quinta-feira, 28 de outubro de 2021
Este artigo foi preparado para discussão dentro do grupo de estudos Ponto de Encontro Cineclubista, que reúne cineclubistas e pesquisadores de cinema voltados para o tema. O próprio título do texto foi dado pela reunião que me atribuiu a tarefa. Está pensado para o contexto do grupo. Assim, é um tanto provocativo, pensando nas questões que penso poder suscitar, apesar da relativa brevidade do texto, um debate interessante entre os membros do grupo; também traz várias indicações bibliográficas, mas menos no sentido de justificar as afirmações feitas – como soem ser as referências mais acadêmicas – e sim para fornecer informação para outras pesquisas que tenham a ver com os trabalhos dos companheiros.
Heteroglossia
Falar sobre conceito de cineclube remete à necessidade de esclarecer, inicialmente, o próprio termo. Palavras, como indicou Bakhtin, são os signos principais da comunicação humana, no sentido de que, não sendo os únicos, são os mais gerais e ubíquos: retornamos sempre às palavras para tratar, mesmo na reflexão subjetiva, de toda a realidade, inclusive dos outros signos e sistemas de signos que utilizamos. Mais que isso, o pensador russo mostrou que os signos, ligados à transformação da realidade – o trabalho – e produzidos socialmente, isto é, no terreno da interação social, da intersubjetividade, são sempre, por definição, ideológicos. Cada palavra – ou melhor, ato de palavra – tem um sentido exclusivo a cada enunciação. E a este corresponde outro sentido específico, dado por cada ouvinte. Bakhtin chama esse sentido particular de tema do enunciado, e de significação o sentido que adquire uma maior permanência, adotado num conjunto social mais amplo: de grupos, comunidades, até classes sociais e, eventualmente, numa posição hegemônica mais ou menos estável na própria sociedade. Os dicionários, de fato, organizam a variação, a polissemia da maioria de seus verbetes, segundo uma ordem derivada do uso, ou seja, segundo o uso, a estabilidade dos sentidos das palavras. Para Bakhtin essa polissemia, no limite presente em cada enunciação particular, constitui uma heteroglossia: uma circulação permanente de sentidos diferentes, vozes diversas que interagem dialeticamente no campo social. O enunciado, veículo ideológico de interação social, é sempre parte de um diálogo, dialético. Assim, é também um espaço de luta de classes.
Palavras como cinema, filme ou cineclube revestem-se
de diferentes sentidos e de conteúdos ideológicos muitas vezes contraditórios.
Cinema, por exemplo, vai da mais óbvia identificação com a sala mesma, e/ou com
a atividade de lazer ir ao cinema, até a indicação de diferentes
dispositivos: a indústria do cinema, o campo cultural do cinema, a arte do
cinema. E mesmo a linguagem do cinema. E, como na fala (ou qualquer outra
linguagem adotada pela sociedade humana), os sentidos dos enunciados da
linguagem cinematográfica são igualmente estabelecidos – adotados socialmente
com maior ou menor estabilidade – pelos diferentes níveis do tecido social e,
no limite, pela compreensão individual subjetiva de cada espectador. Que é, por
sua vez, determinada pela sua inserção na intersubjetividade social. Um dos
elementos da variação de sentidos da palavra cinema é a sua repercussão em
diferentes contextos idiomáticos. Em francês – e português –, cinema está mais
associado à primazia dos Lumière e de seu aparato, o cinematógrafo; em
inglês prevalece Edison e seu produto, as imagens em movimento (moving
pictures, depois simplesmente movies). Daí podemos passar para a
palavra filme, também sinônimo de cinema para os anglófonos, que se
consolidou mais como o produto mesmo, a película que era sua base, e depois
assumiu o sentido de produto artístico, veículo da linguagem cinema e,
portanto, para a maioria, consolidado o dispositivo social do cinema, como narrativa.
