terça-feira, 11 de junho de 2024


 

 O velho e o novo

mídias, tecnologia e transformação social 

parte 2


Há quase exatamente um ano escrevi a primeira parte deste artigo, que terminava prometendo uma sequência. Aquele primeiro texto[1] tratou basicamente – e muito sinteticamente – da trajetória, até a falência, do modelo de organização do público de cinema que se constituiu sob a denominação prevalente de cineclube. Começava citando o Holoceno, procurando a origem e evolução da ideologia, do preconceito, do elitismo, para chegar à cinefilia e ao culto do cinema de autor, com o que se confundiu essa visão preponderante de cineclube. Considerava ainda que, mesmo com um sentido predominantemente elitista, os cineclubes tiveram papéis significativos e positivos em diversos contextos históricos específicos. Papéis que, no entanto, acabaram por se estiolar, tornando-se apenas um reflexo, uma alusão simbólica descontextualizada, uma forma cultural residual, como já descreveu Raymond Williams[2] ou, em nosso país, como atividade acadêmica extracurricular.  Finalmente, refletia que se o cineclubismo, em sua concepção dominante, praticamente nunca soube superar seu caráter subalterno às classes dominantes, no Brasil tampouco a classe trabalhadora foi capaz, com pouquíssimas exceções, de desenvolver formas organizacionais para se apropriar dos sentidos produzidos pelo cinema. O texto tem, portanto, um tom que poderia ser confundido com uma espécie de pessimismo. Não se trata disso, porém: aquela foi uma introdução, de certa forma, às considerações que se seguem (e que já expus, de alguma maneira, em outros textos). Nesta segunda parte vou, então, procurar uma “argumentação propositiva”, como já havia anunciado naquela ocasião.

 

Cineclubes

 

Se concebemos cineclubes como formas de organização do público e não apenas como “clubes de cinema”, no sentido de que sua atividade se constitui exclusivamente em torno do cinema, então, na maior parte da história dessas organizações elas não tiveram o nome de cineclube. Palestras e debates em torno de projeções de lanternas mágicas antecedem até mesmo o cinema, pois eram uma parte crescentemente importante das atividades culturais e educativas das organizações de trabalhadores, de comunidades religiosas e das classes médias desde o século 19. No início do século passado, essas atividades – agora com o cinematógrafo – foram se tornando mais autônomas, constituindo-se como associações, com sedes e locais próprios. Mas, embora o termo cineclube já tivesse sido usado pelo menos em 1907[3], essas organizações praticamente nunca o empregavam: houve o Cinema dos Trabalhadores, em Los Angeles (1911); o Cinema do Povo, em Paris (1913); a Associação para a Imagem e a Palavra, em Dresden (1912) ou o Clube Cosmos para a Cinematografia Científica e Artística (1913), em Viena, entre muitos outros exemplos[4]. Uma quase exceção seria o Cinema do Club dos Democratas[5] (1912), de Sobral, Ceará, cujo jornalzinho se chamava Cinema Club[6]. A própria ideia de cinefilia, tal como passou a ser entendida depois dos anos 20, não existia ainda. Na França, muitas vezes identificada como berço do cineclubismo, a maior parte das iniciativas ditas educadoras (ou educacionais, ou educativas) com o cinema, desde a segunda década do século, eram chamadas de ofícios (escritórios, oficinas ou núcleos) de cinema educador[7]. Precedem os cineclubes (palavra que só começou a se generalizar a partir dos anos 20) e sempre constituíram a maioria dos grupos organizados em torno do cinema naquele país[8]. Com a constituição da União Soviética, milhares de grupos se organizaram, ligados ao processo então denominado de cineficação[9], dentro dos clubes de trabalhadores. Também no movimento internacional de solidariedade com a Revolução surgiram, dos EUA ao Japão, as chamadas Ligas de Cinema dos Trabalhadores[10] – e, em Paris, o famoso Clube dos Amigos de Spartacus[11] (1928).

