sábado, 3 de dezembro de 2016
Quando
vejo organizações nacionais ou encontros representativos de cineclubes se
manifestarem “em defesa do cinema de autor” ou de um “cinema de qualidade”
percebo que muitos cineclubistas ainda não realizaram em toda a sua extensão o
que representa o público, e sua relação com o cineclube e o cineclubismo. Essas
expressões entre aspas estão presas a concepções estéticas elitistas originadas
no impressionismo francês dos anos vinte e superadas pela última vez ao final
do ciclo da Nouvelle Vague. Ou se prendem a uma postura essencialista e
paternalista ancorada na noção do “bom cinema” do espectador cristão, falecida
pouco depois. A autoria, como categoria ontológica, nada mais é que uma
justificação filosófica para a propriedade privada econômica, ou moral, como
fator de prestígio social.
Assim,
muito sucinta e esquematicamente, resolvi escrever este pequeno artigo, um
estímulo e uma provocação à reflexão sobre o cineclubismo nestes tempos de
revolução técnica, antesala do caos ou da Revolução.
O Cinema do Público
Nos anos 70, à medida que crescia o movimento
cineclubista comprometido com a resistência à ditadura militar, e que deitava
raízes nos movimentos sociais e meios populares, surgiu a percepção de que os
cineclubes eram uma forma de organização do público, resultantes da expressão
de suas necessidades, de seus interesses e do fato de que o cinema comercial
não atendia esses objetivos, pelo menos para além da sua própria dependência da
produção de lucro.
Compreender o cineclube como uma organização do
público representou uma ruptura com a concepção dominante de cineclube como uma
instituição voltada ao culto do cinema. Isso aconteceu um pouco em toda parte,
sobretudo no terceiro mundo, e muito especialmente na América Latina. Mas
talvez o cineclubismo brasileiro, que atingiu naquele período um nível muito
avançado de organização, tenha sido o que mais claramente demonstrava essa
concepção e prática, e que começou a sistematizá-la como teoria. Na Itália,
talvez pela influência do pensamento gramsciano – e, de fato, coincidentemente na
Sardenha – também se teorizava, na mesma época, sobre a primazia do público
sobre o cinema na organização do cineclubismo. Precocemente desaparecidos,
Fabio Masala e Filippo de Sanctis não podem ser esquecidos por todos que se
interessem pela história dos cineclubes.
Como dissemos, isso aconteceu um pouco em toda parte,
demonstrando que a verdadeira característica do cineclubismo aflora sempre que
consegue superar a barreira ideológica do elitismo e das instituições culturais
conservadoras que o relegam a um papel de culto alienado ao cinema. De fato, o
cineclubismo nasceu claramente como uma instituição de resistência ao cinema de
dominação e exploração que se consolidaria a partir da segunda década do século
passado, sendo depois igualmente enquadrado e “institucionalizado” em grande
parte.
O público é o autor
Ironicamente, foi em grande medida nos cineclubes da
década de vinte que se desenvolveu a noção do autor individual como criador,
responsável e proprietário das obras cinematográficas. Ideias que atingiram seu
auge ainda num ambiente cineclubista, o da Nouvelle Vague dos anos cinquenta.
No entanto, as obras de arte são o produto de um
processo cultural permanente e ininterrupto, fruto de um diálogo social em que
todas as partes contribuem. Mesmo quando é possível se identificar um autor
individual e original de uma obra – o que não é nem tão óbvio nem tão comum
quanto se pensa -, ele está expressando um momento desse diálogo. O
sentido final da obra é dado – também numa relação permanente, e em permanente
mutação – na recepção, pelo diálogo social, nos termos em que o descreveu
Bakhtin[i]. O
consumo é produtivo. As abstrações dualistas emissor-receptor, autor-espectador,
não existem na realidade: esta é uma espiral multidirecional que se modifica o
tempo todo na história. A categoria permanente nesse diálogo é o público, do
qual fazem parte os autores formais ou percebidos, seja qual for a medida e
intensidade de seu envolvimento. O público é o autor social do sentido da arte
numa luta ideológica ininterrupta pela apropriação desse sentido.
Cinema do capital e cinema do
público
Como o nome já diz,
no sistema capitalista o capital organiza as forças produtivas assegurando-se
da apropriação de seus resultados. O sistema funciona adequando todo produto e
toda forma de produção à realização do lucro. E descartando, eliminando ou
relegando a uma posição marginal o que não se adéqua. A história do cinema
constitui um bom exemplo. Inúmeras invenções e processos foram sendo
selecionados com base em sua adequação ao mercado, à capacidade e possibilidade
de organizar esse trabalho para dar lucro. Até a metade da segunda década do
século vinte esse foi um processo de várias vias e não poucos conflitos, que –
muiito simplificadamente – acabaram com a prevalência, a hegemonia do cinema
dito clássico, hollywoodiano. Outras alternativas foram abandonadas, perseguidas
ou marginalizadas. Mas, entre as sobreviventes, continuou o processo permanente
de tentativa de apropriação pelo capital.
De uma forma esquemática, existe um cinema do capital, voltado
primordialmente para a produção de lucro, e outras práticas e instituições
cinematográficas que, mais ou menos alijadas do sistema capitalista, se
organizam sobretudo em torno do seu valor de uso[ii]
para seu público, em detrimento de seu valor de mercado. Podemos falar assim,
genericamente, de um cinema do capital
e de um cinema do público. Cada um
deles constitui abstratamente uma matriz
geradora de instituições que diversificam e concretizam as formas de
apropriação social do cinema (ou do audiovisual em geral).
