terça-feira, 11 de junho de 2024
O velho e o novo
mídias, tecnologia e transformação social
parte 2
Há quase exatamente um ano escrevi
a primeira parte deste artigo, que terminava prometendo uma sequência. Aquele
primeiro texto[1]
tratou basicamente – e muito sinteticamente – da trajetória, até a falência, do
modelo de organização do público de cinema que se constituiu sob a denominação
prevalente de cineclube. Começava citando o Holoceno, procurando a origem e
evolução da ideologia, do preconceito, do elitismo, para chegar à cinefilia e
ao culto do cinema de autor, com o que se confundiu essa visão preponderante de
cineclube. Considerava ainda que, mesmo com um sentido predominantemente elitista,
os cineclubes tiveram papéis significativos e positivos em diversos contextos
históricos específicos. Papéis que, no entanto, acabaram por se estiolar,
tornando-se apenas um reflexo, uma alusão simbólica descontextualizada, uma forma
cultural residual, como já descreveu Raymond Williams[2] ou, em nosso país, como
atividade acadêmica extracurricular. Finalmente,
refletia que se o cineclubismo, em sua concepção dominante, praticamente nunca
soube superar seu caráter subalterno às classes dominantes, no Brasil tampouco
a classe trabalhadora foi capaz, com pouquíssimas exceções, de desenvolver
formas organizacionais para se apropriar dos sentidos produzidos pelo cinema. O
texto tem, portanto, um tom que poderia ser confundido com uma espécie de
pessimismo. Não se trata disso, porém: aquela foi uma introdução, de certa
forma, às considerações que se seguem (e que já expus, de alguma maneira, em
outros textos). Nesta segunda parte vou, então, procurar uma “argumentação
propositiva”, como já havia anunciado naquela ocasião.
Cineclubes
Se concebemos cineclubes como formas
de organização do público e não apenas como “clubes de cinema”, no sentido
de que sua atividade se constitui exclusivamente em torno do cinema, então, na
maior parte da história dessas organizações elas não tiveram o nome de
cineclube. Palestras e debates em torno de projeções de lanternas mágicas
antecedem até mesmo o cinema, pois eram uma parte crescentemente importante das
atividades culturais e educativas das organizações de trabalhadores, de
comunidades religiosas e das classes médias desde o século 19. No início do
século passado, essas atividades – agora com o cinematógrafo – foram se
tornando mais autônomas, constituindo-se como associações, com sedes e locais
próprios. Mas, embora o termo cineclube já tivesse sido usado pelo menos em
1907[3], essas organizações
praticamente nunca o empregavam: houve o Cinema dos Trabalhadores, em Los
Angeles (1911); o Cinema do Povo, em Paris (1913); a Associação para a Imagem e
a Palavra, em Dresden (1912) ou o Clube Cosmos para a Cinematografia Científica
e Artística (1913), em Viena, entre muitos outros exemplos[4]. Uma quase exceção seria o
Cinema do Club dos Democratas[5] (1912), de Sobral, Ceará, cujo
jornalzinho se chamava Cinema Club[6]. A própria ideia de
cinefilia, tal como passou a ser entendida depois dos anos 20, não existia
ainda. Na França, muitas vezes identificada como berço do cineclubismo, a maior
parte das iniciativas ditas educadoras (ou educacionais, ou educativas) com o
cinema, desde a segunda década do século, eram chamadas de ofícios
(escritórios, oficinas ou núcleos) de cinema educador[7]. Precedem os
cineclubes (palavra que só começou a se generalizar a partir dos anos 20) e
sempre constituíram a maioria dos grupos organizados em torno do cinema naquele
país[8]. Com a constituição da
União Soviética, milhares de grupos se organizaram, ligados ao processo então
denominado de cineficação[9], dentro dos clubes
de trabalhadores. Também no movimento internacional de solidariedade com a
Revolução surgiram, dos EUA ao Japão, as chamadas Ligas de Cinema dos
Trabalhadores[10]
– e, em Paris, o famoso Clube dos Amigos de Spartacus[11] (1928).
