segunda-feira, 25 de setembro de 2023

 

A contradição cineclubista

e a reconstrução do cineclubismo

A publicação de um edital do estado do Rio de Janeiro para “cineclubes, atividades de formação e festivais”[1], que regula a aplicação da Lei Paulo Gustavo, escancara o que estou chamando de contradição cineclubista. É um fenômeno análogo ao da chamada dissonância cognitiva, em que as ações de uma pessoa não correspondem a suas crenças e valores, mas que aqui está estampada na formulação e regulamentação especialmente da Lei Paulo Gustavo (que se observa também em outros textos legais relacionados ao cineclubismo). Na verdade, essa dissonância, paradoxo ou contradição se manifesta também na própria realidade dos cineclubes.

O edital fluminense é especialmente importante porque esse estado é historicamente central na organização institucional e política do cinema brasileiro, sede de várias das entidades mais importantes da produção cinematográfica e de algumas repartições públicas também fundamentais para a “indústria”. Além disso, os cineclubes do Rio de Janeiro têm igualmente uma história muito significativa e influente, tanto localmente como dentro do movimento cineclubista nacional. Certamente várias características desse edital constituirão exemplo e serão reproduzidas em outros estados, e também municípios, Brasil afora[2].

Já a contradição cineclubista consiste no fato de que as atividades que se identificam como cineclubes atualmente no Brasil não são mais cineclubes segundo a legislação brasileira. E a aplicação de um programa de política pública para cineclubes – o referido edital – é virtualmente impossível. Essa contradição, na verdade, perpassa todo o universo cineclubista: ela está presente e é central igualmente para a própria organização dos cineclubes e especialmente para a sua união em entidades representativas locais ou nacionais. A manifestação formal da contradição é o fato de que cineclubes são necessariamente associações (até por isso o termo clubes), coletivas, e não iniciativas individuais. Para que o Estado as reconheça legalmente, isto é, para que possa formular políticas públicas para os cineclubes, essas associações precisam ter alguma forma de constituição legal, tradicionalmente o registro em cartório, hoje em dia sobretudo o CNPJ. Mas, mais que isso, para comprovarem que são associações constituídas de acordo com a lei, também precisam comprovar que são associações sem fins lucrativos – que não são empresas comerciais, que distribuem seus resultados entre os associados - e que são regidas por normas democráticas, isto é, em que os responsáveis são escolhidos (eleitos) pelo conjunto dos associados, e substituídos da mesma forma periodicamente. Precisam, ainda, ser abertas, isto é, suas regras devem estabelecer condições para a entrada de novos sócios: não podem ser grupos fechados. Isto é uma definição sucinta e simplificada de associação. Ora, quantos cineclubes você conhece que são organizados dessa forma? Quantos cineclubes podem apresentar CNPJ e a documentação de sua mais recente eleição, de acordo com seus estatutos? No edital em questão há a previsão de 32 entidades contempladas com o que considero pequenos valores (como sempre, muitíssimo inferiores às quantias destinadas a outras atividades). O Rio de Janeiro é um estado com várias iniciativas cineclubistas, algumas bem conhecidas de muitos de nós. Será que, todas juntas, somam 32 entidades constituídas conforme a legislação?

Mas a contradição é mais profunda, e generalizada. O canal YouTube do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros/CNCB – grupo que pretende representar os cineclubes de todo o País – tem uma definição do que devem ser os cineclubes[3]: “uma sociedade organizada que reúne apreciadores de cinema para fins de estudo, debate ou lazer e onde se exibem filmes de interesse cultural”. Diz ainda que qualquer pessoa pode participar de um cineclube, “desde que aceito pelos demais associados, em conformidade com seus estatutos, regimento ou carta de princípios”. Uma publicação ainda mais recente - Cineclubismo – Organização e Funcionamento[4] também aborda a questão, salientando que “a atividade cineclubista exige um esforço coletivo continuado para que haja uma prática democrática, com transparência e ética”. Posto isso, “nem sempre precisa haver a formalização da pessoa jurídica” (ambos os trechos sublinhados são de minha iniciativa). No entanto acrescenta: “O que dificulta a ausência de um CNPJ é que o cineclube não vai concorrer em editais nem estabelecer convênios, participar de editais públicos e privados.” Nos dois exemplos se reproduz, de certa forma, uma postura do cineclubismo brasileiro adotada nos anos 70[5]: a de que os cineclubes devem ser atividades associativas, organizadas democraticamente, com formas de participação claras e sujeitas a avaliação pública. A sua formalização estritamente jurídica se insere em um plano diferente, ou seja, a de participação no processo político e administrativo formal: a capacidade de beneficiar-se das chamadas políticas públicas. Para a colaboração organizada com outros cineclubes o registro formal é opcional, o que importa é a democracia. Até aqui estou me repetindo.

