Diretas já : ditadura e democracia
formal
Cá estamos nós outra vez. Entre o primeiro semestre de
1983 e 25 de abril de 1984, os brasileiros saíram às ruas numa campanha que nos
mobilizou como nunca em nossa história - desconfio bastante da avaliação da Folha de São Paulo, que calculou “cientificamente”
a passeata contra Dilma Roussef, em 2016, como a maior da história. Eram as
“Diretas já!”. Naquele 25 de abril foi votada a emenda constitucional que
estabelecia as eleiçãoes diretas, não aprovada por não atingir os dois terços
do Congressso dos apaniguados do regime autoritário. Não foi uma derrota, certamente.
A campanha culminava, de certa forma, um longo processo de resistência à
ditadura e de construção de uma sociedade civil com instituições ancoradas nos
movimentos populares, nos bairros, no campo e nos sindicatos, e também na
enorme massa do que então ainda chamavam de minorias: mulheres, negros,
movimentos identitários de gênero, etc. A “derrota” na votação antecedeu de
alguns meses a eleição (indireta) de Tancredo Neves e, sucessivamente, o
processo de elaboração da Constituição de 1988 e as eleições finalmente diretas
de 1989. Evidentemente, a Assembleia Constituinte e seu produto imediato foram
e são bem mais importantes que as eleições na formação do processo democrático
no nosso País.
De uma certa maneira, o estabelecimento de uma ordem
democrática pela Constituição chamada de “cidadã”, contraditoriamente, marcou o
início de lentos mas progressivos enfraquecimento e desestruturação da mesma
sociedade civil que atingira o que parecia para muitos ser seu maior objetivo.
Principalmente os governos FHC e do PT, com estilos e linguagens diferentes, promoveram
a erosão das bases representativas e coletivas das instituições populares,
estimulando o empreendedorismo e as “boas formas de gestão” e/ou a cooptação e
atrelamento ao Estado, no que alguns autores denominam “onguização” das
organizações populares.
Boa parte do que se costuma identificar como uma
polarização na sociedade brasileira de
hoje vem desse empobrecimento da sociedade civil e de sua partidarização em um
bloco que não consegue expressar efetivamente os interesses mais gerais das
massas de trabalhadores e excluídos. Por isso as manifestações marcadas exclusiva
ou majoritariamente por bandeiras partidárias, de seus conhecidos e estreitos
aliados, e de organizações que constituem extensões das mesmas, têm sido quase
sempre – e sobretudo nas ocasiões mais importantes – minoritárias em comparação
com as mobilizações dos setores médios e de sentido reacionário.
O horizonte opaco e sem alternativas que se apresenta
depois da destruição da “coalizão” populista e da derrubada do governo petista
tem agora uma – e apenas uma – saída, e esta é, justamente, novamente, a das
eleições diretas. Misteriosas maquinações envolvem todas as instituições
republicanas: executivo, legislativo e judiciário – com a participação nebulosa
dos oligopólios da imprensa e do “entretenimento” (também diferentes
“linguagens” ou dispositivos a serviço dos mesmos fins), e das organizações
corporativas e patronais. A manipulação dos acontecimentos visa claramente a manutenção,
extensão e aprofundamento das “reformas”, isto é, a eliminação dos direitos do
trabalho e das políticas públicas sociais. E para que tal processo continue é
necessário que ele se dê no espaço controlado por essas forças, o Congresso.
Eleições indiretas com a “manutenção das reformas”, isto é, o retrocesso
brutal, e a preparação de eleições em 2018 (ou, quem sabe, um pouco mais tarde...)
de forma a reinstituir um equilíbrio formalmente democrático sob a hegemonia dessas
forças que procuram não se identificar mas que são
claramente as do capital financeiro e internacional.
Uma campanha pelas eleições diretas já é a única alternativa em que esse poder de manipulação
se vê enfraquecido, o único processo que ele é incapaz de controlar
inteiramente. As mobilizações deste domingo, 28 de maio (especialmente no Rio
de Janeiro, que foram convocadas de maneira ampla – escrevo isto antes de saber
seu resultado e repersussão), mostrarão se estamos sendo capazes de reunir o
sentimento da maioria sem estreitas bandeiras partidárias, se somos capazes de
construir uma unidade avassaladora que sacuda essa classe política corrompida
até em sua carne. Se a manifestação no Rio for ampla e grande (que aqui não são
sinônimos), como nas primeiras diretas já,
de 1984, provocarão um efeito de adesão crescente e uma “competição” saudável
entre as cidades para ver quem faz a maior concentração ou passeata. A repetição
da Greve Geral, numa avaliação muito cuidadosa (Greve Geral não é brincadeira e
fazê-la sem uma boa preparação só leva ao desgaste dessa forma de manifestação
e luta), não pode ser excluída da evolução dos acontecimentos.
Como disse Churchil: “Agora não é o fim. Não é nem o
começo do fim. Mas é, talvez, o fim do começo.” Esta campanha é o marco. A
votação, no Congresso, das emendas que preveem eleiçoes diretas pode muito
possivelmente redundar na repetição do fatídico 25 de abril de 1984. Na edição
de hoje, o jornal Folha de São Paulo ameaça:
as maiores bancadas partidárias pretendem votar a favor de eleições indiretas;
elas têm 397 deputados e 72 senadores, respectivamente 77% da Câmara e 89% do
Senado. E, como sabemos e já experimentamos historicamente, a classe política
não se intimida nem se peja de votar contra a vontade popular.
Ao contrário de enfraquecer nossa disposição de ir
decisiva e unitariamente às ruas para nos manifestarmos, esse argumento mostra
que, ainda que não resulte em eleições diretas neste difícil quadro
institucional entre um governo falido e um prazo limitado para as eleições
regulares, as diretas já podem, devem
ser um estímulo fundamental para a reorganização do povo em torno de
instituições que o fortaleçam e representem. É uma flexão de músculos, um
exercício de organização que, com qualquer resultado, deve propiciar outras
formas, sobretudo as permanentes, as instituições poppulares. Além disso,
certamente contribuirá para a saída desse medíocre usurpador chamado Michel
Temer.
A lição da história, de fato, mostrou que o objetivo
final não pode ser a ordem democrática formal, com eleições determinadas pelo
poder econômico, mas o estabelecimento de uma democracia muito mais radical e
uma justiça social real e concreta, muito para além da “redistribuição”
limitada da riqueza produzida pela maioria mas usurpada por uma minoria ávida, corrupta
e implacável.
Diretas já! Mas também sindicatos renovados e
conselhos de trabalhadores nas fábricas e empresas; ações cooperativas,
organizações de auto-defesa, educacionais e culturais no campo; associações de
moradores nos bairros; organizações politicas e culturais de mulheres, de
grupos étnicos, de gênero. E, em toda parte, clubes e associações esportivas e
culturais: cineclubes, grupos de teatro, de dança, clubes de escrita e criação,
e muito mais. Só assim podemos construir, desde já, o corpo de instituições
populares que nos permitirão atingir e manter uma sociedade efetivamente democrática
e justa.
Felipe Macedo
28 de maio de 2017