quarta-feira, 27 de setembro de 2017
Textões e cineclubismo
(ou literatura e cultura cineclubista)
Na sequência da publicação de mais um artigo em meu
blogue – e divulgação na lista nacional dos cineclubes – um velho amigo cineclubista
me escreveu, debatendo alguns aspectos do texto. Seguiram-se algumas mensagens,
como sempre, com argumentos e ideias, daqui e de lá. Comentei que achava que
devíamos fazer esse debate de forma aberta, e ele me respondeu que achava que
tinha pouco interesse, pois as pessoas estavam vendo o cineclubismo mais como
um aspecto meio superado, um departamento muito específico de questões maiores,
como as de gênero, religião ou mesmo do cinema brasileiro. E acrescentou
também: “recebi uma mensagem privada
dizendo que mensagens longas e "intelectualizadas" não serviam para
nada a não ser deleite intelectual e estéril do autor das mesmas...” Daí,
portanto, o textão.
Embora, evidentemente, não exista uma exegese mais
precisa do textão – já que a ideia mesma repele a reflexão e apela para o senso comum – acho que podemos
reconhecer que qualquer coisa que ultrapasse dois parágrafos, chegue perto do
fim da página é, definitivamente, um textão. Então, vamos a ele, pelo menos no
que se refere ao cineclubismo.
A ideologia do textículo
Citei essa associação: falta de
interesse do cineclubismo e inutilidade de reflexões mais longas porque, ao
contrário do meu amigo, acho que não são uma coisa de agora, dos últimos tempos
ou dos novos tempos, mas uma velhíssima tendência obscurantista,
anti-intelectual (intelectual no sentido de uso do
intelecto, da inteligência, da reflexão). O fenômeno é bastante geral e
recorrente, e manifesta-se de mil maneiras em formulações reacionárias
ou populistas, que promovem a compreensão do mundo e das coisas em ideias
simples e sem nuances. Curto e grosso. Geralmente estão associados ao racismo,
ao preconceito, ao nacionalismo e à xenofobia: nós contra eles. Não são estranhas a uma polarização maniqueísta,
burra mesmo, que muitos reconhecem atualmente nas chamadas redes sociais na
internet.
Tais ideas procuram separar as
abstrações do “intelectual” e do “homem comum”, restringindo este último a um
espaço edênico de ignorância e felicidade determinadas pela Natureza ou pelo
Criador. Ou, sob outro entendimento, mantendo-o nos limites da ignorância e da
exploração por terceiros. Além de velha, essa ideia, que é também prática de
solapa social, é bem generalizada. Hoje em dia, certamente se aproveita de
alguns instrumentos da indústria de comunicação, como o twitter - e seu limite
de mensagens de 140 caracteres (que estão pensando em mudar) - ou o instagram,
que privilegia as imagens. Mas não sejamos reducionistas também aqui: esses
mesmos meios servem para ampliar o universo de pessoas que se manifestam pela
escrita e que, possivelmente, poderão acessar outros mecanismos e ambientes,
explorando e se manifestando de formas mais elaboradas.
Ideias expressas de forma
simples e curta, como quaisquer outras, têm sua função social disputada na
arena da luta de classes: podem ser úteis para a emancipação ou para a
domesticação; reduzir sempre as ideias, no entanto, a fórmulas simplificadas,
aponta para a rasteirização, a ingenuidade, a subordinação – que propiciam o
abuso. O slogan, por exemplo, termo sem
correspondente em português, tem origem em formas de identificação clânica, militar
(a palavra vem do gaélico e irlandês sluagh-ghairm -sluagh "grupo
armado” e gairm "grito"). É uma forma
mnemônica simples que serve para angariar, arregimentar ou para controlar
massas, plateias, para projetos também curtos e grossos, como toda a
publicidade moderna, mas igualmente o facismo que, aliás, tem parentesco
próximo com ela. Enfim, como todos sabem, a capacidade de interpretar um texto
complexo é o parâmetro usado para medir o analfabetismo
funcional – ou incapacidade de se situar e desfrutar plenamente do universo
comunicacional social. O analfabetismo funcional atinge um percentual
significativo dos povos: no Brasil, quase um terço da população; nos EUA, um
quinto, e nos países nórdicos, um décimo. O tema é vasto e merece uma reflexão mais
ampla, mas meu textão aqui visa localizar essa questão no cineclubismo
brasileiro.
A mensagem privada, que meu
amigo não identificou, nem eu perguntei, lembrou-me algumas referências esparsas
no facebook – que não raro funciona como ventilador de matérias fecais – mas em
particular uma campanha contra textões estranhamente associada à divulgação de
um desses circuitos de exibição que alguns produtores andam organizando através de cineclubes. Eu
disse “estranhamente associada” porque realmente uma coisa – textos extensos –
não tem, em princípio, nada a ver com a outra: a organização de um circuito de
exibição. Acredito que os promotores dessa associação já estivessem preocupados
anteriormente com os tais textões, de forma que a mistura de uma coisa e outra
meio que veio para demonstrar que uma iniciativa como aquela, do circuito,
podia ser realizada sem um grande texto para ampará-la. Grande demonstração
lógica: mostraram que era possível lançar um filme sem grandes temas, apenas
com um sistema de inscrição de cineclubes numa lista ou sistema. Os circuitos
comerciais fazem a mesma coisa toda semana, também sem grandes textos – no
máximo umas imagens na tevê. E fazem isso há mais de um século. Isso me lembra
a formação do circuito Cine+Cultura, há poucos anos, quando se combateu – e se
acabou por eliminar – as atividades de formação, como o Manual do Cineclube e
as oficinas, em favor dos aspectos funcionais do circuito de exibição formado
pelos cines+.
Bom, muito cá entre nós (que
ninguém nos leia!), acho que a mensagem privada enviada ao meu amigo e a
campanha contra os textões têm a mesma origem, e acho que a identifico bem.
Afinal, neste nosso meio cineclubista, não são muitos os textões, não é mesmo?
E talvez sua autoria seja fácil de identificar. Em outras palavras, identificar
os textões com uma pessoa. Ora, inversamente, os que insistem em combater esse
autor passam também a ser provavelmente identificados sem dificuldade.
Contribui ainda, para isso, o fato de que muitos outros cineclubistas já me
falaram sobre recados privados que receberam para evitar o referido autor... de
textões. Por isso, nem precisei perguntar. Bem, a esta altura, quantos leitores
já entenderam tudo? Ah, e entre esses leitores com certeza estão os que fazem
campanha contra textões: eles são dos primeiros a lê-los.
