sexta-feira, 23 de novembro de 2018
Morte
de cineclubista
O texto que escrevi quando o Antonio Gouveia morreu (https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2011/01/gouveia-intelectual-organico.html) é um dos mais lidos no meu blogue, não sei por quê.
O Gouveia foi um amigo muito próximo; não fui capaz de produzir um artigo com
o mesmo grau de envolvimento – meu – e de interesse para os leitores quando da
morte do Luís Orlando da Silva, expoente do cineclubismo baiano e da
solidariedade cineclubista (e humana) com quem convivi bem menos. Cada vez que
se vai um cineclubista importante, que fez uma contribuição significativa para a
edificação do cineclubismo brasileiro, é muito relevante assinalar essa
trajetória, incorporar essa memória à identidade de um movimento social e
cultural mais que centenário e, no entanto, sempre pouco valorizado,
praticamente desconhecido na memória coletiva. E isso não apenas no nível mais
institucional, mas também entre os próprios cineclubistas que, em ciclos muito
curtos, parecem esquecer tudo, e recomeçam sem cessar – e sem continuidade - o
cineclubismo, quer dizer, essa experiência coletiva, esse projeto de cinema dos
segmentos excluídos do campo dominado pelo cinema comercial.
Quando morreu o Carlos Vieira, nada escrevi. Mas,
diferente dos casos do Gouveia e do Luís Orlando, estive presente no seu
enterro, com o sempre companheiro Frank Ferreira. Foi uma experiência muito
especial, muito marcante para nós dois, creio. Como muitos sabem, o Carlos
Vieira foi um grande cineclubista, cujas ações marcaram o movimento desde o
início dos anos 50 até o final dos 70. Em 1956, foi o grande motor da criação
da primeira entidade representativa dos cineclubes brasileiros, o Centro dos
Cineclubes de São Paulo – cuja influência se estendia bem além do estado. Ele
presidiu a entidade até 1975, quando o Centro se transformou em Federação
Paulista de Cineclubes, que também inicialmente presidiu. Criou, junto com
Paulo Emílio Salles Gomes, o Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas, que
durou todo o ano de 1958 e formou toda uma geração que mais que influiu,
praticamente definiu a cultura cinematográfica na década seguinte. Foi
organizador da primeira Jornada de Cineclubes, em 1959, também feita com o
apoio da Cinemateca Brasileira (ex-Clube de Cinema de São Paulo). Nos anos em
que todos se sentiam cinéfilos, Vieira era como que o centro irradiador do intercâmbio
que ligava diversos cineclubes extremamente importantes na vida de diversas
cidades do interior paulista. Com laços familiares com Portugal, Vieira também
trocava reflexões com as publicações cineclubistas daquele país. Quando o
movimento foi perseguido e praticamente desorganizado pela ditadura militar, o
Centro de Cineclubes foi a única entidade que subsistiu, devido em boa parte ao
caráter pouco constestador de suas atividades mas que, por outro lado, acabou
garantindo uma transferência da experiência cineclubista, uma “passagem do
bastão” quando uma nova geração, de que eu já fazia parte, se apresentou.
Meu relacionamento com o Vieira foi bastante
contraditório: eu bem jovem e engajado na luta contra a ditadura; ele bem mais velho,
ligado a uma concepção estetizante, elitista e sem compromisso social. Mas o
cineclubismo nos ligava – e Marco Aurélio Marcondes também ajudou muito na
mediação dessa relação, mostrando a importância de reorganizarmos o movimento,
lá no comecinho dos anos 70, através da integração das diversas regiões do
País, mas também de todas as gerações cineclubistas e concepções de
cineclubismo. Sem a intolerância que, afinal, era apanágio do governo
autoritário. O Vieira, deslocado tanto pela idade como pela visão que tinha do
cineclubismo, acabou se afastando, quase naturalmente, certamente com bastante
generosidade e desapego. Não sem antes conduzir e presidir a primeira Jornada
organizada depois da repressão ao cineclubismo do final dos anos 60, e de lá –
em Curitiba, 1974 - ser eleito, pela última vez, presidente do recém
reorganizado Conselho Nacional de Cineclubes.
Só fui procurar o Vieira mais de 30 anos depois,
interessado em recuperar a memória e eventuais documentos do movimento. Ele já estava
bem fragilizado; certamente havia um dimensão traumática no seu afastamento de
um movimento que meio que dependeu dele durante mais de 20 anos e do qual se
afastara, ou fora afastado, há 30 anos. O Vieira tinha uma vida bem simples, centrada
no núcleo familiar; ele me lembrava um funcionário às antigas – acho que
trabalhava com contabilidade -, sempre de terno e com uma liguagem bem formal.