Mas o filme/película não é necessariamente narrativo – nem nasceu assim, mas
como “simples” ou mecânica reprodução da realidade. Como a grande maioria dos
estudiosos do cinema admitem, a narratividade só se consolidou como sentido
hegemônico no período chamado de institucionalização do cinema, pelo
menos mais de uma década depois das experiências de Émile Reynaud, de Edison, dos
irmãos Skladanowsky ou
Lumière. A concepção de filme como narração é claramente ideológica, e vai mais
além: consolida o modelo comercial de entretenimento, baseado na transposição
de códigos literários consagrados. Hoje, parte dos cultores cinéfilos da aura
do cinema gosta de louvar as “transgressões” ou invenções que fogem aos dogmas
narrativos, esquecendo que a narrativa linear é ela mesma uma imposição do
sistema industrial de produção do cinema.
Cineclube
O mesmo se dá com o termo cineclube, evidentemente. O
conceito de cineclube tem, antes que tudo, um emprego que Gramsci situaria no
plano do senso comum, isto é, da repetição automática e acrítica de uma
ideia mais ou menos vaga, e que não se aplica concretamente aos fenômenos
reais. Em outras palavras, até mesmo os dicionários reproduzem uma mera
descrição empírica e superficial de cineclube: uma reunião de aficionados pelo
cinema. Mesmo essa ideia vaga, no entanto, tem uma origem histórica e
ideológica muito clara: os anos 20 do século passado – cerca de 30 anos depois
do surgimento do cinema – quando as elites intelectuais se apropriaram de
experiências populares contemporâneas do próprio cinema, tornando-as mais
palatáveis ao dispositivo socioeconômico dominante.
Já escrevi, inclusive, sobre as vicissitudes
etimológicas e históricas do termo cineclube, mais recentemente em dois
artigos: O primeiro cineclube? Periodização do cineclubismo – epistemologia
e ideologia e Ainda a epistemologia do cineclubismo, que estão
disponíveis em meu blogue: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/. Esses textos discorrem mais amplamente sobre a
origem do vocábulo cineclube e podem ser de interesse para complementar os
argumentos que uso aqui.
Mas descrever empiricamente o objeto: “cineclube é uma
reunião de gente que se interessa pelo cinema”, elude a compreensão do processo
que resulta na significação do fenômeno. Num cineclube as pessoas se reúnem em
torno de um filme, sem dúvida. Mas como? Para quê? Que tipo de pessoas? Em que
contextos?
As pessoas, em geral, gostam de cinema (ou de seus
muitos “derivados”, em múltiplos suportes ou mídias). Existe uma cinefilia
geral, ou comum, ao lado daquele sentido tão claramente ideológico que
identifica o gosto pelo cinema como apanágio de especialistas, de conhecedores.
Mas as pessoas também gostam de leitura, de pintura, de fotografia, de
histórias em quadrinhos e muitas outras formas de expressão, outras linguagens.
Não é só o cinema que tem seus devotos e suas instituições, no nosso caso os
cineclubes. No final do século 18, principalmente, com um aumento importante na
alfabetização, na urbanização e na expansão do proletariado, houve uma “febre
de leitura” que atingiu alguns setores dessa nova classe social. E eles se
organizaram, em clubes de leitura e bibliotecas populares
(Cavallo e Chartier, 1997), por exemplo. Mas, ainda que hoje existam alguns
clubes desse tipo, certamente estão em estado avançado de extinção – em boa
parte por causa de uma mídia que, um século depois, superou em grande parte o
que e como os livros podiam oferecer: o cinema. Bem antes, as artes visuais
tiveram suas próprias organizações, os salões, depois galerias de arte, que
existem até hoje, mas sempre foram e são instituições de e para privilegiados.
Outros salões – os que Habermas (2014) estudou como esferas públicas – também
cultivavam a leitura, talvez mais a imprensa, e o debate, e foram muito
importantes para a formação de uma opinião pública burguesa indispensável ao
ascenso da nova classe dominante. E assim por diante: diferentes públicos, eu
diria, dão origem a diferentes formas de organização – e, mais ou menos
paralelamente, iniciativas particulares dão origem a empreendimentos de tipo capitalistas,
ou se apropriam de outras, transformadas em iniciativas comerciais. São
reflexos não simétricos, na superestrutura, das mudanças nas relações de
produção.
