O primeiro
cineclube?
Periodização do
cineclubismo – epistemologia e ideologia
A Federação Internacional de Cineclubes (FICC)
divulgou recentemente em seu blogue[1] a proposta da Federação
Portuguesa de Cineclubes (FPCC) de adoção de um Dia do Cineclubismo, baseado na
criação do “primeiro cineclube”, de Edmond Benoit-Lévy, em 1907. Em 2013,
contudo, na Assembleia de Túnis, a FICC havia comemorado o centenário do cineclubismo,
considerando o Cinéma du Peuple, de 1913, como marco inicial da nossa
atividade. A referência mais antiga, salvo engano, deve-se à proposta de Paulo
Cunha, pesquisador do cinema e do cineclubismo português, divulgada no número
46 da revista Cinema, da federação de Portugal. A ideia do Cinema do
Povo francês como primeiro cineclube decorre de um texto meu, publicado no
único número da revista Cahiers des Cinéclubs, de 2010.
Esta possível polêmica me parece muito bem-vinda. Ela
sinaliza para a discussão da validade epistemológica das pesquisas sobre o
cineclubismo, e isso é sinal de uma crescente importância do tema. O que pode
até constituir um prenúncio de uma disciplina: os estudos cineclubistas
ou de cineclubismo. Meio que à guisa de parênteses, lembro que uma série de
novos campos de estudo, antes desconsiderados, passaram a ser legitimados
por volta do centenário do cinema: exibição, distribuição, o próprio
documentário e até a cinefilia, que passou perto do nosso tema. Mas os
cineclubes, sempre presentes nas notas de pé de página de diferentes trabalhos,
não estavam ainda entre aqueles assuntos. No entanto, uma espécie de onda de
artigos, dissertações e mesmo teses vem acontecendo nos últimos anos. É
positivo que esses textos eventualmente se questionem entre si. E assim voltamos
à nossa polêmica.
É praticamente certo que a primeira referência pública
ao termo cineclube se deva realmente ao empresário Edmond Benoit-Lévy, em sua
revista Phono-ciné-gazette, lançada inicialmente em 1905 e publicada até
1909 – e que foi a mais importante publicação corporativa desse período inicial
do cinema na França. Essa já é uma constatação muito importante, pois cancela o
equívoco que atribuía a Louis Delluc e seu Journal du Ciné-club não
apenas a “invenção” da palavra como a própria criação do primeiro cineclube, em
1920. Um aspecto muito positivo desta discussão de agora é que ela indica a
superação definitiva daquela desinformação “fundadora” sobre o cineclubismo. Em
boa hora!
O pesquisador cineclubista mexicano, Gabriel Rodríguez
Álvarez, atual secretário-geral da FICC, também já demonstrara a existência de
um Cinematógrafo Cineclub, em 1909, na capital do seu país. Ele, contudo,
indicou que se tratava apenas de uma marca, um chamariz para a atividade
comercial de um exibidor de tipo mais tradicional, não de um verdadeiro
cineclube. De fato, nós brasileiros também podemos entrar nessa disputa: houve
um Clube de Cinema em Sobral, no Ceará, em 1912. Fragmentos de um jornalzinho
do tal Clube estão na Biblioteca Nacional. Neste caso, sem muita informação
adicional, o que pudemos inferir é que se tratou de uma das muitas atividades
oferecidas por uma agremiação da oligarquia local, que promovia bailes,
concursos da mais bela jovem sobralense e fazia projeções também, entre outras
atrações. Mas era um clube...
É muito importante na pesquisa histórica situar o
contexto. Quando digo que é provável que o termo cineclube tenha surgido na
revista de Benoit-Lévy, estou considerando que clubes designavam formas
de organização e de entretenimento desde pelo menos a Revolução Francesa, na
tradição latina, e os clubes de cavalheiros, assim como os clubes de
trabalhadores, no universo anglófono. Parte importante da cultura da época, era
relativamente comum atribuir esse nome a diferentes formas de associação. Por
outro lado, o papel de paladino do cinema de Benoit-Lévy, papel que situaremos
melhor adiante, permite pensar que ele fosse o criador da junção dos dois
termos, clube e cinema.
