quarta-feira, 22 de agosto de 2018


O público audiovisual e os cineclubes:
uma trajetória para o entendimento

A Carta dos Direitos do Público

Tomei conhecimento da Carta dos Direitos do Público[1], pela primeira vez, no final de fevereiro de 2008, na segunda Conferência Mundial de Cineclubismo, realizada na cidade do México. Não gosto muito dessa palavra, mas foi uma verdadeira epifania. Escrevo que cineclube é uma forma de organização do público desde que comecei a refletir sobre esse tema, isto é, sobre minha própria prática cineclubista. A Carta, e a discussão dela que fazia parte da publicação[2] em que a conheci, me mostraram que o que eu pensava, escrevia e defendia desde o início dos anos 70, não era uma reflexão isolada, de base frágil, mas um pensamento que alimentou principalmente o cineclubismo italiano de esquerda, gramsciano, baseado fundamentalmente nos textos de Filippo de Sanctis[3] e Fabio Masala[4] - e que, acredito, também influenciou bastante o cineclubismo brasileiro. Dali em diante passei a assumir e promover mais claramente o protagonismo do público não apenas no campo do cineclubismo - como já fazia - mas muito mais amplamente, no cinema, e mais, nos meios de comunicação contemporâneos, na mídia em geral. Mas a compreensão mais profunda desse papel social e histórico do público foi um caminho, uma trajetória sobre a qual quero escrever porque acredito que a importância do público não é ainda muito bem compreendida no meio cineclubista e menos ainda fora dele. Penso, ou espero, que minha trajetória pessoal possa contribuir para diminuir incompreensões que cercam a questão da importância central do público. Esse entendimento, a meu ver, é essencial, indispensável mesmo, para a sobrevivência do cineclubismo, isto é, para a organização de uma atividade e de um movimento cineclubistas consentâneos com a contemporaneidade, capazes de contribuir efetiva e eficazmente na transformação radical da sociedade atual. Sociedade que, baseada na divisão de classes, na exclusão de muitos e na exploração da grande maioria por uma ínfima parcela da população, perpetua sofrimentos de todo tipo – da discriminação à violência e à fome – e está destruindo sistematicamente o planeta e tudo que nele vive.

A Carta dos Direitos do Público, apesar da impressionante vontade política de seus autores, que planejavam uma grande mobilização em torno de seus princípios, veio num momento difícil do cineclubismo mundial. Nossa Federação mundial estava enfraquecida, com pouca participação, para o que também contribuiu o refluxo do movimento na América Latina, inclusive no Brasil, no final dos anos 80. Um eurocentrismo recorrente da Federação Internacional também impediu praticamente a divulgação da Carta para fora do círculo limitado dos países do velho continente. Para piorar a situação, no curto espaço de 5 anos – em 1989 e 1994 - faleceram os dois autores originais e maiores promotores da Carta.

Já em 2008 estávamos num outro momento, de bastante atividade, que coincidia com um movimento de superação da postura mais elitista da FICC e um esforço para integrar os países de fora do ambiente estritamente europeu[5]. A partir daquela Conferência, o tema do público tornou-se novamente central nas ações desenvolvidas no âmbito da Federação internacional resultando, entre outras iniciativas, na publicação do único número da revista internacional Cadernos dos Cineclubes, na adoção pela FICC do Dia Internacional do Público, na comemoração do centenário do cineclubismo - a partir do estabelecimento do cineclube Cinema do Povo (1913) como “primeiro” cineclube - e da realização de um I Encontro Internacional dos Direitos do Público, em Atibaia (SP), em 2010, que também lançou uma publicação com o mesmo título[6]. Os Direitos do Público foram o foco das discussões em vários Encontros Iberoamericanos de Cineclubes, na 3ª. Conferência Mundial e nas assembleias gerais da FICC do período, além das assembleias do Conselho Nacional de Cineclubes de 2008 e 2010. A partir desse último ano, no entanto, as atividades da entidade internacional dos cineclubes refluíram: sua última assembleia bianual foi realizada em 2013, em Túnis. Também no Brasil a organização nacional se estiola no mesmo período[7].

Apesar de continuar contribuindo com algumas propostas nesses encontros, afastei-me da política institucional dos cineclubes a partir do ano seguinte ao começo desta trajetória de declínio. Parte dos motivos dessa cisão foi a maneira como foram adotados esses “direitos do público” pela diretoria da entidade nacional brasileira, de que fazia parte e à qual renunciei. Minha carta de demissão[8], passados quase dez anos, até me surpreende pela precisão, por como a maioria de suas críticas e antecipações se confirmaram. Na época se falava muito de direitos autorais, e a discussão dos direitos do público foi feita, em grande medida, em comparação àqueles.

Direitos do público ou direitos autorais?

Há uma confusão bem generalizada e em boa medida intencional em torno da noção de direitos autorais. Um pouco como a questão de propriedade privada. Existe uma posse de bens que são como extensões do indivíduo ou de suas formas mais tradicionais de convivência, como a família: roupas, objetos e bens de uso pessoal ou familiar como a habitação; ou de produção de sua sobrevivência, como ferramentas, aparelhos, pequenas extensões de terra e trato de alguns animais. E existe uma apropriação privada de bens que não são pessoais, mas de uso e/ou necessidade geral das comunidades humanas, da sociedade, são os chamados meios de produção: extensões de terra maiores que a necessária para a subsistência individual ou familiar, recursos naturais, máquinas e equipamentos para a produção em larga escala. E, claro, sua forma equivalente em dinheiro, muito dinheiro – por isso são chamados também de capital. Emprega-se a noção de propriedade privada dos meios de produção em confusão com a propriedade pessoal, como na conhecida versão caricata de que o socialismo é um regime social em que as crianças não podem ter seus próprios brinquedos, têm que dividir com outras.

Da mesma forma a autoria, que é uma forma de propriedade – ferramenta intelectual, subjetiva – se identifica com o fato indiscutível de que quem faz uma coisa é o seu “autor”. Um pedreiro que constrói um muro ou o escritor deste artigo são, neste sentido, autores. Ninguém mais pode pretender legitimamente estas “obras”. Mas mesmo aí há uma partilha na concepção das duas coisas: técnicas de construção, por exemplo, já não são da autoria do pedreiro citado; e muitos conceitos usados neste artigo também estão em uso desde antes de eu empregá-los. A propriedade de idéias é mais intangível e é também - diferentemente de um brinquedo, produto concreto, palpável e particular - sempre resultado de um processo social, histórico, de compartilhamento interindividual subjetivo. É praticamente impossível separar precisamente onde começa uma idéia original e o quanto ela é prolongamento, ou até negação, de outra idéia ou, na verdade, produto do encadeamento ininterrupto de ideias que constitui nosso convívio social e nossa experiência histórica. As ideias, o conhecimento, a criação, as artes e a ciência são sempre resultado de um processo coletivo e histórico. São propriedade tão social quanto a terra ou a produção de bens necessários à vida em sociedade.

Claro, como vivemos neste mundo capitalista, quando trabalhamos com essa matéria intangível – a criatividade – precisamos ser pagos de alguma maneira, para podermos sobreviver. Mas isso não equivale à comercialização da própria intangibilidade. Por isso o Direito distingue direitos autorais e direitos patrimoniais. Quando alguém “adquire” abstratamente a nova técnica de construção do muro que nosso pedreiro foi capaz de desenvolver, ou o direito de reproduzir (ou não) meu artigo por causa do que ele tem de particular, eu e o predreiro perdemos o direito de fazê-lo nós mesmos: nosso direito autoral (que é, evidentemente, e de direito, intransferível) como que desaparece, torna-se o direito patrimonial de quem o comprou. E que espertamente vai continuar a chamá-lo de direito autoral porque soa muito mais simpático e oculta a transação comercial de alienar o direito do pedreiro e o meu. Os principais promotores e defensores desse “direito autoral” são as grandes corporações detentoras dos direitos patrimoniais de patentes, obras e ideias de todo tipo. Direitos que adquiriram, aliás, numa negociação altamente desigual, geralmente imposta aos autores, descobridores, inventores, desenvolvedores originais.

Esse direito patrimonial é uma invenção do capitalismo, que permite que técnicas, processos e expressões artísticas se tornem propriedade privada equivalente à dos fatores e bens de produção. Na verdade, antes do capitalismo ninguém pensava propriamente em direito autoral, não como uma forma de valor tangível, monetário. O acesso e uso a todas as formas de expressão artística, sua circulação era livre (limitada apenas pelas formas e tecnologias disponíveis e por formas de controle político-ideológico, como a censura da Igreja). O reconhecimento tácito da necessidade da livre circulação é o que ainda chamamos de domínio público. De fato, as primeiras formas de direito autoral surgiram no século XVII na Inglaterra, procurando proteger um pouco os escritores que, com a difusão do uso da imprensa, tinham suas obras roubadas pelos editores. O “direito autoral” era, então, uma exceção ao domínio público criada para proteger os autores, e não para preservar o ganho dos proprietários do meio de produção envolvido: as máquinas de impressão. Na prática do capitalismo, o direito autoral (do autor) se contrapõe ao... direito autoral (que oculta a alienação do direito patrimonial).