 

Mas este texto não é sobre a trajetória do termo. É indiscutível que o conceito genérico, e atualmente bastante impreciso de cineclube, tornou-se hegemônico mundialmente, especialmente depois da 2ª. Guerra Mundial. Do seu sentido original, no entanto, que descrevia uma associação em torno do cinema, atualmente restou apenas a ideia de projeção seguida de debate. Esse sentido, mais de ação do que de organização, prevalece particularmente no Brasil. Mas em todo o mundo o cineclubismo, junto com o próprio cinema, perdeu protagonismo social e cultural. Ainda existe em quantidade relativamente significativa, mas bastante descaracterizado e isolado socialmente, como exemplo de uma forma residual de cultura. Cineclubes agregam especialistas (cinéfilos), diletantes, amadores ou fãs, como acontece também com a ópera (hoje muito reproduzida nos cinemas), o balé e outras expressões mais antigas de práticas sociais envelhecidas, descontextualizadas ou, de diferentes formas, elitizadas.

 

Mídias

 

Mais do que a projeção de eslaides das lanternas mágicas ou mesmo a fotografia, foi com o desenvolvimento do cinema que se inaugurou e logo se consolidou toda uma nova maneira de ver[12], um novo regime escópico[13] na história da humanidade. Acostumamo-nos a chamar o fenômeno de “imagens em movimento”, mas logo ele agregou também palavras escritas e, pouco depois, o som. Oriundas do cinema, tivemos ainda a generalização da televisão e, atualmente, a ubiquidade dos sinais digitalizados, sua capilaridade em aparelhos celulares, a fagocitose progressiva dos outros meios e formas de expressão e comunicação. O capitalismo de vigilância[14], ou capitalismo de plataformas[15], enfim, trouxe para o centro do próprio modo de produção a reprodução técnica do real e a mediação entre produtores e consumidores através das tecnologias digitais e audiovisuais. 

 

Em seu auge, o cinema atraía milhões de pessoas, dezenas de vezes por ano, às grandes salas de exibição. A televisão, em meados do século, multiplicou várias vezes esses números, reinventando mediações e sentidos, agregando diferentes espetáculos – de cena, como musicais e cômicos, esportivos e variadas competições – e gêneros, como os telejornais, as sitcoms, as novelas da América Latina, entre muitos outros. Mas a rede digital mundial transformou tudo: do quantitativo ao qualitativo. Na linha de Adorno e Horkheimer[16], ou de Zuboff[17], por exemplo, podemos dizer que praticamente a totalidade da população do planeta está não apenas assistindo aos produtos da indústria cultural, mas vive inexoravelmente conectada: recebe, produz (dados), se comunica, compra, e é observada em tempo integral, no trabalho, nas ruas ou em casa, e mesmo com certos aparelhos desligados. Os brasileiros passam mais tempo (mais de 9 horas diárias) diante de telas – de tevês, celulares e outras – do que em qualquer outra atividade. O resto do mundo não é muito diferente. Com os modelos algorítmicos de organização e de distribuição de conteúdo, o conceito de hegemonia – de dominação e consenso - ganha novos sentidos, prendendo os públicos em bolhas que giram em torno de si mesmas, presídios kafkianos em espaços virtuais. A chamada inteligência artificial generativa mimetiza o processo criativo, desconstruindo, demolindo a noção de autoria. Os meios audiovisuais digitais, entre os quais o cinema stricto sensu ocupa atualmente um espaço relativamente pequeno, ainda que ancestral[18], não são mais, ou apenas, uma forma de expressão ou comunicação: tornaram-se a principal mediação das relações sociais, intrincando-se, confundindo-se com as relações de produção, mesclando a superestrutura simbólica à base econômica produtiva.

 

Numa linha mais dialética, porém, herdeira de Certeau[19] e Hall[20], essa situação produz também condições potencialmente transformadoras em escalas inusitadas. A conexão planetária do público pode permitir a expressão e comunicação entre todos, em escala sem precedentes. A generalização de aparelhos audiovisuais polivalentes – que recebem, transmitem, produzem – é a antessala latente da democratização radical da comunicação, o portão virtual da transformação social.

 

Tecnologia

 

As tecnologias estão profundamente ligadas às transformações sociais e históricas. Transformam o trabalho, que define o ser humano. Muitas delas são parte essencial da própria evolução dos modos de produção, desde as primeiras técnicas de agricultura até as formas de mecanização que ajudam a compreender e periodizar as etapas do capitalismo. As tecnologias digitais já permitem identificar uma etapa diferenciada do atual modo de produção, e ainda estão, também claramente, em franca evolução. A relação entre tecnologia e transformação social, contudo, não é direta, linear. A primeira pode servir para incluir ou dominar, para alienar ou emancipar. Não produz mudanças positivas nas relações sociais se não for apropriada pelo povo, acompanhada da mobilização das classes trabalhadoras, da compreensão por parte destas da oportunidade que, virtualmente, se abre para elas, e do papel que podem desempenhar na promoção da superação das estruturas obsoletas e na criação de novas instituições.