Mas a dignidade e a generosidade, a ausência de qualquer tipo de ressentimento
estavam ali em grau bem elevado.
Morreu pouco tempo depois do nosso encontro; ir ao seu
enterro foi quase uma coincidência. E foi uma experiência muito forte, que me
deixou uma marca permanente. A vida cineclubista do Vieira era um universo
pessoal; sua família ignorava praticamente tudo de sua trajetória. Era o enterro
do funcionário, modesto como postura, discreto, ou que fechara para todos sua
experiência cineclubista. Pouca gente: familiares próximos, um pastor, eu e o
Frank formamos um círculo pouco antes do enterro propriamente dito. O pastor –
o intelectual social ali naquele ambiente – fez um pequeno discurso, para mim
altamente insignificante, de quem nada conhecia do homem que ali estava sendo
despedido da vida e do mundo. Ninguém tinha mais nada a dizer. Ninguém, mesmo
os que talvez o amassem, ou tivessem amado, lhe dava qualquer importância.
Então, sem conseguir me conter, pedi a palavra e falei da importância que o
Vieira tinha para muita gente, para o cinema e a cultura no Brasil, para o
cineclubismo e para a memória social que ali estava sendo obnubilada. Foi uma
surpresa total. Acho, uma impressão muito pessoal, que vi algum brilho nos
olhares da viúva, da única filha, talvez de um cunhado que me chamou mais a
atenção. Um brilho de orgulho. Espero. Porque, por outro lado, o que eu senti
foi o trauma de uma vida dedicada ao cinecluubismo mas totalmente esquecida,
fundamentalmente pelo cineclubismo – pelas pessoas reais que fazem esse
movimento. O trauma, acho, vem do medo de partilhar desse mesmo destino. Um
pouco depois, por iniciativa de alguns velhos cineclubistas, demos o nome dele
para o projeto da distribuidora de filmes do movimento que nunca chegamos,
afinal, a constituir.
O Gouveia, que conviveu com muita gente até morrer há
poucos anos, certamente está vivo na memória de alguns cineclubistas, pelo
menos dos da velha guarda. O Luís Orlando deixou uma marca mais forte, tenho
certeza, porque a linhagem da sua memória não é apenas cineclubista, mas
identitária, ligada profundamente à vivência da comunidade afro-brasileira da
Bahia.
Há alguns dias recebi uma mensagem de outro amigo, lembrando outro grande cineclubista paulista. Carlos Braggio morreu em 28 de fevereiro de 2015. Imaginem, saiu uma nota em algum espaço virtual falando que ele será
muito lembrado. Como sanduíche. Carlos Braggio agora é um sanduíche com recheio
de carne seca, criado pelo meu velho amigo e que agora se institucionaliza no
City Bar, “boteco em frente ao teatro do Centro de Convivência Cultural”, em
Campinas. Acho que a homenagem vale. Já tinha um precedente, na cultura
paulista e mesmo brasileira, com o Baurú, que também homenageia um
frequentador, desta vez do Ponto Chic de São Paulo.
Conheci o Carlos Braggio na mesma época em que conheci
o Carlos Vieira. Aquele Carlos era originário de uma cidadezinha paulista, Lucélia,
e como me contou depois, cresceu num ambiente provinciano e bem conservador.
Foi no primeiro cineclube que frequentou que descobriu um outro mundo, que o
transformou. Cá entre nós, esse depoimento - que não tem nada de exceção, eu o
ouvi em várias outras ocasiões e situações - já serve para justificar nossas
vidas de militantes dessa atividade que pode e realmente muitas vezes muda a
vida da pessoas. Quando o conheci, em 1972 acho, ele era o representante do
cineclube do CCLA, o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, um
cineclube dos anos 60, com muita tradição – havia sido o principal insuflador
das atividades com o público infantil na Cinemateca Brasileira, por exemplo.
Sob a direção do Braggio, o velho cineclube se tornara moderno e engajado: o Braggio
retornava a um outro cineclube a transformação que ele próprio experimentara.
