvez pela influência do pensamento gramsciano – e, de fato, coincidentemente na
Sardenha – também se teorizava, na mesma época, sobre a primazia do público
sobre o cinema na organização do cineclubismo. Precocemente desaparecidos,
Fabio Masala e Filippo de Sanctis não podem ser esquecidos por todos que se
interessem pela história dos cineclubes.
Como dissemos, isso aconteceu um pouco em toda parte,
demonstrando que a verdadeira característica do cineclubismo aflora sempre que
consegue superar a barreira ideológica do elitismo e das instituições culturais
conservadoras que o relegam a um papel de culto alienado ao cinema. De fato, o
cineclubismo nasceu claramente como uma instituição de resistência ao cinema de
dominação e exploração que se consolidaria a partir da segunda década do século
passado, sendo depois igualmente enquadrado e “institucionalizado” em grande
parte.
O público é o autor
Ironicamente, foi em grande medida nos cineclubes da
década de vinte que se desenvolveu a noção do autor individual como criador,
responsável e proprietário das obras cinematográficas. Ideias que atingiram seu
auge ainda num ambiente cineclubista, o da Nouvelle Vague dos anos cinquenta.
No entanto, as obras de arte são o produto de um
processo cultural permanente e ininterrupto, fruto de um diálogo social em que
todas as partes contribuem. Mesmo quando é possível se identificar um autor
individual e original de uma obra – o que não é nem tão óbvio nem tão comum
quanto se pensa -, ele está expressando um momento desse diálogo. O
sentido final da obra é dado – também numa relação permanente, e em permanente
mutação – na recepção, pelo diálogo social, nos termos em que o descreveu
Bakhtin[i]. O
consumo é produtivo. As abstrações dualistas emissor-receptor, autor-espectador,
não existem na realidade: esta é uma espiral multidirecional que se modifica o
tempo todo na história. A categoria permanente nesse diálogo é o público, do
qual fazem parte os autores formais ou percebidos, seja qual for a medida e
intensidade de seu envolvimento. O público é o autor social do sentido da arte
numa luta ideológica ininterrupta pela apropriação desse sentido.
Cinema do capital e cinema do
público
Como o nome já diz,
no sistema capitalista o capital organiza as forças produtivas assegurando-se
da apropriação de seus resultados. O sistema funciona adequando todo produto e
toda forma de produção à realização do lucro. E descartando, eliminando ou
relegando a uma posição marginal o que não se adéqua. A história do cinema
constitui um bom exemplo. Inúmeras invenções e processos foram sendo
selecionados com base em sua adequação ao mercado, à capacidade e possibilidade
de organizar esse trabalho para dar lucro. Até a metade da segunda década do
século vinte esse foi um processo de várias vias e não poucos conflitos, que –
muiito simplificadamente – acabaram com a prevalência, a hegemonia do cinema
dito clássico, hollywoodiano. Outras alternativas foram abandonadas, perseguidas
ou marginalizadas. Mas, entre as sobreviventes, continuou o processo permanente
de tentativa de apropriação pelo capital.
De uma forma esquemática, existe um cinema do capital, voltado
primordialmente para a produção de lucro, e outras práticas e instituições
cinematográficas que, mais ou menos alijadas do sistema capitalista, se
organizam sobretudo em torno do seu valor de uso[ii]
para seu público, em detrimento de seu valor de mercado. Podemos falar assim,
genericamente, de um cinema do capital
e de um cinema do público. Cada um
deles constitui abstratamente uma matriz
geradora de instituições que diversificam e concretizam as formas de
apropriação social do cinema (ou do audiovisual em geral).
Instituições do cinema dominante
e instituições do público
O período chamado de institucionalização do cinema é
geralmente situado entre 1905, com o surgimento dos nickelodeons ou salas fixas, e algum momento, menos preciso, na
segunda metade de década de 1910, quando se consolidam as principais ou básicas
formas de linguagem, de produção, circulação e recepção do cinema. Esse período
– que chamamos em outros textos de a
batalha do nickelodeon – foi justamente um conflito, ou uma série de
conflitos interligados, entre as tentativas de imposição de modelos pelo
capital e a resistência dos públicos, culminando no estabelecimento de um
resultado composto mas essencialmente adequado à produção máxima do lucro. Esse
cinema hegemônico é constituído de uma série de instituições – de linguagem,
estilo, formas de consumo, etc – que continuam a serem criadas até hoje.
Entre elas podemos citar a forma literária linear da
narrativa, a montagem transparente, a maioria dos gêneros cinematográficos, o
sistema de astros e estrelas, as diferentes formas arquitetônicas (dos palácios
aos multiplexes) de organização da recepção, e muitas outras.
Já do lado do público, resultado da resistência mais ou
menos consciente ou organizada, diversas práticas e instituições marginalizadas
experimentam diferentes trajetórias. A mais paradigmática – mais antiga e
generalizada – de que se originam diversas outras, são os cineclubes. Mas
também as cinematecas, os festivais de cinema, uma parte da crítica, os estudos
universitários de cinema. Várias formas de produção e de estéticas de
representação também evoluem fora ou em diferentes níveis de marginalidade em
relação ao cinema comercial: a estas podemos chamar de cinemas do público. Evidentemente, são também apropriadas e
agregadas aos mercados em alguma medida, conforme o caso. Ou são adotadas e protegidas
pelo Estado, na atribuição clássica deste, de evitar o conflito. Mas, sem
produzir lucro, sua dinâmica experimenta uma margem variável de autonomia em
relação ao capital.
Os cinemas do público
Não apenas excluídos dos mercados, mas igualmente
desconsiderados – pelo menos até muito recentemente – pela maioria das instituições
sociais, como a imprensa e a universidade, a teoria e a história do cinema,
essas formas são denominadas sempre em alguma medida pela sua excepcionalidade
em relação ao modelo hegemônico (e, não raro, de forma pejorativa): cinema
amador, cinema de família, cinema experimental, cinema científico, cinema de
vanguarda, cinema operário, cinema negro, cinema feminista, cinema LGBT. Mas
também, em grande medida, o cinema documentário, e até mesmos os cinemas
nacionais, sobretudo nos países “não produtores” ou onde a produção não
encontra mercado ou não consegue se industrializar em alguma medida.
Essas classificações, obviamente, são mais ideológicas
que qualquer coisa. Os estudos de cinema estão hoje tentando incorporar essas
práticas em uma teoria mais geral do cinema, já que a existente foi claramente
abalada pela diversificação do universo audiovisual. No plano sócio-econômico
vivemos outra batalha, que podíamos chamar de batalha das redes sociais, ou da
apropriação dos espaços virtuais – políticos, econômicos, ideológicos,
estéticos.
Estes “cinemas” têm todos uma relação muito próxima
com os movimentos cineclubistas seus contemporâneos ou conterrâneos – e nem
sempre de harmonia. A revolução audiovisual em andamento, além de reposicionar
essas práticas e instituições, está criando novas, e todas elas são
indispensáveis para a criação de um projeto de cineclubismo que pretenda se
ajustar aos novos tempos e continuar a exercer um papel de organização
representativa do público no campo do audiovisual.
Felipe Macedo – dezembro 2016
[i] Mikhail Bakhtin (Volochinov),
Marxismo e filosofia da linguagem. Capítulos
1, 2 e 3. São Paulo: HUCITEC Editora
[ii] Karl Marx O Capital Crítica da
Economia Política Livro Primeiro: O processo de produção do capital. Primeira
Seção: Mercadoria e dinheiro Primeiro
capítulo. A mercadoria. Disponível
em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap01/01.htm