Instituições do cinema dominante
e instituições do público
O período chamado de institucionalização do cinema é
geralmente situado entre 1905, com o surgimento dos nickelodeons ou salas fixas, e algum momento, menos preciso, na
segunda metade de década de 1910, quando se consolidam as principais ou básicas
formas de linguagem, de produção, circulação e recepção do cinema. Esse período
– que chamamos em outros textos de a
batalha do nickelodeon – foi justamente um conflito, ou uma série de
conflitos interligados, entre as tentativas de imposição de modelos pelo
capital e a resistência dos públicos, culminando no estabelecimento de um
resultado composto mas essencialmente adequado à produção máxima do lucro. Esse
cinema hegemônico é constituído de uma série de instituições – de linguagem,
estilo, formas de consumo, etc – que continuam a serem criadas até hoje.
Entre elas podemos citar a forma literária linear da
narrativa, a montagem transparente, a maioria dos gêneros cinematográficos, o
sistema de astros e estrelas, as diferentes formas arquitetônicas (dos palácios
aos multiplexes) de organização da recepção, e muitas outras.
Já do lado do público, resultado da resistência mais ou
menos consciente ou organizada, diversas práticas e instituições marginalizadas
experimentam diferentes trajetórias. A mais paradigmática – mais antiga e
generalizada – de que se originam diversas outras, são os cineclubes. Mas
também as cinematecas, os festivais de cinema, uma parte da crítica, os estudos
universitários de cinema. Várias formas de produção e de estéticas de
representação também evoluem fora ou em diferentes níveis de marginalidade em
relação ao cinema comercial: a estas podemos chamar de cinemas do público. Evidentemente, são também apropriadas e
agregadas aos mercados em alguma medida, conforme o caso. Ou são adotadas e protegidas
pelo Estado, na atribuição clássica deste, de evitar o conflito. Mas, sem
produzir lucro, sua dinâmica experimenta uma margem variável de autonomia em
relação ao capital.
Os cinemas do público
Não apenas excluídos dos mercados, mas igualmente
desconsiderados – pelo menos até muito recentemente – pela maioria das instituições
sociais, como a imprensa e a universidade, a teoria e a história do cinema,
essas formas são denominadas sempre em alguma medida pela sua excepcionalidade
em relação ao modelo hegemônico (e, não raro, de forma pejorativa): cinema
amador, cinema de família, cinema experimental, cinema científico, cinema de
vanguarda, cinema operário, cinema negro, cinema feminista, cinema LGBT. Mas
também, em grande medida, o cinema documentário, e até mesmos os cinemas
nacionais, sobretudo nos países “não produtores” ou onde a produção não
encontra mercado ou não consegue se industrializar em alguma medida.
Essas classificações, obviamente, são mais ideológicas
que qualquer coisa. Os estudos de cinema estão hoje tentando incorporar essas
práticas em uma teoria mais geral do cinema, já que a existente foi claramente
abalada pela diversificação do universo audiovisual. No plano sócio-econômico
vivemos outra batalha, que podíamos chamar de batalha das redes sociais, ou da
apropriação dos espaços virtuais – políticos, econômicos, ideológicos,
estéticos.
Estes “cinemas” têm todos uma relação muito próxima
com os movimentos cineclubistas seus contemporâneos ou conterrâneos – e nem
sempre de harmonia. A revolução audiovisual em andamento, além de reposicionar
essas práticas e instituições, está criando novas, e todas elas são
indispensáveis para a criação de um projeto de cineclubismo que pretenda se
ajustar aos novos tempos e continuar a exercer um papel de organização
representativa do público no campo do audiovisual.
Felipe Macedo – dezembro 2016
[i] Mikhail Bakhtin (Volochinov),
Marxismo e filosofia da linguagem. Capítulos
1, 2 e 3. São Paulo: HUCITEC Editora
[ii] Karl Marx O Capital Crítica da
Economia Política Livro Primeiro: O processo de produção do capital. Primeira
Seção: Mercadoria e dinheiro Primeiro
capítulo. A mercadoria. Disponível
em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap01/01.htm
quinta-feira, 15 de setembro de 2016
Corrupção
Como problema ético, a corrupção fica na fronteira da
psicologia e da cultura, do indivíduo e do coletivo. Acredito que o primeiro, o
sujeito tomado isoladamente, se molda de forma autônoma no caldo de cultura do
ambiente social. Todos têm escolha, mas o bandido pobre é impulsionado pela
necessidade; o assaltante rico, pela oportunidade. A corrupção é uma forma de
roubo, também pode ser compreendida como a apropriação privada - individual ou
organizada – de bens ou direitos coletivos. Resquício de formas primitivas de
sobrevivência, ela se incorpora de diversas formas e em diferentes níveis nas
culturas das nações e, até certo ponto, da Humanidade.
Numa simplificação esquemática – como se requer nestas
redes privadas mas ditas sociais – podemos citar o exemplo da incorporação à
moralidade institucional dos países mais desenvolvidos economicamente dos
salários e benefícios tidos como aceitáveis para executivos, na ordem dos
milhões, dezenas e até centenas de milhões (em qualquer moeda forte) anuais e sua
tributação diferenciada. Nativos desses mesmos países se chocam com os hábitos
de propinas de 1, 2, 10 dólares necessários a cada passo de uma demanda
burocrática – liberar um produto na alfândega, obter um certificado ou
autorização – ou de pequenos serviços, em certos países da África, por exemplo.
No Brasil reunimos o pior desses dois mundos.
Herdeiros do Estado patrimonial deixado pelos portugueses (ou até pelos
visigodos e romanos, como dizia Raymundo Faoro), com predominância de estamentos
produtores e controladores de uma gigantesca burocracia, vivemos num paraíso de
regras e dificuldades que apelam para soluções “inventivas” e jeitinhos extracurriculares.
A enormidade de cargos públicos[i], o
volume de regras extensas e gongóricas, a extrema hierarquização e morosidade
do controle juciário, aliados a um éthos
de privilégios e exceções elitistas, introduz aquela pequena corrupção como
fator de igualdade e até de sobrevivência entre a massa de excluídos do sistema
produtivo dominante, e a adapta para os escalões da burocracia estatal, nos
poderes executivo, legislativo e judiciário. Ao mesmo tempo, o restante da
classe dominante – na indústra, no agronegócio, nas finanças – dispõe e
usufrui, ainda que em escala proporcional à sua própria grandeza relativa, dos
dispositivos de desigualdade de padrão desenvolvido. Ou bônus sem ônus.