Mas este texto não é sobre a
trajetória do termo. É indiscutível que o conceito genérico, e atualmente
bastante impreciso de cineclube, tornou-se hegemônico mundialmente,
especialmente depois da 2ª. Guerra Mundial. Do seu sentido original, no
entanto, que descrevia uma associação em torno do cinema, atualmente restou
apenas a ideia de projeção seguida de debate. Esse sentido, mais de ação
do que de organização, prevalece particularmente no Brasil. Mas em todo o mundo
o cineclubismo, junto com o próprio cinema, perdeu protagonismo social e
cultural. Ainda existe em quantidade relativamente significativa, mas bastante
descaracterizado e isolado socialmente, como exemplo de uma forma residual de
cultura. Cineclubes agregam especialistas (cinéfilos), diletantes, amadores ou
fãs, como acontece também com a ópera (hoje muito reproduzida nos cinemas), o
balé e outras expressões mais antigas de práticas sociais envelhecidas, descontextualizadas
ou, de diferentes formas, elitizadas.
Mídias
Mais do que a projeção de eslaides
das lanternas mágicas ou mesmo a fotografia, foi com o desenvolvimento do
cinema que se inaugurou e logo se consolidou toda uma nova maneira de ver[12], um novo regime escópico[13] na história da humanidade.
Acostumamo-nos a chamar o fenômeno de “imagens em movimento”, mas logo ele
agregou também palavras escritas e, pouco depois, o som. Oriundas do cinema,
tivemos ainda a generalização da televisão e, atualmente, a ubiquidade dos
sinais digitalizados, sua capilaridade em aparelhos celulares, a fagocitose
progressiva dos outros meios e formas de expressão e comunicação. O capitalismo
de vigilância[14],
ou capitalismo de plataformas[15], enfim, trouxe para o
centro do próprio modo de produção a reprodução técnica do real e a mediação
entre produtores e consumidores através das tecnologias digitais e audiovisuais.
Em seu auge, o cinema atraía
milhões de pessoas, dezenas de vezes por ano, às grandes salas de exibição. A
televisão, em meados do século, multiplicou várias vezes esses números,
reinventando mediações e sentidos, agregando diferentes espetáculos – de cena,
como musicais e cômicos, esportivos e variadas competições – e gêneros, como os
telejornais, as sitcoms, as novelas da América Latina, entre muitos
outros. Mas a rede digital mundial transformou tudo: do quantitativo ao
qualitativo. Na linha de Adorno e Horkheimer[16], ou de Zuboff[17], por exemplo, podemos
dizer que praticamente a totalidade da população do planeta está não apenas assistindo
aos produtos da indústria cultural, mas vive inexoravelmente conectada:
recebe, produz (dados), se comunica, compra, e é observada em tempo integral,
no trabalho, nas ruas ou em casa, e mesmo com certos aparelhos desligados. Os
brasileiros passam mais tempo (mais de 9 horas diárias) diante de telas – de
tevês, celulares e outras – do que em qualquer outra atividade. O resto do
mundo não é muito diferente. Com os modelos algorítmicos de organização e de distribuição
de conteúdo, o conceito de hegemonia – de dominação e consenso - ganha novos
sentidos, prendendo os públicos em bolhas que giram em torno de si mesmas,
presídios kafkianos em espaços virtuais. A chamada inteligência artificial
generativa mimetiza o processo criativo, desconstruindo, demolindo a noção de
autoria. Os meios audiovisuais digitais, entre os quais o cinema stricto
sensu ocupa atualmente um espaço relativamente pequeno, ainda que ancestral[18], não são mais, ou apenas,
uma forma de expressão ou comunicação: tornaram-se a principal mediação das
relações sociais, intrincando-se, confundindo-se com as relações de produção,
mesclando a superestrutura simbólica à base econômica produtiva.