Carlos Braggio foi absolutamente essencial no difícil
processo de organização da Federação Paulista de Cineclubes, do Conselho
Nacional de Cineclubes e da Dinafilme, a distribuidora de filmes (em película,
vale lembrar) que, neste caso, o movimento cineclubista conseguiu criar e fazer
funcionar por mais de uma década. Mais velho alguns anos do que as outras
lideranças em São Paulo, a experiência e os conhecimentos do Braggio foram
indispensáveis para a organização da sede comum das três entidades que citei,
na velha Boca do Lixo, em São Paulo, no auge da ditadura. Ele organizou, em
1975, a 9ª. Jornada Nacional de Cineclubes, no vetusto CCLA (a foto mostra o
local das plenárias daquele congresso).
Paralelamente, o Braggio ajudou a criar o Museu da
Imagem e do Som de Campinas, em 1974 e, em 1977, coordenava ações culturais de
tipo comunitário na secretaria de Cultura da cidade. Mesmo depois do refluxo do
movimento cinelubista, continuou sempre estimulando atividades e instituições
culturais, festivais – de Super 8, por exemplo – assim como ações de interiorização
da cultura no plano estadual. Depois de ser Diretor de Cultura de Campinas, no
final dos anos 90, deixou sua marca no importante Centro de Convivência e na
reabertura do Teatro Castro Mendes. Mas é difícil encontrar qualquer menção ao
Braggio cineclubista na internet, por exemplo. Mesmo a “história” do CCLA e do
seu cineclube só fala do começo dos anos 60. Por que será?
Perdi o contato com o Braggio por muitos anos, pouco antes da sua morte retomamos um contato superficial pela internet. Além de
cineclubista muito importante – desses
que faz parte do panteão cineclubista de que falo no meu artigo sobre o Gouveia
– foi também um amigo muito querido e respeitado. E só tomei conhecimento da
morte dele por causa de um sanduíche! Acho que a memória, base da identidade
institucional cineclubista está precisando de novos símbolos.
segunda-feira, 19 de novembro de 2018
Mensagem aos cineclubistas capixabas
por ocasião do 6º. Encontro Estadual de Cineclubes do Espírito Santo - 2018
O que é um cineclube? O que têm sido os cineclubes em
mais de 100 anos de existência em praticamente todos os países do mundo? Que
papel pode ou deve desempenhar um cineclube hoje?
1. Os cineclubes têm origem em formas de organização
popular: clubes de ajuda mútua, de autoeducação, com conferências e debates, e
de lazer – através de cantorias, recitação, teatro – que também eram políticas,
e estão na origem dos sindicatos e de muitos partidos políticos. Isso desde o
final do século 18, mais ou menos à época da Revolução Francesa. Muitas dessas
atividades eram “ilustradas” pelas imagens projetadas por lanternas mágicas. Com
o surgimento do cinema, ele logo foi incorporado às conferências e debates
promovidos no que agora (virada para o século passado) já era um forte e
organizado movimento proletário. Mas os filmes existentes não eram feitos pelos
trabalhadores, e muitos achavam que eram mesmo contra os trabalhadores. Neles,
o povo era mostrado de uma forma paternalista ou pior, preconceituosa; as mulheres,
como imorais ou diabólicas; os movimentos sociais, as greves – na época em que
ainda se lutava pela jornada de 8 horas de trabalho – como coisa de bandidos e
anormais que precisavam ser expulsos das fábricas e das famílias. Mas o público
do cinema comercial, que se estabelece no começo do século passado, era
justamente formado por esse público popular, de trabalhadores, imigrantes,
mulheres, crianças e... grevistas. Logo surgiram tentativas de fazer, por suas
próprias mãos, um cinema que mostrasse a “vida real dos trabalhadores”, como
diziam os panfletos da época. E iniciativas de organização de espaços próprios,
também, para a exibição desses filmes, e para o debate, que já era uma velha
tradição das organizações populares.
Assim surgiram, em torno dos anos 10 do século 20, os
primeiros cineclubes mais formalmente organizados. Eles aparecem justamente no
momento em que se consolida também a forma de cinema comercial que vai
prevalecer durante todo o século e, em boa medida, até hoje. Duas coisas paralelas
e antagônicas: cinema comercial e cineclube. O primeiro busca primeiro que tudo
o lucro: onde não há lucro cessa, se retira o cinema comercial, e se adapta a
outras formas “de negócio”, como aliás estamos vendo claramente nestes últimos
tempos. O cinema comercial é a manifestação da chamada indústria, do capital, e
seu discurso, sua mensagem é numa única direção, de cima para baixo: o público
é um receptor mudo, passivo, espectador.