O que esse parágrafo procura mostrar é que elas –
organizações e instituições – vivem ciclos históricos precisos, mais ou menos
extensos (como até os modos de produção, pelo menos nesta pré-história em que
vivemos), determinados, sem mecanicismos (Williams, 2011, p. 56-58: “culturas
residuais e emergentes”) pela sua adequação ao processo produtivo e às relações
sociais. Praticamente todas elas, neste momento, ou foram totalmente integradas
ao mercado capitalista – como se dá com as instituições de artes visuais – ou,
sem conseguir ligar-se organicamente à outra classe fundamental, tornaram-se
praticamente irrelevantes social e culturalmente, vegetando sem muita
perspectiva em ambientes pequeno-burgueses. Esse é também o caso dos
cineclubes, mas ainda é cedo para entramos nesse tema específico.
O público
Antes de propor uma definição mais abrangente para
cineclube é necessário examinar o conceito de público. Esquenazi (2006), em seu
repertório de estudos do público, encontra uma proposição básica comum: público
é sempre, e se define por ser, público de alguma coisa. Ele vê quase sempre
esse público como uma sociação, termo empregado por Pierre Sorlin (1992,
p. 86-102), emprestado originalmente de George Simmel para descrever uma
reunião mais ou menos efêmera em torno de um evento comum. Alguns autores, que
reconhecem maior protagonismo dessas audiências, compreendem que seus vínculos
possam ser mais extensos do que a ocasião que os reuniu, o público
constituindo-se como algum tipo de comunidade. Mas não conheço nenhum
que trabalhe com o conceito de público como uma categoria social mais
abrangente – à exceção talvez de Kracauer (2009, e Hansen 2004), que fala do público
cosmopolita do cinema, justamente após a institucionalização deste último.
A meu ver, podemos trabalhar epistemologicamente com o
público em três instâncias: o público imediato, audiência e sujeito de
um evento; o público comunitário, compreendido no âmbito de uma
comunidade, como o de uma biblioteca ou mesmo, de forma mais ampla, o público
leitor, o público feminino, o público brasileiro, etc. e, finalmente, o público
moderno, fundado pelas particularidades inéditas do cinema no contexto do
que chamam de segunda revolução industrial ou simplesmente de modernidade (Singer,
2001, Staiger 2005, Albera, 2012), determinando, paradigmaticamente, a
disposição do público das chamadas indústrias culturais. E que, enquanto
categoria, abrange a quase totalidade da população. Corolário deste último,
devemos pensar também em um público contemporâneo, conceito que assinala
a passagem para a mídias audiovisuais. Definem-se os públicos por sua relação
com alguma forma ou meio de comunicação, do evento particular até praticamente
o conjunto da população nos dias de hoje. Com o cinema, o público atingiu
proporções inéditas, tornando-se categoria central no processo de transformação
social. Com a ampliação ainda maior atingida com a televisão e, atualmente, também
com as novas mídias audiovisuais e o mercado audiovisual planetário, o público
praticamente se confunde com o totalidade da população, com o conjunto de
segmentos que constituem um proletariado contemporâneo, constituído pelas classes que não têm acesso
aos meios de sua própria produção simbólica que, hoje, incluem e se confundem
com os meios de comunicação audiovisuais. Marx (2010) já indicava a tendência
de aglutinação da sociedade em duas classes fundamentais e antagônicas. Esse
conceito de público, em minha perspectiva, vai ao encontro de outras
formulações, especialmente as dos cineclubistas italianos Fabio Masala (1986) e
Filippo de Sanctis (1970), autores originais da Carta de Tabor dos Direitos
do Público, da ideia de oprimidos para Paulo Freire (2013), de povo
para Martín-Barbero (2013) ou mesmo da cidadania segundo Canclini (2007).