O direito autoral – aquele que realmente preserva o direito do autor – é, portanto, provisório, constituído pela necessidade de proteger o autor diante de uma ameaça concreta, precisa, de roubo da sua capacidade de subsistência numa determinada conjuntura socioeconômica. Tomemos um exemplo contrário: um intérprete, músico, cantor, pode (e só ele pode) se apresentar periodicamente em público, e cobrar ingressos. Possivelmente isso será suficiente para garantir sua sobrevivência, não sendo necessário impedir a circulação da sua música. Mesmo que alguém possa ter acesso a formas gravadas da sua criação, por exemplo, isso não vai diminuir – ao contrário, vai aumentar – o interesse pelas apresentações presenciais. Mas quando uma grande corporação, geralmente mundial, se apropria dos direitos sobre qualquer forma de conhecimento ou manifestação, através de patentes e direitos patrimoniais, ela remunera o autor de forma bem limitada e explora sua criação de forma absoluta, controlando inclusive a circulação e o acesso a esses produtos. A autoria, sob essa forma – que é dominante na nossa sociedade – desligada das necessidades pessoais do autor e do benefício geral, constitui uma forma de privatização da propriedade coletiva, social. Como outras formas de propriedade é, como dizia Proudhom, um roubo. O uso da expressão direito autoral é, quase sempre, uma forma ideológica de ocultar a propriedade patrimonial. O que não o torna menos eficiente.

A persistência do autor (e o surgimento da cinefilia como culto)

Além do aspecto diretamente ideológico, com a sofisticação dos meios e tecnologias que alcançamos atualmente, criamos a capacidade de gerar valores monetários incríveis. Um quadro – especialmente de autor falecido – pode ser vendido por dezenas, até centenas de milhões de dólares (ao invés de ser exposto num museu – mas mesmo nesse caso). O talento de um jogador de futebol também é mais ou menos dessa ordem de valor econômico. Uma história, um filme, multiplicados pelo uso de subprodutos e formatos, pelo acesso escalonado e controlado aos mercados, valem bilhões em qualquer moeda. Com esses montantes, ainda que participando numa proporção muito pequena dos valores envolvidos, muitos autores acabam recebendo quantias enormes – para a experiência comum – de dinheiro. Esse fato vem reforçar a insegurança imediata do “pequeno” autor – que precisa desesperadamente de proteção – e o senso comum[9], que confunde o direito das grandes empresas com os proporcionalmente poucos casos em que o “grande” autor é muito bem remunerado. É sob esse formato ideológico que possivelmente a maioria dos autores de todo tipo percebem e defendem essa forma ambígua de propriedade. Desde os albores do capitalismo, na Renascença, a valorização – e o termo não é gratuito – do autor sempre esteve ideologicamente ligada à valorização da sua criação, o produto finalmente apropriado por outro, que o explora em escala bem maior. O autor virou um mito, e a forma de propriedade que lhe corresponde, a autoria, um valor ideológico monetizável. A própria Teoria das artes em geral titubeou durante décadas em torno da análise das obras pela sua relação com as mais diversas características ou biografias de seus autores.

Ironicamente, sem serem os criadores originais desse mito, os cineclubes tiveram um papel importante na sua adaptação ao campo cinematográfico. O culto do autor foi a forma estabelecida principalmente por Louis Delluc e outros cineastas da vanguarda impressionista francesa para conseguir o reconhecimento do cinema como arte. E a “elite” cineclubista da Nouvelle Vague, 30 anos depois, com sua famosa política dos autores, levou essa ideologia – e sua influência – a níveis extraordinários, que até hoje não estão inteiramente superados. De fato, foram mais os realizadores que construíram esse culto, base da noção de cinefilia. Mas esta passou a ser associada justamente aos seguidores do culto, e seu templo, nas duas épocas, eram os cineclubes. Poucos se detêm, no entanto, na evidência de que poucos eram os cineclubes cinéfilos dessa maneira – uma dúzia, talvez, concentrados em Paris – comparados a 10 mil outros que existiam, apenas na França, nos anos 50. É fato, porém, que essse fenômeno depois se espalhou por praticamente todo o Mundo.

O autor, a autoria e a cinefilia, nesse sentido, reintroduzem o culto ao original, a aura da obra de arte que Walter Benjamin[10] mostrou ter perdido o sentido com a possibilidade de se reproduzir qualquer obra – e o cinema muito especialmente, que só existia em cópias em película. No cinema, o culto à originalidade, a valorização da obra tem, então, que se transmitir ao autor que a individua e, tal como na apreciação de outras formas tradicionais de arte, só pode ser exercida por verdadeiros conhecedores, possuidores de uma erudição particular: os cinéfilos. Essa categoria de espectadores cinematográficos (e/ou audiovisuais) é uma espécie de prolongamento histórico do sommelier ou do connaiseur que valorizam vinhos ou criações das artes plásticas, como bem lembra Ginzburg[11]. Esses especialistas, no caso do audiovisual em geral, também servem para excluir ou ocultar ideologicamente o público, isto é, todos os demais mortais (a grande maioria) que participam do processo comunicacional audiovisual sem o devido currículo de perito, reconhecível por essa ideologia elitista amplamente disseminada.

Além de difundida pelos realizadores em busca de reconhecimento, ou valorização, essa ideologia foi reproduzida principalmente pelos próprios cinéfilos e pela sua forma mais profissional, a dos críticos cinematográficos de revistas de cinema ou das seções de entretenimento de publicações de interesse geral. Mas essa mesma cinefilia, finalmente legitimada como objeto de estudo no final do século passado, também funcionou para reintroduzir uma abordagem elitista num campo que vinha justamente começando a reconhecer o público através dos enfoques multidisciplinares dos Estudos Culturais[12], das novas historiografias – história das mentalidades, da vida privada, micro-história, entre outras - e da identificação das diversidades de recepção, sobretudo pelos fundamentais trabalhos feministas[13] no campo do cinema.

Direitos do Público e direito de acesso

          Bem, se os direitos do público não se identificam com os chamados, erroneamente, direitos autorais, em que consistem os primeiros, afinal? Creio que a Carta dos Direitos do Público[14] é um excelente roteiro para essa compreensão[15]. Em primeiro lugar, a Carta ressalta a importância da livre circulação das ideias e produtos culturais e o pleno acesso do público “à arte, ao enriquecimento cultural, à capacidade de comunicação, como fonte de toda transformação cultural”. Sem a livre circulação não há evolução, transformação, emancipação. Isso não apenas inclui o direito “a receber todas as informações e comunicações audiovisuais” mas, em grau superior, o direito de “expressar-se e dar a conhecer seus juízos e opiniões” e o uso dos meios audiovisuais para produção e difusão da criação originária do próprio público.

          A auto-organização do público é elemento essencial para a promoção e o reconhecimento de seus direitos. Portanto, é  “direito geral do público organizar-se de forma independente para a defesa de seus interesses”, como as demais categorias sociais. Extensão desse direito é o de criação de organizações internacionais de representação e defesa dos interesses do público, face ao caráter multinacional do processo de comunicação e da organização das corporações que operam nesse mercado planetário. E é responsabilidade dos poderes públicos prover “estruturas e meios” para que as entidades do público possam atingir seus objetivos. Entre estes objetivos inclui-se, ainda, a participação das entidades representativas do público na gestão de instituições, programas, projetos públicos que se refiram aos direitos do público, e igualmente nos processos de nomeação de responsáveis nos organismos públicos de produção e distribuição audiovisual, assim como nos meios públicos de informação.

          É incrível como a Carta - redigida em 1987, quando nem nos países centrais a internet era um projeto bem conhecido e não se havia ainda disseminado o uso de computadores pessoais - abre perspectivas para uma compreensão ampla dos direitos do público, que alcançam os dias de hoje, 30 anos depois. Ela alerta para que “as novas tecnologias devem ser utilizadas para  a emancipação do público, e não para a manipulação e alienação das populações”. Proíbe sua utilização indevida, “para fins políticos, comerciais ou outros”,  e sem autorização do público, e também rechaça toda forma de censura ou manipulação. Sublinha a importância da organização de pesquisas sobre as necessidades e sobre a condição cultural dos públicos, em oposição às enquetes de caráter meramente comercial, que apenas buscam justificar e valorizar produtos e serviços de interesse exclusivamente mercantil. As “redes sociais” atuais – na verdade espaços apropriados privadamente por poucas e gigantescas corporações – e os algoritmos de manipulação do público, bem como a revelação dos escândalos de venda de dados pessoais para diversas empresas, inclusive de promoção política e eleitoral, constituem uma cabal demonstração dessa “previsão” da Carta. Sem falar nas diversas formas de espionagem praticadas pelas agências de “segurança” das principais potências econômicas e militares, como a NSA[16] estadunidense. A Carta já adiantava a necessidade de que as organizações do público mantenham estruturas para a supervisão do cumprimento desses direitos.

          De fato, penso que a apropriação e comercialização da subjetividade dos utilizadores dos meios cibernéticos de informação e comunicação – incluindo serviços médicos, bancários e outros – constitui o grande diferencial, a forma contemporânea de exploração do público. O que, ao mesmo tempo, define a particularidade e a importância do conceito de público, seu caráter, seu papel especial e exclusivo nas relações sociais contemporâneas. Se, na compreensão marxista da História, o proletariado é explorado pela apropriação de um sobre-valor – a mais-valia -  produzido pelo seu trabalho, hoje o público – o proletariado socializado pelos meios de comunicação audiovisuais – é, além disso, explorado mesmo sem produzir, ou fora do ato de produzir, pois sua mera existência ou presença nos espaços ditos virtuais já produz um valor, que não lhe é pago: é subtraído dele. Uma mais-valia virtual, mas não menos real. E tal como a autoria, esses dados – de preferências, gostos, buscas, etc., além de informações sobre a saúde, finanças e até diálogos  - são impalpáveis, principalmente subjetivos e, sobretudo pessoais. Tal como as ideias originais ou como a autoria, pertencem caracteristicamente e exclusivamente a cada indivíduo, são extensões de sua existência social, e só podem ser partilhadas com sua autorização. Sua apropriação como mercadoria comercializável, sem remuneração, é simplesmente um roubo. Creio que essa é uma forma nova de exploração e um elemento que define um proletariado audiovisual contemporâneo, como já intuíam os teóricos cineclubistas italianos. Esse proletariado, dada a extensão do acesso e do uso dos meios audiovisuais na atualidade, confunde-se praticamente com a totalidade da população do planeta – excluídos dessa condição os proprietários dos meios de produção e circulação (ou comercialização) dos produtos. Outra característica do estágio atual do capitalismo é a fusão da circulação com a informação, o controle do processo econômico agregando o campo da subjetividade, tal como demonstram os monopólios do acrônimo FAANG (Facebook, Amazon, Apple, Netflix, Google).