Numa linha mais dialética, porém,
herdeira de Certeau[19] e Hall[20], essa situação produz também
condições potencialmente transformadoras em escalas inusitadas. A conexão
planetária do público pode permitir a expressão e comunicação entre todos, em
escala sem precedentes. A generalização de aparelhos audiovisuais polivalentes
– que recebem, transmitem, produzem – é a antessala latente da democratização
radical da comunicação, o portão virtual da transformação social.
Tecnologia
As tecnologias estão profundamente
ligadas às transformações sociais e históricas. Transformam o trabalho, que
define o ser humano. Muitas delas são parte essencial da própria evolução dos
modos de produção, desde as primeiras técnicas de agricultura até as formas de
mecanização que ajudam a compreender e periodizar as etapas do capitalismo. As
tecnologias digitais já permitem identificar uma etapa diferenciada do atual
modo de produção, e ainda estão, também claramente, em franca evolução. A
relação entre tecnologia e transformação social, contudo, não é direta, linear.
A primeira pode servir para incluir ou dominar, para alienar ou emancipar. Não
produz mudanças positivas nas relações sociais se não for apropriada pelo povo,
acompanhada da mobilização das classes trabalhadoras, da compreensão por parte
destas da oportunidade que, virtualmente, se abre para elas, e do papel que
podem desempenhar na promoção da superação das estruturas obsoletas e na
criação de novas instituições.
Penso que transitamos, neste
momento, por essa oportunidade histórica. Não vejo, entretanto, sinais de
conscientização, de organização ou de mobilização significativa entre a grande
maioria da classe trabalhadora, nos mais variados ambientes, e certamente não
no Brasil. Esses “quesitos”, porém, também não se constroem de maneira
mecânica, mas dialeticamente: é na ação, em que a organização tem papel
central, senão indispensável, que se cria o tipo de consciência que se constitui
como verdadeira força material[21] da transformação.
Voltemos, então, à falência dos
cineclubes, criados em torno do paradigma cinematográfico, definidos por essa
relação culturalmente residual. Pelo menos tão velhos quanto o próprio cinema –
senão mais – como já disse, essas organizações, de diferentes maneiras, em
diversos contextos, acumularam muita experiência, uma espécie de tradição
histórica de organização institucional, como a própria forma associativa,
democrática, sem finalidade de lucro. São características que constituem traços
distintivos da sua origem proletária[22], e um percurso de lutas
diversas, desde a democratização do conhecimento e da educação, pelos direitos
sociais e políticos mais gerais, contra a censura, a discriminação, pelas
chamadas liberdades democráticas e até pela revolução social. Se o cineclubismo
foi contaminado pela cinefilia, pelo elitismo e a alienação – que levaram à sua
descaracterização essencial, possivelmente irrecuperável – esse movimento tem
uma memória e uma experiência igualmente fundamentais na formulação de um
projeto de superação dialética e construção de uma nova forma de organização do
público, consentânea, a meu ver, com a construção de uma nova sociedade.
As tecnologias são o campo e o
instrumento para isso. Como foi dito, as mídias digitais audiovisuais são a
principal mediação das relações sociais, o objeto e a ferramenta indispensáveis
para a construção de novas práticas culturais, sociais e políticas nos meios
populares do Brasil. A verdadeira revolução que transformou - e ainda está
transformando – a produção, a circulação, a recepção, a preservação e a
pedagogia dos e pelos meios audiovisuais, encarna a oportunidade histórica de
que já falei aqui. Os equipamentos de produção e as plataformas de difusão, de
interatividade e de colaboração em rede, assim como todos os dispositivos e
modos de recepção (inclusive o presencial), são muito mais econômicos, eficazes
e abrangentes do que em qualquer outro período do nosso paradigma escópico.
Nunca foram tão acessíveis para alguma forma de organização para a qual
convirjam os esforços de qualquer comunidade popular, inclusive virtual.