A questão mais essencial é que a quase totalidade das iniciativas e práticas que se reconhecem ou se denominam como cineclubes deixaram de ser associativas – e, portanto, democráticas -, frequentemente dependentes exclusiva ou principalmente de uma única pessoa ou de grupos limitados, sem uma participação decisiva das comunidades a que se dirigem, mais do que propriamente integram. Há várias outras questões ligadas a essa situação, mas vou desenvolver mais esse ponto.

A referência ao CNCB serve para mostrar que uma organização nacional de cineclubes é, nestas condições, uma contradição, virtualmente impossível: como organizar uma entidade nacional com cineclubes constituídos de forma associativa e organizada, se eles praticamente não mais existem? Cabe a mesma pergunta: quantos cineclubes ditos “membros” do CNC estão constituídos “em conformidade com seus estatutos, regimento ou carta de princípios”? Não é, portanto, uma mera questão tecno-legal. Cineclubes sem alguma forma de associação responsável – isto é, de participantes que decidem –, com regras de conhecimento público, não são organizações dos públicos, como definem a Federação Internacional de Cineclubes e a conhecida Carta de Tabor dos Direitos do Público[6]. Não são comprovadamente “sociedades organizadas”, democráticas, transparentes nem éticas. Para se constituir em uma entidade federativa nacional, é preciso que tenham uma forma de organização comum, com transparência na sua representação que, por sua vez, será a forma decisiva de deliberação e gestão (eleição) de uma direção nacional. Essa é a contradição cineclubista atual: social (porque os cineclubes têm quase nenhuma ressonância popular ou cultural), política e legal.

Truculência ou truque?

Por que, e como, os cineclubes, que durante décadas se organizaram sem grandes polêmicas segundo as regras descritas mais acima[7], passaram à informalidade e à inexistência legal? Esse processo começa, acredito, no governo FHC, sendo continuado e até agravado nos subsequentes governos petistas. Mais que um problema governamental, no entanto, penso que correspondeu a um progressivo crescimento do peso da burocracia nas administrações públicas, levando a uma complicação formal desnecessária e ao encarecimento dos processos legais de reconhecimento das organizações da sociedade civil. Em outras palavras: os cineclubes normalmente se registravam em cartório, através de seu representante formal (geralmente o presidente), apresentando os estatutos e as atas das assembleias de constituição e eleição de suas direções. O custo disso não era inalcançável pelos cineclubes organizados dessa forma. Talvez mais importante ainda, os cineclubes eram imunes tributariamente, isto é, dispensados de todo e qualquer imposto, já que não têm fins lucrativos – isto é, como dizia a Lei 5.536[8]: não era permitida a “distribuição de lucros, bonificações ou quaisquer vantagens pecuniárias a sócios, mantenedores e associados”. Hoje, esses custos aumentaram consideravelmente, proporcionalmente à burocracia dos processos de registro: é preciso que um advogado assine estatutos e atas para que seja feito seu registro – pelo que ele provavelmente cobrará – e há toda uma série de registros, cadastros, com respectivos emolumentos e impostos. Até nas quantias referentes a apoios, prêmios, etc., de parte do próprio Estado, se descontam impostos! A essa burocratização e precificação das próprias funções do Estado se soma um processo bem mais complexo e generalizado de desorganização dos setores populares, das entidades representativas de bairro, sindicais, etc. Claro, a informalidade é mais fácil – mas também nociva. “Pra baixo todo santo ajuda”, diz a sabedoria popular...