Toda corrupção é nociva mas, evidentemente, os milhões
de dólares pagos como salário e bônus ao executivo de uma grande corporação ou
como propina para o deputado, prefeito ou ministro (entre outros) têm um peso
social muito diferente dos 10 ou 20 reais dados ao flanelinha que se apropria
do espaço público ou do trocado entregue ao vendedor de balas, provavelmente
roubadas, no sinal fechado. Quantias enormes subtraídas direta ou indiretamente
do patrimônio público pesam realmente nos orçamentos sociais: tiram dinheiro
dos investimentos em transporte, defesa, educação, de tudo um pouco. Ou um
pouco mais que um pouco. No caso da saúde, por exemplo, o dinheiro ou a falta
dele representam vacinas, remédios, tratamentos. Pessoas morrem ou ficam
inabilitadas por toda a vida por causa dos fluxos invisíveis desses recursos.
Na China existe a pena de morte para os crimes contra a economia popular. No
Brasil, tal como o inconsequente maconheiro ou o ocasional consumidor de
cocaína não sentem nenhuma responsabilidade sobre o estabelecimento do poder do
crime organizado nas comunidades populares, na “criação de empregos” no tráfego
e no crime em geral para crianças e adolescentes mais pobres, os políticos,
empresários, autoridades judiciais e religiosas também parecem – ou aparentam –
não ver relação entre as nebulosas operações financeiras e políticas de que
participam e as incontáveis mazelas que afligem nosso País. Não, essa corrupção
“de rico” é realmente um crime muito grave.
Qualquer cidadão minimamento informado – e não são
tantos assim - sabe que a quase totalidade dos partidos nacionais com
representação parlamentar é corrupta, nos termos acima descritos. Mais que
isso, a corrupção é a razão principal da existência de muitos partidos – em
número, a maioria das siglas – que existem apenas para receber recursos
públicos e negociar votos e espaços midiáticos, também públicos. Os partidos
mais à esquerda foram, durante muito tempo, exceção a essa “regra”, mas muitos
perderam essa característica já lá se vão muitos anos. Para parlamentares
evangélicos, qualquer ação se justifica por estar ao serviço do Senhor (como
ateu, essa ideia é para mim um mistério: será um deus qualquer ou aquele senhor
que manda na igreja?), para alguns mais à esquerda, a moralidade estaria nos
altos desígnios sociais que sua organização – e eventulamente sua generosa
pessoa – são as únicas a poder assegurar. Para a maioria, em todos os casos, é
mesmo uma picaretagem, tipo uma sujeirinha que deve ir para debaixo do tapete. PT,
PMDB, PSDB, PSD, PP, PR, PSB, PTB, DEM, PRB – para citar, em ordem decrescente,
apenas as dez maiores bancadas da Câmara federal – estão todos igualmente
imersos nessa cultura de corrupção[ii].
Na China, muitos desses deputados seriam fuzilados – e
isso estaria de acordo com a consciência cívica que por lá se promove, diante,
inclusive, de um grau elevado de corrupção, em parte beneficiado pela opacidade
do governo e por outros atavismos culturais. Os brasileiros somos mais
tranquilos quanto a isso, aqui só executamos corruptos (e mesmo alguns
desafetos) em sonho ou na internet. A corrupção é percebida socialmente – e
promovida pelos poderosos, muitos deles corruptos - como falta menor. Assim, o
tratamento da corrupção em termos políticos e mediáticos tem sempre sido
relativizado, abrandado, abafado – agora também por grande parte da esquerda.
Mas em certas ocasiões, acontece o contrário. Os governos e instituições com
presença ou influência progressista são atacados justamente pelos focos centrais
da corrupção por... corrupção. A pecha da corrupção é das mais produtivas
calúnias: mesmo – ou especialmente no caso de – não haver provas, ela se insinua
e cola no difamado, de forma parecida com as insinuações sobre sexualidade
perversa. O ato de denunciar já funciona como demonstração: “onde há fumaça, há
fogo”. Virou um fator meio clássico na desestabilização política e social no
Brasil. Essa era a marca da UDN, partido conservador que existiu entre 1945 e o
Golpe Militar de 1964, de que foi a principal base político-institucional. O
PMDB – e toda uma coorte de políticos indiciados e condenados de outros
partidos – reinterpreta a farsa da UDN meio século depois. E, para distrair o
público de seus próprios crimes, apresenta os do PT (com quem aqueles mesmos
políticos articularam e prevaricaram à farta) como únicos e especialmente
danosos.
A manobra é diabólica, audaciosa, impudente mesmo. E
brilhante, diante da posição em que coloca os setores progressistas da
população brasileira. A traição dos antigos aliados do PT na corrupção se
traveste de movimento ético-político para justificar o aniquilamento do
ex-aliado e legitimar o ataque inédito aos direitos sociais. Se não formos
capazes de uma mobilização que esclareça essa situação, é bem provável que o
plano golpista dê certo. Mas boa parte dos setores mais organizados da oposição
ao golpe estão ou foram ligados ao governo derrubado e não conseguem superar
essa ligação. A relativa injustiça (por ele ser tomado como bode expiatório)
que se comete contra o grande líder desse segmento, Lula, obriga seus antigos
apoiadores a defendê-lo como centro da questão política – e, dessa forma, a estreitarem
a base de resistência ao golpe, confundindo os interesses e direitos da maioria
da popúlação com o projeto político partidário que a maioria da população não
apóia. Confundem PT e direitos sociais, Lula e democracia. Mobilizam a rua não
contra o golpe e as classes dominantes corrompidas até a medula, mas são
obrigados, até certo ponto, a fazê-lo sob as bandeiras do PT e de setores a ele
ligados, empunhando imagens de Lula e Dilma, o que confunde e impede uma
mobilização mais ampla e sobretudo mais eficaz. É a chamada sinuca de bico.
