segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

 

Patrimônio cineclubista

No dia 3 de janeiro publiquei no meu blogue um texto em memória do nosso companheiro Frank Ferreira. Em seguida, como sempre fiz, mandei o mesmo texto para o grupo e lista dos cineclubes brasileiros, a cncdialogo. E então descobri que ela não existe mais. A empresa Yahoo, depois de várias movimentações acionárias e corporativas, decidiu apagar todos os grupos de discussão que mantinha.

A cncdialogo foi criada em 2004 por João Batista Pimentel, então diretor de Comunicações do Conselho Nacional de Cineclubes. Creio que foi seu primeiro ato depois de eleito na 24ª. Jornada Nacional de Cineclubes, que reorganizou a entidade nacional dos cineclubes brasileiros depois de cerca de 15 anos sem nenhum congresso ou forma de representação nesse nível. Pimentel teve a sabedoria de fazê-la completamente livre, sem moderação, isto é, sem hierarquias ou interferências de qualquer tipo. O que para alguns era uma ousadia, um risco, acabou se mostrando o grande motor de participação e democracia do movimento cineclubista brasileiro.        

A cncdialogo cresceu rapidamente. Não sei em que altura ela atingiu a marca de 1.200 inscritos, que foi, de fato, a média do número de participantes durante muitos anos, até seu apagamento pela Yahoo. A própria informalidade a fez sobreviver a todas as crises do movimento. O CNC se desarticulou uns 8 anos depois, e até hoje, em que pese as diferentes ações para a sua rearticulação, o movimento cineclubista brasileiro nunca mais se reuniu de maneira sistemática e amplamente representativa como entre 2004 e 2010. A própria lista dos cineclubes também oscilou bastante. Tendo chegado a picos de 800 mensagens por mês, ou mais de 25 mensagens por dia, sua movimentação caiu muito nos últimos tempos. Em momentos mais gloriosos – se cabe o termo – a lista hospedou debates acirrados, às vezes profundos, como na movimentação nacional dos cineclubes em torno da questão “Cineclube e Educação”, que criou eventos em alguns estados; na polêmica sobre as ações da organização Fora do Eixo junto aos cineclubes (e realizadores); nas trocas de relatórios de avaliação das sessões organizadas para o programa Cine+Cultura; sobre alguns temas programáticos do movimento ou sobre a legitimidade das Jornadas realizadas em 2013, 2015 e mesmo 2019, entre os temas de que me lembro agora, de improviso.

Participei ativamente destas e de outras discussões. Houve uma queda significativa do movimento na lista - inclusive defendida e depois promovida ativamente por um grupo de cineclubistas que propunham e depois criaram, mecanismos mais privados, digamos, de comunicação. Sempre entendi, entretanto, e como muitos outros, que a lista era uma espécie de garantia de comunicação entre os cineclubes, especialmente em fases de refluxo organizativo. Mas não só diante de crises; a lista de dialogo sempre estava lá para consultas entre experiências similares, para divulgação de atividades, para consultas e busca de informações diversas, enfim para qualquer tipo de manifestação que, potencialmente, qualquer um de seus mais de mil aderentes quisesse fazer.

Com muitos milhares de mensagens, cobrindo 16 anos da história cineclubista, a lista era uma base documental, uma fonte primária fundamental e insubstituível para a pesquisa. Sempre pensei que, um dia, alguém faria uma dissertação ou tese a partir desse material, agora irremediavelmente perdido, ao que parece.

Não deixa de ser significativo que apenas eu – e uns 20 dias depois do fato – tenha notado, ou me manifestado sobre esse acontecimento que certamente não é insignificante para os cineclubes brasileiros, seu estudo, sua memória e sua história. Quando houve os primeiros sinais de mudança na corporação Yahoo, tentei me comunicar com quem pudesse prevenir de alguma forma essa perda. Não procurei o pessoal que hoje utiliza a marca CNC porque eles já laboravam contra a lista; entre eles a substituíram por um grupo de WhatsApp mais exclusivo de seus seguidores – apesar de também usá-la em algumas situações, o que confirma a importância da lista. De qualquer modo, não houve nenhuma iniciativa real – que eu saiba – para salvar a lista. Pessoas que trabalham ou conhecem informática bem melhor que eu me informam que agora é definitivo: todas as mensagens estão apagadas, perdidas, inacessíveis para os possíveis interessados. Também não podemos mais enviar mensagens “para o movimento”, uma sensação muito ruim que senti agora, com a questão do Frank Ferreira. E com esta mensagem.

É claro que a principal razão para tudo isso é a própria privatização da internet, dessas tristes redes sociais que nada têm de sociais, mas são controladas, vigiadas e monetizadas por corporações particulares. E essas são hoje as maiores empresas da economia global! É evidente que a lista dialogo – e tantos outros milhares de grupos eliminados - constituía um patrimônio público, de interesse coletivo, social, e não deveria ser manipulada dessa forma.

Mas é indiscutível também que o movimento cineclubista brasileiro - que havia criado essa ferramenta original e potente – demonstra por sua omissão uma fragilidade que hoje faz parte do seu perfil. Além da lista perdemos o domínio exclusivo e gratuito cineclubes.org que aquela primeira direção do CNC havia obtido e que qualquer cineclube poderia usar gratuitamente e com exclusividade.