O que, então, legitima epistemologicamente uma dessas
alternativas de periodização do cineclubismo citadas acima? 1907, 1909, 1912 ou
1913? Creio que precisamos, antes de mais nada, identificar o que seja
cineclube. E, se concordarmos com uma definição, temos que ver se ela
corresponde ao fato histórico. Em seu saite, a FPCC explica:
“A FPCC escolheu
o dia de 14 de abril com base em factos históricos, nomeadamente quando em
1907, Edmond-Benoit-Lévy, director da revista Photo-Ciné-Gazette anuncia a
fundação do primeiro “ciné-club”, instalado no boulevard Montmartre, 5, em
Paris. Este primeiro “ciné-club” situava-se nas instalações do cinema Pathé
Omnia, um dos primeiros cinemas de Paris, inaugurado no ano anterior. Este
“ciné-club” propunha à sua comunidade um local de reunião, uma sala de projecção,
uma biblioteca e um “boletim oficial do ciné-club”. Em suma a comunhão
da comunidade com a cultura e assim “trabalhar para o
desenvolvimento e progresso do cinematógrafo sob todos os pontos de vista''. (o
destaque é meu. O texto pode ser acessado em https://www.fpcc.pt/?page=noticias_ver&id=34)
Estou disposto a concordar com a ideia ampla de que o
cineclube deva ser um espaço de “comunhão da comunidade com a cultura”. Não é
uma definição muito trabalhada, mas nos basta aqui, no âmbito restrito desta
discussão. Essa definição e a questão da primazia da expressão cineclube, no
entanto, esgotam nossas afinidades. Explico:
Edmond Benoit-Lévy (1858-1929), advogado de formação,
foi o que hoje chamaríamos de um grande empreendedor do cinema, batalhando pela
afirmação do novo meio de expressão desde seus inícios. Nos primeiros anos do
século 20, Benoit-Lévy virou exibidor, associando-se à Pathé Filmes – a maior
empresa mundial de cinema até o final da primeira década – em inúmeras
atividades[2]. Além da revista já
citada, em 1906 ele dirige o Omnia Pathé, onde lança o tal “cineclube”, que
teria, além da sala do cinema, um lugar para reuniões, uma biblioteca e um
boletim oficial do cineclube, cujo objetivo é “trabalhar pelo
desenvolvimento e progresso do cinematógrafo sob todos os pontos de vista”
(Mannoni, p. 170). Acontece que “nem o boletim, nem as reuniões, nem a
biblioteca se tornaram realidade. Por outro lado, a finalidade corporativa
dessa associação não dá lugar a nenhuma dúvida.” (Gauthier, p. 25). Eu
acrescentaria que faltou também uma denominação mais completa do que
simplesmente “cineclube”. Em 1908, Benoit-Lévy está envolvido em produções e,
em 1911 cria uma “Associação Francesa do Cinematógrafo”. Tal como o
“cineclube”, seu objetivo é “reunir os profissionais para além de seus
interesses setoriais para a promoção do cinema francês” (idem).
Em resumo: o tal cineclube nunca existiu de fato, não passou de uma floreada intenção publicada na revista: não me parece pertinente estabelecer a data de sua “fundação” como o Dia do Cineclube. Pesquisa tem dessas coisas: eu mesmo, e outros cineclubistas, “criamos” um Festival do Novo Cinema, nos anos 80, que nunca foi mais que um projeto, mas que tinha estatutos e regulamento; algum pesquisador pode encontrar uma referência a isso e, sem outras comprovações, tomá-lo como real. Conheço, de fato, diversos outros casos desse tipo.
Mas tem outra coisa, esse projeto do Benoit-Lévy não tinha nada a ver com “comunhão da comunidade com o cinema”. Foi uma tentativa de reunir empresários e outros profissionais – particularmente atores - para a valorização do seu negócio. Muito justo, lá com eles, mas não se trata, evidentemente, nem de cineclubismo nem do tipo de comunidade que costumamos associar à ideia de cineclube. O próprio texto do blogue da FICC que citamos inicialmente destaca: “Os Cineclubes são colectivos populares, próximos do público, envolvidos com o público.”