Vê e escuta sem poder se manifestar. O cineclube é o oposto: organização
coletiva, democrática, onde se propõe e se promove justamente a participação, a
manifestação de cada um, e onde não cabe a acumulação financeira privada. O
objetivo do cineclube não é o lucro, mas a apropriação
do cinema pelo público.
E o que quer dizer apropriação do cinema? Muitas
coisas: primeiro, poder ter acesso ao cinema, a todo o cinema, sem se
submeter aos obstáculos artificiais criados pelos ingressos muito caros, pelo
preço das assinaturas de tevês fechadas, pelo controle de “direitos” dos produtos
audiovisuais – e pela conivência ou tibieza das políticas públicas que não
controlam os monopólios comerciais sobre a cultura e o audiovisual. Segundo,
poder expressar-se através do cinema, o que implica acesso ao
conhecimento, às técnicas, mas também aos equipamentos e infraestruturas de
produção, de projetores, câmeras e aparelhos de som e luz até os sistemas e
estruturas de radiodifusão passando, é claro, por todos os recursos digitais
existentes. E terceiro, o direito democrático de se organizar em função
dos objetivos anteriores, em cineclubes por exemplo, mas também em federações
regionais, organizações nacionais e internacionais. Esses três aspectos
implicam necessariamente na necessidade de se fazer representar
politicamente e participar na organização e controle das instituições e
políticas públicas que afetem o público audiovisual.
E público, o que é afinal? É também o avesso do espectador ou da plateia do cinema comercial. Público é a única palavra que não tem um sentido passivo quando se fala de qualquer tipo de espetáculo. Plateia, auditório, audiência remetem à metáfora do móvel, que fica lá, para mobiliar sem ação o espaço de uma mensagem de uma só direção. Espectador remete à observação neutra, distante, à espera, na expectativa. Estudos “científicos” criam um espectador abstrato que é, ao mesmo tempo, todos e cada um – mas na verdade esse espectador reflete na quase totalidade das vezes, uma figura masculina, ocidental, branca, cristã, heterosexual e que vê filmes de ficção hollywoodianos. Só o público ressoa com o interesse e a responsabilidade coletivas. Só o público tem opinião. E um papel a desempenhar. É o público que se organiza para criar cineclubes – e outras instituições. Hoje, o público do audiovisual, forma preponderante de toda a mídia, se confunde praticamente com a totalidade da população, que se comunica, se instrui, se socializa através de meios de comunicação audiovisuais. São aqueles 99% a que se referem as estatísticas, os que não têm os meios de produção nem de sua própria vida nem da sua representação audiovisual. O público é o proletariado moderno, como dizia o cineclubista italiano Fabio Masala. E os cineclubes são a instituição mais fundamental do público.
2. Além do sentido positivo de conquista do cinema, a
palavra apropriação também pode ter uma significação negativa, a de conquista
como ocupação, como posse, como roubo. É o que o sistema tende a fazer com as
instituições novas que vão surgindo. O cinema passou por um longo período desse
tipo, e em especial entre 1905 e 1915, época que ficou conhecida como de institucionalização do cinema. Nesses
anos se organizaram, sistematizaram, se consolidaram todos os aspectos do
cinema comercial, o cinema hollywoodiano: a linguagem narrativa linear, a
“transparência”, o sistema de estrelas, os principais gêneros, para citar
apenas alguns. Mas também o sistema de produção monopolista e fordista (produção em série), a
arquitetura e a localização das salas e, o que nos interessa mais diretamente,
a forma de recepção do cinema,
passiva, silenciosa, espectatorial,
de mero consumidor. A maioria dessas características foi adotada ou adaptada
por outros meios de comunicação audiovisual e praticamente subsiste até hoje –
mesmo que os algoritmos nos permitam dar um “curtir” no que eles escolhem para
nós vermos, e nós chamemos isso de interatividade.