Os direitos do público, então, dito de forma bem resumida, reúnem a livre circulação, o pleno acessso, a auto-organização e o controle democrático dos meios de comunicação audiovisual em seu sentido mais amplo. Mas não é essa a compreensão do movimento cineclubista, que ficou meio que limitado ao aspecto do acesso, esquecendo todos os demais. No Brasil, em especial, com a convergência entre a criação e a exibição, tornada possível pela tecnologia digital, e a constituição de uma nova e ampla geração de realizadores amadores, os “direitos do público” foram compreendidos e utilizados como base e legitimação para o novo tipo de produção amadora. Em outras palavras, as tecnologias digitais permitiram, democratizaram o acesso a uma nova forma de produção: câmeras mais baratas – ou até celulares – softwares de montagem mais acessíveis, etc. Ao mesmo tempo, os governos mais progressistas da primeira década deste século reconheceram e estimularam essa produção, possibilitando sua extensão por todo o País. Mas, como toda produção brasileira, esta também tem grandes dificuldades de acesso ao público[17]. Sem atingir os padrões de legitimidade estética dos mercados já ocupados marginalmente por outros tipos de produção – como os longas-metragens nas salas de cinema ou os espaços na televisão a cabo, oligopolizados por uma dúzia de grandes produtoras (inclusive com apoio e legitimação das instituições públicas: ministério da Cultura e Agência Nacional do Cinema - Ancine) -, o único canal de exibição para essa produção parecia ser o dos cineclubes ou espaços equivalentes. Além disso, como em outros momentos da história do cineclubismo, esse tipo de produção, dita amadora[18], por suas proprias qualidades de informalidade, da amplitude social da sua organização, da precariedade técnica em muitos casos, e também de frequentemente se estruturar em pequenas produtoras - ou coletivos, como se autodenominam - nasceu muito próxima dos cineclubes. O governo, que já apoiava fortemente essa produção, investiu também na sua viabilização, isto é, na criação de pontos de exibição que se confundiam ou substituíam os cineclubes[19]. A defesa dos direitos do público, transmutada em direito de acesso, tornou-se a perfeita bandeira desse “novo” movimento de ações derivadas e definidas por programas governamentais - que respondiam à capacidade de pressão desses novos realizadores, uma parcela da juventude de classe média, também em crescimento no período, que veio a ocupar inúmeros cargos governamentais. Limitado ao acesso, o slogan foi aplicado como direito de acesso “principalmente” ao cinema brasileiro[20] e, como que por consequência, como “liberdade” de acesso à produção dos curtas-metragens patrocinados pelo governo (em sua grande maioria, nem todos) e sem outras possibilidades de exibição com alguma regularidade[21]. Como disse mais no início, foi a compreensão e meus alertas sobre esse processo - que acabou levando à destruição da dinâmica organizativa que o cineclubismo brasileiro vinha percorrendo - que me afastou das organizações formais do movimento ainda existentes então.

Essa foi uma característica bem brasileira. No entanto creio que, sem essas particularidades, também internacionalmente o movimento cineclubista, e a prática cineclubista de cada entidade, continua a pensar – e a cultuar – os direitos do público como direito de acesso: às “grandes” obras, de autores imorredouros ou “de vanguarda”, ou ainda, claro, do cinema nacional de cada um. O que é, de certa forma, fundamental, indispensável e inclusive de difícil realização. Mas não basta.

Quem é o autor? Ou o autor, o espectador e o público

Outro passo importante nesta minha trajetória de radicalização foi a “descoberta” de Bakhtin em meu percurso procurando compreender a questão da construção do sentido no processo de comunicação. Mikhail Bakhtin[22] vai na contracorrente de todos os autores que situaram o signo, a unidade básica do sentido – e sua expressão nas diferentes linguagens – como forma imanente de uma consciência abstrata. Para ele, o signo é sempre ideológico, isto é, ele é produto e expressa uma relação e uma disposição interindividual, social – e não uma “consciência” abstrata, permanente e imutável do objeto. A palavra, ou melhor, o ato de palavra, ou enunciação, constitue a forma mais importante de signo. Ainda que existam outras formas de signo – como os gestos, as imagens e outras – nossa forma de trabalharmos sua percepção se exprime sempre, de alguma forma, pela palavra. Mesmo o que Bakhtin chama de “diálogo interior”, os processos subjetivos de tratamento da realidade, se dá fundamentalmente através da palavra. Nosso discurso subjetivo consciente, a maneira como pensamos, se articula através de palavras.

Como forma ideológica, expressa no diálogo social, na comunicação interindividual, o signo está em permanente mutação. De fato, no limite, cada enunciado exprime um sentido diferente, dependendo da entonação. Qualquer frase pode assumir diferentes nuances e significados conforme a situação desse diálogo interindividual, com outra pessoa ou entre várias. Bakhtin chama isso, esse sentido efêmero, subjetivo, pessoal, de tema do signo. Evidentemente, há uma permanência, também, do sentido do signo - sua significação, para Bakhtin – e esta, no limite, tende a expressar os interesses das classses dominantes. Essa significação do signo é produzida continuamente através do diálogo social: o enunciador de uma frase, o realizador de uma obra (literária, cinematográfica, etc) exprime um tema, ou melhor, inúmeros temas seus, um nível de significação que é apreendido em outro nível de significação pelo ouvinte, leitor, espectador. O enunciado, a obra não existe fora desse diálogo, e seu sentido, dentro dele, é cambiante, sem “dono”. Assim, analisando melhor o enunciado, não existe propriamente uma autoria, mas um processso social permanente de (re)elaboração do sentido. O enunciado é a expressão de uma experiência social e histórica em que o “autor” está imerso; ele é, socialmente, parte do público. Antonio Gramsci dizia que todo homem é intelectual, mas apenas alguns exercem essa função na sociedade. A separação do “autor” do resto dos mortais também exprime uma conjuntura histórica e social – e, nesse sentido apenas, é real – e a noção de autoria é produto da apropriação privada que caracteriza o capitalismo.

          Bakhtin também resolve, pode-se dizer, a aparente contradição entre as noções de espectador e público. A maior parte das reflexões acadêmicas e da historiografia do cinema fala dessa construção abstrata, desse avatar das características individuais do receptor da obra audiovisual, mas que é também, simultaneamente, um condensado de todos os receptores, da própria recepção mesmo. Evidentemente, tal figura não existe fora dessas construções teóricas, e sua abstração e generalidade na verdade sempre tenderam a identificá-lo com um espectador masculino, branco, norte-ocidental, e que costuma ver filmes de ficção. Seguindo Bakhtin, o espectador é a personificação individual do diálogo interindividual, social. Seu diálogo interior – sua subjetividade consciente – exprime sua forma pessoal de diálogo com o grupo, com a comunidade, com a classe social em que está inserido na sociedade. Ou com o público, se estamos falando dos meios audiovisuais e de seu espaço social de comunicação. Sua individualidade é uma forma singular, em permanente transformação, de sua organização dos signos igualmente variantes produzidos no diálogo social. Portanto, fora do terreno da psicologia ou da fisiologia da percepção, estudar, procurar compreender o processo de criação de sentido, sua permanência e sua influência na vida social dependem mais da observação do(s) público(s) do que do espectador abstrato. Ou do autor.

Resumindo, a produção de sentido é um processo social, em constante mudança. A leitura de um texto não é a compreensão exata da intenção de quem o escreveu, mas a reelaboração das significações nele contidas em função da experiência pessoal, biográfica, e social, contextual – de grupo, classe, etnia, gênero, etc. – do leitor. E também histórica: o que é “vulgar” hoje pode ser visto como importante ou “elevado” amanhã, e vice-versa. Essa mesma transitoriedade se aplica a quem escreveu, que reorganiza de forma similar as significações que constituem sua visão, perspectivas, intenções, no momento da escritura. Esse autor faz parte do público, em algum nível: até a rainha da Inglaterra – pegando um exemplo quase absurdo - partilha algumas circunstâncias (um contexto) com, por exemplo, um desempregado pobre de outro país; e hoje, a mais importante dessas circunstâncias é a imersão de ambos em um ambiente comunicacional audiovisual praticamente universal. Nesse sentido, o público, em seus diversos níveis, é a categoria mais abrangente, em que se inserem autor e espectador. Socialmente, o público é quem produz o sentido: o público é o autor.

Karl Marx identificou no processo histórico a formação de instituições que  regulam, organizam as relações sociais. No período do capitalismo é o Estado, cuja formação acompanha os primeiros passos desta nossa etapa histórica. Estado, para Marx, não é sinônimo de governo, mas refere-se ao conjunto de instituições que regem a sociedade. Sob uma aparência de estruturas moderadoras das relações sociais elas, na verdade, tendem a representar os interesses das classes dominantes. Antonio Gramsci aprofundou essa visão, mostrando que, nesse plano, a hegemonia das classes dominantes se exerce em dois níveis: o da coerção, representado pelas organizações policiais – das forças armadas às chamadas agências de informação – e normativas, como os tribunais, o Fisco, entre outras, e o de fabricação de consenso, isto é, de convencimento, “formação”, “educação”, como as diferentes igrejas, os diversos níveis de organização de ensino, as empresas de comunicação. Gramsci denominou este segundo grupo, mais independente da estrita estrutura do Estado, de sociedade civil, e suas instituições de aparelhos de hegemonia: instituições especializadas na criação de valores (nos costumes, na moral, etc.), produtoras da hegemonia no plano ideológico. Gramsci também observou – e outros pensadores também[23] – que, ainda que tendam a exprimir em última instância os interesses das classes dominantes, essas instituições são também um campo de disputa entre os interesses das classes sociais, e muitas delas podem ser parcial ou mesmo inteiramente representativas dos interesses das classes populares. Os sindicatos de trabalhadores, por exemplo. E, claro, digo eu, os cineclubes[24].