 

Penso que transitamos, neste momento, por essa oportunidade histórica. Não vejo, entretanto, sinais de conscientização, de organização ou de mobilização significativa entre a grande maioria da classe trabalhadora, nos mais variados ambientes, e certamente não no Brasil. Esses “quesitos”, porém, também não se constroem de maneira mecânica, mas dialeticamente: é na ação, em que a organização tem papel central, senão indispensável, que se cria o tipo de consciência que se constitui como verdadeira força material[21] da transformação.

 

Voltemos, então, à falência dos cineclubes, criados em torno do paradigma cinematográfico, definidos por essa relação culturalmente residual. Pelo menos tão velhos quanto o próprio cinema – senão mais – como já disse, essas organizações, de diferentes maneiras, em diversos contextos, acumularam muita experiência, uma espécie de tradição histórica de organização institucional, como a própria forma associativa, democrática, sem finalidade de lucro. São características que constituem traços distintivos da sua origem proletária[22], e um percurso de lutas diversas, desde a democratização do conhecimento e da educação, pelos direitos sociais e políticos mais gerais, contra a censura, a discriminação, pelas chamadas liberdades democráticas e até pela revolução social. Se o cineclubismo foi contaminado pela cinefilia, pelo elitismo e a alienação – que levaram à sua descaracterização essencial, possivelmente irrecuperável – esse movimento tem uma memória e uma experiência igualmente fundamentais na formulação de um projeto de superação dialética e construção de uma nova forma de organização do público, consentânea, a meu ver, com a construção de uma nova sociedade.

 

As tecnologias são o campo e o instrumento para isso. Como foi dito, as mídias digitais audiovisuais são a principal mediação das relações sociais, o objeto e a ferramenta indispensáveis para a construção de novas práticas culturais, sociais e políticas nos meios populares do Brasil. A verdadeira revolução que transformou - e ainda está transformando – a produção, a circulação, a recepção, a preservação e a pedagogia dos e pelos meios audiovisuais, encarna a oportunidade histórica de que já falei aqui. Os equipamentos de produção e as plataformas de difusão, de interatividade e de colaboração em rede, assim como todos os dispositivos e modos de recepção (inclusive o presencial), são muito mais econômicos, eficazes e abrangentes do que em qualquer outro período do nosso paradigma escópico. Nunca foram tão acessíveis para alguma forma de organização para a qual convirjam os esforços de qualquer comunidade popular, inclusive virtual.

 

Transformação social: uma instituição audiovisual da comunidade e do público

 

Como já foi visto, o nome não é indispensável para identificar a organização que quero propor aqui. Até mesmo cineclube pode caber, dos radicais cine, de movimento – e não de cinema - e clube, no sentido mais político, de associação, que ainda podem se aplicar às mídias audiovisuais. O governo brasileiro, no início deste século, criou sua própria denominação: ponto de cultura, inspirado nas técnicas milenares de estímulo de pontos do corpo humano na medicina oriental. Mas tais nomenclaturas não têm dito muito; o que mais carrega sentido no nome da iniciativa é sua identificação com a comunidade que deve representar. Assim, vou trabalhar aqui com a ideia de instituição audiovisual da comunidade e do público e com seu acrônimo IACP, não como denominação de uso social, mas apenas para facilitar a sequência do texto. Penso que, como tantas outras organizações do público, ao longo da história, essas IACPs talvez tendam a adotar nomes identificados com suas comunidades, seu território, seus símbolos, suas memórias.

 

Como já disse, é indispensável que essas IACPs incorporem as duas dimensões que indico em sua “denominação”. Devem ser audiovisuais, isto é, trabalhar com o conjunto das mídias que formam o dispositivo social de comunicação contemporâneo, superando a aura que embasa os cultos atuais do cinema, ou do filme considerado apenas como obra ficcional ou documental; do chamado filme de autor, e mesmo do “cinema nacional”, tratado frequentemente como uma espécie de identidade absoluta, acima de toda contradição, ou como um eufemismo para a produção própria dos que promovem as exibições. E devem ser comunitárias e do público, ou seja, integrarem em sua organização a participação democrática dos públicos presentes nas diferentes comunidades – territoriais, de trabalho, de gênero ou outras características comuns que identifiquem grupos sociais, suas necessidades e interesses. Essas comunidades de públicos organizadas em torno dessas identidades localizadas devem se identificar, se integrar dentro do público em sentido mais amplo, na escala da sociedade, como classe, como povo, como humanidade. Superando o histórico elitismo, associado ao cineclubismo, e o isolamento – a estratégia do desterro, de Hardman[23] -, vício de muitas iniciativas de trabalhadores no Brasil.

