Meu amigo Frank Ferreira,
uma lembrança
Frank Ferreira era meu amigo. De fato, nos últimos
anos, meu melhor amigo. Por isso mesmo precisei de uns dias depois da sua morte
– que aconteceu no último dia de 2020 - para conseguir escrever alguma coisa
mais estruturada sobre ele. Mas não tenho nenhuma pretensão de escrever uma
biografia, breve que fosse. O que segue é um depoimento pessoal, afetivo, ainda
que, penso, realista.
É indispensável falar sobre o Frank – e espero que
outros o façam com maior profundidade e acuidade – sobretudo porque tenho essa
velha ideia de que o cineclubismo brasileiro precisa consolidar uma espécie de
panteão de seus “heróis”, dos batalhadores que, por inteligência, coragem,
constância, coerência, contribuíram para criar uma identidade histórica para as
práticas do cineclubismo, e uma base ideológica positiva que o estimula.
Pessoas como Paulo Emílio Salles Gomes, Carlos Vieira, Antônio Gouveia Jr., Beto
Leão, Luiz Orlando da Silva, para citar apenas alguns dos que já faleceram.
Também escrevo esta lembrança porque especialmente as
duas últimas décadas foram um tempo de bastante convívio, e de muita prática
juntos. Conheci o Frank há cerca de 40 anos, no Cineclube Bixiga (1982). Se
alguém não sabe, criado por Antônio Gouveia Jr, Arnaldo Vuolo e pelo Frank
Ferreira, com alguns outros colaboradores, o Bixiga foi o cineclube 35 mm de
funcionamento diário que, embora não tenha sido o primeiro, foi o que se
afirmou como modelo para muitos outros no Brasil. E mudou o próprio mercado
comercial e a forma de exploração das salas de cinema.
Já éramos adultos, então – ele um pouco mais: tinha uma
importante história pregressa de militância política no Metrô de São Paulo e de
trabalho cultural na prefeitura de Osasco, duas fases de sua vida que conheço
muito pouco. Mas sei que desde sempre o Frank foi, essencialmente, um
comunista. Um bolchevique. Mas em 85 eu já estava fora do Bixiga, depois
emigrei e mantive apenas o chamado contato virtual, e episódico, com o amigo
até a virada do milênio. O século 21, contudo, é completamente outra história.
No começo da década os cineclubes começaram a se
reorganizar, depois de um período de quase 15 anos sem congressos nacionais e
sem uma entidade representativa. O Frank estava lá, claro, contribuindo, por
exemplo, na revista Cineclube Brasil, importante iniciativa capitaneada
pelo Diogo Gomes dos Santos que, infelizmente, teve poucos números. Nela, o
Frank fez principalmente um trabalho de revisão e editoração. Não sei
exatamente desde quando ele mantinha aquele seu curioso “gabinete”: um desses
espaços para pequenas lojas, com um mezanino também exíguo, em uma velha
galeria meio abandonada na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, perto da casa dele
– ele morou no Bixiga, na mesma rua, estes últimos 40 anos pelo menos.
Transformou aquele espaço num escritório e biblioteca, meio abarrotado, em que
trabalhou vários anos principalmente revisando dissertações e teses acadêmicas,
e onde mantinha sua preciosa coleção de livros, especialmente de cinema.
Foi com essa reorganização do cineclubismo que retomei
a minha ligação com o Frank, e ele a sua com o cineclubismo. Outra
característica típica dele era uma espécie de polivalência: sua experiência
permitia que ajudasse em assuntos mais técnicos – possível herança de seus
tempos no Metrô – e em muitos outros aspectos, seja o organizativo – coisa de quadro
bem formado – ou na formulação de projetos e de textos de toda natureza, para o
que contribuía sua ampla cultura. A Jornada de 2004 foi marcada pelo trabalho
de restabelecer democraticamente a entidade, a confiança e participação dos cineclubes
brasileiros. O Frank participou ativamente do processo, inclusive presidindo pelo
menos uma (que eu me lembre) das plenárias daquele encontro.
No ano seguinte, em outubro, surgia na Escola de
Sociologia e Política o Cineclube Darcy Ribeiro, uma iniciativa do Frank em que
ele nunca deixou de atuar, e de influenciar, até o final da vida. Logo o
cineclube do Frank tornou-se uma das bases da reorganização da Federação
Paulista de Cineclubes.
Na
foto acima, no bar da esquina da Escola de Sociologia e Política, Frank recebe Júlio
Lamaña, secretário-geral, e Paolo Minuto (com o punho levantado), presidente da
Federação Internacional de Cineclubes (FICC). Era 2006, foi um pouco antes de
uma importante reunião dos cineclubes paulistas com a FICC, no cineclube Darcy
Ribeiro.