Diante do fato consumado da desorganização formal (e real) de parte da sociedade civil – mas sempre pensando aqui nos cineclubes - as políticas públicas dos governos petistas criaram uma virtual ilegalidade que, no entanto, vigeu mais ou menos até agora: criaram a possibilidade de pessoas físicas representarem o que seriam suas comunidades diante dos programas públicos. Foi como “apagar incêndio com gasolina”. Criou-se uma espécie de categoria social: o especialista de edital, capaz de suprir individualmente não apenas os conhecimentos técnicos para tratar da burocracia, mas igualmente passando a representar – de fato, substituir – a entidade e, por extensão, a comunidade. O resultado final desse processo foi a desarticulação quase total do cineclubismo, finalizando uma trajetória mais complexa que traz à atual realidade de informalidade.

Acredito que a ilegalidade flagrante, evidente, da “pessoalização” da representação das comunidades ficou patente e, por isso, voltou a existir, nos editais atuais, exigência da organização formal na relação com o Estado. Dada a naturalização do processo de informalização e desarticulação dos cineclubes, isso pode parecer uma certa truculência para quem se acostumou com a situação anterior, muitas vezes incapaz de compreender seu caráter ilegal do ponto de vista jurídico e institucional e os efeitos nocivos social e culturalmente. Ou, como perguntamos antes: quantos cineclubes são organizados de forma associativa e democrática?

Também como já foi dito: a resposta muito pessimista à questão escancara o fato de que não existem, ou são bastante raros, cineclubes assim constituídos. Assim, parece ter sido criado um truque, uma saída para o que pareceria uma imposição truculenta: delegar a representação do cineclube (a categoria prevista na lei Paulo Gustavo), que precisa ter personalidade jurídica (exigência do Código Civil, que se lhe sobrepõe), a uma entidade terceira, que tenha CNPJ. Essa comporta de emergência, fragílima do ponto de vista legal (pode ser denunciada por qualquer instituição que se sinta prejudicada pelo “truque” legal), foi inserida como anexo, exclusivo para cineclubes, no Edital do Rio de Janeiro. O que parece diferente, mas na verdade reintroduz o mesmo fenômeno desagregador do cineclube. Ou talvez seja até mais grave: pode criar novas formas de dependência. Embora essa “transferência de responsabilidade” possa, na provisão do edital, se dar com qualquer entidade que possua CNPJ, algo me diz que as mais compreensivas seriam provavelmente as empresas produtoras. Mas há mais aspectos nisso, é ainda mais grave. Vamos analisar isso mais em profundidade?

A hegemonia do cinema e do “autor” sobre a organização das comunidades (e no dinheiro público)

Um cineclube não é simplesmente um espaço (real ou virtual) de exibição de filmes ou quaisquer outros conteúdos audiovisuais. Essa visão ideológica corresponde aos interesses da produção, seja a do cinema mais industrial, comercial, profissional (daí, em boa parte, a bandeira do cinema nacional), ou a independente, autoral ou amadora. Dessa forma, o cineclube consiste no ato, no evento de exibir um filme (seguido de debate com realizadores ou outra forma de autoridade ideológica), preferencialmente nacional. É uma forma – substitutiva - de mercado, num país em que mesmo o chamado cinema comercial não se realiza no mercado de troca de mercadorias, mas na própria produção: a quase totalidade dos filmes de longa metragem brasileiros (uma das maiores “indústrias” do mundo) não se paga na exibição em salas: a remuneração de seus realizadores – o conjunto dos envolvidos na produção – é feita na fase de captação de recursos públicos diretos, indiretos ou de renúncia fiscal. E uma pequena participação privada. O mesmo se dá com os outros patamares de produção, com exceção de um segmento muito pequeno de produções totalmente alternativas. Os festivais de cinema - com exceção de alguns poucos, em outra categoria de importância, mais voltados à produção internacional -, igualmente mantidos pelo mesmo sistema público, se tornaram os principais espaços de divulgação da produção que não encontra outros canais de exibição. No Edital de que vimos falando, os festivais receberão um valor 1.100% superior ao destinado aos cineclubes. E estes, reduzidos a simples ações de exibição, supostamente sem custos de qualquer natureza (exceto a remuneração de curadores ou outras autoridades e, claro, eventualmente, de direitos autorais), aparecem no Edital como ações de exibição previstas para até 4 meses (item III do Objeto), nada mais. Um ciclo, diríamos antigamente... Penso que é bem evidente o que chamo de hegemonia do cinema e do autor na concepção e na proposição do edital. De fato, de toda (se é possível empregar esse termo) a política nacional para os cineclubes.