É o público, em todas essas três instâncias, que dá
sentido ao cinema: enquanto linguagem e, ao mesmo tempo, como mercadoria, ao
reproduzir, no papel de consumidor, as condições da sua produção. O cinema só
existe por causa da existência do público, e este, reversamente, se constitui
como público do cinema. Consequentemente, o mesmo se aplica ao conjunto das
mídias que constituem o dispositivo audiovisual contemporâneo.
Tal como na relação homóloga capital-trabalho operando
dentro do sistema capitalista, o público, a grande maioria da população que não
tem acesso aos meios de produção também de seu universo simbólico, constitui o
polo oposto ao do “cinema” no sentido de capital do cinema, indústria do
cinema, cinema comercial (que existe em função do lucro). Os dois polos opostos
geram instituições que disputam a hegemonia social nesse plano. Toda a
organização do sistema produtivo do cinema, sua divisão em aparatos de
produção, distribuição e exibição, assim como os formatos da linguagem
(narrativa linear, literária) e do produto (duração dos programas,
longa-metragem, ficção, documentário, etc.) e gêneros, entre outras, são
instituições geradas pelo capital. Outras instituições, como os cineclubes, as
cinematecas, o uso do cinema na educação, a experimentação, o cinema amador e
até mesmo, no limite, os cinemas nacionais lá onde não existe uma indústria do
cinema, têm sua origem no público. Estas dependem, em boa medida, de sua
tolerância pelo capital; aquelas, igualmente, mantêm-se apenas na medida em que
o público as reproduz. Ou seja, todas essas instituições estão em conflito
permanente e oscilam ou se modificam conforme a maior ou menor influência
específica de cada polo. Qualquer discurso ou narrativa cinematográfica é, como
qualquer conjunto de enunciados, um espaço de heteroglossia e luta de classes,
segundo o contexto social, momento histórico, etc. O mesmo acontece com as
outras instituições do cinema.
O cineclube pode ser visto, numa perspectiva mais
limitada, como a do modelo elitista, como um espaço opositor ao cinema. Mas essa
é apenas a perspectiva redutora, pequeno-burguesa, de grande parte da
intelectualidade: como na suposta oposição cinema de autor/cinema comercial, ou
da defesa da diversidade geográfica, étnica ou de gênero como opositora à
produção hegemônica. A oposição é, na verdade, mais ampla que essas, mais profunda,
estrutural: o cineclube é um paradigma opositor ao cinema capitalista, é
o embrião, a base da superação dessa forma de dispositivo cultural,
justamente por se constituir como organização do público.
O paradigma do cineclube como organização do
público
O cinema, enquanto dispositivo social, econômico,
cultural, ideológico se constitui no processo de desenvolvimento da reprodução
das imagens em movimento e sua adequação ao sistema das mercadorias. Em outras
palavras, desde a luta pela supremacia de um processo – o cinematógrafo –, até
a consolidação do cinema como mercadoria, seu processo de produção, circulação,
consumo, que envolve a linguagem e outros aspectos. Desde a mítica exibição de
28 de dezembro de 1895 até os nickelodeons; destes até Intolerância, passando
pelo processo de transição ou de institucionalização, que culmina
com a consolidação de todas as mais importantes instituições do cinema.
Homologamente, o público que se espantava com a
novidade das imagens em movimento, em seguida se divertia com a cinematografia
de atrações de feiras e mafuás, depois vaudevilles, teatros de revista e
outros, também encontra uma forma mais sólida a partir dos nickelodeons
e sua audiência mais ampla: a do proletariado, que também estava ainda em fase
final de formação. Mas é apenas no final daquele período, atingindo o que
Kracauer chamou de público cosmopolita (weltstadt publikum), constituído
por um leque social ainda mais amplo, que o cinema constitui, assimila e
domestica seu público. Esse é, então, o público moderno. Cinema e
público se formaram como opostos dialéticos do mesmo processo.