O texto da FPCC prossegue, indo diretamente de 1907
para 1920: “Este movimento colectivo (? – minha interrogação) cessou
ao fim de pouco tempo, mas é retomado em 1920 pelo realizador Louis Delluc e
alguns amigos, que fundam no início do ano o Ciné-club de France”. Ou seja,
os companheiros d’além-mar também não reconhecem a existência de cineclubes no
período entre estes que citam. Ora, a adoção do Cinema do Povo como “primeiro
cineclube” pela FICC, em reunião plenária com cerca de 40 países na assembleia
realizada na Tunísia, baseia-se na Carta de Tabor dos Direitos do Público
– igualmente adotada em grande assembleia-geral, mas em 1987 – que reconhece o
cineclube como uma organização do público. Identificando o cineclube com
seu público, a indicação do Cinema do Povo baseia-se nas formas progressivas de
organização das comunidades populares que acompanham o próprio desenvolvimento
do cinema e vão se estruturar como associações sem fins lucrativos – clubes,
cooperativas e outras - dedicadas ao conhecimento e expressão através do cinema
por volta dos anos 10 do século passado.
Também seguindo esse raciocínio, é bem difícil estabelecer uma data única e precisa para o surgimento, de certa forma o amadurecimento, de um cineclube – que não dependeu de um empresário, inventor ou artista, mas germinava simultaneamente em vários países, junto a diversos públicos de cinema. Assim como estabelecer que o cinema “nasceu” com a primeira exibição dos irmãos Lumière – o que é, a rigor, incorreto – também adotar uma data comemorativa do cineclubismo envolve uma tomada de posição de caráter, afinal, político. Ainda que deva ser epistemologicamente sustentável.
É possível, e até provável, que o Cinema do Povo não
tenha sido “o primeiro cineclube”; inúmeras organizações surgiram naquele
período[3], como por exemplo o Cinema
dos Trabalhadores, de Los Angeles, em 1911. Mas é nessa época que os cineclubes
estavam se consolidando, se institucionalizando (como já vimos, o nome não tem
uma relação direta com a forma de organização que define o cineclube). E o
Cinema do Povo é o (primeiro) mais completamente documentado, com estatutos,
exibições, debates e produções bastante estudados[4] e mesmo preservados. É um
detalhe menor, mas certamente não é desprezível a “coincidência” da data de
fundação do Cinema do Povo e seu aniversário de 100 anos por ocasião da reunião
de Túnis. A proposta da Federação Portuguesa também encontrou uma certa
coincidência com o fato do Cineclube do Porto, o mais antigo do país, ter sido
fundado quase no mesmo dia do mês que o cineclube do Omnia Pathé (no dia
seguinte, destaca a revista), algumas décadas depois.
É essencial que os fundamentos epistemológicos para a datação ou periodização histórica sejam precisos, consubstanciados e contextualizados. Mas a adoção dessas datas como efemérides identitárias, políticas, depende igualmente de posicionamentos de caráter ideológico. Podemos, eventualmente, “esticar” esta discussão ad nauseam, mas a questão permanece: que tipo de cineclube queremos reconhecer e comemorar? O comercial (1907 ou 1909), o recreativo (1912), ou o popular (e político - 1913)?
Espero que os companheiros portugueses não interpretem
mal minha discordância. Ela é baseada no reconhecimento do trabalho de
investigação realizado, assim como da iniciativa de estabelecer uma data
identitária que aproxime os cineclubes de todo o mundo. Creio que essa ideia é
rica em potencialidades e que devíamos realmente procurar essa efeméride – mas
estribada em outra ocasião e argumentos.
Felipe
Macedo
Montreal
– abril, 2021
Obras citadas (além das que constam nas notas):
MANNONI, Laurent. 1994. « Cinéclubs et clubs »
em Dictionnaire du cinéma mondial. Mouvements, écoles, tendances, courants,
genres. VIRMAUX, A. e O. Paris, p. 170-175.
GAUTHIER, Christophe. 1999. La Passion du cinéma.
Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. Paris :
AFRHC, p. 25.