De fato, até Célio Turino, um dos formuladores e gestores das políticas públicas que incluíram cineclubes nos governos Lula, hoje denuncia o que chama de editalização da cultura[9], que descreve como um instrumento de competição e de exclusão a serviço do capitalismo. Mas creio que ele não mostra como a editalização das leis as adapta segundo esse traço ideológico. No caso do campo audiovisual – incluídos os cineclubes – é a hegemonia da produção. Outro sintoma, pequeno, mas significativo disso é que a Lei Paulo Gustavo fala sempre em audiovisual, e particularmente no item III do § primeiro do art. 8º - que regula todos os elementos desse edital -; no entanto, o referido edital nunca menciona a palavra audiovisual, substituída sempre por cinema. É o cinema que manda.

A reconstrução do cineclubismo

Cineclube é uma organização do público que se utiliza dos meios audiovisuais, principalmente, para promover o entretenimento, a autoformação, a memória, a identidade e a expressão desse público. A questão central, no cineclube, não é o cinema (ou quaisquer outras mídias), e sim o público. O cineclube é a instituição audiovisual da comunidade – entendendo-se comunidade como todo grupo de pessoas com características, necessidades e anseios comuns, como moradores de um mesmo território (bairros, cidades, etc.), grupos de identidades diversas (étnicas, profissionais, de gênero, de classe, etc.) ou os que partilham interesses variados (por temas, estilos, culturas, etc.).

O cineclube, na sociedade, tem uma constituição dual. É uma organização cultural, social, política e representativa em seus escopos determinados, isto é, no campo das expressões simbólicas audiovisuais[10]. Concomitantemente, é também - sobretudo para fins de reconhecimento institucional e participação em políticas públicas – uma entidade do campo audiovisual, isto é, a que concernem todas as mídias audiovisuais e digitais contemporâneas e as que venham a ser, eventualmente, criadas. O cineclube pode e deve ser apoiado, estimulado pelo Estado tanto como organização comunitária, como em seus projetos e atividades mais especificamente audiovisuais. Esses dois aspectos estão separados na Lei Paulo Gustavo, que exclui os cineclubes de várias atividades e necessidades, considerando-os apenas no item III do Art.6º - este que determina o escopo do edital fluminense – e alijando-os da produção (item I) e até mesmo da manutenção de salas de cinema (não confundir com cineclube!), até as itinerantes (item II), sem falar de novas formas de exibição (item IV). Cineclube é uma sessãozinha de cinema. Ou um ciclo de filmes de quatro meses...

Para reconstituir o tecido de um movimento social e cultural – o movimento cineclubista – é indispensável recuperar as suas células, os cineclubes. É preciso, então, restabelecer a organização democrática de cada cineclube, ainda que isso dê bastante trabalho. É mais cômodo pensar o cineclube como exibição e debate: com os recursos digitais atuais é uma atividade que requer pouco esforço, quase nenhum custo e, claro, alguma disponibilidade pessoal e de tempo, nada mais. Já uma atividade que reúna uma comunidade, que organize diversas atividades além de exibições (como arquivo, produção, eventos comunitários, etc.) e as administre de forma participativa e democrática, é bem mais trabalhoso. Cineclube não é, ou não deve ser, um passatempo, uma atividade eventual, um hobby fácil e prazeroso. A satisfação que traz é, ou pode ser, bem mais significativa. Mas essa gratificação é, também, proporcional ao trabalho que envolve, que significa.

Assim, uma das primeiras tarefas da luta dos interessados em desenvolver o cineclubismo, é criar melhores condições para sua organização formal. Ora, já vimos que não é possível organizar uma federação cineclubista, regional ou nacional, que tenha existência real, democracia comprovável, representatividade orgânica, se os próprios cineclubes não as têm. No entanto, subsiste uma cultura, alguns chamam de atitude, um interesse cineclubista. E um campo social e popular que necessita desse tipo de ação e organização. Assim, um primeiro passo é reunirmos um Fórum Nacional de Cineclubismo e Audiovisual Comunitário – eventualmente como conclusão de um processo de fóruns locais e/ou regionais.