Bom, eu me identificaria como um
autor de textões, se adotasse essa visão anti-intelectual. Mas não. Não meço
minhas reflexões, como não pretendo medir meus leitores. Escrevo sobre
cineclubismo desde meus 20 anos, nos anos 70, quando a maioria dos meus
leitores ainda não tinha nascido (mas nem todos). Aprendi desde logo a escrever
em diferentes registros, pois também tirei boa parte meu sustento, esses anos
todos, da escrita: jornalística, de propaganda, mais recentemente, acadêmica;
mas sempre, paralelamemte, militante e cineclubista. Os textos a que me refiro
aqui, então, são estes últimos. Militantes, porque são os escritos voltados não
para o público dos cineclubes (o que também faço muito), mas para os
cineclubistas militantes, já bem comprometidos com o cineclubismo, ou para
dirigentes de cineclubes. São textos em que procuro passar minha própria experiência,
recuperar a memória da experiência histórica cineclubista, avançar proposições
ou analisar e criticar posturas de que discordo. Textos que têm uma forma
despretensiosa de pretensão: a de suscitar questionamentos, reflexões, que
possam animar, transformar, enriquecer a prática dos cineclubes. Nada disso se
faz de forma superficial ou breve. Só de ma fé - com a intenção de neutralizar
as idéias sem efetivamente considerá-las - ou com o preconceito de que os
cineclubistas não são, de alguma forma, capazes, é que se imagina que isso não
interessa aos cineclubistas.
Cineclubismo e literatura
Na verdade, o cineclubismo é
muito próximo da literatura, da cultura escrita. Nosso companheiro estudioso do
cinema e do cineclubismo, Gabriel Álvarez Rodríguez, sempre destaca a relação
entre o cineclubismo, a escrita e as publicações, explorando, por exemplo, a
influencia da Gaceta Literária espanhola,
nos anos 20, sobre os primeiros cineclubes hispânicos[i].
Como se preciso fosse lembrar que ainda muitos repetem que o cineclubismo
surgiu com a revista Ciné-Club, de
Louis Delluc, e tantas que se seguiram – como destaca Christophe Gautier em seu
formidável La Passion du Cinéma[ii].
No Brasil, Diogo Gomes dos Santos identifica as origens mais remotas do
cineclubismo com a Turma do Paredão[iii],
que logo se espalharia pelas colunas de cinema de diferentes revistas, para
voltar a se reunir em Cinearte. Mas e
O Fã, primeira revista realmente de
crítica cinematográfica, na realidade o boletim do Chaplin Club? E, se não
bastasse a proximidade ou origem dos fundadores do Clube de Cinema de São Paulo
com a revista Clima, poderíamos
lembrar como o cineclubismo dos anos seguintes esteve diretamente ligado à
propagação da crítica e de uma literatura de cinema em todas as regiões do
País. Se considerarmos a cultura
cinematográfica brasileira no sentido de um acervo de expressão literária –
que certamente é uma de suas dimensões, ainda que eu pense que não a única e
nem mesmo a principal – os cineclubes fazem parte substancial de sua origem e
disseminação. A quase totalidade dos movimentos renovadores na história do
cinema surgiu dos ambientes cineclubistas e da reflexão escrita, publicada em
livros e revistas – especialmente em publicações cineclubistas. O cineclubismo
não está apenas associado à criação de uma crítica moderna – basta lembrar André
Bazin (em seus ensaios e nos Cahiers du
cinéma) ou Paulo Emílio Salles Gomes n’O
Estado de São Paulo – mas igualmente encontra-se na origem dos cursos
universitários de cinema em todos os países. E isso é apenas um sobrevoo
rápido; falar mais em profundidade sobre literatura cineclubista é assunto para
outro texto. Que virá.
A militância nunca esteve longe
dessa literatura, seja na defesa sistemática de novas abordagens do cinema,
geralmente ligadas à valorização do público (mesmo se, muitas vezes, de forma
paternalista), seja no embate direto com outras vertentes do cinema ou do
próprio cineclubismo. No caso do Brasil, podemos lembrar a defesa dos valores do
cinema mudo pelo Chaplin Club, nas páginas de O Fã – de resto como se dava um pouco em toda parte com o advento
do filme sonoro. Mas também a discussão entre cineclubes católicos – com
abundante literatura - e laicos, que marcou os anos 50 e a criação das
entidades regionais e nacional dos cineclubes. Nos anos 70, em que eu já
participava, os cineclubes mantinham uma extensa literatura, dos boletins de
cada entidade às publicações do CNC, onde se debatiam desde propostas de gestão
da Dinafilme até concepções do mundo, passando, naturalmente, pelas análises de
filmes. Vários cineclubistas, de ambos os lados da celeuma, eram bem conhecidos
na época. Digladiavam-se em torno de idéias como a do nacional-popular de
Gramsci contra o internacionalismo proletário encarnado em Trotski. Essas
ideias serviam para embasar a defesa do cinema brasileiro, por um lado (e a
exibição de filmes de Mazzaropi, por exemplo), e um cinema revolucionário puro,
geralmente identificado com os clássicos do cinema soviético. Influíam no
cotidiano do movimento, por exemplo na montagem e seleção de acervos regionais
de filmes para distribuição da Dinafilme. Nessa época o Cineclube da Fatec
publicou meu primeiro texto realmente grande: um modesto livreto de umas 80
páginas com a primeira história do cineclubismo no Brasil[iv].
Não creio que exista uma relação tão direta, mas é certamente uma associação
que me ocorre, lembrar que a decadência e morte do cineclubismo organizado,
naquela época, foram acompanhadas também de uma onda anti-intelectual,
contrária a debates, e do fim das publicações em geral a partir da metade da
década de 80.
Hoje
Meus amigos estranham que eu
escreva tanto sobre cineclubismo. Ou mais especificamente para cineclubistas,
ainda mais agora que estou inserido numa respeitável instituição acadêmica que
me cobra textos alinhados aos seus cânones. Pouca gente – nem o amigo
missivista que citei – acredita que esses textos sejam lidos. Como
inegavelmente o movimento cineclubista no Brasil – e no resto do mundo – anda
meio irrelevante socialmente, isto é, não tem participação nem manifesta
posição em qualquer questão importante da sociedade ou da cultura, muitos
associam essa “invisibilidade” com a inexistência do movimento social e
cultural que é o cineclubismo.