A poucos metros dali, mais ou menos na mesma época, inauguramos a Sala Maria Antónia do projeto PopCine, que estava criando 20 salas populares, a partir de cineclubes, em outras tantas cidades do estado de São Paulo. O Frank era o responsável pela gestão da sala modelo, e criou seu bar, super aconchegante. Outro lado do Frank era o de cozinheiro, ou chef como dizem atualmente. Na foto abaixo, ele está de camisa vermelha, com a mão sobre o balcão, conversando com a sua companheira da vida toda, Eliana Ashe – também professora da Sociologia e Política – e com nosso amigo Gilmar Candeias. Mais informações e fotos do projeto podem ser acessadas em http://popcines.blogspot.com/. Inicialmente financiado pelo governo paulista, o projeto foi subitamente interrompido em plena implantação e acabou poucos meses depois, interrompendo a instalação de outras 20 salas. Que porcaria!
Mas o Frank não parou, claro. Ficou conhecido internacionalmente pela sua participação em diversos encontros ibero-americanos, realizados em Atibaia por iniciativa do João Batista Pimentel. E, também nessa época – já em 2008 – junto comigo organizou as Oficinas de Formação Cineclubista que iriam dar conteúdo cineclubista ao projeto de criação de pontos de exibição do governo federal, o Cine Mais Cultura. Demos juntos a primeira oficina, em São Paulo, para formação de oficineiros que iriam multiplicar a ação depois, em todo o País. Na sequência, até o primeiro trimestre de 2009, em duplas com gente da região, metade comigo, metade com o Frank, fizemos mais 8 oficinas, acho, em pontos centrais de todas as regiões. No final, em março de 2009, eu e o Frank repetimos a oficina em Atibaia, numa grande reunião nacional com dirigentes cineclubistas. Ali, a direção do projeto, junto com a diretoria do CNC, afastou-nos dessas responsabilidades. O próprio Frank me contou depois como as oficinas se degradaram a partir daquele momento. Que droga!
Frank
dando a última oficina da primeira série do projeto federal de espaços
comunitários de exibição (2009)
Em 2012 voltei a dirigir a área de atividades culturais do Memorial da América Latina. E lá, apoiado mais uma vez nos talentos e na energia do Frank, lideramos a formação do Cineclube Latino-Americano. Foi uma experiência incrível de adaptação da nossa experiência de velhos cineclubistas às transformações das tecnologias audiovisuais, das formas de comunicação e divulgação do cineclube, enfim, com as mudanças do próprio público. O cineclube fez um convênio com a instituição que lhe cedia as instalações, em troca da organização das atividades de interesse comum - isto é, a cultura e o cinema da América Latina -, mas o Memorial não o remunerava nem interferia de forma alguma em sua gestão. Foi um começo difícil – como organizar uma “comunidade” no centro de São Paulo? – que acabou virando um trabalho incrível, com a participação de dezenas de militantes e atividades de diversos tipos. As festas e noitões do cineclube reuniam centenas de pessoas. Todo ano, no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, o Frank organizava e ministrava uma oficina de formação cineclubista, sempre com muita participação. E foi nesse nosso cineclube que realmente percebi a dimensão da capacidade de comunicação e a empatia que o Frank tinha: ele fazia dos debates uma experiência de trocas entre as pessoas, sem qualquer constrangimento, comum nessas situações. Todos, absolutamente, “espontaneamente”, falavam nos debates que o Frank animava.
Acho que todos esses trabalhos, do PopCine, das
oficinas, dos encontros nacionais e internacionais, do CC Latino-Americano,
baseados, claro numa visão compartilhada, no respeito mútuo, na amizade enfim,
fizeram que muita gente nos visse como uma dupla: dois caras de cabelos
grisalhos, “velhos” animados de cineclubismo, de inconformismo e de vontade de
transformação social. Que orgulho!
Bom, o próprio sucesso do cineclube acabou levando à
sua expulsão do Memorial, quando o País se polarizava e as tendências
antipetistas e antidemocráticas ganhavam todo o espectro da direita, inclusive seu
lado mais liberal, que comandava o espaço da nossa atuação e se sentia ameaçado
com a presença de um público jovem, autônomo, e que crescia sem parar. Isso foi
em 2015, não muitos meses antes do golpe parlamentar do ano seguinte.
Eu vim para Montreal, continuar meus estudos, e o
Frank voltou para sua “casa”, isto é, o cineclube Darcy Ribeiro (não deixem de
ver o filme sobre a trajetória do cineclube em https://www.youtube.com/watch?v=sncXPzaRmcM). Um pouco antes disso ainda demos juntos uma
esticadinha até Florianópolis - e o cineclube Ó Lhó Lhó, que anda promovendo
várias ações importantes, costuma dizer que suas origens estão também na
oficina que fizemos por lá.
Nunca perdemos o contato. Cada texto que eu escrevia,
pedia antes para ele opinar. De tempos em tempos revíamos a conjuntura
brasileira, em longos papos pela internet. O Frank sempre ativíssimo nas redes
sociais, ou indo para as ruas se manifestar. Mais recentemente, na pandemia,
sempre com a Eliana e a filha Júlia, ajudava a preparar e distribuir cestas
básicas.
Como disse no início, é com gente como o Frank que se
constrói um panteão identitário, político, de um movimento como o cineclubista.
Inteligência, coragem, constância, coerência. Que saudade!