Esse Fórum, informal e aberto a todas as pessoas e iniciativas coletivas interessadas, seria um primeiro espaço possível para o reconhecimento da realidade concreta das práticas cineclubistas e de animação audiovisual comunitária. E a partir dessa identificação, se poderia construir uma base de interesses comuns, dos quais decorram reivindicações objetivas.

Anexos

 

Anexo I - Lei Paulo Gustavo[11]

 

“A chamada lei Paulo Gustavo se define como uma medida emergencial. Proposta como um conjunto de ações em tempos de pandemia, irá vigorar apenas nos últimos meses de 2022[12] (paradoxalmente já um tanto fora desse contexto pandêmico). Mais que isso, como mais de 70% (2,797 bilhões) dos seus recursos são destinados ao audiovisual - esse termo bastante impreciso - e desses quase três bilhões, outros 70% (1,957 bilhão) irão diretamente à produção de cinema, o caráter emergencial da medida consiste, na verdade, na recuperação dos recursos perdidos pela produção cinematográfica brasileira[13] durante o atual desgoverno. Não se trata de comunidade, mas de mercado – que também é importante para a cultura nesta fase. 

Outros recursos (1,65 bilhão) irão para os setores que não sejam audiovisuais, conforme o parágrafo terceiro do Art. 8º da Lei: É vedada a utilização dos recursos previstos neste artigo para a realização de ações voltadas ao setor audiovisual nos termos do art. 5º. O tal do artigo 5º, na verdade, traz a relação de valores (do total de 3,862 bilhões) para cada atividade, e remete ao artigo 6º, que é importante destacar aqui para os nossos objetivos cineclubistas. O artigo 6º lista as ações emergenciais que deverão ser apoiadas. Juntando os dois (5º e 6º) para nossa contribuição, as áreas e valores são:

 

I – o apoio a produções audiovisuais, de forma exclusiva ou em complemento a outras formas de financiamento, inclusive aquelas com origem em recursos públicos ou financiamento estrangeiro (1.957 bilhão);

II – o apoio a reformas, restauros, manutenção e funcionamento de salas de cinema, incluindo a adequação a protocolos sanitários relativos à pandemia da covid-19, sejam elas públicas ou privadas, bem como cinemas de rua e cinemas itinerantes (447,5 milhões);

III – a capacitação, a formação e a qualificação no audiovisual, o apoio a cineclubes e à realização de festivais e mostras de produções audiovisuais, preferencialmente por meio digital, bem como a realização de rodadas de negócios para o setor audiovisual, para a memória, a preservação e a digitalização de obras ou acervos audiovisuais, ou ainda o apoio a observatórios, publicações especializadas e pesquisas sobre audiovisual e ao desenvolvimento de cidades de locação (224,7 milhões); e

IV – o apoio às micro e pequenas empresas do setor audiovisual, aos serviços independentes de vídeo por demanda cujo catálogo de obras seja composto por pelo menos 70% (setenta por cento) de produções nacionais, ao licenciamento de produções audiovisuais nacionais para exibição em TVs públicas e à distribuição de produções audiovisuais nacionais (167,8 milhões).

 

Mas tem mais: 1,65 bilhão, como já dissemos, vai para setores não audiovisuais. E aí fica clara uma das grandes confusões que enxarcam essa legislação – e remetem a um problema central dos cineclubes. Se não atuarmos com firmeza nas frentes políticas locais de negociação dos nossos projetos, essa confusão vai nos prejudicar bastante. Voltaremos a isso no item “Análise da Política Aldir Blanc”, mas aqui já indicamos que este trecho da lei, paradoxalmente, sugere que várias dessas ações não audiovisuais sejam promovidas através da internet e gravadas. Os cineclubes estão na parte do audiovisual, e expressamente vetados aqui, mas poderiam muito bem ser compreendidos dentro desta seção da Lei Paulo Gustavo, art.8º. § 1º, que visa:

 

I – o apoio ao desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária;

II – o apoio, de forma exclusiva ou em complemento a outras formas de financiamento, a agentes, iniciativas, cursos ou produções ou a manifestações culturais, incluindo a realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais e a circulação de atividades artísticas e culturais já existentes; ou

III – o desenvolvimento de espaços artísticos e culturais, microempreendedores individuais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social para enfrentamento da pandemia da covid-19.