É da lógica das instituições
hegemônicas – de que se contaminam as opiniões privadas, que hoje se irradiam
acriticamente, de forma simples e tosca, pelas chamadas redes sociais,
colocando a noção de senso comum de
Gramsci num outro patamar – selecionar ideologicamente o que deve ser divulgado
e promovido, tal como o que precisa ser censurado e obliterado. Raramente os
cineclubes superaram essa barreira e, quando o fizeram, expressavam geralmente
posturas elitistas e conservadoras. No entanto, desde que existe o cinema, os
cineclubes nunca deixaram de, senão produzir, ao menos ajudar a colocar em
circulação, além de filmes, ideias e propostas para o avanço do público e da
sociedade. Embora, ao contrário das definições correntes de cultura e tradição
popular, geralmente identificadas com as formas orais, o cineclubismo,
evidentemente, se reconheça no cinema e no audiovisual (e, como mostrei acima,
também bastante na literatura), tal como a sabedoria popular, este elabora, transmite
e reproduz uma cultura própria, fora dos ambientes e práticas dominantes.
Em outras palavras: os
cineclubistas estão lendo e escrevendo – e penso que, quantitativamente,
atualmente mais que em qualquer outro momento histórico, pelo menos no Brasil.
Em minha experiência pessoal, frequentemente sou procurado por estudantes e
pesquisadores de todas as regiões do País envolvidos com trabalhos e pesquisas
sobre o nosso campo e trabalho. Meu blogue é acessado de dez a vinte vezes por
dia em média e, em 8 anos, foi visto por quase 23 mil leitores. Não é muito, se comparado à
Lady Gaga ou a certos gatinhos engraçadinhos mas, considerada a complexidade da
leitura, é um número respeitável. Poucos filmes brasileiros tiveram esse
público nos últimos anos. A média de acessos salta para números bem mais
elevados quando “lanço” algum texto novo e o anuncio no facebook ou na lista de
discussão dos cineclubes. Também em outros espaços de intercâmbio de textos,
como o Academia.edu ou motores de
busca, como Google Scholar, mais acadêmicos,
tenho tido acessos sistemáticos e mais citações do que eu imaginava. A lista
tradicional de comunicação entre cineclubistas, cncdialogo@yahoogrupos.com.br, de 2004 até hoje teve um tráfego de
mais de 37 mil mensagens. Mesmo que uma pequena percentagem delas se constitua
de debates, também somam muitos milhares. A lista mantém estável um número de
assinantes sempre em torno de 1.200 pessoas: não são leitores de palavras cruzadas,
mas gente interessada, quase sempre envolvida de alguma forma com uma prática
cultural organizada em torno do audiovisual. E isso sem contar outras listas,
como as criadas durante as oficinas do programa Cine+Cultura, com muitas
centenas de participantes, cujo acesso e avaliação foram apropriados
indevidamente e privatizados por um certo grupo.
Mas o melhor indicador para essa
produção intelectual é o número de trabalhos acadêmicos: algumas teses de
doutorado, várias dissertações de mestrado, incontáveis artigos em revistas
universitárias e capítulos de livros coletivos, bem como apresentações em
colóquios, a que se somam os trabalhos de conclusão de curso e, last but not least, os textões deste
escriba, que fogem um pouco desses formatos mais institucionais, ainda que os
pratique de quando em vez. Com extensão mais variada e profundidade idem - já
que muitos voltam-se apenas para a divulgação – há ainda um número
significativo de blogues e “páginas” de cineclubes e práticas congêneres.
Acredito que nunca se escreveu tanto sobre cineclubismo como se faz atualmente
– neste século – no Brasil. Penso também que esse fenômeno é possivelmente
exclusivo do nosso País, embora haja muitos trabalhos em outros idomas, de
outros países, mas em nenhum caso com o volume e a concentração que se vê nesse
período em nossa terra.
É curioso que essa atividade se
faça, de certa forma, “fora” do movimento cineclubista, restrita aos meios de
divulgação institucional do ambiente acadêmico e sem influenciar, aparentemente,
as escolhas políticas que se apresentam hoje para os cineclubes brasileiros. Creio
que isso se explica em parte pela especialização
elitista que caracteriza em boa medida – e também atrapalha bastante seu
próprio desenvolvimento – a produção
acadêmica. O isolamento dessa produção confirma a dissociação da maioria dos
autores das atividades cineclubistas propriamente ditas, já que geralmente não
há “vulgarizações” desses textos. Mas, seguindo o cânone acadêmico, cada vez
mais esses textos dialogam entre sí, isto é, são citados reciprocamente. O que
já é muito positivo.
Mais importante, porém, me
parece o fato de que essa produção está refletindo um impacto do cineclubismo
na história e na sociedade brasileiras, que começa a ser reconhecido, a
“existir” institucionalmente, a partir desses textos. Consequentemente, de alguma forma essa reflexão deverá retornar
para o movimento, alterar e enriquecer seu nível de autoconsciência;
indispensável, por sua vez, para que os cineclubes voltem a ter um papel na sociedade.
De fato, assim como é parte do éthos
cineclubista a abolição do espaço hierárquico entre a obra cinematográfica e o
público, também precisamos, diante dessa produção acadêmica sobre o cineclubismo,
promover a sua apropriação pelo público. Isto é, apropriar-se desses textos e
reinformá-los, estabelecer o diálogo entre eles e a prática cineclubista. Pretendo
consolidar em breve uma primeira listagem desses trabalhos para acesso dos
interessados. De qualquer forma, num momento que penso ser de indiscutível
refluxo enquanto movimento organizado, o cineclubismo brasileiro parece estar
refletindo e acumulando forças para um possível retorno amadurecido.
Por isso mesmo é fundamental
denunciar e combater os obscurantistas, os anti-intelectuais que, depois de
terem contribuído fortemente para o recuo do movimento, não satisfeitos,
perseguem qualquer sinal de vida e inteligência que, independentemente dessas
insídias, continuam a germinar e florescer nos interstícios do cineclubismo, na
consciência do público.
Felipe Macedo
Setembro de 2017, em Montreal.
[i] ÁLVAREZ, Gabriel Rodríguez. S.d. Contemporaneos y el Cineclub Mexicano:
Revistas y cine clubes, la experiencia mexicana. México : Universidade Nacional Autônoma do
México.
[ii] GAUTIER, Christophe. 1999. La passion du cinéma. Cinéphiles, ciné-clubs
et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. Paris : AFRHC
[iii] Diogo Gomes dos Santos
escreve em http://diogo-dossantos.blogspot.ca/. A turma do Paredão era a alcunha
do grupo que reunia Adhemar Gonzaga, Álvaro Rocha, Paulo Vanderley, Luís
Aranha, Hercolino Cascardo e Pedro Lima.