Também os cineclubes passaram por um processo de
institucionalização ou de adaptação a uma condição subalterna em meio a um
modelo de cinema dominante, o comercial. Até por isso geralmente se diz que os
cineclubes surgiram nos anos 20 do século passado, uns dez anos depois dos
primeiros cineclubes operários: foi a partir dos cineclubes de certa forma
domesticados, aliados ou complementares ao cinema comercial que os meios
institucionais – Imprensa, Universidade, Estado – começaram a “reconhecer” o
cineclubismo. É quando começa a se vulgarizar uma concepção de cinefilia (literalmente “gosto pelo
cinema”) como forma de erudição, de especialistas, e não mais como a paixão popular
pelo cinema que tão claramente se manifestava desde os anos de transição e
consolidação do cinema comercial e que estaria sempre em alta, até o advento da
televisão. Cineclube, que era originalmente uma proposta revolucionária de
apropriação democrática do cinema pela grande maioria, passava a se apresentar
com um culto especializado a um cinema “diferenciado”, um nicho de cinéfilos (algo entre fanáticos e “intelectuais”)
que os separava do resto do público. Foi essa concepção elitista de cineclube e de cinefilia que passou a ser aceita,
divulgada e, em alguns casos, até estimulada pelas instituições. Desde então os
cineclubes vivem as contradições, tensões e conflitos entre esses dois
extremos: um cineclubismo revolucionário, que quer criar um cinema totalmente
novo, e um cineclubismo elitista, que pretende cultuar e promover o melhor do
cinema existente, sem realmente o contestar. Para complicar um pouco esse
quadro, a influência das igrejas, especialmente a de Roma, introduziu uma
variável importante, o paternalismo: a ideia de formar, de ensinar o caminho
correto – e os filmes adequados – para se ver e comprender o cinema. De fato,
esses extremos quase nunca existem em estado puro: praticamente todos os
cineclubes apresentam e vivem as tensões entre essas três tendências. Podem ser
revolucionários e paternalistas e até elitistas, tudo ao mesmo tempo, ou
inversamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, os cineclubes são quase como as
orquestras de elite: toda cidade americana tem sua film society, onde circula a fina flor do high society e da intelectualidade local. Na América Latina os
cineclubes têm um forte compromisso anticolonial, de defesa dos cinemas de seus
países, e geralmente um compromisso com valores mais populares e progressistas.
Mas, nos dois casos, há várias exceções ou outras formas, menos esquemáticas do
que esta descrição.
3. Creio que duas grandes condições delimitam,
desafiam e sugerem o caminho a ser percorrido pelo cineclubismo neste início de
século e no Brasil de hoje. São elas: a grande transformação dos meios
audiovisuais de comunicação e de expressão, dentro das mudanças profundas que
afetam as forças de produção, o cotidiano, nossa própria forma de viver e, no
limite, a sobrevivência do planeta e, em outro plano, a situação social e
política em que vivemos os latino-americanos e particularmente a conjuntura
brasileira, representada pela eleição pela maioria da população de um governo
assumidamente autoritário.
O público, e mais que todos a maioria do público
brasileiro, vai pouco às salas de cinema ver filmes de ficção. Sua tela
principal é a tevê, e menos os filmes, mas as novelas e outras séries
brasileiras ou importadas, as notícias e o futebol. A internet divide, concorre
e possivelmente está ultrapassando a televisão, através dos laptops, tablets e, principalmente, dos celulares. No entanto, o modelo de
cineclube ainda é principalmente o da sala de cinema (ou algo semelhante) e o
debate posterior, frequentemente sob uma forma meio magistral, isto é, sob a condução de algum tipo de especialista ou
autoridade. O que muda, no caso brasileiro, é que nos cineclubes se projetam
muito os documentários e os curta-metragens.
Tenho escrito bastante sobre o cineclube
contemporâneo, isto é, meu entendimento sobre o que deve fazer parte de um
modelo de cineclube apropriado aos nossos tempo, cultura e tecnologia. Penso
que o cineclube deve deixar de se
limitar à sala de projeção – que deve ser mantida, repensada e revalorizada – e
se propor como a instituição audiovisual
da comunidade. É um tema amplo demais para este espaço, mas penso que é
fundamental que o cineclube ocupe um espaço físico permanente, com condições de
reunir as pessoas em formatos diferentes do da sala de cinema: as rodas, em
torno de telas de tevê, para cineclubar
(isto é, criar uma experiência coletiva de fruição e crítica) com séries e
telenovelas, e espaços de festa e comemoração, onde a discussão rola de forma
menos induzida ou paternalizada. Mas o cineclube também precisa se expandir
para fora do espaço físico e para dentro do virtual: criar aplicativos de
comunicação com seu público; canais proprios na internet; horários de
transmissão de suas próprias produções audiovisuais – de noticiários,
manifestações esportivas, espetáculos diversos, documentários, ficções e,
provavelmente, novos “gêneros” a criar... E o cineclube deve ser também o local
da memória (da identidade) do público, que hoje é essencialmente audiovisual.
Deve ser e criar um arquivo dessa memória, coletando fotografias, filmes de
família, etc., ao mesmo tempo que documentando, gravando e salvando a memória,
em grande parte oral, das comunidades. Todo tipo de comunidade: do bairro de
periferia, da cidade pequena, da colônia italiana, do ambiente LGBT, do grupo
escolar...