Evidentemente, esse percurso, dos primeiros
kinetoscópios e cinematógrafos até a projeção de longas-metragens nos palácios
de cinema, com a audiência enquadrada por lanterninhas, não foi linear, sem
muitos conflitos. Já falei bastante sobre isso, em artigos esparsos
(disponíveis em meu blogue) ou em conversas virtuais, como as da série Passado
e Futuro do Cineclubismo, no canal YouTube do Cineclube Ó Lhó Lhó. O
cineclube, como outras instituições importantes do par conceitual
cinema-público, se forma desde o início desse processo – e, de fato, suas
origens o precedem, tal como esse processo também não surge do nada em 1895.
Práticas educativas, de proselitismo político ou religioso começaram a empregar
cinematógrafos desde a sua aparição. Logo tornaram-se atividades mais
frequentes, muitas itinerantes, em campanhas contra o alcoolismo, por exemplo,
ou para divulgação dos sindicatos. Nos nickelodeons – e outras salas
populares – a manifestação de formas de descontentamento do público era bastante
comum, levando progressivamente à organização de sessões independentes, em
organizações populares, e em salas mais estruturadas – além da produção de
filmes e noticiários – resultando em novas formas de organização desses
públicos. É, então, em torno dos anos 10 do século passado, entre 1908 e 1913 que
surge uma forma institucional definida: o que hoje chamamos de
cineclube. O Cinema do Povo[1] é o exemplo mais acabado
dessa nova forma de organização.
O cineclube não era uma “reunião de amantes do
cinema”, mas claramente uma forma de organização independente (em oposição às
salas comerciais), anticapitalista, que, na tradição da classe trabalhadora
(Williams, Thompson), se constituía de forma coletiva e democrática para ter
acesso, e mesmo criar, um cinema “que mostrasse a vida real dos trabalhadores”
– como disse um dos organizadores do Cinema dos Trabalhadores (Workmen’s Film
Theatre, 1911, Los Angeles) a jornais da época (Ross, 1999). Daí a minha
formulação das três características essenciais que definem a instituição
cineclube: o caráter associativo e democrático; a ausência de finalidade
lucrativa e o objetivo de se apropriar do cinema – no limite, de criar um novo
cinema, objetivo ligado intrinsecamente ao estabelecimento de uma nova
sociedade.
Essas
três características não se aplicam apenas aos cineclubes que surgiram no final
da primeira década do século passado. Elas são paradigmáticas para todas as
formas de cineclube subsequentes, até os dias de hoje. E mais, elas não apenas definem
cineclube, mas constituem o paradigma que se aplica ou pelo menos influencia
decisivamente, todas as formas de organização do público no campo do cinema e,
ainda, das mídias audiovisuais.
O
processo de apropriação e descaracterização das instituições do público, que
prossegue sempre, atuou fortemente sobre o paradigma criado no início do
século. De uma proposta de subversão radical e totalizante do cinema comercial,
as práticas se dividiram, se desorganizaram em alguma medida, atenuaram seus
objetivos. A criação, identificada com a produção/realização, foi afastada da
organização da recepção, e individualizada na figura do autor/realizador. A
ficção tornou-se o elemento preponderante; corolário disso, a documentação da
vida – da identidade e memória do público – e sua preservação, também se tornaram,
nos anos seguintes, função especializada, isto é, as cinematecas. O aspecto
pedagógico e político da formação do público também foi afastado,
especializado, criando outra linhagem, a do cinema educativo, reduzido inicialmente
ao chamado filme “científico”, e nunca “legitimado” pelo cineclubismo
hegemônico (nos anos 50, dos cerca de 10.000 cineclubes existentes na França,
8.000 eram de uma federação de “cinemas educativos”, a UFOLEIS - União Francesa
das Obras Laicas pela Imagem e Som, fundada em 1933).