[iv] MACEDO, Felipe. 1982. O Movimento Cineclubista Brasileiro. São
Paulo: Cineclube da FATEC.
quarta-feira, 20 de setembro de 2017
Em 26 de agosto último, o presidente do Conselho Nacional de Cineclubes divulgou uma curta nota definindo a postura da entidade na preparação da assembleia geral da entidade, voltada para a eleição de uma nova diretoria. Destaco o trecho: " diante de um cenário
político nacional desfavorável ao financiamento público de atividades
culturais, evidencia-se a necessidade da realização de um único encontro que
venha a promover as eleições de uma nova diretoria para o próximo biênio da
entidade." Para tanto, um encontro será realizado em São Paulo, em dois meses (10 a 12 de novembro). Nos dias subsequentes, algumas figuras ligadas ao cineclubismo manifestaram-se a respeito, sempre em apoio a esse processo que estende a vida da entidade.
É o que comento aqui, pensando numa perspectiva mais ampla:
A enésima Jornada
(ou como fazer uma Jornada Nacional de Cineclubes)
O CNC, essa quimera...
Minha intenção não é faltar ao respeito, ofender ou
culpar, responsabilizar quem quer que seja, ao nível pessoal, pela situação
existente. No entanto, salta aos olhos. E parece que ninguém vê. A partir de
2012, portanto há meia década, um grupo relativamente grande (entre 30 e 50
pessoas), mas que não representa em absoluto, nem de longe, a realidade dos
cineclubes e entidades congêneres do Brasil, reúne-se a intervalos de um pouco
mais de dois anos cada, para eleger a diretoria do Conselho Nacional de
Cineclubes. Não são as mesmas pessoas; uma parte delas, vinda de vários
estados, repete-se, é verdade – mas não é um grupo, estritamente, porque não
têm maiores afinidades de qualquer tipo –, e algumas há muito mais tempo que o
período citado. Estas são as que têm uma mistura de compromisso ético-político
com o que compreendem – cada um à sua maneira – como cineclubismo e o que
parece uma postura de atração pelo poder, ou melhor pelo prestígio, pelo status que em certas instâncias exala
dessa sigla, CNC; dessa espécie de mito que apela mais para a imaginação do que
para a realidade. Outra parte, variável, que se substitui periodicamente, é
constituída pela esfera dos atingidos exatamente pela ressonância desse mito: são
os que mais ou menos recentemente tomaram conhecimento da ideia de movimento,
de representação coletiva do trabalho que fazem de alguma maneira em suas bases
locais: apaixonam-se pelo cineclubismo – que também entre eles não é uma
concepção unívoca - e querem participar, ajudar – sem realmente aprofundarem
muito sua compreensão das circunstâncias ou da história. Algumas figuras
amalgamam os dois tipos. E, claro, há uma ou outra exceção a tudo isso.
Será a terceira vez. Aconteceu em 2013, depois de uma primeira gestão improdutiva,
iniciada em 2010; repetiu-se em 2015 e agora tenta-se fazer o mesmo ainda em
2017 ou, quem sabe, um pouco depois. E o que acontece? Com muita dificuldade
talvez se faça um encontro de no máximo uns 30 grupos ligados de alguma forma
ao cineclubismo, um bom número deles sem atividade real, onde se elege uma
enorme diretoria, cheia de cargos e de suplentes, com quase o mesmo número de
diretores que o das pessoas/entidades presentes. Aí passam-se mais dois anos sem
que nada aconteça. A “diretoria” começa no maior pique, fazendo reuniões por
skype ou mecanismo equivalente e propondo grandes ideias e muitas reformulações.
Mas, como o governo não dá dinheiro, nada acontece e, poucos meses depois, já
são uns poucos gatos pingados a pretender representar a tal instituição
nacional. Um pouco mais e praticamente cessa qualquer “atividade”, que afinal
nunca passou de um mero exercício de imaginação e boa vontade. Aí, findos os
tais dois anos (duração do mandato, nos estatutos do CNC), alguém conclama o
povo a se reunir e os “de sempre”, junto com mais alguns que aproveitam o
embalo, assim como os novos apaixonados que ficam sabendo, todos que citei mais
acima, fazem tudo igual de novo.
Será que não dá para ver isso? O único objetivo real
desse CNC – ao que parece, de forma mais inconsciente que proposital – acaba
por se limitar a fazer um encontro a cada dois anos, unicamente para se
reproduzir. Como ele não existe de fato, e nada mais consegue realizar senão
esse parto muito induzido, organizar o tal encontro é uma grande dificuldade:
às vezes excede bastante os tais dois anos. E acaba reunindo um número menor e
muito menos representativo que o universo cineclubista real. É um círculo
vicioso: encontro improvisado, eleição sem representatividade, entidade sem
força orgânica – sem reconhecimento institucional, político ou social - e ação
nenhuma. E tudo pretende recomeçar.
Isso não é obra de pessoas maldosas, ou simplesmente
interessadas em ostentar o duvidoso título de “diretor de alguma coisa” (pero
que las hay, las hay). Boa parte dos que conseguem participar do tal encontro,
com destaque para os que não estiveram nas diretorias anteriores, entram nessa
com a maior boa vontade e empenho. Mas, ao que também parece, estão mais ou
menos contaminadas pela ilusão e pelo vício herdados das administrações Lula e
Dilma – e de lideranças com elas comprometidas de diferentes formas -, de que
só é possível se organizar se houver ajuda financeira do governo. É um
paradoxo, não? O povo, o público – que os cineclubes supostamente representam
de alguma forma - só consegue se organizar se o governo ajudar (isto é, se o
governo quiser)? Se já não funcionou com o governo anterior, imaginem com Temer,
o espúrio. Melhor juntar mais dois anos e tentar em 2020. Ou pior, se o Messias
não voltar: um quadro bem possível é o de uma consolidação liberal-conservadora
nos próximos anos; nos quais a cultura, sobretudo a de base comunitária e
popular, não terá vez.