 

Partindo dessas duas dimensões – midiática e popular - um componente essencial para a constituição dessa nova forma de organização do público são os eixos de sua atividade: as necessidades que deve atender (e, até certo ponto, criar) e os meios que deve disponibilizar. Isso se incorpora em um projeto, um programa, que tem aspectos mais ou menos imediatos, sem perder a perspectiva mais geral, estratégica. Esse projeto é condicionado por inúmeras características e circunstâncias das comunidades em que se insere; desdobra-se, portanto, necessariamente, no tempo. Ao contrário de um objetivo simplista, eventual, voluntarista e efêmero como a projeção e debate de um filme, o tipo de iniciativa aqui proposta– e que já está presente em algumas experiências, no Brasil e em todo o mundo - varia enormemente segundo as condições em que se implanta e se desenvolve em prazos estratégicos, longos, provavelmente de anos. Não é uma ação: é uma organização. Não tem receita: seu perfil é o projeto, o objetivo estratégico, que até pode mudar durante sua trajetória. Não é simples, nem fácil, mas comporta a possibilidade ontológica de ser parte importante, até essencial, da construção de uma sociedade radicalmente justa e democrática.

 

“... para construir a sua hegemonia, os grupos sociais subalternos precisam se organizar, organizar a cultura, educarem-se, precisam se tornar dirigentes. ... Para criar uma nova civilização, Gramsci considera fundamental a organização da cultura, “[...] ampliando os meios para difundir novas concepções do mundo que permitissem às classes subalternas tomar ‘consciência de si’, dos seus próprios fins e fazer sua história” (DORE, 2007).”[24]

 

Os objetivos necessários e estratégicos na construção de uma IACP, as atividades que devem constituir seu projeto – e ser construídas na ordem e nos prazos possíveis dentro das circunstâncias dos organizadores e da comunidade, são:

 

Educação, formação e entretenimento da e com a comunidade[25] através de todos os meios audiovisuais possíveis, sem excluir, eventualmente, outras mídias e linguagens: publicações, teatro, dança, entre outras. Esses três eixos constituem a essência de uma IACP, que atua nessas três dimensões, as quais podem, com muita frequência, ser simultaneamente parte das práticas desenvolvidas em torno das mídias audiovisuais: são capazes de, ao mesmo tempo, educar, entreter e formar[26]. Além de congregarem públicos mais amplos, em salas próprias para isso, podem e devem usar outras formas de reuniões presenciais, em grupos menores e mais dirigidos (por seus interesses), em espaços organizados de formas criativas e confortáveis. O material audiovisual apresentado não deve absolutamente ser limitado ao filme – conceito fortemente carregado da ideologia cinéfila, que o reduz a narrativas ficcionais ou ensaios documentais. Mesmo o cinema nunca deixou de incluir a informação, o noticiário, os esportes, os espetáculos e, enfim, as múltiplas contribuições de outras mídias e linguagens que convergem para esse paradigma escópico que pode reunir todos os outros, como queria Ricciotto Canudo[27] já em 1911. Com a televisão e, sobretudo com a rede mundial audiovisual, novos “gêneros” e formatos de expressão – blogues, podcasts e outros, sobre todos os assuntos possíveis, além do grande campo dos videojogos - estão sendo criados, e constituem formas com potenciais mal compreendidos, seja para a alienação ou para a emancipação. Seu consumo, a apreciação, a crítica coletiva são indispensáveis para que não prevaleçam apenas os sentidos de dominação que todas as mídias carregam. O audiovisual, neste seu sentido mais pleno, é o novo objeto indispensável da práxis crítica – para usar uma expressão redundante. A incorporação dos públicos virtuais é outra necessidade absoluta. Assim, ao falar de “todos os meios audiovisuais possíveis”, quero significar que o objeto da IACP, o que define essa nova instituição, é exatamente esse: o audiovisual sob todas as suas formas de criação, produção e recepção. As novas formas de expressão que estão se desenvolvendo nos espaços virtuais nunca, ou quase nunca, se articulam com estruturas, organizações coletivas concretas: apenas reproduzem a iniciativa e o protagonismo individualizado, privatizado, monetizado pelas plataformas, como uma espécie de empreendedorismo que se expressa na nefasta ideia de “influenciadores”. A IACP é, também essencialmente, um projeto de integração entre esses dois espaços: seu público, sua comunidade é presencial, virtual e híbrida.