Todas as práticas e organizações ligadas a essas
“ramificações” da organização paradigmática do público apresentam, no entanto,
em algum grau, os elementos de associativismo, ausência de finalidade lucrativa
e objetivo de apropriação do cinema. O mesmo já se observa, também, em muitas
das novas práticas de comunicação que chamo de audiovisuais: as rádios e tevês
comunitárias ou piratas, e blogues, vlogues e outros canais de comunicação pela
internet, em que pese o incentivo geral às iniciativas de caráter pessoal
(característica da classe dominante), o controle da chamada propriedade
intelectual e a forma de assalariamento modificada (em contraposição ao
financiamento coletivo) que busca ou efetivamente controla grande parte das
iniciativas de maior repercussão – além dos mecanismos de policiamento de
conteúdo exercidos pelas grandes corporações que controlam esses espaços e por
diferentes agências policiais governamentais
Falência do modelo
Os anos
20 e parte dos 30 estão marcados por esse processo de apropriação,
descaracterização e enfraquecimento das organizações do público –
dialeticamente articulado com a sua difusão internacional. O modelo de certa
forma “atenuado” do cineclubismo transformador, revolucionário, que o
antecedeu, tornou-se dominante e, aceito institucionalmente – com muitas
querelas com a censura – e, mais ou menos tolerado pelo comércio do cinema,
espalhou-se pelo mundo inteiro. Esta última observação deve, no entanto, ser um
pouco relativizada: a região que mais estimulou organizações do público
trabalhador, a União Soviética, foi ostracizada, ignorada em todos os aspectos
pela cultura dita ocidental. A tal ponto que pouco se conhece dos clubes
operários de cinema que, no entanto, formaram a base inicial de todo o cinema
dos países da URSS. Nos Estados Unidos, a outra potência cinematográfica que justamente
se consolida definitivamente (até agora) nessa época, a presença acachapante da
indústria hollywoodiana também obscurece o papel dos cineclubes mais ou menos efêmeros
(com notáveis exceções), também presentes sobretudo nos ambientes proletários e
universitários.
A nova
Guerra Mundial também teve um papel nesse processo de expansão, mas
praticamente interrompendo-o; ele foi, contudo, retomado de forma quase explosiva
logo após o encerramento do conflito. No final dos anos 40 e início dos 50 o
número de cineclubes aumenta exponencialmente na Europa, principalmente, e
também tem um notável crescimento em toda a América Latina. É a “idade do ouro”
dos cineclubes, a retomada criativa da cinefilia elitista, que vai alimentar
uma geração de “novos cinemas” em todo o mundo – inclusive o Cinema Novo
brasileiro. Essa movimentação cultural é também muito influenciada pelas novas
tecnologias de portabilidade e de reprodução do som – num paralelo, talvez, com
o papel que tiveram os “pequenos formatos” de captação e exibição de imagens
nos anos 20.
O ápice
desse processo é interrompido com a disseminação da televisão. Sua difusão muda
bastante o cenário do cinema comercial, induzindo uma reorganização geral –
isto é, a partir do centro que monopoliza o cinema mundial. Com exceção dos
países centrais – Europa e América do Norte anglófona – o cinema se torna um
produto de consumo limitado às regiões e camadas sociais mais ricas. Com outras
formas de consumo audiovisual, que não param de surgir, o processo de
individualização do acesso se acentua, o que ajuda a abalar ainda mais as
práticas cineclubistas elitistas. É o próprio modelo de “adaptação crítica” ao
cinema comercial, de cinefilia de autor, que torna esses cineclubes mais
vulneráveis à expansão econômica e tecnológica do capitalismo. A cinefilia vai
para o terreno do consumo privado. O cineclubismo sofre um impacto importante,
diminuindo muito em número nos países centrais (anos 70) e quase desaparecendo
nos países de médio e baixo desenvolvimento econômico e social. O fato de
muitos países da África e do Sudeste da Ásia alcançarem a independência mais ou
menos na mesma época – nos anos 60 -, de maneira pouco organizada, não apenas
dificultou ou mesmo impediu a consolidação de um movimento cineclubista
próprio, mas na verdade praticamente incapacitou esses países a desenvolverem
um cinema nacional.