As diferentes partes deste artigo ilustram a trajetória até uma compreensão bem radical do cineclubismo como expressão da organização do público. Radical no sentido de que fui compreendendo o cineclube como uma instituição revolucionária, criada historicamente pelo público-autor como ferramenta para a transformação radical da sociedade e como embrião de uma forma superior de organização dos fatores de produção dos meios audiovisuais, em substituição ao modelo capitalista, essencialmente alienante e dominador. Radical também no sentido de identificar as formas desviantes, equivocadas ou oportunistas, e procurar demonstrar seu caráter, como faço em alguns  artigos. Esta é a minha concepção de um cineclubismo que vale a pena praticar. Ela não elimina, ao contrário reconhece e valoriza antes de criticar, outras formas. De fato, a construção de uma organização efetivamente representativa de uma determinada comunidade é um trabalho árduo e longo, que geralmente passa por diversas etapas de aprendizado e de adaptação de formas de cineclubismo que eu critico aqui, no sentido de procurar ultrapassá-las. De várias maneiras, todas elas fazem parte de uma experiência histórica, são patrimônio do cineclubismo mundial e base provavelmente necessária para a sua própria superação e para a estruturação de um cineclubismo revolucionário.

A institucionalização[25] dos cineclubes

Os cineclubes têm sua origem nos meios operários do início do século 20. Nasceram claramente, explicitamente, com o objetivo de resistir, se contrapor ao cinema comercial que se organizava para explorá-los como consumidores e domesticá-los como plateias. Mais que isso, os cineclubes propunham-se a criar um outro cinema, o Cinema do Povo - nome do primeiro cineclube bem documentado[26]. O objetivo original principal dos cineclubes era a organização das bases de um novo cinema. A criação do que, numa interpretação gramsciana, poderíamos chamar de uma forma intelectual e eticamente superior de organização do cinema. Nos meus primeiros escritos sobre cineclubismo – já lá se vão mais de 40 anos – eu dizia que o cineclube era o embrião de um novo cinema, o cinema do público organizado. Hoje, essa formulação mantém o sentido para mim, mas tornou-se mais clara e consciente. A organização democrática e a apropriação coletiva dos resultados (intelectuais, econômicos, etc.) – que define os cineclubes - constitui a base de uma forma mais avançada de organização da produção, circulação e recepção do cinema: a forma que deve contribuir para a criação de uma sociedade igualmente superior, sob todos os aspectos, ao capitalismo. Pela primeira vez desde que a hegemonia capitalista sobre o cinema estabeleceu sua forma de divisão do trabalho, hoje é possível – graças às tecnologias digitais – unir de novo, tanto na organização física como nas consciências, o processo de criação, produção, circulação e recepção do cinema, do audiovisual. Sem esse tipo de base em todos os setores da sociedade, sem novas instituições que organizem, regulem novas formas de relações sociais, é impossível criar uma nova sociedade, definitivamente justa, democrática, em plena liberdade. O cineclube é, ou deve ser, a organização audiovisual das diferentes comunidades[27], a instituição audiovisual do público numa sociedade livre.

Porém, tal como o cinema, que aos poucos anos de seu surgimento passaria por um processo, como dizem vários pesquisadores, de institucionalização, de adequação aos interesses do capital, também os cineclubes sofreriam as pressões e influências as mais diversas para se acomodarem ao modelo de cinema dominante. Até por isso geralmente só se reconhecem os cineclubes surgidos na década de 20, já em boa parte “aliados” da indústria cinematográfica. Os cineclubes, que haviam surgido para criar outro tipo de cinema, agora se dedicavam fundamentalmente a promover o recohecimento do cinema. Do objetivo de autoformar um público criador de cinema, passou-se à proposta de formação de público para o cinema.

Roger Chartier[28] dizia que, no campo da literatura, o poder real está na capacidade de escrever, que deriva da experiência da leitura. Promover a leitura sem a dimensão da emancipação pela criação escrita, tal como promover uma suposta educação – alguns dizem até alfabetização – das plateias sem organizá-las para se expressarem nas linguagens audiovisuais, não passa de um vago projeto paternalista de aperfeiçoamento intelectual. Desde a “invenção” da cinefilia como distinção do espectador, com a mitificação do autor como fonte de legitimação da obra, e do cinéfilo como especialista na sua degustação, separou-se artificialmente o consumir do criar, reafirmando a mesma divisão de trabalho e de papéis sociais estabelecida pelo cinema comercial.

O movimento cineclubista, porém, tem suas raízes numa forma organizativa baseada na gestão coletiva e democrática e na ausência de objetivos comerciais. Essa âncora política e ideológica preservou – face ou em oposição à hegemonia da simbiose com o cinema comercial - um caráter contraditório, uma identidade do cineclubismo que nunca o integra plenamente no sistema. Já disse em outro artigo, O Cineclube Contemporâneo[29], que desde o início de sua história os cineclubes desenvolveram três grandes tendências que influenciam, se misturam e se disputam na prática e na organização de cada um: uma tendência revolucionária, que vem das origens do cineclubismo, como dito acima; uma tendência paternalista (ou autoritária), quase tão antiga quanto a precedente, que começou com o proselitimo das igrejas usando recursos audiovisuais, e uma tendência elitista, contemporânea da cinefilia dos anos 20 do século passado, de que também já falei. Essas influências se encontram em praticamente todos os cineclubes, com diferentes pesos e graus. Um cineclube mais “revolucionário” pode frequentemente praticar formas paternalistas ou mesmo autoritárias de “orientação” de seus associados e frequentadores. Um cineclube preponderantemente elitista pode ter uma orientação progressista e, ainda, adotar posturas paternalistas, e por aí vai. As coisas não são simplesmente pretas ou brancas, mas mais propriamente cinzentas, como se diz na conhecida metáfora. Mas o cinza parece representar uma certa preponderância do preto, não? Ou, como dizem todos os estudiosos marxistas, as formas que favorecem as classes dominantes tendem a ser hegemônicas.

Assim, sobre uma base anticapitalista, tendências mais regressivas são bem comuns entre os cineclubes hoje, em todo o mundo. O modelo elitista-paternalista, reunindo o culto alienado do cinema à postura de educação do público espectador é absolutamente dominante nos países mais ricos do hemisfério Norte. As características cineclubistas de associacionismo democrático subsistem, mas são frequentemente descaracterizadas por uma forma de gestão de tipo empresarial: mesmo mantendo eventuais assembleias de sócios e direções eleitas, a administração concreta dos cineclubes, nesses casos, é delegada a um ou mais “profissionais” - estes, remunerados - que trabalham com um modelo de gestão que emula o das atividades comerciais, ainda que sem fins lucrativos. Na América Latina esse modelo é atenuado pelas contradições do próprio subdesenvolvimento: o cinema “de autor” ainda é objeto de culto, mas dentro, parte de uma consciência das desigualdades econômicas e sociais, assim como de um “nacionalismo” cultural, contra o monopólio estadunidense do cinema. A “formação do público”, expressão basicamente paternalista, inclui muitas vezes a “conscientização” dos frequentadores. Nos cineclubes que operam em meios urbanos mais desenvolvidos, com públicos mais informados, de classe média, essas práticas eventualmente constituem simplesmente um reforço, uma reiteração de convicções comuns, partilhadas por todos – portanto, sem maior consequência. Modelo semelhante também é majoritário nos países árabes onde há cineclubes – como no Norte da África. E, em versão menos contestadora, nos países asiáticos mais pobres, desde a Índia, que tem uma forte tradição e centenas de entidades, até os menos populosos, onde geralmente o cineclubismo só existe nas capitais ou cidades mais importantes. Na África subsahariana quase não há cineclubes. O modelo elitista dos tempos coloniais mais se choca do que se agrega às contradições muito fortes do Subcontinente. Diante da ausência de alternativas, formas selvagens (isto é, não regulamentadas) e precárias de exibição comercial, assim como iniciativas governamentais de exibição itinerante, atendem insuficientemente os públicos das diferentes regiões ao Sul do Magreb e Egito.

Obsolecência do cineclubismo

Neste panorama mundial mais geral[30] existem, claro, numerosas exceções, em praticamente toda parte, mas justamente como exceções. No mundo todo os cineclubes propriamente raramente produzem filmes, embora quase todos discutam e vulgarizem os elementos da linguagem cinematográfica e muitos organizem ateliês e cursos rápidos de realização. A iniciação à linguagem cinematográfica, os conhecimentos elementares de produção e, desde sempre, o contato com uma filmografia diversificada, contribuem eventualmente para a formação de realizadores ou outros profissionais. Mas, a partir de uma formação básica, ou mínima, esses aspirantes a “profissionais” quase sempre trabalham fora da esfera do cineclube e da comunidade, e encaminham-se para as trajetórias tradicionais dos autores individuais. E, embora praticamente todos adotem recursos digitais para suas projeções, são raríssimas as experiências ou a atuação de cineclubes em outros campos do audiovisual: televisão, celulares, internet, etc. Volto à metáfora do preto e branco: os cineclubes, em todo o mundo, mantêm um papel muito importante de resistência à alienação, ao conformismo, à uniformidade promovidos pelo cinema comercial; mas não foram realmente capazes de superar um modelo ultrapassado e fundamentalmente conservador, estabelecido a partir dos anos 20 e consolidado nos anos 50 do século passado. A miragem do acesso é, na prática, um louvável, importante trabalho marginal: o público sem acesso ao cinema tradicional atingido por projeções cineclubísticas, ou outras, é totalmente insignificante em termos sociais (embora as experiências locais muitas vezes sejam riquíssimas).