Desta forma, e como a Lei induz e determina o entendimento dos cineclubes como parte do segmento dito audiovisual, só estaríamos aptos a demandar recursos (da alínea III do art. 6º) no valor de 224,7 milhões, divididos entre os estados e municípios e com as outras atividades previstas nesse item: festivais, formação e outras. No fim seguramente não será muita coisa.

No entanto, como os recursos serão geridos entre os estados e os municípios (50% para cada nível) os cineclubes podem exercer uma pressão social e política maior nessas instâncias – sobretudo em seus municípios – e, dessa forma, argumentar que também se qualificam para todos os três subitens referentes a atividades não audiovisuais...

Os demais artigos da Lei Paulo Gustavo descrevem genericamente seus objetivos, fontes de recursos e outros temas que não levantam questões mais discutíveis aqui no nosso escopo.”

Anexo II - A História se repete[14] (o pessimismo da inteligência[15])

“As palavras iniciais do primeiro capítulo de O 18 Brumário de Luís Bonaparte[16] viraram uma citação bem conhecida: a História se repete, pelo menos duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa. Aplicando, bem resumidamente, seu uso na atualidade cineclubista brasileira, podemos dizer que a tragédia teria sido o período anterior de Lula,  com o governo que mais se preocupou – e, provavelmente, o que mais investiu – no movimento de cineclubes. E, paradoxalmente, foi dos que mais prejudicou esse setor da cultura, cooptando, desestruturando e depois abandonando os cineclubes tornados inteiramente dependentes não apenas das verbas – de resto pouco significativas – mas até das iniciativas, da direção mesmo, oriunda do Estado. Houve um estímulo importante e um abandono e queda ainda mais significantes. Claro, isso não teria acontecido sem a participação voluntária dos próprios cineclubes e de suas direções, nacional e regionais. Hoje, os cineclubes não mais podem ser reconhecidos por suas características mais “tradicionais”: o caráter associativo e democrático, a autonomia (isto é, o oposto de dependência), a autossustentabilidade, a atividade sistemática e a participação social e política. Essa contradição, aliás, está presente em “cartilhas”, oficinas, lives e outras orientações que, no clima de otimismo com o governo (e suas possíveis verbas), que já se instala, repetem “cânones” cineclubistas dignos dos anos 50 – mas praticamente nenhum cineclube brasileiro corresponde a esse modelo. Cineclube, hoje, é “exibição e debate”, com pouca ou nenhuma sistematicidade; é iniciativa individual ou de muito poucos, que geralmente também atinge apenas públicos muito reduzidos.

A possível repetição farsesca será a reprodução da distribuição de kits de projeção para centenas ou milhares de indivíduos, agora sem uma Programadora que oriente sua relação com o público, já que o acesso a conteúdos audiovisuais - na contracorrente da apropriação proprietária de empresas produtoras e realizadores - é tendência cada vez mais dominante nas relações do público com as mídias. De fato, essa “orientação” ou controle da programação será substituído pelo expediente dos direitos autorais: atividades só permitidas, ou orientadas, com autorização dos detentores desses “direitos” – aliás, geralmente constituídos com financiamento público. O Governo já criou cargos em comissão para responsáveis pelos cineclubes – sem qualquer consulta a um movimento que, apesar dos esforços do CNCB (ver o período entre 2010 e 2019), não têm uma real representação ou organização nacional. De fato, na realidade, com cineclubes sem estrutura organizacional não é possível uma representação formal: uma entidade nacional de cineclubes é impossível atualmente. O Estado, reproduzindo seu comportamento anterior em outra realidade, tentará substituir essa representação através das Conferências Nacionais (cuja análise não vou fazer aqui, mas que não conseguem representar os públicos, apenas os autores ou artistas dos mais diversos tipos). Muito possivelmente, o Estado criará – como já fez com os Pontos de Cultura – ou “estimulará” enfaticamente estruturas e organizações ajustadas às “políticas públicas”. E, encurtando estes comentários, poderemos ter mais uma política, leis e programas de curta direção, baseados e dependentes quase exclusivamente do Estado, e que podem desaparecer junto com a mudança de administração. Isso aconteceu com a passagem do governo Lula para a gestão de Dilma Roussef, sua mais confiável seguidora. Em 2026, com Lula octogenário, há uma forte possibilidade de se repetir o fracasso do seu segundo governo quanto aos cineclubes. Mas numa realidade bem diferente, em que a comunicação experimenta uma revolução digital e midiática. E em escala muito maior, com “cineclubes” ainda mais desnaturados e uma desorganização mais ampla e, talvez, mais definitiva. Uma farsa, que pode ser bem trágica.