Lula deve ser defendido na Justiça e nos foros
político-institucionais com todo o vigor de que dispuserem seus partidários,
mas a luta política mais geral tem que se concentrar na realização de eleições
o mais breve possível, como expressão da recusa enfática pelos brasileiros de
um governo ilegítimo e de um programa político que assalta o País não mais sob
a forma de mutretas corruptas, mas como projeto institucional de ampliação e
aprofundamento da exploração da maioria da população.
[i] O Brasil tem 23.579 cargos
públicos em comissão, comparados a 8 mil nos EUA, 4 mil na França, 600 no
Chile, 500 na Alemanha, 300 na Inglaterra (Revista Veja, 19, nov., 2011,
disponíevl em(http://veja.abril.com.br/brasil/brasil-tem-23-579-cargos-de-confianca-o-triplo-dos-eua/ . Nossa Constituição tem 28 anos,
250 artigos, com 93 emendas constitucionais; a estadunidense tem 227 anos, 7
artigos e 27 emendas. A lei que regulamenta os contratos do governo federal tem
282 páginas na versão impressa pelo Tribunal de Contas do DF:
(http://www.tc.df.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=475ad4d0-5a80-4701-9bba-5cd0b1ed4075&groupId=657810 . O tempo médio de tramitação de um
processo de execução fiscal é de 8 anos, 2 meses e 9 dias apenas na Justiça
Federal de Primeiro Grau: (http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110331_comunicadoipea83.pdf)
domingo, 4 de setembro de 2016
O Partido Cineclubista ou
Que fazer?
O fim da
história
Já
faz um bom tempo, a gente dizia que era parte do Partido Cineclubista. Uma expressão
brincalhona; éramos todos – ou quase todos – comunistas, ou muito próximos
disso, e havia ali uma certa homofonia, que ressoava engraçada ou instigante, além
da coincidência com a sigla do Partidão. Mas era também mais que isso, a gente
se sentia realmente parte de um movimento político que tinha por vocação transformar
o mundo. Nosso objetivo não era apenas
derrotar a ditadura, mas sim fazer a
Revolução. O partido, ali, era (talvez não de maneira inteiramente consciente) o
partido segundo Gramsci, o partido lato
sensu, o Príncipe Moderno: o conjunto de instituições que conduziriam a
maioria da população à direção de um profundo processo de transformação da
sociedade. O cineclube era uma dessas instituições; o cineclubismo, nosso campo
de batalha, e o objetivo final – pouco visível - era um novo cinema, expressão de uma nova sociedade. Tudo isso meio
implícito, meio consciente na expressão espirituosa, mas também na nossa
militância cineclubista.
No
final dos anos 70 escrevi Hegemonia e
Cineclube[i],
onde definia o cineclube como uma instituição geradora de valores criada pelo
público. Na terra do comunista sardo, Fabio Masala e Filippo de Sanctis
aprofundavam a questão do associativismo democrático, que desembocaria na Carta dos Direitos do Público[ii]
alguns anos depois. Como já escrevi alhures, essa postura, que interpretava no
plano teórico as práticas do “partido cineclubista” que organizavam centenas de
cineclubes no Brasil e em outros países, principalmente da América Latina,
representava uma ruptura com o cineclubismo elitista e cristão, mistura das
heranças das grandes personalidades “cineclubistas” francesas – que vão de
Louis Delluc a François Truffaut, passando, claro, por André Bazin – e do
programa político católico para o cinema, lançado por Pio XI nos anos 30 e
tornado realidade pela OCIC[iii].
Mas a primazia dada ao público por nós também significava um reatamento, uma
atualização das atitudes fundadoras do cineclubismo operário e revolucionário
do começo do cinema, presentes em toda a trajetória histórica do movimento.
Hoje,
esse tipo de objetivo mais amplo está meio fora de moda; não é à toa que o
chamam de utopia: coisa desejável, mas irrealista, irrealizável. Ninguém, ou
muito poucos, propõem a Revolução, a transformação radical da sociedade, o
socialismo ou o comunismo (que não são utopias). Estes dois últimos termos
existem apenas como penduricalhos arcaicos nas denominações de algumas
organizações burocráticas que às vezes os sacodem em campanhas eleitorais nas
periferias ou quando se defendem de acusações de corrupção. Mesmo nos ambientes
proletários, nas comunidades da massa de excluídos do nosso sistema social,
reivindicam-se melhorias, reformas, mas nada que abale os fundamentos da
situação mesma que os exclui. Ninguém mexe no essencial. Se há alguma
totalidade envolvida na consciência que se propõe sobre sua condição, é uma ideia
vaga, meio metafísica, como a de Injustiça. Isso quando não se adota logo de
uma vez a regra do jogo e se parte para a busca do sucesso pessoal, através do
empreendedorismo – em que todos podem ser empresários de sucesso -, do futebol
- todos craques muito bem pagos – e até do cinema – todos realizadores com
prestígio – como ferramenta e caminho para a superação da exclusão e da
miséria, sempre numa perspectiva individual. Os que não conseguem, é porque não
merecem. Ou não têm a graça divina.
Porém...
(e tem sempre um porém, como dizia o Plínio Marcos) ao invés de termos chegado
ao “fim da História”, como queria aquele professor nipo-americano, o Francis
Fukuyama, a aparente dominante ausência de outras perspectivas não se manifesta
por uma acomodação social diante do triunfo final do liberalismo. Em toda parte
continuam os conflitos: abertamente, genocidariamente, nos campos dos países
mais (ou menos) pobres, na África, na Ásia, no Oriente Médio; no eufemismo da
violência social cotidiana, como no Brasil, entre tantos outros, ou travestido
de um terrorismo meio psicótico nas sedes políticas do domínio planetário. No
Brasil, que fica meio que na metade desse caminho, país de desenvolvimento
médio e top de desigualdade, marcado secular
e essencialmente pela dependência e subalternidade no processo econômico e
político mundial, esse quadro tem características muito próprias.