O que se retira de mais fundamental desse quadro é a consolidação de alguns traços conservadores que se espalharam pelo cineclubismo em todo o mundo. Ao invés de se contrapor clara e diretamente ao cinema comercial, o cineclubismo se orienta em geral na direção de, por omissão, confirmá-lo, valorizá-lo, especializando-se no tratamento dos filmes isoladamente, e não do cinema, do audiovisual ou da mídia como sistema, como dispositivo social de alienação e controle. Até mesmo quando adota um discurso mais progressista quanto aos filmes – ou abstratamente quanto à sociedade -, boa parte de sua atividade é complementar ao sistema de exploração audiovisual, atendendo a certas necessidades que este não contempla - como a do (simples) acesso nos países mais pobres, ou a da diversidade, nos mais afluentes - reduzindo, assim, seus impactos negativos, eliminando algumas de suas contradições.

Desde a mitificação do autor, nos anos 20, os cineclubes reproduzem a separação entre recepção e produção, dedicando-se exclusivamente à projeção – com, claro, algumas exceções neste período de quase 100 anos. Além destas exceções, há  incontáveis casos de realizadores que começaram nos cineclubes: sua condição de cineastas, no entanto, é sempre manifestação de individualismo: os cineclubes entram em suas biografias no período da adolescência ou simplesmente desaparecem de sua história. Também sempre existiram grupos de realizadores - originários ou não de cineclubes -  unidos em torno de um projeto estético ou político. Sua identidade, no entanto, é sempre constituída por uma autoria comum; eles não expressam nem se radicam efetivamente – e nunca são capazes de se reproduzir – em suas comunidades, embora às vezes reivindiquem essa representação. Quando militante ou engajada, essa filmografia poucas vezes escapa de uma reprodução doutrinária simplista, discursiva e pouco inventiva, sem impacto social, estético ou outro. Mas que mais geralmente busca, ou reproduz, valores “autorais”. Essa produção geralmente não consegue exprimir – nem mobilizar - uma expressão coletiva da comunidade: a recuperação e preservação da memória, a descoberta e afirmação da identidade, a exibição e adaptação das experiências concretas, a identificação dos conflitos e a proposição de caminhos coletivos e revolucionários para a sua superação. Quando se produz, nos cineclubes, ainda se produz mais para o público do que com o público, essa produção exprime mais pretensos autores do que constrói o(s) público(s) como autor(es). É preciso entender, contudo, que esse tipo de crítica só é possível justamente pela existência de exceções ou, mais precisamente, de inúmeros casos em que se tenta – com maior ou menor grau de sucesso – criar formas de expressão coletiva das comunidades.

De forma geral, neste início de século 21, os cineclubes reproduzem o modelo do cineclube cinéfilo de meados do “século do cinema”: projeção e debate (ou conferência de autoridade reconhecida) de um filme de longa-metragem ou um programa de duração similar, de autor valorizado (mesmo se cult ou “marginal”), em uma sala ou em um espaço delimitado. Evidência da fragilidade do modelo, as sessões são cada vez mais espaçadas, muitas vezes mensais e mesmo com longas interrupções, nos períodos de “férias”. Fora desses cineclubes, no entanto, o público real, contemporâneo, assiste, se comunica e de certa forma se expressa através de inúmeras telas, nos mais diferentes lugares enquanto, ao mesmo tempo, é empurrado para um consumo cada vez mais isolado, individual, subjetivo e conformista – e suas manifestações orientadas, através de artifícios mecânicos, para a reprodução da inconsistência e das irrelevâncias em seu cotidiano. Mesmo assim, a revolta e a criatividade se manifestam em todos os espaços cibernéticos e comunicacionais, sem muita direção[31] - que não a dos limites impostos pelos sistemas corporativos e/ou policiais. Com incontáveis alternativas e possibilidades de acesso a novas formas de recepção e expressão coletiva, os cineclubes – a instituição audiovisual do público, da comunidade –  só rara ou excepcionalmente trabalham nesse campo mais amplo, com esses recursos, e com a grande maioria do público. Creio que isso – a hegemonia do modelo ultrapassado - se deve, em boa medida, à incompreensão da idéia de público que procurei esclarecer até aqui. Deriva da incapacidade de enxergar esse novo público – como o chamam os pensadores cineclubistas italianos - em sua realidade tão evidente. Novo, pelas características dos meios digitais, mas também porque representa uma visão nova de protagonismo coletivo e democrático. Parece evidente a necessidade de adaptação e reinvenção do cineclube sintonizado com a realidade contemporânea. Sob pena de isolar-se como manifestação marginal, exótica ou curiosa daqueles cinéfilos que hoje ocupam as reminiscências de uma parte importante da minha geração. O senso comum já percebe o cineclube como coisa do passado, como expressa a fórmula da “idade do ouro” do cineclubismo - nos anos 50 do século passado.

Diferentes espaços

O espaço paradigmático do cinema, seja no sentido da sua realização econômica, da sua circulação ou como forma principal da recepção já não é mais a sala de cinema – que também praticamente já não existe sob a forma preponderante no século passado. A exibição nos multiplexes é uma blitzkrieg publicitária que fundamentalmente prepara a exploração das superproduções e seus subprodutos num largo espectro de diferentes telas e modelos de negócio: televisão on-demand, a cabo, aberta, telas móveis, celulares, licensing, etc. Essas superproduções de efeitos espetaculares e tonitruantes, um verdadeiro retrocesso à cinematografia de atrações (onde a estrutura narrativa tem menos importância), também servem para “renovar”, revigorar o consumo de aparelhos de toda espécie, aumentando as vendas de poderosos home-theaters ou a troca de celulares a cada novo lançamento, paradoxalmente contribuindo para o isolamento do espectador. O filme essencialmente narrativo, nas salas, só preenche as datas intermediárias dos grandes lançamentos; sua forma de consumo principal passou a ser a Internet (como a explorada pelo modelo Netflix, por exemplo). Outra forma de cinema que se “renovou” foram as séries: para muitos espectadores elas já superam o longa-metragem como principal produto cultural. E um formato que se tornou onipresente, sobretudo através das redes sociais, é uma versão contemporânea do filme de família[32]: os filmetes de poucos minutos, que reproduzem principalmente cenas familiares, cotidianas, agradáveis ou curiosas, ou repassam conteúdos igualmente rápidos que os internautas julgam de alguma maneira relevantes, como apresentações artísticas, discursos breves de personalidades e situações que merecem algum tipo de denúncia, de  alerta – entre muitos outros assuntos impossíveis de elencar completamente. Como na mídia mais comum – o celular – imagem e texto são muito caros, impõem-se cada vez mais as formas curtas de manifestação e de recepção – What’s up, Instagram, Twitter, etc. -, tendencialmente mais pulsionais que propriamente sintéticas.

Parece que só os cineclubes funcionam basicamente num espaço monotela, presencial, com filmes de longa e curta-metragem. Esse espaço, essa experiência de cinema deve ser preservada, indiscutivelmente, e sobretudo face ao seu abandono parcial pela indústria cinematográfica: o fim dos cinemas nos bairros, nas comunidades e mesmo, em vários países ou regiões dos países, a completa ausência de salas de cinema de qualquer tipo. Mais que isso, a facilidade relativa de acesso a meios de projeção ou recepção, como projetores digitais ou as telas grandes de televisão, permite a combinação e a extensão dessa concepção usual de espaço público (e do público) para uma informalidade de sala “caseira”, com novos formatos, novos mobiliários, onde novas formas de narrativa, como as séries da televisão online ou, ao contrário, bem tradicionais, como as telenovelas tão apreciadas em muitos países, podem ser assimiladas pelo cineclubismo; e este, por um novo e maior público. O formato serial, usado comercialmente para fidelizar o consumidor, tem uma longa história de compartilhamento pelo público, que dele retira uma experiência comum, que convida à  partilha, à comparação, ao debate. Se as novas séries produzidas para a televisão mais segmentada reproduzem – por vezes com muita qualidade – elementos especificamente cinematográficos, as telenovelas são, por sua vez, muito próximas do cotidiano (mesmo as “de época”) do público: ambas as formas constituem um convite evidente para a práxis cineclubista do debate convivial comunitário, sistemático e permanente, sem a necessidade do concurso de “autoridades” de qualquer espécie.

Mas a esfera pública[33] do audiovisual contemporâneo não é a mesma do cinema do século passado. O espaço de encontro interpessoal através do cinema, ou do filme, multiplicou-se, pulverizou-se em diversas “esferas virtuais”, acessíveis por diferentes equipamentos e a partir de praticamente qualquer lugar. E mesmo antes desta situação, a televisão – há mais de meio século – já havia criado um espaço audiovisual mais amplo e mais presente na vida do público. E que, como o cinema, constitui mais um dentre os múltiplos lugares de comunicação e socialização do público. O cineclube, para sobreviver, fazer a passagem para essa realidade, e livrar-se da obsolecência cultural, precisa adaptar-se, incorporar esses espaços, propor novas formas de relacionamento. A noção de interatividade, que usualmente descreve apenas a possibilidade de reagir a uma direção proposta pelas corporações que controlam os espaços virtuais, tem que ser substituída por criação, participação e controle, por formas de criação compartilhadas – que, na verdade, só se tornaram possíveis com essas novas formas de comunicação.