Transformação social: uma instituição audiovisual da comunidade e do público
Como já foi visto, o nome não é
indispensável para identificar a organização que quero propor aqui. Até mesmo
cineclube pode caber, dos radicais cine, de movimento – e não de cinema
- e clube, no sentido mais político, de associação, que ainda podem se
aplicar às mídias audiovisuais. O governo brasileiro, no início deste século,
criou sua própria denominação: ponto de cultura, inspirado nas técnicas
milenares de estímulo de pontos do corpo humano na medicina oriental. Mas tais
nomenclaturas não têm dito muito; o que mais carrega sentido no nome da
iniciativa é sua identificação com a comunidade que deve representar. Assim, vou
trabalhar aqui com a ideia de instituição audiovisual da comunidade e do
público e com seu acrônimo IACP, não como denominação de uso social, mas
apenas para facilitar a sequência do texto. Penso que, como tantas outras
organizações do público, ao longo da história, essas IACPs talvez tendam a
adotar nomes identificados com suas comunidades, seu território, seus símbolos,
suas memórias.
Como já disse, é indispensável que
essas IACPs incorporem as duas dimensões que indico em sua “denominação”. Devem
ser audiovisuais, isto é, trabalhar com o conjunto das mídias que formam o
dispositivo social de comunicação contemporâneo, superando a aura que embasa os
cultos atuais do cinema, ou do filme considerado apenas como obra
ficcional ou documental; do chamado filme de autor, e mesmo do “cinema
nacional”, tratado frequentemente como uma espécie de identidade absoluta,
acima de toda contradição, ou como um eufemismo para a produção própria dos que
promovem as exibições. E devem ser comunitárias e do público, ou seja,
integrarem em sua organização a participação democrática dos públicos presentes
nas diferentes comunidades – territoriais, de trabalho, de gênero ou outras
características comuns que identifiquem grupos sociais, suas
necessidades e interesses. Essas comunidades de públicos organizadas em torno
dessas identidades localizadas devem se identificar, se integrar dentro do
público em sentido mais amplo, na escala da sociedade, como classe, como povo,
como humanidade. Superando o histórico elitismo, associado ao cineclubismo, e o
isolamento – a estratégia do desterro, de Hardman[23] -, vício de muitas
iniciativas de trabalhadores no Brasil.
Partindo dessas duas dimensões –
midiática e popular - um componente essencial para a constituição dessa nova
forma de organização do público são os eixos de sua atividade: as necessidades
que deve atender (e, até certo ponto, criar) e os meios que deve
disponibilizar. Isso se incorpora em um projeto, um programa, que tem aspectos mais ou menos imediatos, sem perder a
perspectiva mais geral, estratégica. Esse projeto é condicionado por inúmeras
características e circunstâncias das comunidades em que se insere; desdobra-se,
portanto, necessariamente, no tempo. Ao contrário de um objetivo simplista,
eventual, voluntarista e efêmero como a projeção e debate de um filme, o tipo
de iniciativa aqui proposta– e que já está presente em algumas experiências, no
Brasil e em todo o mundo - varia enormemente segundo as condições em que se
implanta e se desenvolve em prazos estratégicos, longos, provavelmente de anos.
Não é uma ação: é uma organização. Não tem receita: seu perfil é o projeto, o
objetivo estratégico, que até pode mudar durante sua trajetória. Não é simples,
nem fácil, mas comporta a possibilidade ontológica de ser parte importante, até
essencial, da construção de uma sociedade radicalmente justa e democrática.