 

Uma organização coletiva, democrática e autossustentável. Estes dois elementos: associativismo e sustentabilidade, constituem as grandes diferenciações com as formas de atuação cultural predominantes hoje no Brasil. Estas últimas raramente se organizam de forma democrática, inclusiva, em que a assembleia de todos os membros[28] é a instância soberana de decisão, e com renovação periódica e transparente de suas direções através da manifestação, do voto, de seus participantes, associados – e não clientes ou alvos, plateia ou objeto alegórico de suas atividades. E a autossustentabilidade, para além dos recursos obtidos junto às inconstantes fontes governamentais – ou raros patrocinadores privados -, tornou-se uma espécie de anátema no senso comum das entidades comunitárias. Exceto quando, inspiradas pelo ideal do empreendedorismo, organizam-se como empresas: nesse caso, podem cobrar e acumular, desde que para a apropriação privada, e não pelo coletivo. De fato, é exatamente isso: apropriação privada ou pela comunidade, que distingue uma iniciativa comercial da organização sem fins lucrativos – e não a cobrança, de resto inescapável, pelas ações desenvolvidas. A participação da comunidade em que uma IACP se estabelece, sua adesão ao projeto e sua apropriação da instituição como parte de sua identidade e projeto, medem-se, inclusive, por seu engajamento com a sustentabilidade da IACP. Pagar ou contribuir financeiramente com determinadas atividades implica no reconhecimento de sua necessidade, oportunidade e interesse para a comunidade. Também tem o sentido de estabelecer uma responsabilidade, uma apropriação, um poder coletivo sobre essas atividades – que não poderiam existir de outra maneira (exceto se patrocinadas por forças externas à comunidade), porque tudo tem um custo. A associação das pessoas à IACP, inclusive com o pagamento de alguma taxa periódica, é o elemento final dessa apropriação pela comunidade. E o estabelecimento de uma receita mais ou menos estável é a pré-condição indispensável para o planejamento da evolução da própria IACP. Inclusive permitindo a consolidação de colaboradores remunerados, de diferentes formas, nas atividades que exigem tipos de dedicação mais intensas ou prolongadas, sinônimo do crescimento e complexificação da própria IACP, isto é, do seu sucesso. Esse processo estabelece, finalmente, uma condição de pertencimento, ou seja, quando os membros da comunidade se reconhecem e se identificam nas ações de sua IACP, e nela encontram motivação, autoformação e satisfação[29].

 

Criação de espaços físicos e virtuais. A criação de espaços é inseparável da própria ideia da organização. Um espaço sede é referência essencial da instalação de uma iniciativa desse tipo dentro da comunidade. E este espaço físico deve conter espaços dedicados a reuniões de trabalho e estudo; de produção audiovisual (estúdio e equipamentos); de arquivo; de congraçamento comunitário, com bar ou lanchonete, e um espaço maior, para reuniões, e exibições para grupos maiores[30]. Um auditório maior é importante, mas não indispensável – sobretudo inicialmente – e pode ser em local próximo, inclusive através de parceria com outras instituições. Os espaços virtuais também são indispensáveis, claro: pelo menos um canal na internet e aplicativos para comunicação e participação do público e dos associados. Os videogames, também, já que constituem uma nova forma de expressão e de entretenimento que atrai enorme interesse do público.

 

Coleta e conservação dos artefatos e documentos existentes que são parte da memória e da identidade da comunidade. A preservação de fotos, filmes, publicações, cartas, de membros, famílias, grupos diversos da comunidade, que constituem sua história, são materiais indispensáveis para reconstituir e consolidar sua memória e para ajudar a revelar sua identidade local, regional, nacional e histórica. É o arquivo da comunidade. Alguns materiais, conforme seu estado, complexidade e importância, podem e devem ser objeto de trabalho solidário com outras organizações, públicas ou privadas.