O golpe
Tivemos
– entre 2002 e 2016 - um governo populista que, como na tradição varguista,
promoveu reformas sociais importantes, mas limitadas. Isso ao mesmo tempo que
contribuía, acessoriamente, à maneira brasileira, para a divisão e
amortecimento dos movimentos populares, e para a descaracterização de seus
objetivos – fenômeno muito mais abrangente e profundo que vem, como sempre, dos
países centrais, que determinam a situação mundial. Mas, como sempre lembrava
Darcy Ribeiro, nossas classes dominantes são particularmente execráveis: nem
mesmo lucrando com um governo que, no limite, ajudava a abrandar conflitos
sociais, puderam aceitar os pequenos avanços sociais e uma certa resistência
institucional à retirada de direitos que dificultam o incremento da espoliação
dos trabalhadores. Um golpe, então, foi articulado e executado: acaba de se
consumar[iv]
com o afastamento da presidenta eleita e a entronização de um governo
provisório cuja mediocridade excede até mesmo o baixíssimo padrão da chamada
classe política brasileira. Para os golpistas, as próprias mazelas do governo
deposto e de sua base política devem, complementarmente, enfraquecer
substancialmente pelo menos suas bases partidárias, senão as sociais.
Mas
a insignificância intelectual e a mesquinhez ética não são os atributos em que
mais se destaca esse movimento golpista e nossas “elites”. Creio que seu pior predicado
é a ganância voraz revestida de total insensibilidade humanitária diante do
sofrimento que possa resultar de seu apetite financeiro imediatista. Como no
golpe militar de 1964, não hesitam diante da possibilidade de derramamento de
sangue. De fato, a derrubada de um governo legítimo, apoiado em votação
expressiva e pela clara manifestação de uma parcela significativa da população,
pode perfeitamente levar a uma forma de resistência mais robusta que as marchas
ou ocupações de espaços públicos, e mesmo estas podem resultar em conflitos
graves, com mortos ou feridos. A própria sombra de uma guerra fratricida nunca
esteve excluída, nem em 1964 nem agora, ainda que a própria tibieza do governo
deposto, bem como a desorganização das massas – para a qual contribuiu – não
indique uma probabilidade maior. Nada disso, contudo, jamais deteve nossas
classes dominantes. Compreende-se: qualquer conflito, no contexto de
fragilidade ideológica e política dos segmentos populares, produziria suas
vítimas apenas nas ruas e nas comunidades populares: essas ditas elites nunca
correriam nenhum risco. Elas vivem literalmente blindadas, e esse “custo” lhes
é indiferente. As esquerdas (ou ao menos seus eleitores) e os segmentos
populares, por outro lado, seriam as próprias vítimas; não podem, portanto, deixar
de considerar essa variável. Valeria a pena dar a vida por um programa de
governo que visa apenas a reformas limitadas? E, se valesse, há organização e
unidade suficientes para enfrentar as forças do golpe?
A
resposta para essas duas questões é negativa. A mudança social que os
trabalhadores e os excluídos necessitam vai muito além da geladeira e da
faculdade de má qualidade que constituíam o projeto do governo deposto. E mesmo
que assim não fosse, a organização social da maioria da população é hoje
absolutamente insuficiente e precária, sem número, sem unidade e sem direção
para elaborar e propor um projeto consistente de transformação radical da
sociedade. O problema é maior e mais complexo que isso. Enquanto boa parte das
esquerdas – admitindo-se que esse termo se refere aos setores sociais que
querem mudanças democráticas e progressistas – faz parte desse modelo
reformista limitado que mencionei, outra parte não assimilou ou não soube
traduzir em prática política a formidável experiência histórica que foi a queda
da União Soviética e a falência desse modelo de socialismo em praticamente
todos os países que o adotaram.
Falência do socialismo
Aqui
é preciso abrir um pequeno parêntese: falar em falência do modelo de socialismo
é considerar que ele falhou em cumprir o que dele se espera ou o que ele mesmo
propõe: simultaneamente e em todos os níveis, justiça social e democracia em
valores absolutos. Esses objetivos ou foram efetivamente traídos ou não foram
alcançados, ou sequer eram claramente visíveis, mesmo depois de um período
relativamente extenso de implantação: o comunismo soviético durou mais de 70
anos. Essa falência não se define por
comparação ao modelo capitalista dominante, que se fundamenta justamente,
especificamente, na exploração da maioria por uma minoria e na reprodução
crescente de
práticas que levam à extinção da Humanidade.
Voltando
às esquerdas revolucionárias: elas mantêm, então, um discurso e prática que se
identificam com a - e constituem uma boa parte da - razão da “derrota do
socialismo”. Seguindo a formulação clássica marxista, aceitam que a luta de
classes se dá em todos os níveis da vida social: no nível da produção
econômica, no plano da ação e da representação política, e no âmbito dos
valores ideológicos – que vão da fala ao sonho, por assim dizer, passando pela
moral, pela religião, pela arte. O erro que contribuiu de forma importante para
a “queda do socialismo” e que não foi superado por essas esquerdas consiste na
supervalorização da esfera política (e da esfera política institucional, em
muitos casos) em relação às esferas econômicas e ideológicas da luta de
classes.
