Victor de Almeida
É pretensioso dizer isto - no que me toca - em um país do tamanho do Brasil mas, de meu conhecimento, só sei de um intelectual e militante cineclubista cineclubista mais, bem mais, antigo do que eu, e sempre atuante. Falo de Victor de Almeida, do conhecido e importantíssimo Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, da Revista de Cinema e, mais recentemente, também com o cineclube da Casa de Cultura Cássia Afonso de Almeida, de Mateus Leme (MG). Ele me mandou esta avaliação da situação do cineclubismo no Brasil, e me autorizou a divulgá-la. Sintético, o texto abarca muitas questões que artigos bem mais extensos não conseguem reunir. Aqui vai minha contribuição para a sua disseminação.
Como está e para onde vai o cineclubismo brasileiro
Pertenço a uma
outra tradição de cineclubismo, mas não posso deixar de reconhecer a
impressionante vitalidade e dinamismo do movimento de agora, representado por
talvez centenas de cineclubes, que se reúnem com alguma regularidade para ver e
discutir filmes que, muitos, eles mesmos fazem. Trata-se de um
fenômeno novo, que pouco depende do repertório do cinema internacional e
até mesmo do do cinema brasileiro, que hoje não tem mais o caráter de movimento
político de outrora.
Felipe Macedo é,
talvez, o maior estudioso do cineclubismo hoje no Brasil. Atualmente morando no
Canadá, ele foi um dos articuladores do Censo Cineclubista, realizado pelo
Cineclube O Lhó Lhó, de Florianópolis, sobre o movimento em nosso
país. Mas, antes de comentar alguns resultados dessa pesquisa, é preciso
destacar a revolução por que o cinema vem passando. "As mediações sociais
na sociedade, hoje, são feitas pelas mídias, que atingem a toda a população.
Elas são, predominantemente, digitais e audiovisuais". Como precursor
dessas mídias, "o cinema sofreu transformações radicais na produção, na
difusão e, sobretudo, na recepção. Hoje, os filmes estão nos cinemas, na
televisão e nos celulares. Comparado com a audiência do cinema tradicional, o efeito
é gigantesco".
No dizer do cineasta e
ex-cineclubista Sílvio Tendler, "o cinema está emparedado pelo
entretenimento". Foi sequestrado pelos shopping-centers. Virou lazer,
exclusivamente. Poucos equipamentos públicos ainda subsistem para a fruição
coletiva da produção audiovisual e cinematográfica fora desses centros de
compras. Pior, o meio mudou a mensagem, como previu McLuhan. A exceção
são os cineclubes -- e as salas especiais que desses se aproximam,
funcionalmente.
No entanto, os
cineclubes continuam presos aos anos 50 e 60, apresentando uma base social
ainda muito limitada e rarefeita, embora não elitista. Macedo aponta a
falta de associativismo como um dos entraves para o desenvolvimento do
movimento. Alguns cineclubes chegam a ser individuais. Um número
expressivo é de cineclubes virtuais. Não têm existência formal, são coletivos.
A frequência das sessões, na maioria deles, é mensal. O número de
frequentadores presenciais por sessão fica entre 10 e 20 pessoas. Virtualmente,
o número pouco se altera. O público é constituído, basicamente, de estudantes.
Os filmes exibidos são produções independentes, portanto, menos
conhecidas e reconhecidas. Em compensação, esses filmes tratam de
"temas sociais amplos e variados", projetando os cineclubes como
"organizações progressistas e inclusivas".
Em sua maioria, os
cineclubes atuais são organizações informais, não tendo estatutos, diretoria
eleita, taxas de manutenção, etc. Sendo assim, também não pagam direitos
autorais. É difícil precisar seu número exato, já que nascem e morrem a todo
instante. Em termos atuais, são organizações que reúnem espectadores -- nem
sempre apreciadores de cinema, para o estudo de filmes, artistas e
cinematografias -- que utilizam o produto audiovisual para enfrentar outros
temas e interesses que assaltam a sociedade.
Trata-se de uma
formidável energia que vem sendo canalizada para a melhoria da cidadania de
seus militantes. Com isso, está surgindo uma nova consciência de cineclubismo.
Não se trata mais de reconhecer o cinema como uma arte ou como um recurso para
a emancipação dos trabalhadores, como ocorreu nos primórdios. O cineclubismo
atual se apropria dos novos recursos audiovisuais para se posicionar não como
objeto do espetáculo cinematográfico, como espectador e consumidor, "mas
como público, sujeito da vida e da história".
Historicamente, o
movimento pretendia divertir, informar e emancipar o público. Divertir sem
alienar. Criar no cidadão a consciência de indivíduo, de grupo, de comunidade,
de classe social, de humanidade. Isto é, criar nele "a consciência da sua
condição no mundo". Como organização comunitária, tinha "caráter
democrático, popular e transformador". Um dos primeiros cineclubes se
denominava Le Cinéma du Peuple e tinha natureza política
(anarquista).
Segundo Josué de
Castro, o cineclube "é a grande esquina do cinema. A esquina é um lugar de
encontro". Ele foi isso enquanto não surgiu a televisão. Em Belo
Horizonte, o Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC-MG) foi,
durante muitas décadas, uma janela para o mundo. Não se compreende, portanto, o
isolamento social em que se encontra hoje, apesar da multiplicidade,
diversidade e intensidade do movimento. Sobretudo, a falta de vínculo com os
trabalhadores. Poucos cineclubes funcionam em sindicatos de trabalhadores e
associações de moradores, numa demonstração de que essas organizações têm menos
interesse na cultura. O que predomina são os cineclubes com pautas
identitárias.
O atual governo
anunciou, no Dia do Cinema Brasileiro, 19 de junho, recursos financeiros
extraordinários para fortalecer o conteúdo audiovisual no mercado interno e
externo. Mais uma vez, o cineclubismo foi esquecido pelo Ministério da Cultura.
Qualquer observador nota que os cineclubes brasileiros e seus militantes estão
na base de apoio ao atual governo. Mas faltam-nos organização e liderança. O
cineclubismo esteve na origem da evolução da linguagem cinematográfica.
Impulsionou movimentos revolucionários, estéticos e culturais. No entanto, isso
não é reconhecido.
Victor de Almeida
é gestor cultural, diretor-executivo do Instituto Humberto Mauro e presidente
do Conselho Curador do Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais
(CEC-MG), organização com 73 anos de atividades.