“... para
construir a sua hegemonia, os grupos sociais subalternos precisam se organizar,
organizar a cultura, educarem-se, precisam se tornar dirigentes. ... Para criar
uma nova civilização, Gramsci considera fundamental a organização da cultura,
“[...] ampliando os meios para difundir novas concepções do mundo que
permitissem às classes subalternas tomar ‘consciência de si’, dos seus próprios
fins e fazer sua história” (DORE, 2007).”[24]
Os objetivos necessários e estratégicos na construção
de uma IACP, as atividades que devem constituir seu projeto – e ser construídas
na ordem e nos prazos possíveis dentro das circunstâncias dos organizadores e
da comunidade, são:
Educação, formação e entretenimento da e com a comunidade[25] através de todos os
meios audiovisuais possíveis, sem excluir, eventualmente, outras mídias e
linguagens: publicações, teatro, dança, entre outras. Esses três eixos
constituem a essência de uma IACP, que atua nessas três dimensões, as quais
podem, com muita frequência, ser simultaneamente parte das práticas
desenvolvidas em torno das mídias audiovisuais: são capazes de, ao mesmo tempo,
educar, entreter e formar[26]. Além de congregarem
públicos mais amplos, em salas próprias para isso, podem e devem usar outras
formas de reuniões presenciais, em grupos menores e mais dirigidos (por seus
interesses), em espaços organizados de formas criativas e confortáveis. O
material audiovisual apresentado não deve absolutamente ser limitado ao filme
– conceito fortemente carregado da ideologia cinéfila, que o reduz a narrativas
ficcionais ou ensaios documentais. Mesmo o cinema nunca deixou de incluir a
informação, o noticiário, os esportes, os espetáculos e, enfim, as múltiplas
contribuições de outras mídias e linguagens que convergem para esse paradigma
escópico que pode reunir todos os outros, como queria Ricciotto Canudo[27] já em 1911. Com a
televisão e, sobretudo com a rede mundial audiovisual, novos “gêneros” e
formatos de expressão – blogues, podcasts e outros, sobre todos os assuntos
possíveis, além do grande campo dos videojogos - estão sendo criados, e
constituem formas com potenciais mal compreendidos, seja para a alienação ou
para a emancipação. Seu consumo, a apreciação, a crítica coletiva são
indispensáveis para que não prevaleçam apenas os sentidos de dominação que
todas as mídias carregam. O audiovisual, neste seu sentido mais pleno, é o novo
objeto indispensável da práxis crítica – para usar uma expressão redundante. A
incorporação dos públicos virtuais é outra necessidade absoluta. Assim, ao
falar de “todos os meios audiovisuais possíveis”, quero significar que o objeto
da IACP, o que define essa nova instituição, é exatamente esse: o audiovisual
sob todas as suas formas de criação, produção e recepção. As novas formas de
expressão que estão se desenvolvendo nos espaços virtuais nunca, ou quase
nunca, se articulam com estruturas, organizações coletivas concretas: apenas reproduzem
a iniciativa e o protagonismo individualizado, privatizado, monetizado pelas
plataformas, como uma espécie de empreendedorismo que se expressa na nefasta
ideia de “influenciadores”. A IACP é, também essencialmente, um projeto de
integração entre esses dois espaços: seu público, sua comunidade é presencial,
virtual e híbrida.
Uma organização coletiva, democrática
e autossustentável. Estes
dois elementos: associativismo e sustentabilidade, constituem as grandes
diferenciações com as formas de atuação cultural predominantes hoje no Brasil.
Estas últimas raramente se organizam de forma democrática, inclusiva, em que a
assembleia de todos os membros[28] é a instância soberana de
decisão, e com renovação periódica e transparente de suas direções através da
manifestação, do voto, de seus participantes, associados – e não clientes ou
alvos, plateia ou objeto alegórico de suas atividades. E a
autossustentabilidade, para além dos recursos obtidos junto às inconstantes
fontes governamentais – ou raros patrocinadores privados -, tornou-se uma
espécie de anátema no senso comum das entidades comunitárias. Exceto quando,
inspiradas pelo ideal do empreendedorismo, organizam-se como empresas: nesse
caso, podem cobrar e acumular, desde que para a apropriação privada, e não pelo
coletivo. De fato, é exatamente isso: apropriação privada ou pela comunidade,
que distingue uma iniciativa comercial da organização sem fins lucrativos – e
não a cobrança, de resto inescapável, pelas ações desenvolvidas. A participação
da comunidade em que uma IACP se estabelece, sua adesão ao projeto e sua
apropriação da instituição como parte de sua identidade e projeto, medem-se,
inclusive, por seu engajamento com a sustentabilidade da IACP. Pagar ou
contribuir financeiramente com determinadas atividades implica no
reconhecimento de sua necessidade, oportunidade e interesse para a comunidade.