A
ideia de hegemonia implica em que não se pode estabelecer e manter a direção da
sociedade apenas pela força (domínio e coerção, esfera política) ou apenas por
um projeto de sociedade capaz de ser visto como melhor (direção e consenso,
esfera ideológica). As duas coisas são indispensáveis. Na estrutura capitalista
de hoje, além do monopólio da força, as classes dominantes conseguem como nunca
vender a superioridade e a inevitabilidade do sistema. Mas, apesar da força das
organizações e instrumentos de convencimento de que dispõem, somente o
monopólio e a censura combinados em diferentes níveis conseguem viabilizar esse
“convencimento” e a adesão das massas ao capitalismo. O elemento de força está
sempre presente em alguma medida e isso acontece essencialmente porque se trata
de um grande e essencial engodo, uma grossa mentira. Não há melhor exemplo,
acho, do que a verdadeira campanha – travestida de jornalismo - feita pelas
mídias brasileiras para derrubar o governo constitucional do Brasil. Além do
conceito de hegemonia, Gramsci falava da importância da superioridade intelectual e moral que devem ter as ações e
instituições de uma classe que pretende estabelecer sua hegemonia. A noção de
superioridade moral e intelectual parte do princípio de que a sua proposta deve
parecer verdadeira, eticamente justa, mas também melhor para a maioria. A educação,
a propaganda, até a religião podem contribuir para essa missão de sustentar um
sistema, mas, a longo prazo – e estamos falando de prazos históricos – o
elemento coercitivo da mentira, isto é, da inadequação essencial do sistema às
necessidades do conjunto dos seus integrantes, acaba prevalecendo. Isso porque
essa mentira não é apenas uma ideia produzida pela mídia, ou um preceito moral,
mas um fato social bem concreto, que se situa no plano da reprodução essencial
da vida, isto é, na esfera econômica. No caso do sistema capitalista, a mentira
é a mais-valia, a exploração de muitos, da maioria, por uns poucos,que é a
essência das relações sociais no plano mais básico, da economia.
No
caso do comunismo de inspiração stalinista, o sistema que começou com a
eliminação da exploração econômica não foi capaz de gerar práticas e
instituições nos planos político e ideológico que acompanhassem, exprimissem
essa nova condição. Ora, essa divisão entre econômico, político e ideológico é
uma abstração, a realidade é uma totalidade em que os níveis se imbricam e se
influenciam, determinados, em última
instância, pelo fato social mais essencial e mais concreto, a produção
econômica da vida. O autoritarismo gerado inicialmente em defesa da Revolução
(função de domínio) nunca se superou em novas formas de repesentação política que
promovessem o consenso – ao contrário, matou muito perto do nascedouro as
potencialidades dos conselhos populares, os sovietes, ossificando-os numa
camada de dirigentes que, num sentido bem prático, restabeleceu uma espécie de
classe dominante. A perspectiva do fator ideológico da hegemonia se perdeu na
transição para o stalinismo, transformando o regime numa ditadura stricto sensu, exercida por supostos
representantes do proletariado. Daí eu falar em supervalorização da esfera
política: o Estado como aparelho de dominação substituiu o coletivismo do
espírito comunista, substituiu a sociedade em todos os níveis – econômico,
político e ideológico. Tornou-se incapaz de gerar novas instituições,
instituições socialistas, que expressassem novos valores, baseados na solidariedade
coletiva, que representassem um novo sistema. A falta de liberdade, erigida ela
mesma em sistema, impedia a própria evolução do sistema. E quando se tentou
abrir o sistema, ele implodiu – com uma decisiva ajuda dessa mesma “comunidade
internacional” que hoje bombardeia o Oriente Médio... Não havia criado o
consenso necessário à sua estabilidade.
A
queda da União Soviética foi literalmente capitalizada e transformada numa
vitória da ideologia do século 18, o liberalismo. Um dos seus efeitos mais
nefastos foi a desestruturação generalizada das esquerdas socialistas,
resultando na capitulação total de uma maioria de partidos ao reformismo a que
me referi anteriormente, na divisão e enfraquecimento de outros e numa
perplexidade e confusão do próprio pensamento de esquerda diante dos
acontecimentos. Só não diminuiu o sofrimento da maioria da população, agora
submetida a uma única superpotência policial mundial e à aliança militar dos
principais países do Norte. Ao contrário, a exploração se espraiou vertical e
horizontalmente, ampliando a fome - quando, paradoxalmente, pela primeira vez o
mundo atingiu a autosuficência alimentar -; mantendo ou restabelecendo todas as
formas de exclusão e preconceito, especialmente as de raça, gênero e cultura;
acelerando, ao invés de deter, a produção de poluentes e de produtos nocivos à
saúde – enquanto restringe o acesso e a pesquisa de medicamentos. Em uma
palavra: destruindo o planeta e a
vida que o habita.
No
Brasil, em grande parte devido à prevalência de um grande partido não marxista
entre as esquerdas, o patrimônio intelectual da classe operária e dos
trabalhadores em geral foi
muito mal compreendido, e pior copiado. Alcançando o governo em 2002, o PT – em
parceria com o PCdoB – mesmo dentro das limitações de suas amplas alianças com
as classes dominantes, logo aplicou a primazia da política, através do Estado,
nos poderes Executivo e Legislativo.
Arremedo do processo soviético, incorporou e contratou as grandes lideranças
sindicais, estabelecendo uma relação de proximidade/cooptação com as
organizações classistas. Apesar de ceder setores importantes da economia à
iniciativa privada, com privatizações e projetos de infraestrutura, passou a
estatizar, por exemplo, todos os níveis de prática cultural: chegou a “inventar”
um novo segmento da cultura, o dos Pontos de Cultura, criado com a apropriação pelo
aparelho estatal das práticas de entidades variadas da sociedade civil e também
com a cooptação de personalidades do meio cultural em sentido amplo. Como tenho
escrito reiteradamente desde 2008, bem antes do começo da agonia, isso levou à
dependência quase total e, rapidamente, ao encerramento de muitas dessas
iniciativas – e o cineclubismo é um caso exemplar. Na produção cinematográfica,
ao mesmo tempo que o governo estabelecia um acordo de “partilha” (90% para a
MPAA[v],
10% para a produção nacional – e essa mesma em parte controlada pela entidade
estadunidense) do mercado, estatizava a produção excedente, de curtas-metragens,
financiando todo o processo: produção, distribuição e exibição, ainda que com
inúmeras precariedades, em especial na ponta da recepção, do público. Esse
modelo, como o eslavo, ruiu antes mesmo da crise política atual, mas também
ajudou a derrubar o governo que, apesar – ou justamente por causa - da
cooptação, não conseguiu motivar suficientemente a população e, diante do
golpe, teve pouco mais que o apoio dos mesmos setores que ajudou a afastar das
bases mais amplas.