Origem da inércia
Não é óbvio que não é por aí? Que os movimentos
populares (e o cineclubismo é um deles) têm de se organizar com seus próprios
meios, criar seu próprio espaço político, baseado em legitimidade e força
alicerçadas nas comunidades? Acredito que as dificuldades, a inoperância e a
consequente desorganização mais ou menos generalizada (há exceções, claro) do movimento cineclubista, isto é, dos
cineclubes unidos como movimento sócio-cultural, deve-se muito mais a uma
concepção - na verdade mais uma incompreensão -, a uma avaliação equivocada, do
que a uma fraqueza qualquer de natureza endógena. Desde minha demissão da direção
do CNC, no início da gestão 2008-2010 (cf.: http://felipemacedocineclubes.blogspot.ca/2009/08/demissao-amigs-companheirs.html) tenho escrito análises e formulado propostas, na
lista de discussão dos cineclubes e no blogue citado, para tentar superar o
fenômeno que penso estar na origem dessa “incompreensão” e levantar bases de
discussão de um programa de reorganização do movimento cineclubista brasileiro.
Acredito que minhas análises, grosso modo,
mostraram-se corretas. Muito resumidamente, aquele momento – início de 2009 –
marcou a capitulação do movimento, institucionalmente através do CNC, a uma orientação liberal aninhada no governo
– um paradoxo (pensarão alguns) apenas aparente - que se ajuntou bem ao estilo
estatizantedo ministério da Cultura.
Posteriormente, no período que vai até a Jornada de 2010, em Moreno (PE), essa
relação se transformou em dependência, e numa verdadeira promiscuidade,
misturando lideranças com benefícios e vantagens, uma espécie de versão
cineclubista das relações que predominam nos ambientes parlamentares, que todos
conhecemos. O “movimento”, leia-se o CNC de então e a maioria das lideranças
regionais, aderiu e promoveu de tal forma essa proximidade com o governo que
instaurou-se até um culto a certas personalidades governamentais. A própria
FICC (Federação Internacional de Cineclubes), que reuniu sua assembleia geral
paralelamente àquela Jornada, foi contaminada, e manifestou-se publicamente em
favor de um “candidato”[i] informal
à sucessão ministerial na época! O movimento cineclubista, mesmo reunido em
assembleia nacional – a mais rica, mais bem financiada de todos os tempos, com
os delegados contemplados com passagens aéreas (e a imensa maioria ausente dos
trabalhos, nas praias de Pernambuco) – nada reivindicava, nada criticava: suas
manifestações eram, no máximo, pela defesa irrestrita e pela reprodução
totalmente acrítica dos programas e mesmo, como vimos, dos responsáveis
governamentais. Na verdade, esses benefícios, em sua maioria, se constituíam em
magros incentivos[ii]
(equipamentos bem básicos de projeção, com custo pelo menos 10 vezes inferior
aos recursos alocados pelo mesmo ministério para qualquer das produções
digitais mais baratas, por exemplo) que duraram apenas cerca de dois anos. A
Programadora Brasil – base de conteúdos criada no mesmo programa geral de
formação de plateias para a produção amadora de vídeos, altamente burocratizada
e seletiva, sem participação cineclubista – durou o mesmo tempo.
Moreno
marca o encerramento de todo um período histórico, que vai da reorganização
conflituosa do cineclubismo brasileiro, em 2004, até 2010, com o atrelamento ao
governo e a realização da última Jornada regulamentarmente organizada e a
eleição de sua última diretoria legítima, para o período 2010-2012. Mas marca
também o fim do precário e efêmero apoio/dirigismo federal – que por sua vez
influenciava muito os programas estaduais, onde os havia – e a rápida falência
não apenas dos programas como Cine+Cultura e Programadora Brasil, mas também
das muitas centenas (o governo federal alardeava alguns milhares, em 682
municípios – e previa triplicar o número de cidades até 2020[iii])
de cines+ ou cineclubes criados pelo
governo, denominação que depende da perspectiva de quem os mencionava. A
artificialidade da iniciativa ficou comprovada pela história[iv]. A
herança desses anos é essa ideologia da benesse estatal e a pasmaceira diante
dos desafios da praxis cultural do audiovisual comunitário no Brasil.
Esse quadro não deve excluir, claro, diversos outros
fatores que contribuem para uma desorganização mais ou menos generalizada dos
movimentos sociais e até uma certa apatia da população em geral com os abusos à
democracia e especialmente aos direitos trabalhistas, que sequer se limita ao
Brasil. Minha avaliação, contudo, quis sobretudo aprofundar a especificidade do
fenômeno no movimento cineclubista em nosso País.
O desafio da reorganização
A gestão 2010-2012, praticamente inócua, foi a
primeira vítima dessa herança e o início do que configura o atual período histórico
(2011-?). Não conseguindo encerrar seu mandato com a devida assembleia, a instituição
nacional do movimento cineclubista deixou de existir legal e politicamente.
Mas, entre representantes do período anterior e personalidades do tipo que
descrevi no começo deste texto, organizou-se uma “Jornada” pouco mais de um ano
depois, em meados de 2013[v].
Ali se caracteriza o modelo que buscará se reproduzir até agora, como também já
abordei. Ética e legalmente, o CNC que se constituiu desde então não pode ser
reconhecido. Não obedece às normas democráticas de qualificação dos
participantes, de convocação e de instauração da assembleia geral do
cineclubismo brasileiro. Isso, sem mencionar sua ilegalidade formal, jurídica. Se
politicamente podemos lhe reconhecer alguma representatividade, ela está ligada
apenas ao relativamente pequeno e incaracterístico grupo que reúne, e não pode
nunca ser confundido com a totalidade dos cineclubes do Brasil, que seguem sua
vida como podem. Poderíamos dizer que esse CNC marca também, de alguma forma –
desde sua constituição em 2013 – o fim da unicidade representativa do
cineclubismo brasileiro e o início de uma pluralidade que, aliás, existe em
movimentos cineclubistas de alguns outros países[vi].
Como não é mais uma legítima entidade nacional, mas representa de alguma forma
o grupo de pessoas/entidades que o coonestam, reconhecem, e dele participam - mesmo
que de forma virtual, abstrata -, o CNC é hoje uma organização “a mais”, dentre
outras potencialmente possíveis, de grupos vários que se possam constituir. Seja
dito de passagem que a própria Federação Internacional de Cineclubes
encontra-se em situação mais ou menos comparável, uma vez que sua direção,
coincidentemente presidida por um brasileiro, também entrou na ilegalidade
formal desde o início de 2015, adotando um mecanismo semelhante para se perenizar.