Nos países centrais, hegemônicos, o cineclubismo
mantém as mesmas características de sua idade do ouro, mas sem o mesmo impacto
social ou cultural. Tornou-se parte do grande cenário do cinema comercial, uma
forma de cultura residual perfeitamente integrada: fornece um pouco da
diversidade que o cinema comercial não oferece, sem realmente contestá-lo, isto
é, concorrer, de qualquer maneira que seja, com ele. Sob formatos inspirados
nesse modelo, a maioria dos cineclubes de países mais ou menos periféricos
mimetizam esse processo. Mas sem as mesmas estruturas sociais, oferecem uma
espécie de pastiche do cineclube de país desenvolvido: o cinema de autor
praticamente se confunde com o cinema nacional (conceito também
indiscutido) – que não existe como indústria cultural – e a busca pela
originalidade, diversidade e afirmação contracultural se encontra nas produções
amadoras, frequentemente produzidas pelos próprios mentores desses cineclubes,
eles mesmos buscando alguma identificação com a figura mítica do autor.
Aproveitando e adaptando um pouco minha exposição dentro do 1º. Seminário de
Cineclubismos Latino-americanos, de julho deste ano:
“No
Brasil, especialmente, já não se encontram praticamente cineclubes organizados
como associações. Disso decorre um virtual rompimento da ligação com as
comunidades em que atuam, pois elas não estão representadas, para além do
desejo ideal dos animadores dessas atividades, nos ditos cineclubes. Afirmar
que não têm fins lucrativos também perdeu parte do sentido, já que a maioria
depende da sustentação do Estado – paradoxalmente muito pouco presente – ou de
algumas poucas instituições de ensino que, por sua vez, frequentemente
determinam uma parte do seu trabalho, retirando-lhes parte da autonomia. Os
cineclubes mantêm a diretriz de passar filmes relevantes, é verdade, e de
realizar debates, geralmente centralizados numa figura de autoridade: alguém da
produção do filme exibido ou um especialista acadêmico. A relevância do que é
exibido é determinada pelo gosto institucional dessa classe média: o tal do
cinema de autor e um compromisso com o cinema nacional.”
Perspectivas
Aproveitando, ainda, a mesma apresentação:
“Não
é mais possível usar a palavra cineclube com um significado unívoco: seu
sentido se diluiu, perdeu aquela precisão paradigmática – que apenas ronda,
como um fantasma residual, as diferentes práticas que encontramos.
E não
existe ainda uma concepção unitária de como organizar o público, as comunidades
em que vive, para um mundo em que as mídias – que quase por definição, hoje,
são audiovisuais – estão omnipresentes e constituem o principal elemento e
ambiente de mediação das relações sociais no plano simbólico.
Os
cineclubes, e o público, têm diante de si o desafio de se apropriar das mídias
que hoje ocupam o papel que o cinema teve no século passado.”
A falência do modelo cinéfilo e elitista não
significa, em absoluto, o fracasso da instituição cineclube, mas apenas a crise
da concepção pequeno-burguesa e, num certo sentido, “reformista” de cineclube.
Os cineclubes não surgiram, e não se confundem, com lugares de culto à aura
(Benjamin, 1935) cinematográfica e de educação bancária (Freire, 2013) “do
olhar”. Com o dispositivo do cinema como referência, essas primeiras
organizações do público tinham como objetivo propiciar sua expressão através da
então relativamente nova mídia, apropriando-se dela em todos os aspectos:
produção, circulação, recepção, assim como sua aplicação como elemento de
preservação da memória, de promoção da identidade e da autoconsciência
histórica (educação) das classes dominadas sob o jugo capitalista.