Que fazer?
Vivemos
um período histórico muito difícil, particularmente doloroso ao nos propor
dilemas ético-políticos inéditos. Saddam Hussein era um ditador sanguinário,
mas foi substituído pelo genocídio da população iraquiana; a derrubada de
Muammar Gaddafi transformou a Líbia em terra arrasada; na Síria, nem os EUA, do
alto de seus drones assassinos,
consegue distinguir direito a quem matar. Metade do mundo árabe está em
escombros, a outra metade sob ditaduras que a “comunidade” e imprensa
internacionais não questionam. No Brasil, nesse quadro democrático em que “não
há golpe” porque o Supremo Tribunal indiscutivelmente dele participa, temos que
sair à rua para defender um governo bastante ruim, mas legítimo no quadro legal
vigente, diante da perspectiva de uma situação muito pior, que agora entra em
nova etapa.
O
curto mandato do presidente usurpador – como já ficou claro na sua interinidade
– deve, antes de mais nada, deter ou descaracterizar as investigações sobre
corrupção nos meios políticos e empresariais. Depois, tem fundamentalmente dois
objetivos, que afinal fundem-se num só. Primeiro: desarticular a presença e
influência do PT no aparelho do Estado, tanto no plano federal como nos estados
e municípios, aproveitando-se das eleições municipais, do apoio cúmplice da mídia e do enfraquecimento
do próprio
PT. Segundo: quebrar a institucionalidade dos grandes direitos trabalhistas –
que não são uma “conquista dos últimos anos”, mas resultado de uma luta secular
dos trabalhadores[vi]
– e outros que entravem a apropriação dos resultados do trabalho. Os dois
objetivos convergem para a viabilização de um projeto de governo para as
eleições nacionais (e estaduais) de 2018, numa possível conjuntura de maior
estabilidade econômica – para a qual todas as “classes produtivas”, isto é, o
capital nacional e internacional, contribuirão – e sobre uma base
constitucional mais legítima, ou seja, idealmente sem grandes contestações.
Que
fazer diante desse quadro? Devemos ir às ruas para defender a reversão do
processo e a reinstalação da presidenta deposta? Penso que esse objetivo é de
difícil realização, diante da importante mobilização de grandes setores da
população insatisfeitos com a gestão de Dilma Roussef e do suporte que têm por
parte da imprensa, do empresariado e da grande maioria da “classe política”.
Essa perspectiva levaria ao impasse e à periclitação da estabilidade social, à
possibilidade de violência que, mais uma vez, só beneficiaria o recrudescimento
da repressão e o avanço das medidas antipopulares. Mesmo a hipotética
reinstalação de um governo que foi ardilosamente derrubado só levaria à
prorrogação infinda de um período de instabilidade e ingovernabilidade. Como já
foi dito, ainda que nada justifique sua remoção, esse governo também não
incorpora a expectativa, nem a capacidade de uma transformação radical da
sociedade.
Por
outro lado, o povo não pode recuar diante da grave ameaça que se está
consolidando. Não podemos deixar a coisa esfriar e ser esquecida, como se fosse
possível “tocar a vida” para a frente. Porque estaremos sendo tocados para
trás, perdendo nossos direitos, sujeitando-nos mais, a cada dia, sob esse novo establishment. Esquecer é ser dominado. Por
isso, o objetivo imediato, a palavra de ordem para a resistência – que,
dialeticamente, deve significar também avanço – tem que ser ampla - para poder
ser hegemônica – e motivar não apenas os adeptos do PT, ou as esquerdas já
constituídas, mas aquela grande maioria que está engolindo um Michel Temer que
não quer e que deverá crescer a cada nova medida impopular do governo, nos
próximos meses. A palavra de ordem deve ser, também, de simples compreensão,
mas rica em significado, de forma a permitir o aprofundamento do seu sentido
através da própria luta, contribuindo para o crescimento da autoconsciência
popular.
Essa
palavra de ordem é “Eleições Presidenciais Já!”. Sem cair na armadilha de
dividir esse programa, tal como propor junto uma assembleia constituinte ou
eleições para todos os cargos. O período que se abre será um momento de graves
definições, de rearticulação dos setores populares, hoje extremamente divididos.
Rearticulação essa que não está de forma nenhuma garantida; muito ao contrário.
Também será, como disse acima, um tempo de enfrentamento e teste para as
classes dominantes em vista da implantação de uma sua posição mais sólida e
definitiva em 2018. A mobilização permanente, mas ao mesmo tempo objetiva, da
população, é fundamental como passo inicial para a rearticulação dos liames
entre povo e organizações políticas, movimentos, partidos. A pressão
parlamentar da minoria de oposição deve estar vinculada a essa mobilização – e
não ser vista como um fim em si mesmo, isto é, a mera armação de alianças do
estilo que acaba de se mostrar errado e inútil, para não dizer oportunista. O
desafio é enorme. As primeiras indicações do PT são contra a realização de eleições
e a favor do esquema lulista de alianças eleitorais[vii]
de vistas curtas. Mas isso é superável se houver uma clara manifestação do
interesse das massas que, creio, já coincidem com a proposta de eleições já.
Que, afinal, é uma tradução mobilizadora da expressão mais vaga: “Fora, Temer”.
A
probabilidade de alcançar essa meta é bem pequena, dada a pouca organização da
maioria da sociedade e o enfraquecimento e divisão das instituições a ela
ligadas. Mas a própria luta é um exercício e um caminho para um objetivo de
organização superior. Um pouco como foi a campanha das “diretas já”, derrotada
num primeiro momento, mas vital no processo de derrubada da ditadura militar.
E os cineclubes?