Em O Partido
Cineclubista – O que fazer?, de setembro de 2016, abordo os desafios mais
gerais que se colocam para o cineclube, diante não apenas dessa desorganização
nacional do movimento, mas também da implantação do ilegítimo governo Michel
Temer e possível continuidade liberal-conservadora e, finalmente, em vista da
revolução tecnológica que influencia profundamente as relações entre a produção
audiovisual e o público. Em O cineclube
contemporâneo, de outubro de 2015, formulo propostas bem detalhadas de
organização do cineclube tal como deve, a meu ver, se constituir e enraizar
dentro das comunidades brasileiras, ao mesmo tempo aproveitando a larga
experiência histórica do cineclubismo e transformando-a profundamente, em função
justamente desses novos desafios. Os dois textos estão também disponíveis no
blogue https://felipemacedocineclubes.blogspot.ca. Em outros artigos, Teses para uma Jornada de cineclubes e entidades congêneres (julho,
2015) e Fique são (fevereiro de 2013)
– igualmente no blogue citado –, escritos por ocasião dessas falsas jornadas a
que me referi, sugeri que os envolvidos na precária organização desses
encontros assumissem essa condição de maneira propositiva, tornando-os em um
encontro sem representatividade formal mas que poderia se articular para, com o
devido tempo e preparação, organizar uma ampla e democrática assembleia que, aí
sim, se constituíria como uma verdadeira Jornada Nacional de Cineclubes e teria
representatividade para decidir e eventualmente reorganizar institucionalmente
o CNC - como, aliás, já aconteceu três vezes em nossa história, contando com a
fundação da entidade: em 1961, 1974 e 2004. Pelo menos as duas úlimas, de que
participei intensamente, tiveram mais de um ano de discussão e preparação antes
de se reunirem efetivamente.
Como fazer uma Jornada
O subtítulo é mais provocativo que pretensioso de
fato. Toda a minha pretensão resume-se em tentar interpretar a experiência
adquirida da história do movimento e do aprendizado pessoal que construí
atuando na preparação e organização de mais de uma dúzia dentre as 18 jornadas
de que participei em 45 anos de militância cineclubista. Não pretendo ensinar
ninguém a fazer uma Jornada, mas recuperar uma experiência coletiva bastante
repetida e testada que, à luz da análise aqui desenvolvida, pode contribuir
para um caminho mais democrático e mais produtivo para o cineclubismo
brasileiro hoje. E, sobretudo, de maneira livre e independente. Creio que tal
experiência pode ser resumida, para facilitar a leitura, em alguns pontos, sugestões
que passo a elencar:
1.
Reunião: Esse encontro proposto pelo presidente do CNC deve ser encarado como
um reunião não representativa e tomado como base inicial de organização de uma
ampla assembleia digamos, em 13 ou 14 meses, considerando que essa reunião
agora se dê em dezembro. Se, mais uma vez, esta proposta for ignorada e o
encontro eleger uma nova diretoria do CNC, qualquer outro grupo de
cineclubistas compromissados com uma verdadeira reorganização do movimento deveria
assumir essa responsabilidade e organizar uma Reunião Preparatória para uma
Jornada Nacional de Cineclubes. Passo a usar o termo Reunião para ambas as
alternativas.
2. Pauta:A pauta dessa Reunião deve ser: a) local da Jornada;
b) data da Jornada; c) sugestão de pauta para temário da Jornada, a ser
discutida durante o período que a antecede, prioritariamente através da lista cncdialogo, e eventual e
complementarmente, por outros meios que se aprovem (por exemplo, página especial
no Facebook ou coisa equivalente – mas sempre em complemento à cncdialogo),d) local e data da
Pré-Jornada, a ser realizada 6 meses antes da Jornada; e) constituição de uma
Comissão Organizadora da Jornada enxuta, com representantes dos cineclubes das
cidades escolhidas para a Jornada e Pré-Jornada e outras pessoas que possam
efetivamente contribuir física e logisticamente para a organização dos dois
encontros – a Comissão não deve exceder 10 ou 12 pessoas/cineclubes {cabe uma
exceção: a cidade sede pode ter mais de um representante na Comissão, em função
de responsabilidades bem definidas – e sem ultrapassar 1/3 (um terço) dos membros
da Comissão}.
A Comissão
Organizadora da Jornada tem a função exclusiva de organizar a Jornada,
não se constituindo como uma forma de representação mais ampla, não lhe cabendo
se manifestar em nome dos cineclubes brasileiros sobre qualquer outro assunto.
3.
Pré-Jornada: A Pré-Jornada é uma reunião da Comissão Organizadora
(e convidados, sem voto, que tenham surgido no período por envolvimento direto
com a organização prática da Jornada) que deve se realizar em torno de 6 meses
antes da Jornada para deliberar, de acordo com o desenvolvimento das discussões
abertas de todos os cineclubes do País, uma proposta de programa (organização
de horários, plenárias, grupos de discussão, eventos especiais) e temário
(conjunto dos assuntos a serem debatidos), que serão discutidos a partir dessa
data até (cerca de 6 meses depois) a plenária inicial da Jornada, instância
soberana que aprovará definitivamente o programa e o temário a ser discutido
durante a assembleia.
4.
Data: a
Jornada deve ser realizada no período de férias escolares (janeiro, fevereiro
ou julho) de forma a ser bem acessível aos jovens – parte significativa do
movimento – e a outros segmentos. Realizar em época de provas, por exemplo, ou
durante o ano letivo, certamente compromete a participação. Uma boa solução é
realizar a Jornada no começo do ano e a Pré-Jornada em julho, ou inversamente.
5.
Local: a Jornada deve ser realizada em uma cidade não turística, sem praias
ou outros atrativos que possam de alguma forma esvaziar os trabalhos. Na atual
conjuntura, penso que a cidade não deve ser de difícil acesso, isto é, deve ser
bem servida pelos sistemas mais baratos de locomoção. A cidade que a acolher
deve ter uma infraestrutura capaz de receber (alojar e alimentar) de 200 a 500
pessoas (uma avaliação mais precisa pode ser feita durante o processo nacional
de discussão e com uma pré-inscrição mais extensa – mas que não seja muito
rigorosamente impeditiva). O ideal é que um cineclube faça antes da Reunião as
negociações e tratativas com as instituições municipais e outras que
assegurarão a realização local e que venha com uma proposta consolidada, comprovada
e detalhada (alojamento, alimentação, transporte local, locais de reunião –
para grupos e assembleias -, eventos, etc) para apresentar à decisão da Reunião
– ou, se não tiver sido o caso, à Pré-Jornada. Sem esta posição inicial bem
resolvida[vii]
pelo menos seis meses antes, não há como se organizar uma Jornada, que deverá
ser postergada até resolução dessa questão. Aqui não cabe amadorismo (no mau
sentido) nem irresponsabilidade.