Mas o cinema, na
verdade, constituiu apenas o processo inicial do estabelecimento de um
dispositivo mais amplo, das mídias audiovisuais (Elsaesser, 2018); o cineclube
contemporâneo tem, portanto, como objetivo, a organização do público para
que este se aproprie do dispositivo midiático. Diante da crise generalizada: do
modelo elitista, da fragmentação e dispersão de outras iniciativas do público,
da falta de compreensão e direção unitárias diante da situação, além das crises
complementares que afetam outras formas de organização popular, em outros
campos – sindical, partidário, etc. –, o grande desafio do cineclubismo é
encontrar as formas de superação dialética da situação presente. Sob pena de
permanecer numa condição de irrelevância política, social, cultural e de adiar,
de forma importante, a construção de uma sociedade justa, igualitária e livre:
objetivo do qual se origina e que constitui sua maior finalidade.
Procurando resumir
o que na verdade é matéria para muita discussão, o cineclube contemporâneo deve
construir a adequação de sua tradição popular, do paradigma cineclubista, aos
meios de comunicação da atualidade, às mídias audiovisuais. E essa não é uma
questão técnica, mas uma tarefa política que envolve a rearticulação do próprio
cineclube, da sua organização, e de suas formas de integração e
representatividade em relação às comunidades em que se instituiu – além, é
claro, do domínio das técnicas e da capacidade de criar novas formas de
expressão e de comunicação através delas.
Atualizar – no
sentido mais profundo, fazer essa adequação histórica – o cineclube implica na
ressignificação das suas características “tradicionais”. Assim, o caráter
associativo e democrático precisa ser retomado com seriedade, através de formas
de participação e integração permanentes e abertas, e de práticas inclusivas,
que permitam a sistemática incorporação de um público ativo, consciente e
participante. A questão da finalidade não lucrativa deve ser melhor
compreendida, e superado o “gratuitismo” que contamina os cineclubes,
mantendo-os em situação de dependência externa à comunidade, sem condições de
sustentabilidade real e sem os vínculos que deve estabelecer com seu público. Incontáveis
novas formas de sustentação e crescimento podem ser descobertas e desenvolvidas
com os novos meios – além daquelas tradicionais. E a apropriação, claro, deve
incluir a teledifusão, os novos formatos (aplicativos, videogames,
canais web, blogues, vlogues, lives, etc.) e “suportes”
propiciados pela rede internacional de dispositivos cibernéticos (televisores,
computadores, celulares, etc.). A noção ideológica de filme, que comentei mais
atrás, também deve ser superada: a reprodutibilidade técnica e simbólica da
realidade através dos meios audiovisuais inclui, para além do filme de ficção
ou documentário, a reportagem, a entrevista, a captação e difusão de todos os
eventos e espetáculos esportivos e culturais (apresentações musicais, de dança,
bailes, feiras e outras manifestações) da comunidade e de interesse do público
do cineclube. A experiência presencial é
intrínseca e indispensável ao cineclube. Mas, além das exibições retangulares
em salas especiais às escuras, a acessibilidade quase universal aos conteúdos
(sem as limitações da aceitação e reprodução do controle da propriedade
intelectual) permite a organização de outras “salas” e públicos, em outras
disposições, quantidades, sistematicidades e finalidades. Em minha exposição na
série Passado e Futuro do Cineclubismo, no terceiro encontro, justamente,
O Futuro do Cineclube[2],
apresento logo no início uma brincadeira com a história do Cineclube Revolição,
que busca exemplificar mais concretamente como se podem dar essas mudanças e
ressignificações.
Montreal, outubro de 2021, ano II
da Pandemia.
Felipe Macedo
Bibliografia citada
ALBERA, François. 2012. Modernidade e Vanguarda do
Cinema. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). 2014. Marxismo e
Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec Editora.
BENJAMIN, Walter. 1935. A obra de arte na era da
sua reprodutibilidade técnica. http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/02_babel/textos/benjamin-obra-de-arte-1.pdf
CANCLINI, Nestor García. 2007. Lectores,
espectadores e internautas. Barcelona: Gedisa.
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