Também tem o sentido de estabelecer uma responsabilidade, uma apropriação, um
poder coletivo sobre essas atividades – que não poderiam existir de outra
maneira (exceto se patrocinadas por forças externas à comunidade), porque tudo
tem um custo. A associação das pessoas à IACP, inclusive com o pagamento de
alguma taxa periódica, é o elemento final dessa apropriação pela comunidade. E
o estabelecimento de uma receita mais ou menos estável é a pré-condição
indispensável para o planejamento da evolução da própria IACP. Inclusive
permitindo a consolidação de colaboradores remunerados, de diferentes formas,
nas atividades que exigem tipos de dedicação mais intensas ou prolongadas,
sinônimo do crescimento e complexificação da própria IACP, isto é, do seu
sucesso. Esse processo estabelece, finalmente, uma condição de pertencimento,
ou seja, quando os membros da comunidade se reconhecem e se identificam nas
ações de sua IACP, e nela encontram motivação, autoformação e satisfação[29].
Criação de espaços físicos e
virtuais. A criação de espaços
é inseparável da própria ideia da organização. Um espaço sede é referência
essencial da instalação de uma iniciativa desse tipo dentro da comunidade. E
este espaço físico deve conter espaços dedicados a reuniões de trabalho e
estudo; de produção audiovisual (estúdio e equipamentos); de arquivo; de
congraçamento comunitário, com bar ou lanchonete, e um espaço maior, para
reuniões, e exibições para grupos maiores[30]. Um auditório maior é
importante, mas não indispensável – sobretudo inicialmente – e pode ser em
local próximo, inclusive através de parceria com outras instituições. Os
espaços virtuais também são indispensáveis, claro: pelo menos um canal na
internet e aplicativos para comunicação e participação do público e dos
associados. Os videogames, também, já que constituem uma nova forma de
expressão e de entretenimento que atrai enorme interesse do público.
Coleta e conservação dos artefatos e documentos existentes que são parte
da memória e da identidade da comunidade. A preservação de fotos, filmes,
publicações, cartas, de membros, famílias, grupos diversos da comunidade, que constituem
sua história, são materiais indispensáveis para reconstituir e consolidar sua
memória e para ajudar a revelar sua identidade local, regional, nacional e
histórica. É o arquivo da comunidade. Alguns materiais, conforme seu
estado, complexidade e importância, podem e devem ser objeto de trabalho
solidário com outras organizações, públicas ou privadas.
Documentação audiovisual das atividades, personalidades, eventos, e outros
acontecimentos, até desastres, que fazem parte da vida comunitária. Uma prática
que é diretamente complementar à anterior. Essa documentação inclui
entrevistas, matérias videojornalísticas com personalidades relevantes na e
para a comunidade: suas realizações, modo de vida e outros aspectos. Também
envolve a documentação das atividades da comunidade, outras iniciativas, como a
ou as escolas, grupos culturais, étnicos, religiosos e outros. Finalmente, os
eventos, desde manifestações políticas até as esportivas – como jogos de
várzea, femininos, infantis – e festivas, como bailes, e até a “coluna social”,
com aniversários, casamentos, funerais. Evidentemente, essa produção também
inclui, e em vários sentidos converge para a produção de outros tipos de
conteúdo, ficcionais, documentários, experimentais e outros. Tudo que é
produzido dessa maneira deve ser arquivado e, o que for mais importante,
necessário ou interessante, deve ser divulgado, em todos os meios possíveis,
para a comunidade.
Articulação local, criação de redes colaborativas e de instituições de representação
política em nível municipal, estadual, nacional, internacional e virtual.