Os primeiros projetos governamentais da então chamada inclusão digital, no Brasil, intuíram substancialmente essa nova realidade, mas não souberam ou não conseguiram incorporar a experiência social existente, representada principalmente pelos cineclubes. O programa Cultura Viva, implementado inicialmente a partir de 2004, previa o repasse de recursos e equipamentos para iniciativas da sociedade civil segundo projetos apresentados por elas em resposta a editais não normativos do governo. Uma base comum, no entanto, era exigida: a montagem de um estúdio multimídia para a produção e difusão de conteúdos audiovisuais. De imediato, mais de 30% dos proponentes eram cineclubes (cuja atividade é claramente identificada com o objetivo do programa, como procuro demonstrar neste texto), e muitas outras incluíam atividades cineclubísticas - conforme levantamento feito na época pelo Pontão de Cultura Vila Buarque (SP), que mapeava as iniciativas. De fato, talvez a evolução da experiência tivesse conduzido a uma convergência para uma identidade comum composta pelas diversidades concretas das comunidades, fenômeno que já é visível na história e composição do movimento cineclubista[34]. Vários fatores, no entanto, contribuíram para que a proposta não seguisse a orientação prevista. A instrumentalização política do governo foi o principal: ao invés de guiar-se pelas propostas da sociedade civil, passou a orientá-las, criando uma espécie de novo “movimento social” artificial - em substituição aos de cineclubes e a todas as outras múltiplas formas de organização da sociedade civil historicamente constituídas –, conduzido pelo Governo, sob a denominação geral de Pontos de Cultura. O caso dos cineclubes foi até mais grave, pois a resistência deste movimento[35] à cooptação levou à sua exclusão formal do Programa. Mais tarde, diversas inconsistências burocráticas e, principalmente, a total falta de continuidade nas políticas públicas de cultura, levaram ao fim do projeto, junto com governo encerrado em 2010. Em outros países – como Argentina, Perú, Costa Rica – versões inspiradas no programa brasileiro continuam a existir; aparentemente elas também reproduzem essa presença preponderante do Estado, mas não tenho maiores informações. Uma outra tentativa de política pública para o fortalecimento de entidades locais de cinema e outros formatos audiovisuais foi o projeto PopCine, no âmbito do estado de São Paulo. Sua trajetória, igualmente fracassada, pode ser melhor conhecida em  http://popcines.blogspot.com/.

Autoformação do público

          O cineclubismo, a prática cineclubista é uma atividade pedagógica no seu sentido mais amplo. Trata-se de formar os participantes. A questão é: em que consiste essa formação? Como vimos, os cineclubes ainda mantêm uma relação com o público que se encaixa naquilo que Paulo Freire[36] chamava de educação bancária: quando o aluno é visto como uma conta vazia a ser preenchida pelo professor. Para Freire, não é possível existir uma pedagogia neutra: ou ela labora no sentido de integrar os participantes no sistema, adequando-os à sua lógica, ou é uma “prática da liberdade”, um exercício de crítica da realidade na perspectiva da transformação do mundo. E, o mais essencial: essa prática é uma autoformação, um processo de construção pessoal e coletiva em que o aluno, a coletividade, o público cria seu próprio caminho e consciência. É a tomada de consciência sobre o processo interpessoal descrito por Bakhtin, a consciência de classe para sí em Marx. Essa prática, evidentemente, não pode ser ocasional, espaçada, mas é fruto do convívio, da partilha sistemática do processo de superação dos elementos de alienação presentes na vida dos participantes, do público de cada comunidade.

A afirmação acima supõe a inversão de um truísmo que ocupa um papel central na concepção ancestral bancária de cineclubismo: o propósito da prática cineclubista não é o cinema, é o público. O cinema e todas as formas de comunicação audiovisual que o cineclubismo deve incorporar em sua prática constituem os instrumentos, não o fim, da atividade cineclubista. É a realidade mais geral, a sociedade como um todo e a inserção do público nela, que são o objeto de questionamento e reflexão permanente dos participantes. Os filmes – e a televisão, e não apenas suas produções narrativas, mas igualmente as informativas, cômicas, educativas, etc; assim como todos os materiais de comunicação cibernética – são o objeto, o instrumento, as diversas formas de representação da realidade que devem ser usadas para a sua avaliação. O sujeito é o público. Não há aí nenhuma desvalorização do cinema, mas apenas a retirada da relação de culto com o cinema, do estabelecimento de uma aura de autenticidade autoral em torno de obras que se aprecia separadamente do processo social que elas intermediam com o público. Pelo contrário, reconhecer o papel central do audiovisual, da mídia, no processo de socialização, de formação da consciência do público – papel em que os produtos dos meios de comunicação hoje substituem em grande ou total medida instituições como a Escola, a Igreja e mesmo a Família – é fundamental para restabelecer a relação do cineclube com o seu público, com a sua comunidade, e com a sociedade.

Outras derivações do paradigma bancário de educação, da orientação ou formação paternalista do público se desenvolveram ao longo e ao lado da trajetória histórica do cineclubismo. Paralelamente à consolidação das mídias comerciais como presença sistemática e permanente em cada vez mais e maiores espaços ocupados por seus consumidores, formas cada vez mais ocasionais se instalam e tendem ou procuram substituir ações ligadas ao público de forma mais duradoura. Em outras palavras: as formas mais independentes de manifestação cultural – e do audiovisual – tendem para o evento[37], cada vez mais espaçado e contingente. A própria ausência dos cineclubes no universo dito virtual é um aspecto disso. Outro é o espaçamento cada vez maior das sessões cineclubistas. A proliferação de “pequenos” festivais de cinema – ao lado da consolidação de uns poucos “grandes”, estreitamente ligados à “indústria” –, que muitas vezes surgem em espaços anteriormente ocupados por cineclubes, e mesmo onde antes existiam salas tradicionais de cinema, é outro exemplo. Mas mais que isso, a própria metodologia, a abordagem do público se torna eventual, pontual, dispersa. A organização de eventos – inclusive cinematográficos – de todo tipo, como que consagra um conceito pedagógico, ou uma proposta de agitação catártica, por revelação, em momentos especiais, esporádicos. Um fenômeno aparentemente apenas brasileiro, importou-se o conceito de curadoria das galerias de artes plásticas para o cineclubismo, promovendo que a escolha da programação das entidades seja feita por pretensos especialistas, ao invés do público. Evidentemente essa crítica também cabe às exibições itinerantes que, em boa medida, exprimem justamente a incapacidade de se organizar o enraizamento da atividade nas comunidades assim atingidas. A opção pela agitação, em detrimento da autoformação, muito mais difícil e longa é, paradoxalmente, uma forma de desistência diante da complexidade e rudeza  da luta social. Todos essses exemplos se referem a práticas que têm indiscutivelmente muitas qualidades, e sobretudo a de “fazer o possível”, de não se conformar com uma atitude totalmente passiva diante das condições existentes. Por outro lado,  é muito raro o trabalho sistemático e permanente de construção coletiva de uma reflexão e ação crítica da comunidade sobre sua realidade e sua condição dentro dela e da sociedade.

Produção do público

          Uma ambiguidade simultanemanete característica e daninha ao cineclubismo é a aparente facilidade da sua organização. Nos chamados tempos áureos do cineclubismo francês – com a redemocratização ao fim da II Guerra Mundial – literalmente milhares de “cineclubes” se espalhavam por aquele país. A imensa maioria deles era constituída por iniciativas nas escolas, aproveitando-se da infraestrutura desses estabelecimentos e principalmente da disposição de professores apoiados por uma federação de cinema educativo construída sobre uma já então centenária tradição de pedagogia laica[38] reconhecida, estimulada e controlada, em boa medida, pelo Estado. A base e o cerne desse movimento oficioso era a cinefilia bancária. No segundo governo de Lula da Silva, no Brasil, o programa Cine Mais Cultura propôs-se a criar também milhares de pontos de exibição de filmes, neste caso mais identificados com a necessidade de viabilizar a produção digital amadora que florescia em todo o País. Como já disse antes, esse movimento abdicou de muitos aspectos do cineclubismo em favor da consolidação daquela produção. Em ambos os casos, as características basilares do cineclubismo foram sacrificadas, no caso da França, no altar da cinefilia e do paternalismo, corporificados na tutela do professor; no do Brasil, por interesses mais superficiais, que pode-se chamar, de certa forma, de corporativos – ainda que, do ponto de vista econômico, essa produção fosse pouco organizada. O modelo francês, enraizado numa forte tradição de educação laica, reconhecida e controlada pelo Estado, durou cerca de duas décadas; no Brasil, pouco mais de dois anos. Em que pese a tradição, o fenômeno europeu não gerou uma forma de expressão das comunidades em que se instalou; menos ainda no Brasil. No primeiro caso, a “facilidade” de se criar um cineclube consistia no aproveitamento da infraestrutura estatal – das escolas e outras instituições (distribuidoras de filmes, equipamentos, etc.) – e na existência dos professores, tutores do processo. A igreja católica, até mais ou menos essa mesma época, havia construído um movimento bem similar, ancorado numa outra tradição, praticamente antagônica, a do proselitismo religioso[39]. No Brasil recente, por sua vez, muitos acreditaram e embarcaram na facilidade obtida com a mera distribuição de equipamentos básicos de projeção, da disponibilização de cópias digitais (DVDs) dos filmes produzidos com financiamento do governo, e com seus realizadores para promovê-los junto ao público. Não foi, nem de longe, suficiente.