Se
há, por paradoxo, um lado positivo nesse golpe, é que ele elimina o que possa
ter restado de ilusão entre as iniciativas culturais comunitárias sobre o papel
do Estado. O movimento de cineclubes entrou de cabeça nessa quimera incentivada
pelo governo populista. A tal ponto que, mesmo depois da falência das chamadas
“políticas públicas” para a cultura – que, para os cineclubes, duraram de 2008
a 2010 – as principais lideranças cineclubistas continuaram a mendigar os
favores do governo que, no entanto, nunca mais vieram. O mais trágico disso é
que várias práticas cineclubistas, fruto de sua experiência secular, se
perderam quase totalmente, realimentando o processo de estiolamento do
movimento. O maior dano veio da perda dos vínculos com suas comunidades, com o
abandono do associativismo organizado e da sustentabilidade pelas bases – ao
invés da dependência suicida do Estado. A comunidade, dessa forma, deixa de ser
público auto-organizado e passa (ou volta) a ser plateia das atividades
promovidas não por ela, mas para ela – por melhores que sejam as intenções
beneméritas com que também se calça o inferno... Mas, como esse governo já
deixou tão claro desde suas primeiras trapalhadas no campo da cultura, agora
não cabe mais nenhuma ilusão.
Para
os cineclubes, a possibilidade de terem uma participação significativa na
resistência ao avanço da exploração da população coincide com a definição do
seu papel na construção de uma sociedade justa e democrática – e na invenção de
um cinema que represente e exprima as necessidades, interesses e sonhos de
todos, não de alguns. A grande lição de Gramsci é que o socialismo se constrói
todo o tempo, e não depois de uma tomada de poder. Que, de fato, a criação de
instituições não capitalistas, superiores a estas moral e intelectualmente,
constitui um dos pré-requisitos fundamentais para a construção da sociedade
futura. Quando a burguesia derrubou revolucionariamente a nobreza, a maioria
das instituições, e as mais eficientes, já eram burguesas. A ação política
extrema, certamente indispensável – porque ninguém entrega o poder docilmente –
apenas culminava a construção de uma nova ordem, já em grande parte hegemônica.
Assim, a par de mobilizações de massa, de participação parlamentar, é
absolutamente essencial construir e consolidar instituições em que a sociedade
se organize, se represente, se expresse. Em que exercite e desenvolva a
consciência de sí mesma, como indivíduos e como comunidade. Essas instituições
têm que ser melhores que as instituições capitalistas, que deverão substituir,
em todos os níveis: econômico, político e ideológico. Ou não sobreviverão.
Os
cineclubes são esse tipo de instituição. São uma atividade econômica, mas não
comercial; política, sob a forma do associativismo democrático, e ideológica
por expressarem os interesses do público, não do capital. Surgiram como uma
alternativa ao cinema comercial por necessidade e iniciativa do público. E
estabeleceram as bases para a superação do modelo capitalista: a eliminação da
divisão social do trabalho (produção-distribuição-exibição-consumo), da
alienação entre criação e recepção (autor e público) e o estabelecimento do
controle pelo público (associação no lugar da empresa). O cineclube é o embrião do cinema futuro, expressão de uma nova
sociedade – como dizíamos nos tempos do partido cineclubista.
Os grandes desafios do cineclubismo
brasileiro (e mundial) são a reconstituição dos seus vínculos com a comunidade
– abrindo-se e conseguindo construir uma ampla participação coletiva e
democrática em suas comunidades e alicerçando sua sustentabilidade nessa
relação – e a expansão de suas ligações com todas as outras formas de
organização independente da sociedade civil, de forma a constituir não apenas
uma rede, mas um verdadeiro novo tecido político-social, base de uma sociedade
nova e uma nova Humanidade. Consolidar-se nas cidades sem cinema – grande
maioria dos municípios brasileiros -, nos bairros das cidades maiores, nas
escolas de todos os níveis, nos sindicatos e movimentos organizados, nas
empresas, hospitais, quartéis, ocupações rurais e urbanas, em toda parte,
fazendo da experiência coletiva do cinema um exercício, diversão e aprendizado
corriqueiros da vida em comunidade – apropriando-se da riqueza e poder do
audiovisual para expressar a liberdade, ao invés de projetar submissão. A
sustentabilidade dos cineclubes deve vir da sociedade, e não do Estado (sem
abdicar das verbas públicas, quando isso couber), através das contribuições de associados,
de taxas de manutenção, da contribuição no “chapéu”, e da composição com outras
iniciativas independentes, com iniciativas comuns como feiras de arte, festas
comunitárias, ilustração de cursos e oficinas e tantas outras. O cineclube tem
que ser “melhor” que o cinema que vai substituir, não apenas no conteúdo da
programação, mas igualmente na relação com o conteúdo exibido, isto é,
garantindo um conforto razoável para uma sessão de duração razoavelmente longa.
Para isso deve negociar, conquistar, ocupar, os espaços comunitários – em
colaboração com teatros, sindicatos, associações de bairro e outras
organizações populares que possuem sedes ou espaços próprios – e públicos,
muitas vezes subutilizados – como
cinemas e teatros estatais, auditórios de escolas, de bibliotecas
públicas, de instituições profissionais apoiadas pelo Estado (como as de
advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, entre outros).
Assim, de certa forma, se
reconstituiria aquele nosso partido cineclubista, vocacionado para se
identificar e compor com outras inciativas populares, convergindo numa grande
vontade política de transformação, de libertação individual e coletiva, de
preservação de toda vida e salvação do planeta. Nada mais, nada menos.
Felipe Macedo
[iii] Organização Católica
Internacional de Cinema.
[iv] Este texto foi escrito entre
31 de agosto e de setembro de 2016.
[v] Motion
Pictures Association of America.
[vi] Estão sob ataque
principalmente a CLT, Consolidação das Leis Trabalhistas, dos tempos de Vargas,
e as atuais disposições da Previdência Social.
[vii] A Direção Nacional do PT já decidiu
contra a chamada de eleições; os jornais de 1º. de agosto falam das
articulações de Lula no Congresso com vistas a 2018 – e não “por um projeto de
País”, como costuma alegar aquele partido.
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