Uma IACP deve colaborar com diferentes iniciativas da ou na comunidade nos
campos da cultura, da educação, da política. Em muitos casos, isso pode levar a
formas de atuação conjunta mais sólidas, inclusive propiciando fusões – entre
ações culturais -, principalmente nos casos em que a comunidade ainda não tem
condições de manter diversas iniciativas distintas. Numa IACP, as atividades de
teatro, dança e várias outras, ainda que tenham autonomia em suas práticas,
também complementam as formas de apresentação audiovisual e se fortalecem com
essa difusão. As escolas são outra área de colaboração indispensável, nos dois
sentidos: as práticas audiovisuais têm um componente pedagógico essencial,
ainda que não formal, no sentido tradicional, assim como a escola é uma
instituição em certa medida superada[31], que necessita
absolutamente de uma integração mais efetiva com as comunidades. De certa
forma, o mesmo se aplica às formas de organização mais políticas das
comunidades, como associações de moradores, ou nos casos em que, de certa
forma, as próprias comunidades se definem em torno de organizações ou ações
políticas, como sindicatos, ocupações, assentamentos, entre outras. Em todos os
casos acima, a autonomia das partes é da sua essência e sempre necessária; o
nível de integração entre elas é, portanto, questão complexa que vai depender
de cada caso. A criação de redes colaborativas e da representação política mais
ampla das IACPs, nos diversos níveis e espaços geográficos e sociais, será
decorrente das próprias práticas que desenvolverem, da história que construírem
e das relações que estabelecerem.
Em conclusão: para a constituição
de organizações audiovisuais do público não há receita, mas alguns parâmetros
indispensáveis. Não existe cartilha genérica que dê conta das particularidades
decorrentes de cada comunidade, só projetos que procurem reconhecê-las. E muito
trabalho, muita luta para serem realizados.
Montreal, junho de 2024.
[1] Acessível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2023/06/o-velho-e-o-novo-1-cinefilia-ideologia.html ou https://www.academia.edu/103900907/O_velho_e_o_novo .
[2] Williams, Raymond. 2011. Cultura
e Materialismo. São Paulo: UNESP.
[4] No original, respectivamente:
Workers Film Theatre, Cinéma du Peuple, Verein Bild und Wort e Kosmos Club für
wissenschaftliche und künstlerische Kinematographie.
[5] Ver mais em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2023/09/novissima-cronologia-do-cineclubismo.html
[6] Um exemplar em mal estado
existe na Biblioteca Nacional.
[7] Em francês, termo relativamente difícil
de traduzir: office du cinéma éducateur.
[8] Nos anos 50, por exemplo, no
auge da segunda onda cinefílica, a França tinha cerca de 10 mil cineclubes. Destes,
80% era filiados à UFOLEIS – Union française des œuvres laïques pour
l’éducation par l’image et le son (União francesa das obras laicas para a
educação através da imagem e do som), entidade que evolui a partir de uma
primeira organização criada em 1929, segundo Laborderie, Pascal e
Souillés-Debats, Léo. 2016. L’UFOLEIS, le cinéma éducateur et les cinés-clubs : une rencontre par et
pour le cinéma. La Ligue de l’enseignement et le cinéma : une histoire de
l’éducation à l’image, 1945-1989. Paris :
AFRHC.
[9] Há muito material sobre o tema. Aponto
aqui apenas um exemplo: Kepley Jr., Vance. 1994. 'Cinefication': Soviet
Film Exhibition in the 1920s” em Film History, Vol. 6, No. 2, Indiana
University Press.
[10]
Campbell, Russel. 1982. Cinema Strikes Back: Radical Filmmaking in the
United States 1930-1942. Ann Arbor: UMI Research Press.
[11]
Gauthier, Christophe; Perron, Tangui e Vezyroglou, Dimitri. « Histoire et cinéma : 1928, année
politique », em Revue
d’histoire
moderne et contemporaine 2001/4 (no. 48-4),
[12] Martín-Barbero, Jesús e Rey,
Germán. 1999. Los ejercicios
del ver – Hegemonía audiovisual y ficción televisiva. Barcelona: Gedisa
Editorial.