 

Documentação audiovisual das atividades, personalidades, eventos, e outros acontecimentos, até desastres, que fazem parte da vida comunitária. Uma prática que é diretamente complementar à anterior. Essa documentação inclui entrevistas, matérias videojornalísticas com personalidades relevantes na e para a comunidade: suas realizações, modo de vida e outros aspectos. Também envolve a documentação das atividades da comunidade, outras iniciativas, como a ou as escolas, grupos culturais, étnicos, religiosos e outros. Finalmente, os eventos, desde manifestações políticas até as esportivas – como jogos de várzea, femininos, infantis – e festivas, como bailes, e até a “coluna social”, com aniversários, casamentos, funerais. Evidentemente, essa produção também inclui, e em vários sentidos converge para a produção de outros tipos de conteúdo, ficcionais, documentários, experimentais e outros. Tudo que é produzido dessa maneira deve ser arquivado e, o que for mais importante, necessário ou interessante, deve ser divulgado, em todos os meios possíveis, para a comunidade.

 

Articulação local, criação de redes colaborativas e de instituições de representação política em nível municipal, estadual, nacional, internacional e virtual. Uma IACP deve colaborar com diferentes iniciativas da ou na comunidade nos campos da cultura, da educação, da política. Em muitos casos, isso pode levar a formas de atuação conjunta mais sólidas, inclusive propiciando fusões – entre ações culturais -, principalmente nos casos em que a comunidade ainda não tem condições de manter diversas iniciativas distintas. Numa IACP, as atividades de teatro, dança e várias outras, ainda que tenham autonomia em suas práticas, também complementam as formas de apresentação audiovisual e se fortalecem com essa difusão. As escolas são outra área de colaboração indispensável, nos dois sentidos: as práticas audiovisuais têm um componente pedagógico essencial, ainda que não formal, no sentido tradicional, assim como a escola é uma instituição em certa medida superada[31], que necessita absolutamente de uma integração mais efetiva com as comunidades. De certa forma, o mesmo se aplica às formas de organização mais políticas das comunidades, como associações de moradores, ou nos casos em que, de certa forma, as próprias comunidades se definem em torno de organizações ou ações políticas, como sindicatos, ocupações, assentamentos, entre outras. Em todos os casos acima, a autonomia das partes é da sua essência e sempre necessária; o nível de integração entre elas é, portanto, questão complexa que vai depender de cada caso. A criação de redes colaborativas e da representação política mais ampla das IACPs, nos diversos níveis e espaços geográficos e sociais, será decorrente das próprias práticas que desenvolverem, da história que construírem e das relações que estabelecerem.

 

Em conclusão: para a constituição de organizações audiovisuais do público não há receita, mas alguns parâmetros indispensáveis. Não existe cartilha genérica que dê conta das particularidades decorrentes de cada comunidade, só projetos que procurem reconhecê-las. E muito trabalho, muita luta para serem realizados.

 

Montreal, junho de 2024.

 



[2] Williams, Raymond. 2011. Cultura e Materialismo. São Paulo: UNESP.

[4] No original, respectivamente: Workers Film Theatre, Cinéma du Peuple, Verein Bild und Wort e Kosmos Club für wissenschaftliche und künstlerische Kinematographie.

[6] Um exemplar em mal estado existe na Biblioteca Nacional.

[7] Em francês, termo relativamente difícil de traduzir: office du cinéma éducateur.

[8] Nos anos 50, por exemplo, no auge da segunda onda cinefílica, a França tinha cerca de 10 mil cineclubes. Destes, 80% era filiados à UFOLEIS – Union française des œuvres laïques pour l’éducation par l’image et le son (União francesa das obras laicas para a educação através da imagem e do som), entidade que evolui a partir de uma primeira organização criada em 1929, segundo Laborderie, Pascal e Souillés-Debats, Léo. 2016. L’UFOLEIS, le cinéma éducateur et les cinés-clubs : une rencontre par et pour le cinéma. La Ligue de l’enseignement et le cinéma : une histoire de l’éducation à l’image, 1945-1989. Paris : AFRHC.

[9] Há muito material sobre o tema. Aponto aqui apenas um exemplo: Kepley Jr., Vance. 1994. 'Cinefication': Soviet Film Exhibition in the 1920s” em Film History, Vol. 6, No. 2, Indiana University Press.