No entanto, num
país com quase 6 mil municípios, dos quais pelo menos uns mil têm as
características necessárias para acolher uma Jornada (e nos quais se encontra a
grande maioria dos cineclubes mais organizados e atuantes), essa tarefa não é
tão difícil quanto parece. Claro, isso depende muito da força política e da
inserção do cineclube proponente em sua comunidade: daí deriva sua capacidade,
senão sua habilidade de negociar com os parceiros necessários para essa
empreitada.
Considerando a
situação política desfavorável no plano federal e o desinteresse costumeiro das
empresas em geral com o cineclubismo, deve-se procurar o apoio de instituições
locais: prefeituras progressistas ou interessadas na promoção institucional da
cidade, instituições culturais e educativas (unidades do Sesc e outras
estruturas semelhantes, universidades, colégios, conventos, etc) e organizações
populares (sindicatos, MST, etc). Uma prefeitura, usando sua própria estrutura
de serviços (alojamento em escolas nas férias, colchões da Defesa Civil,
alimentação da Merenda Escolar, ônibus escolares para transporte local, etc) pode
certamente receber algumas centenas de cineclubistas num evento que projetará
politicamente o renome da cidade. Mas muitas jornadas tiveram alojamento e
alimentação em espaços e estruturas de outras instituições, como as já citadas.
Hotéis podem participar com alojamentos especiais, para convidados de mais
renome, que valorizarão esse apoio. O mesmo pode ser negociado com algum
comércio ou indústria locais (para fornecimento de insumos: desde alimentos até
papelaria, computadores, etc). Não há que esquecer ou desistir das instituições
estaduais e federais – secretarias, ministério – que serão, contudo, tanto mais
inclinadas a dar algum apoio quanto maiores ou mais importantes forem as
parcerias já estabelecidas.
Os itens aqui
mencionados – alojamento, alimentação, instalações diversas, transporte local e
logística do evento – são os mais essenciais para a organização de uma Jornada,
considerando-se a base quantitativa que também adiantei: de 200 a 500 pessoas.
Não há como saber inicialmente o número definitivo – que só será “fechado”
idealmente 2 meses antes do evento, e ainda assim, apenas prospectivamente,
pois sempre haverá inscrições de última hora, que devem ser atendidas desde que
possível. A negociação inicial, portanto, deverá prever essa flexibilidade (e
até maior, se a resistência a este governo atual ou seu eventual sucessor
fortalecer muito a militância cineclubista). Uma espécie de check-list destes e outros aspectos é o
ponto de partida do cineclube que quiser se propor a organizar uma Jornada. A
mesma checagem deverá ser feita pela Reunião, inversamente, para verificar a
viabilidade da proposta.
6. Duração
e organização: Especialmente
numa conjuntura de retomada e reorganização, a Jornada deve ter uma duração
suficiente para promover o entrosamento dos participantes, assegurando a
realização de discussões amplas sobre todos os temas estabelecidos – que não
serão poucos. A jornada tem uma tradicional divisão em Grupos de Trabalho
temáticos – que permitem a participação mais direta de cada membro de cada
entidade e possivelmente um maior aprofundamento das questões – e Assembléia,
geralmente dividida em algumas plenárias (pelo menos duas: a de abertura
e deliberação de programa e temário e a de deliberação final e encerramento –
que pode, ainda, incluir eventuais processos eleitorais), quando se realizam as
deliberações do conjunto dos participantes, discutindo e votando as proposições
dos grupos de trabalho, as formuladas diretamente no debate em plenária e
moções diversas, além dos eventuais processos eleitorais. Historicamente, a
maioria das Jornadas teve duração de 5 dias, suficiente para assegurar a grande
experiência coletiva que ela representa para os cineclubistas e,
concomitantemente, permitir o debate franco e profundo indispensável para o
avanço do movimento. De fato, com o enfraquecimento do movimento, as Jornadas
foram ficando mais espaçadas (antes eram anuais) e mais curtas, cada vez mais
concentradas no mero processo eleitoral. A Jornada deve ser o mais aberta
possível, acolher o maior número possível de pessoas – esta é uma das suas
características mais essenciais.
7. Transporte: As instalações da Jornada devem ser centralizadas em
um ou poucos espaços e, neste caso, eles devem ser próximos. Isso definirá a
necessidade, ou não, de transporte local, item que faz parte das atribuições da
Jornada.
O transporte
dos participantes a partir de suas cidades é responsabilidade deles.
Evidentemente, várias pessoas de um ou mais cineclubes podem se organizar para
conseguir melhores custos de transporte. Também podem reivindicar apoios
privados ou públicos. Em estados ou regiões onde existem federações de
cineclubes, estas podem fazer essas tratativas ainda com mais força,
especialmente junto aos poderes públicos.
8.
Participantes na Jornada (qualificação): Esta é uma questão fundamental. Da qualificação das
entidades participantes depende a lisura, representatividade e democracia das
deliberações que podem levar a uma sólida organização nacional - mesmo que não
seja pela imediata constituição de uma entidade representativa nacional, mas
pelo estabelecimento de um programa de trabalho, por exemplo – decisões que só
cabem a uma ampla assembleia de cineclubes claramente identificados.
Há muitas
entidades, trabalhos, práticas congêneres do cineclubismo. Numa época de uma
certa crise deste último e sobretudo de mudanças significativas nas formas participativas
ou sem fins lucrativos de relação entre a produção audiovisual e os públicos,
há que se preservar e mesmo promover o diálogo, as ações e reivindicações
comuns possíveis entre os cineclubes e as entidades congêneres,
definindo e preservando suas diferenças em função mesmo do estabelecimento de
ações comuns. Assim, estas últimas também devem ser chamadas para a assembleia
nacional dos cineclubes, mas qualificadas em separado. A diferenciação assegura
a identidade de cada atividade, ao mesmo tempo que estabelece bases claras e
seguras para uma colaboração produtiva. Há ainda outras categorias de
participantes que é importante definir. Todas as condições que elenco a seguir
estão nos estatutos do CNC que vigoraram até 2010 e foram observadas em todas
as 20 Jornadas realizadas entre 1974 (quando o CNC passou a reunir cineclubes,
antes era um conselho de federações regionais) e 2010.
8.1 Cineclubes: Participação plena, com direito a voto (um voto por
cineclube). A Jornada não deve estabelecer limite de participação aos membros
de cada cineclube. A Jornada não é um procedimento (meramente) eleitoral, ainda
que implique em várias deliberações. Ela é sobretudo uma ocasião de congraçamento
e de intercâmbio, tradicionalmente se organizando em grupos de trabalho e
outras formas de atividade que até recomendam a presença de mais integrantes de
cada cineclube. Para os cineclubistas, individualmente, constitui uma
experiência única e muito marcante, geralmente fundamental na consolidação da
sua adesão ao movimento. A dificuldade de transporte já faz uma triagem severa
na capacidade de participação. Só em casos excepcionais deve se estabelecer um
limite (tão elevado quanto possível) ao número de participantes por cineclube.