[13] Jay, Martin. 1998. “Scopic
regimes of Modernity”, em Foster, Hal (ed.), Vision and Visuality –
Discussions in Contemporary Culture #2. Seattle: Bay Press.
[14]
Zuboff, Shoshana. 2019. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a
Human Future at the New Frontier of Power. Nova York: Public Affairs
[15]
Poell, Thomas; Nieborg, David e Van Dijck, José. “Plataformização”, em Fronteiras – estudos
midiáticos. No. 22 janeiro/abril 2020. Unisinos
[16] Horkheimer, Max e Adorno, Theodor W. 1972. Dialectic of
Enlightenment. Nova York: Herder and
Herder.
[17] Op.cit.
[18] Elsaesser, Thomas. 2017. Cinema
como arqueologia das mídias. São Paulo: Edições SESC.
[19] De Certeau, Michel. 1974. A
Invenção do Cotidiano. (2 vol.). São Paulo: Vozes.
[20] Hall, Stuart. 1973. Encoding
and decoding in the Television Discourse. Birmingham:
Centre for Contemporary Cultural Studies.
[21]
Marx, Karl. 1843. Introdução
à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Acessível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm .
[22] Thompson, E.P. (1963) s.d. The Making of the English Working Class. New York : Random House – acessível em https://uncomradelybehaviour.files.wordpress.com/2012/04/thompson-ep-the-making-of-the-english-working-class.pdf . Williams, Raymond. 1960. Culture and Society 1780-1950. Nova York : Doubleday. Esses autores ingleses destacam a característica sempre coletiva e democrática das organizações surgidas nos meios de trabalhadores, em comparação com a individualidade ou privatização das que têm origem na burguesia.+
[23]
Hardman, Francisco Foot. 1980. A Estratégia do desterro – Situação operária e contradições da política
cultural anarquista/Brasil, 1889-1922. Tese de mestrado – UNICAMP, acessível em https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/48105 Tema retomado em Nem pátria, nem
patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil. 2003, São Paulo:
Editora UNESP.
[24] DORE, Rosemary. 2007. “Atividade
editorial como atividade educativa: reflexões de Gramsci sobre as
"revistas tipo". Revista de Sociologia e Política, Curitiba, nov.,
n.29, apud Souza, Herbert Glauco de. 2018. Reforma Intelectual e
Moral e a Construção da Hegemonia: o Processo de Elevação Cultural dos Grupos
Sociais Subalternos. Tese de doutorado: Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais, acessível em https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-AWKN9D/1/tese_herbert__1_.pdf
[25] Freire, Paulo. 1987. Pedagogia
do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra.
[26] Não à toa, o lema do Cinema
do Povo, de 1913, era: “Divertir, instruir, emancipar”.
[27] Canudo, Ricciotto. 1911. La
Naissance d'un sixième art - Essai sur le cinématographe, acessível em https://www.filosofia.org/hem/191/9111025c.htm
[28] É importante salientar que,
ao pensarmos em comunidades, temos em vista grupos sociais com pelo menos
muitas dezenas de integrantes, frequentemente com centenas e mesmo milhares de
pessoas. Ou mais. Os espaços virtuais acrescentam números potencialmente ainda
muito maiores. E essa é uma das características essenciais para
considerarmos essas práticas socialmente relevantes e efetivamente
transformadoras.
[29] Tratei desse tema em um
artigo, escrito ainda no início da Pandemia, sobre o papel das igrejas, que têm
ocupado os espaços deixados por outras iniciativas nos ambientes populares: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2020/03/as-igrejas-as-esquerdas-e-os-cineclubes.html
[30] Os 18 objetivos ou campos cobertos pela Política Nacional Aldir Blanc preveem a organização e manutenção desses espaços. De fato, cobrem, de alguma maneira, todos os objetivos de uma IACP apontados aqui. Ver discussão do assunto em: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html .
[31] Esse é um tema complexo e
fundamental, tanto para uma ação cultural em sentido mais amplo como,
igualmente, para a educação. Mas não cabe no escopo sintético deste texto.