O otimismo da vontade

Não cabe aqui, certamente, tratar em toda sua extensão e complexidade as propostas necessárias ao restabelecimento do cineclubismo como movimento cultural e social. A própria concepção de cineclube precisa ser revista, antes de mais nada pelo reconhecimento da primazia do público, das comunidades – ou seja, das relações sociais reais - em relação ao discurso semiológico abstrato do cinema. Isto posto, é indispensável o reconhecimento das profundas transformações dos meios de comunicação, a revolução digital e a constituição dos espaços virtuais. Em síntese, que o cinema, ferramenta apropriada pelas organizações do público no final do século 19, e que ocupou um papel fundamental na intermediação das relações sociais até meados do século passado, foi superado por formas mais dinâmicas e mais amplas de comunicação, desde a televisão até a rede mundial de computadores. As mídias audiovisuais em conjunto, como dispositivo social, têm uma presença infinitamente maior e um papel hoje preponderante na própria mediação das relações sociais, da produção da vida à produção da cultura.

As difíceis, quase insuperáveis tarefas concretas que desafiam os cineclubes brasileiros – e de todo o mundo – envolvem a reorganização de seu caráter associativo democrático, mas efetivamente enraizado nas comunidades e movimentos populares. A constituição de uma ampla rede de participação e colaboração entre cineclubes compreendidos como instituições audiovisuais das comunidades pode ser parte do processo de transformação do Estado, de constituição de um Estado em transição para uma sociedade mais democrática e justa – e nesse sentido deve participar e propor a direção das políticas culturais públicas dos governos, e não simplesmente seguir diretrizes elaboradas em gabinetes.

Como já foi dito, um “movimento” de “clubes” de uma pessoa só, ou de pouquíssimos participantes, sem regras democráticas e sem inserção popular, não pode ser base para a constituição de uma instituição nacional representativa. Ou será artificial, fraudulenta ou no máximo corporativa, reunindo individualidades que pretendem incorporar uma representação simbólica, imaterial, irreal.

O longo, árduo caminho que as iniciativas e pessoas que hoje se interessam genuinamente pelo cineclubismo, tem que começar por formas de reconhecimento, de questionamento honesto de sua condição e das formas de superar suas fraquezas e deficiências, aproveitando a legislação – especialmente a Política Nacional Aldir Blanc – para constituir cineclubes organizados, autônomos, com espaços próprios dentro das mais diversas comunidades. E, como hoje as iniciativas que se reconhecem como cineclubes assumem as formas mais diversas, inclusive entre si, ou são simplesmente iniciativas individuais, a única forma de iniciar esse processo de forma inclusiva e abrangente é o estabelecimento de um Fórum Nacional de Cineclubismo aberto a todos[17]: uma instância informal de circulação de ideias e debates que podem evoluir para propostas e, no ritmo possível, ajudar a constituir cineclubes integrais de um novo tipo, base para um movimento organizado em escala nacional.”



[2] Embora eu não tenha examinando mais em detalhe editais de outros estados – e, menos ainda, dos municípios – penso que eles trarão a mesma contradição, eventualmente sob diferentes apresentações.

 

[4] Figueiredo, Hermano; Barbosa, Regina Célia e Seabra, Carlos. 2023. São Paulo-Recife: Oficina Digital e Vento Nordeste

[5] Antes disso, entre os anos 40 e 90, era meio que “natural” que os cineclubes se organizassem de forma estatutária e se registrassem nos cartórios. E note-se que ainda não havia a instituição do CNPJ nem propriamente políticas públicas para o cineclubismo. Essa questão organizativa e jurídica, internacionalmente, já estava posta claramente mesmo antes do reconhecimento de cineclubes (como geralmente se entende hoje), na famosa Lei 1901, daquele ano, na França, que estabeleceu as associações civis sem fins lucrativos e previa seu registro jurídico, reconhecendo, no entanto, explicitamente, a possibilidade (e não a legalidade, claro) das entidades organizadas de maneira mais informal. Creio que essa lei influenciou as legislações da maioria das democracias liberais do mundo.