[10] Campbell, Russel. 1982. Cinema Strikes Back: Radical Filmmaking in the United States 1930-1942. Ann Arbor: UMI Research Press.

[11] Gauthier, Christophe; Perron, Tangui e Vezyroglou, Dimitri. « Histoire et cinéma : 1928, année politique », em Revue

d’histoire moderne et contemporaine 2001/4 (no. 48-4),

[12] Martín-Barbero, Jesús e Rey, Germán. 1999. Los ejercicios del ver – Hegemonía audiovisual y ficción televisiva. Barcelona: Gedisa Editorial.

[13] Jay, Martin. 1998. “Scopic regimes of Modernity”, em Foster, Hal (ed.), Vision and Visuality – Discussions in Contemporary Culture #2. Seattle: Bay Press.

[14] Zuboff, Shoshana. 2019. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. Nova York: Public Affairs

[15] Poell, Thomas; Nieborg, David e Van Dijck, José. “Plataformização”, em Fronteiras – estudos midiáticos. No. 22 janeiro/abril 2020. Unisinos

[16]  Horkheimer, Max e Adorno, Theodor W. 1972. Dialectic of Enlightenment. Nova York: Herder and Herder

[17] Op.cit.

[18] Elsaesser, Thomas. 2017. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Edições SESC.

[19] De Certeau, Michel. 1974. A Invenção do Cotidiano. (2 vol.). São Paulo: Vozes.

[20] Hall, Stuart. 1973. Encoding and decoding in the Television Discourse. Birmingham: Centre for Contemporary Cultural Studies.

[21] Marx, Karl. 1843. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Acessível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm .

[22]  Thompson, E.P. (1963) s.d. The Making of the English Working Class. New York : Random House – acessível em https://uncomradelybehaviour.files.wordpress.com/2012/04/thompson-ep-the-making-of-the-english-working-class.pdf . Williams, Raymond. 1960. Culture and Society 1780-1950. Nova York : Doubleday. Esses autores ingleses destacam a característica sempre coletiva e democrática das organizações surgidas nos meios de trabalhadores, em comparação com a individualidade ou privatização das que têm origem na burguesia.+ 

[23] Hardman, Francisco Foot. 1980. A Estratégia do desterro – Situação operária e contradições da política cultural anarquista/Brasil, 1889-1922. Tese de mestrado – UNICAMP, acessível em https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/48105 Tema retomado em Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. 2003, São Paulo: Editora UNESP.

[24] DORE, Rosemary. 2007. “Atividade editorial como atividade educativa: reflexões de Gramsci sobre as "revistas tipo". Revista de Sociologia e Política, Curitiba, nov., n.29, apud Souza, Herbert Glauco de. 2018. Reforma Intelectual e Moral e a Construção da Hegemonia: o Processo de Elevação Cultural dos Grupos Sociais Subalternos. Tese de doutorado: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, acessível em https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-AWKN9D/1/tese_herbert__1_.pdf

[25] Freire, Paulo. 1987. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra.

[26] Não à toa, o lema do Cinema do Povo, de 1913, era: “Divertir, instruir, emancipar”.

[27] Canudo, Ricciotto. 1911. La Naissance d'un sixième art - Essai sur le cinématographe, acessível em https://www.filosofia.org/hem/191/9111025c.htm

[28] É importante salientar que, ao pensarmos em comunidades, temos em vista grupos sociais com pelo menos muitas dezenas de integrantes, frequentemente com centenas e mesmo milhares de pessoas. Ou mais. Os espaços virtuais acrescentam números potencialmente ainda muito maiores. E essa é uma das características essenciais para considerarmos essas práticas socialmente relevantes e efetivamente transformadoras.

[29] Tratei desse tema em um artigo, escrito ainda no início da Pandemia, sobre o papel das igrejas, que têm ocupado os espaços deixados por outras iniciativas nos ambientes populares: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2020/03/as-igrejas-as-esquerdas-e-os-cineclubes.html

[30] Os 18 objetivos ou campos cobertos pela Política Nacional Aldir Blanc preveem a organização e manutenção desses espaços. De fato, cobrem, de alguma maneira, todos os objetivos de uma IACP apontados aqui. Ver discussão do assunto em: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html . 

[31] Esse é um tema complexo e fundamental, tanto para uma ação cultural em sentido mais amplo como, igualmente, para a educação. Mas não cabe no escopo sintético deste texto.