ROSS,
Steven J. 1998. Working Class Hollywood – Silent Film and the Shaping of
Class in America. Princeton: Princeton University Press, p. 103-105
_____________.
2002. Movies and American Society. Oxford: Blackwell Publishing, p. 61.
[1] https://infoficc.wordpress.com/2021/04/10/14-de-abril-de-2021-dia-nacional-do-cineclube/ divulgado em abril de 2021.
[2] Benoit-Lévy tem uma
expressiva carreira no campo da projeção de imagens, tendo participado da
famosa Liga do Ensino, instituição educativa laica centenária, e que existe até
hoje, e depois, da Sociedade Nacional de Conferências Populares, muitas vezes
ilustradas com “projeções luminosas”, isto é, de lanternas mágicas. Também
trabalhou com Michel Coissac em atividades semelhantes, mas ligadas à Boa
Imprensa, organização da Igreja católica. Isso tudo ainda no século 19. Em
1898, contudo, Benoit-Lévy abandona a advocacia e logo passa a ocupar diversas
posições na nascente indústria do cinema. Exibidor, dirige o Omnia Pathé, em
associação com a empresa homônima. Está ligado, de uma maneira ou de outra, a
inúmeras iniciativas de organização de empresários e profissionais do cinema,
com diversas denominações, desde o “cineclube” de que tratamos aqui, até a
importante produtora SCAGL (Sociedade Cinematográfica dos Autores e Gente das
Letras), também ligada à Pathé. Em 1907, Benoit-Lévy produziu o Enfant
Prodigue (este com a Gaumont), um longa-metragem, coisa
absolutamente incomum para o período, que não teve sucesso. (de textos de Jean-Jacques Meusy -
« Qui était Edmond Benoit-Lévy ? », in Les vingt premières années
du cinéma français, actes du colloque de la Sorbonne nouvelle, 4-6 novembre
1993, Paris, Association française de recherche sur l'histoire du cinéma,
Presses de la Sorbonne nouvelle, 1995, p. 115-143, e « Aux origines de la
Société cinématographique des auteurs et gens de lettres (S.C.A.G.L. ) : le
bluff de Pierre Decourcelle et Eugène Gugenheim », in: 1895, revue
d'histoire du cinéma, n°19, 1995. pp. 6-17, além da bibliografia citada ao
final.
[3] Hoje já existem diversos
autores trabalhando com cineclubes do início da segunda década do século
passado. Lembro aqui o importante trabalho de Steven Ross, Working Class Hollywood – Silent Film and the Shaping of
Class in America, que cita inúmeros exemplos, desde um cinema de
Chicago organizado por militantes “para difundir propaganda socialista... para
os milhares de pessoas que frequentam as salas de 5 e 10 centavos”, já em 1909
(p. 105). Em 1913, “socialistas e sindicalistas em Leeds, Inglaterra, abriram
seu próprio cinema para divulgar ‘princípios de solidariedade entre as massas’,
exibindo apenas filmes favoráveis aos trabalhadores”. “No final de 1914,
sindicalistas e radicais na Inglaterra, Holanda, França, Alemanha e Bélgica
haviam organizado cooperativas que produziam, distribuíam e exibiam filmes e
noticiários dentro e entre diferentes nações.” (p. 103). Em outro trabalho,
Movies and American Society, Ross fala mais em profundidade do Socialist
Movie Theatre (Cinema Socialista) de Los Angeles, de 1911 (p. 61). John Green, Bert
Hogenkamp, Judith Tissen, Miriam Hansen, Janet Staiger e a brasileira Edilene
Teresinha Toledo, só para citar alguns de memória, também mencionam e estudam grupos
populares organizados de trabalho com cinema nessa época.
[4] A tese de Luiz Felipe Mundim
é, a meu ver, o trabalho mais completo a respeito: O Público Organizado para
a Luta. O Cinema do Povo na França e a resistência do movimento operário ao
cinema comercial (1895-1914), disponível em https://lume.ufrgs.br/handle/10183/158300 . Há diversos outros trabalhos a
respeito, inclusive meu Cinema do Povo, o primeiro cineclube, disponível
em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html