[7] Um comunicado da Federação Paulista de Cineclubes, de março de 1983, recentemente disponibilizado, é um bom exemplo do que era a prática corrente no movimento cineclubista brasileiro. Acessível em https://drive.google.com/file/d/1xEZq2yRnfhyK6BzGlCWjJr2pzAG2yf1f/view

[8] A lei 5.536, de 21 de novembro de 1968, havia sido criada para regular “a censura de obras teatrais e cinematográficas”. Apesar da data sombria – próxima da edição do AI-5, na ditadura – sua origem reoercutia outro contexto, anterior, de conquistas relativas dos meios culturais. Daí que criava várias exceções à Censura – que era uma instituição naturalizada mesmo antes da ditadura – beneficiando, em especial, os cineclubes e cinematecas. É a lei que melhor definiu cineclubes e sobre qual se basearam, ainda que de forma indireta, todas as demais disposições legais sobre cineclubes (Resolução 64, do Concine, de 1981 e a Intrução Normativa 63, da Ancine, de 2007). Dizia a lei, sem seu Art. 5º. - A obra cinematográfica poderá ser exibida em versão integral, apenas com censura classificatória de idade, nas cinematecas e nos cineclubes, de finalidades culturais.
Parágrafo único. As cinematecas e cineclubes referidos neste artigo deverão constituir-se sob a forma de sociedade civil, nos termos da legislação em vigor, e aplicar seus recursos, exclusivamente, na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos sendo-lhes vedada a distribuição de lucros, bonificações ou quaisquer vantagens pecuniárias a dirigentes, mantenedores ou associados
.

[10] Não caberia estender aqui a questão, entretanto, fundamental: as mediações sociais na sociedade contemporânea são feitas principalmente pelas mídias, que atingem praticamente a totalidade da população mundial. E essas mídias são, essencialmente, mídias digitais audiovisuais.

[11] Trecho extraído de A Política Nacional Aldir Blanc, de agosto de 2022 – íntegra disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html

[12] O texto é de 2022. Sua vigência foi estendida até o final de 2023.

[13] Nos anos imediatamente anteriores ao desgoverno atual (Bolsonaro), os recursos aplicados pelo Estado na produção de cinema eram de pouco menos de 1 bilhão de reais anuais, numa aproximação superficial. Assim esses quase 3 bilhões equivalem mais ou menos, e coincidentemente, com os recursos perdidos durante a (falta de) gestão atual. (dados Folha de São Paulo) – nota do texto original.

[14] Trecho extraído da parte final, “Conclusões e perspectivas”, de Novíssima Cronologia do Cineclubismo Brasileiro, disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2023/09/novissima-cronologia-do-cineclubismo.html

[15] “Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”. Essa espécie de dístico aparece algumas vezes nos escritos de Gramsci (Gramsci, Antonio. 1999. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira): “é preciso atrair a atenção violentamente para o presente assim como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”. Ou: “O único entusiasmo justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a operosidade inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a realidade existente”. E ainda: “é preciso criar homens sóbrios, pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e que não se exaltem por qualquer tolice. Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade.” (apud Lelio la Porta, verbetes “otimismo”, p. 595-596 e “pessimismo”, p. 621, em Liguori, Guido e Voza, Pasquale (orgs.). 2017. Dicionário Gramsciano. São Paulo: Boitempo)

[16] Marx, Karl.1969 (1852). Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. Paris : Éditions Sociales.

[17] Não há que ignorar o Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (ver os anos 2019 e seguintes); inclusive o grupo deverá promover mais uma Jornada, ainda neste ano, e desta vez com apoio do governo federal. Se não reconheço sua representatividade nacional, nem vejo consequência nas propostas que tem apresentado, penso, contudo, que é uma iniciativa que se inscreve dentro da realidade cineclubista brasileira atual. E, como tal, também pode contribuir significativamente em um Fórum como o proposto.