Os
cineclubes devem constituir-se como associações abertas, democráticas e sem
fins lucrativos; sua direção e o conteúdo das diferentes atividades deve ser
controlada pelos associados.
Isto não implica necessariamente registro legal, mas a demonstração de que a
estrutura e gestão são do conhecimento e têm o aval da comunidade em que o
cineclube atua;
A
direção dos cineclubes, independente de sua construção formal, deve ser sujeita
a avaliação, controle e escrutínio periódico pelos associados ou pela
comunidade em que se insere. Para
comprovar os elementos referentes à organização, os cineclubes devem apresentar
estatutos, regimentos, declarações de associados ou frequentadores, além das atas
de eleição ou outras provas de renovação de sua direção a critério da Comissão
Organizadora, com recurso ao plenário da Jornada (plenário este constituído
pelos cineclubes reconhecidos até a votação do dito recurso);
Os
cineclubes devem ter entre suas atividades a projeção periódica e sistemática
de filmes e/ou outros materiais audiovisuais com intervalos de, no máximo, um mês;
Para
participação plena os cineclubes deverão demonstrar sua existência há pelo
menos 6 (seis) meses anteriormente à reunião. Para comprovar sua atividade, os cineclubes devem
apresentar material publicado na imprensa, cartazes, folhetos, divulgação na
internet ou outros, verificáveis a critério da Comissão Organizadora, que
comprovem tanto a antiguidade mínima quanto a sistematicidade de seu trabalho;
8.2 Cineclubes
em formação: os cineclubes
que não tiverem ou não puderem comprovar todos os elementos acima (pouco
tempo de existência, itens ainda a organizar, etc.) serão considerados em
processo de formação; poderão participar de todas as atividades da Jornada com
direito a voz, mas sem direito a voto.
8.3 Entidades
congêneres: as entidades de
exibição audiovisual cultural ou educativa, sem finalidade lucrativa – mas que
não se constituem como organizações associativas e democráticas – terão acesso
a todas as atividades da Jornada, com direito a voz, mas sem direito a voto.
Sugestão minha: em assuntos, temas, reivindicações e deliberações de interesse
comum (legislação para atividade sem fins lucrativos, por exemplo), essas
entidades poderão manifestar sua adesão às decisões, que assim ficarão
fortalecidas e de representatividade mais abrangente. Também poderão propor observações
complementares às decisões, quando estas não as incluírem, desde que não
acarretem prejuízo aos cineclubes;
8.4 Convidados
– Personalidades ou
instituições convidados pela Comissão Organizadora, ou por sugestão oriunda das
discussões abertas preparatórias e adotadas pela Comissão, terão pleno acesso a
todas as atividades da Jornada, com direito a voz, mas sem direito a voto.
8.5 Observadores
- Qualquer instituição
ou pessoa que queira participar de todo o Encontro sem ser parte das
categorias anteriores. Devem pagar o custo integral de sua participação e não
têm direito de voto.
Nota:
Caso o número de
inscrições exceda a capacidade de acolhida, a prioridade deve ser a ordem estabelecida
acima, com exceção da categoria dos convidados. Vale também a observação já
feita sobre o estabelecimento de limite de número dos participantes de cada
cineclube.
Não sou muito otimista quanto ao resultado deste
texto, pelo menos de imediato. Provavelmente não haverá nenhum encontro, dada a
fraqueza desse CNC, mas também é possível que se consiga reproduzir o que
descrevi no início deste texto, o que será inócuo, senão nocivo mesmo, para o
movimento cineclubista brasileiro.
De qualquer forma, como sempre faço, não me abstenho e
procuro fazer uma crítica séria e uma contribuição construtiva. Este e os
demais textos aqui citados poderão um dia, possivelmente, ser aproveitados
pelos cineclubistas que queiram refletir sobre nossa prática e nossa história.
Em Montreal, setembro de 2017
[i] Trata-se do “Volta Juca”,
campanha orquestrada com a presença do interessado, Juca Ferreira (ministro
extamente no período aqui mencionado – 2008-2010), e homenagens diversas com
vistas à sua manutenção no primeiro governo Dilma Roussef, que começaria um mês
depois. Nunca antes a entidade mundial havia sido instrumentalizada nesse
nível. Na mesma assembleia da FICC foi eleito presidente o brasileiro Antonio
Claudino de Jesus.
[ii] Digo “em sua maioria” porque
também ocorria a sobreposição de financiamentos, com algumas entidades e/ou
pessoas acumulando subvenções de diferentes editais, prêmios, etc., federais e,
em alguns casos estaduais, o que acabava por totalizar somas importantes.
[iii] Metas do Plano Nacional de Cultura, do
Ministério da Cultura, dezembro de 2011 (quando as atividades já estavam
paradas há mais de um ano). Disponível em http://www.cultura.gov.br/documents/10883/11294/METAS_PNC_final.pdf/
[iv] Na história do cineclubismo
brasileiro há outros exemplos que podemos associar a esse processo: a
distribuição maciça de projetores 16 mm no programa anticomunista
norte-americano Aliança para o Progresso (1961-1970), que acabaram sendo muito
usados posteriormente, na resistência à ditadura, ou mesmo a rápida falência
dos cineclubes católicos com a retirada do apoio efetivo da Igreja Romana, no
início dos anos 60.
[v] Ver nota vii adiante.
[vi] Pelo menos França e Itália
têm mais de uma federação nacional de cineclubes.
[vii] Em 2010, a representação da
Bahia propôs a realização da Jornada seguinte em seu estado, sem qualquer
condição assegurada. Mesmo assim a proposta foi aprovada. Essa – e a ausência
de controle por parte da diretoria do CNC, responsável final pela realização do
evento - foi a principal razão para que a Jornada seguinte, com seu corolário
de eleições, etc., não se realizasse no devido tempo. A insistência, também sem
fundamento, da mesma representação, em que “logo” se conseguiriam os recursos
necessários, explica o adiamento por mais um ano e meio – até meados de 2013 –
e a organização improvisada e sem representatividade da “Jornada”, finalmente,
em Vitória (ES), com um número bem reduzido de pessoas/entidades, praticamente
coincidindo com o número de cargos a serem preenchidos.
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