É claro que esse modelo, ou melhor, esses componentes
para um modelo de cineclube atual, contemporâneo, só podem ser o fruto de um
mais ou menos longo e certamente muito trabalhoso processo. Propor esse
objetivo não implica em recusar o cineclube que não tem ainda um local fixo ou
que não está muito bem equipado. A base do trabalho cineclubista é sempre a
mesma: organização coletiva e democrática, ausência de fins lucrativos, e o
objetivo é a apropriação integral do audiovisual pela comunidade. Mas é
fundamental que o cineclube não se acomode, não se contente com as condições mínimas, mas que busque sempre
mais na trajetória ideal de superar e substituir as mídias, o audiovisual
comercial.
A segunda condicionante que mencionei também é bem
mais complexa do que cabe abordar aqui. Contudo, a situação que apenas se esboça
ainda, em nosso País, torna mais urgente a preparação dos cineclubes para
realizarem seu trabalho. A eleição de um governo autoritário que explicitamente
se propõe a combater o “ativismo social” encerra definitivamente qualquer
ilusão de basear nossa atividade no apoio estatal. Estamos (ainda?) muito longe
da situação vivida durante a ditadura militar, quando havia uma forte Censura
oficial (exercida pela Polícia Federal), que invadia cineclubes e sequestrava
filmes, chegando muitas vezes a prender e maltratar cineclubistas. Mas, ainda
que nossas instituições republicanas resistam a prováveis incursões
autoritárias sobre a atividade cineclubista, não podemos ignorar a
possibilidade de ataques “informais” e mais perigosos de grupos radicalizados.
O Espírito Santo ainda tem, entretanto, a lembrança e a experiência disso: deve
se prevenir para uma possível resistência clandestina de algumas atividades em
caso de necessidade.
O que é absolutamente certo, no entanto, sob o próximo
governo, é que não haverá nenhuma ajuda institucional aos cineclubes e, muito
provavelmente, o contrário:discriminação sempre que possível (do ponto de vista
do governo) quanto aos cineclubes mais críticos. Isso significa que é
absolutamente indispensável superar uma postura que pessoalmente sempre
considerei irrealista que é a da gratuidade das atividades. Em plena ditadura
criamos o conceito de “taxa de manutenção”, isto é, a contribuição cobrada em
cada projeção. Ela não implica, como todos sabem, nem se confunde com fins
lucrativos, já que todo recurso angariado é obrigatoriamente reinvestido na
atividade do cineclube - ninguém se apropria individualmente, o que é a
definição da finalidade lucrativa. No mínimo, os cineclubes devem usar sua
inventividade (passar o chapéu, por exemplo) para criar fontes de recursos – e
conscientizar e comprometer seu público com a manutenção da entidade, que lhe
pertence e que ele, público, deve defender e sustentar. A figura do associado e
da contribuição mensal é outra tradição e base do cineclubismo que praticamente
desapareceu (e quase que exclusivamente na América Latina, principalmente no
Brasil). As festas ou comemorações, com a a venda de comidas e bebidas, são
outra fonte de manutenção usadas por cineclubes há mais de um século. Dizer que
o cineclube deve ser a instituição da comunidade, expressar seus interesses e
necessidades e representá-la no campo do audiovisual implica, necessariamente,
que ele seja capaz de interessá-la e mobilizá-la para ela mesma sustentar seu
projeto. A base principal de sustentação do cineclube deve ser a comunidade em
que atua.
Mas uma contradição dos governos autoritários que, por
outro lado, vai favorecer o trabalho cineclubista, é que esse tipo de
adversário promove, de certa forma, uma unidade crescente entre os membros da
comunidade – que encontram um inimigo comum – e aumentam o interesse e as
consequentes participação e adesão ao cineclube.
Tenho uma forte ligação com o movimento cineclubista
capixaba, que acompanho há mais de 40 anos. Me emociona saber que ele continua
vivo, criativo, atuante, o que esse encontro vem demonstrar. Os encontros,
assembleias e outras formas de convivência e compartilhamento de experiências
são uma forma insubstituível de desenvolvimento do movimento, quando a gente
estabelece relações e laços pessoais e vive realmente, coletivamente, a
experiência de pensar, fazer e lutar pelo cineclubismo, pelo público, pelo
Brasil. Queria estar aí com vocês.
Grande e produtivo Encontro para todos.
Saudações cineclubistas,
Felipe Macedo
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