          Novas tecnologias sempre se realizaram socialmente por facilitar os processos de produção, inclusive os de conhecimento, comunicação, formação. As invenções, ou melhor, desenvolvimentos tecnológicos tais como o cinema, o rádio, a televisão e a Internet sempre apontaram inicialmente para a possibillidade de uma grande democratização na distribuição da criação intelectual – até serem apropriadas pelas classes dominantes, tornadas propriedade privada de grupos econômicos. A mais recente revolução cibernética abriu, possivelmente, os horizontes mais amplos na direção de uma apropriação coletiva e democrática dos meios de comunicação. De certa forma, tal como o cinema havia “reunido todas as artes” – como proclamava Rcciotto Canudo em 1911 – a tecnologia digital incorporou todas as formas de comunicação audiovisual. Mas o paradigma básico, a forma audiovisual por excelência dessa comunicação ainda é o filme – não o conceito ligado àquele modelo clássico ou hollywoodiano com que nos acostumamos, mas a unidade discreta do dispositivo social cinema, conjugação de imagem em movimento e som que serve para representar a realidade. O desafio do cineclube contemporâneo (ou do futuro) é a reorganização desse dispositivo como ferramenta de liberdade: como estrutura econômica e social capaz de superar em eficiência o modelo dominante. É uma tarefa complexa, um processo longo, que requer um comprometimento profundo e muito trabalho.

          Por outro lado, os instrumentos, processos e possibilidades nunca foram tão amplos e ricos como os que agora se apresentam. Hoje se pode documentar qualquer acontecimento em tempo real, com o uso da função de gravação de imagens do celular. E mais, praticamente toda a população possui esse instrumento e função. É  possível, portanto, reunir algumas dessas gravações – e de outros equipamentos, também bastante disponíveis -, construindo uma documentação identitária da comunidade. Que é também simultaneamente, exibível, partilhável e, portanto, realimento, feedback, estímulo para a expressão de cada um e de todos, e de união através e em torno dessa partilha. Os arquivos constituídos por esses materiais podem ser guardados em localidades acessíveis na web (como canais no Youtube) ou outros espaços virtuais mais independentes. A acessibilidade digital permite a reelaboração, remontagem, recriação de todas as imagens. Mas cabe ao cineclube organizar e propor essas ações à comunidade, integrando-a no grande coletivo que as produz.

          Outro aspecto fundamental dessa documentação é sua atualidade. O cineclube pode ser o agente, ou a agência, de notícias da comunidade, establecendo um canal de comunicação que seja adotado por todos em uma determinada extensão geográfica, no caso de bairros e cidades menores, ou pelas mais variadas comunidades de interesses, gostos ou quaisquer outras características comuns. A produção desses conteúdos pode ser cada vez mais interativa e coletiva dentro dessas comunidades. E, conquistada uma participação significativa – que dê sustentação para uma organização mais complexa – esse canal pode recolher, produzir e difundir outras formas de expressão, como ficção, comédia, programas de participação presencial ou virtual e muitas outras, cujo foco deve ser principalmente a comunidade, e o único limite será a capacidade de invenção dos participantes.

          Em resumo, a adaptação da prática cineclubista aos tempos que correm deve necessariamente estender-se ao reconhecimento, documentação, recuperação e preservação da memória da comunidade; à exibição e adaptação das experiências concretas, à identificação dos conflitos e à proposição de caminhos coletivos e revolucionários para a sua superação. Um cineclube realmente público. Um paradigma (sem modelo) novo, uma postura radical. Que se constrói concretamente, na prática, com a reunião do público em torno do dispositivo audiovisual atual, cujo arquétipo original é a sessão do cineclube.

Montreal, agosto de 2018.

Notas:


[1] Essa carta com dez princípios básicos dos direitos do público foi aprovada numa assembleia geral da Federação Internacional de Cineclubes realizada, em 1987, na cidade de Tabor, na então Tchecoslováquia – e hoje na República Tcheca – por proposição inicial da delegação italiana. Um dossiê com os documentos principais daquela assembleia pode ser encontrado na revista Cahiers des cinéclubs, número 1, dezembro de 2010 (ver nota 6). A Carta está dispponível em http://www.culturadigital.br/cineclubes/campanha-mundial-pelos-direitos-do-publico/direitos-do-publico-2/
[2]Federação Catalã de Cineclubes (org.). 1991. 3er Congreso de Cine-Clubs del Estado Español- Ponencias, Comunicaciones y Conclusiones. Direccion General de Cooperación Cultural, Ministerio de Cultura – Departament de Cultura de la Generalitat de Catalunya – Ajuntament de Barcelona – C.E.R.C. de la Diputació de Barcelona.
[3] Filippo de Sanctis (1926-1989) participou da Federação Italiana de Círcolos de Cinema desde 1951, ocupando sua secretaria-geral e depois a presidência, de  1963 a 1972. Envolvido com a pedagogia para adultos, participou também da Sociedade Humanitária de Milão, do Centro de Estudos e Formação da Confederação Geral Italiana do Trabalho, do Instituto Gramsci, da Cinemateca Sarda, do Centro Experimental de Cinematografia, do Instituto para o Desenvolvimento da Formação Profissional dos Trabalhadores, entre outras organizações. Desde 1963 desenvolveu pesquisas sobre a educação de adultos na Universidade de Firenze, na qual viria a ser professor e criador dessa disciplina. Nos anos 80, ajudou a criar a Associação Italiana de Educação de Adultos, que também presidiu. Autor de várias obras sobre a educação e a emancipação do público, baseadas fortemente nos conceitos gramscianos e desenvolvidas em grande parte a partir da sua atividade em cineclubes: Il cinema come strumento di cultura, 1962; Il pubblico come autore, l’analisi del film nelli discussione di gruppo, 1970; I ragazzi inventano il cinema, 1979, Pubblico e cineteche. Nuove frontiere del lavoro educativo all’uso del cinema, organizado com Fabio Masala em 1983, entre outras. É o autor, junto com Masala, da Carta dos Direitos do Público.
[4] Fabio Masala (1940-1994), sardo como Gramsci, envolveu-se desde cedo com a educação de adultos – no que era então a região reconhecida como a questão meridonal italiana – assumindo a direção do Ofício Sardo da Associação Humanitária. Como De Sanctis, sua principal ferramenta era o cinema – donde a fundação da Cinemateca Sarda, criada para alimentar as sessões de cinema em diversas comunidades da ilha. É com Masala que surge o conceito e a expressão “direitos do público”, entendidos no contexto da autoformação e emancipação do povo, de um novo público. No centro dessa reflexão e ação, sempre dialeticamente unidas, Masala colocou a formação dos animadores culturais. Sua trajetória teórica foi sempre muito próxima de De Sanctis, sendo que o mais jovem trouxe, em grande parte, a percepção das grandes mudanças tecnológicas, introduzindo a questão audIovisual, a televisão, e intuindo muito do que viria a ser o público das redes sociais. Entre seus escritos publicados podemos citar: Pubblico e cineteche. Nuove frontiere del lavoro educativo all’uso del cinema, 1983 (com De Sanctis),  Il diritto alla risposta. Educazione degli adulti e mezzi audiodivisi di communicazione de massa, 1985; Pubblico e communicazione audiodivisa (org.), 1986,  e Cinema e insegnemento della storia, 1988. Foi dirigente e presidiu a Federação Italiana de Círculos de Cinema e teve um papel central nas ações da Federação Internacional de Cineclubes. É co-autor da Carta dos Direitos do Público.
[5] Desde 2002, sob a presidência do italiano Paolo Minuto, a FICC desenvolveu um intenso trabalho de contacto e incorporação especialmente de países com pouca ou nenhum histórico de participação na entidade internacional, e mais especificamente ainda, entre as nações de menor desenvolvimento econômico e social, principalmente da América Latina e da Ásia.
[6] Os Cadernos (ver nota 1), que tiveram uma única edição (dez., 2010), foram organizados por mim, Julio Lamaña e Gabriel (Gabo) Rodríguez Álvarez. O Dia Internacional do Público foi adotado pela direção da FICC no VI Encontro Iberoamericano de Cinelubes (Atibaia, SP), a partir de uma proposta minha inspirada pelos distúrbios do Astor Place (ver http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2011/05/o-texto-que-segue-e-base-de-uma.html ). Sobre o Cinema do Povo, ver http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html . O I Encontro Internacional dos Direitos do Público e a publicação homônima que desenvolve e amplia as questões ali abordadas foram organizados por João Batista Pimentel e realizados durante a 5ª. edição do Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual (FAIA), em 2010. O livro pode ser acessado em http://www.culturadigital.br/cineclubes/files/2009/10/LIVRO-TEXTO-FINAL-2.pdf . Por iniciativa de Pimentel, foi adotada no estado de São Paulo uma lei estabelecendo o Dia do Público e do Cineclubismo.
[7] Embora haja alguns elementos em comum – o presidente da FICC nesse período era um brasileiro, ex-dirigente da federação nacional do Brasil – esses processos são bem diferentes. Não é o objeto deste texto fazer essa análise.
[8] Também não quero me estender muito sobre essa querela. Minhas razões foram abordadas em diversos outros textos e minha carta de demissão pode ser vista em http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2009/08/demissao-amigs-companheirs.html.
[9] Parafraseando Leandro Konder: conforme Antonio Gramsci, “o senso comum expressa uma postura predominantemente passiva; cada sujeito se limita a adotar critérios, comportamentos, modos de sentir e de pensar que predominam na sua sociedade ou no seu grupo. Ao contrário deste, bom senso é o movimento espiritual pelo qual o sujeito assume uma disposição crítica e, com os instrumentos de que dispõe, enfrenta o desafio de refletir por conta própria sobre as coisas. O senso comum incorpora elementos difusos de alguns conhecimentos adquiridos, porém tende a dissolvê-los num sistema ideológico impregnado de resignação e conformismo. Instalado nele, o indivíduo enquadra seu pensamento na moldura dos preconceitos da sua cultura, na média das idéias constituídas do seu grupo.”
[11] Ver Ginzburg, Carlo. 1989. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, em Mitos, emblemas, sinais, p. 145-181. São Paulo: Companhia das Letras. Disponível em: https://docs.google.com/file/d/0B46vjiRI8hGuSHNNRE1EVUExREU/edit. A transposição do conceito de curador como responsável pela escolha da programação nos cineclubes – ou outros lugares - é corolário dessa noção de especialização elitista.
[12] Chamam-se Estudos Culturais as formas de abordagem dos fenômenos culturais a partir de uma perspectiva multidisciplinar, ancorada fortemente nas ciências sociais e bastante influenciada por Antonio Gramsci. O nome deriva das pesquisas do Centro Contemporâneo de Estudos Culturais, fundado em 1964 em Birmingham (Inglaterra), por Richard Hoggart. Grandes nomes dos Estudos Culturais ditos britânicos são Stuart Hall, Raymond Williams, E.P. Thompson, entre outros. Uma vaga posterior, estadunidense, tem menos identificação com o marxismo.
[13] Como os de Laura Mulvey, Janet Staiger, Miriam Bratu Hansen, Mary Ann Doanne, Annette Kuhn e muitas outras.
[15]Quando começamos a campanha pelos direitos do público no Brasil escrevi uma espécie de introdução e comentário à Carta, disponivel em http://www.culturadigital.br/cineclubes/direitos-do-publico/uma-leitura-da-carta-dos-direitos-do-publico/
[16] National Security Agency, dos Estados Unidos. Operando sozinha ou em colaboração com agências similares de países seus aliados, especialmente os de língua inglesa, e através de acordos com as grandes corporações de comunicação, como as FAANG (ver mais adiante no texto principal), a NSA tem acesso a praticamente todas as formas de comunicação, bases de dados e informações privadas em todo o mundo, incluindo instituições governamentais ou particulares e a vida privada de todos os cidadãos do planeta.
[17] A produção cinematográfica brasileira de longas-metragens ocupa, em média histórica, em torno de 10% do mercado de salas de cinema (ver https://www.academia.edu/10359705/O_Modelo_Brasileiro_de_Cinema). Na televisão aberta, o fenômeno brasileiro da telenovela produz um caso específico de hegemonia que deve ser tratado em separado (há uma farta bibliografia sobre o assunto). De qualquer forma, essa produção é restrita às principais redes de TV. Na televisão a cabo a produção brasileira só existe “graças” à legislação que garante umas poucas horas semanais ao audiovisual nacional, concentrado em poucas grandes produtoras e, no campo do chamado video on demand, de acesso aos conteúdos de televisão pela internet, ela é praticamente inexistente.
[18] Há uma grande e crescente discussão acadêmica sobre o conceito e a história do amadorismo no cinema: uma categoria de fronteiras difíceis de definir, que vai do chamado filme de família até o documentário, passando pelo cinema experimental, militante, de vanguarda, entre outros. Autores como Roger Odin, Patricia Zimmerman, Karen Ishizuka, Ryan Shand, Valérie Vignaux, Benoit Turquety, Jan-Christopher Horak, Charles Tepperman, Tim Heijden e muitos outros trabalham sobre o assunto. No Brasil, igualmente, nas diversas antologias da Socine e em artigos de várias outras publicações, o tema tem sido bastante explorado.
[19] Lembro que estamos falando do cineclube como forma de organização do público. Por isso falo em “substituição” quando a organização democrática do cineclube é desvirtuada ou transformada em uma simples estrutura de exibição.
[20] Estudei e convivi com Paulo Emílio Salles Gomes, e partilhei de sua convicção e de muitas de suas lutas em defesa do cinema brasileiro, especialmente através do movimento cineclubista. A tese de base da valorização do cinema brasileiro, sempre justa e verdadeira em vários sentidos, foi construída muito em função da análise da posição do produto nacional no mercado cinematográfico há mais de 40 anos. Hoje, ainda que sempre subalterno, marginal na economia (com exceção da televisão aberta), o conteúdo brasileiro se situa de forma diferente no campo do audiovisual e na maneira como se relaciona com o público. Esse é assunto para uma ampla reflexão, que não cabe nas condições em que apresento este artigo. De qualquer forma, a atividade cineclubista não pode se limitar ao cinema brasileiro – aliás, nem ao cinema...
[21] Esse processo durou cerca de 2 anos, no final do segundo mandato do presidente Lula da Silva (ver http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2018/07/nova-cronologia-do-cineclubismo.html). Haveria também que lembrar os festivais de cinema, sobretudo os de cidades menores, como alternativa de exibição para essa produção. Estes, porém, também foram muito debilitados a partir das ações em torno da Petrobrás e do governo, seu principal patrocinador.
[22] Como o próprio Bakhtin não dava muita importância para a questão da autoria na sua produção, e como também esta foi frequentemente resultado da colaboração com outros pesquisadores do chamado “círculo bakhtiniano” – como  Valentin Voloshinov e  P. N. Medvedev, principalmente –, que assinam textos muitas vezes mais identificados com Bakhtin, há uma discussão sobre a identidade do autor de várias obras que se supõe suas. Essa polêmica, evidentemente, não tem interesse aqui; ao contrário, constitui um exemplo da desimportância da questão. Uma parte fundamental do pensamento bakhtiniano está resumida em Bakhtin, M. (Voloshinov, V.). 2014 (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Sâo Paulo: HUCITEC Editora.
[23] Os Estudos Culturais britânicos, principalmente – e em especial E.P. Thompson e Raymond Williams -  mostram como a burguesia tende, historicamente, a criar instituições derivadas e controladas pela iniciativa individual, pela apropriação estritamente privada, como as diferentes empresas de comunicação. O proletariado, por outro lado, dá origem a organizações de caráter coletivo e democrático, como os sindicatos, associações de ajuda-mútua, etc.
[25] Instituição, aqui, é tratada em outro sentido, o de tornar-se oficial, preponderante, hegemônica. Quase a totalidade dos historiadores do cinema adota uma periodização em que chama de modo primitivo (Noel Burch) ou da cinematografia de atrações (André Gaudreault, Tom Gunning) uma primeira etapa do cinema (1895-1905 aproximadamente) em que o modo narrativo, a linguagem tal como se consolidaria depois, não era dominante. O período seguinte (1905-1915) é chamado de transição ou de institucionalização porque, justamente, se estabelecem as instituições dominantes no cinema: a linguagem e as formas de produção, circulação e recepção
[26] Ver Mundim, Luiz Felipe. O público organizado para a luta : Cinema do Povo na França e a resistência do movimento operário ao cinema comercial (1895-1914), disponível em https://lume.ufrgs.br/handle/10183/158300 ou, numa versão bem mais resumida: Macedo, Felipe. Cinema do Povo, o Primeiro Cineclube, em http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2010/03/cinema-do-povo-o-primeiro-cineclube.html
[27] Sempre que uso o termo comunidade, neste texto, estou me referindo a todas os grupos que partilham características e interesses comuns. As comunidades podem ser definidas por uma condição geográfica - bairros, cidades pequenas, aldeias – mas também, ou cumulativamente, por suas condições de classe, de etnia, de gênero, etc, e mesmo de gosto, como os apreciadores ou fãs de formas e gêneros de expressão artística.
[28] Chartier, Roger e Cavallo, Guglielmo. 1999. História da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo: Editora Ática.
[30] O parágrafo acima e este produzem um resumo insuficiente, um quadro limitado da situação do cineclubismo no mundo, baseado principalmente em minha experiência e conhecimento pessoais. Fui dirigente da Federação Internacional de Cineclubes durante vários anos e, sem cargos, acompanhei bem de perto sua trajetória neste século. Também fui Secretário Latino-americano da entidade e, mais recentemente, participei de alguns encontros ibero-americanos. Acompanho a situação de muitos países por correspondència com algumas de suas lideranças. A pesquisa histórica sobre o cineclubismo no Ocidente é um dos principais objetos das minhas pesquisas acadêmicas. Cito essa experiência para situar melhor sua extensão, que é também seu limite: da Europa, conheço muito pouco a realidade do que constituiu a antiga União Soviética e países seus aliados. Desconheço quase tudo do Japão, da China e de boa parte da Ásia.. 
[31] De fato muitos, senão a maioria dos principais espaços organizados – em termos de apresentação e narrativa – reorganizam de forma inventiva, com novos recursos, fundamentalmente a mesma cinefilia de culto, promovendo uma “crítica” que apenas reafirma os valores “artisticos” característicos ou tradicionais do cinema comercial.
[32] Ver nota 19, acima.
[33] Conceito desenvolvido mais modernamente por Jûrgen Habermas, a noção de esfera pública (Öffentlichkeit) se refere aos espaços em que repercutem os assuntos públicos, influenciando uma opinião pública, fator político e social de fundamental importância no jogo social. São temas tratados desde a chamada escola de sociologia de Chicago, com John Dewey, Walter Lippmann e Robert E. Park principalmente.
[34] Uma característica essencial e típica dos cineclubes é a sua diversidade, adaptando-se aos mais diferentes contextos históricos, sociais, culturais e tecnológicos, em todo o mundo. Ao mesmo tempo, conservam uma identidade também permanente. Também por isso constituem uma forma paradigmática de organização do público.
[35]Ver os anos 2004 e 2005 na Nova Cronologia do Movimento Cineclubista, http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2018/07/nova-cronologia-do-cineclubismo.html.
[36] Freire, Paulo. 1970: Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Acessível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/paulofreire/paulo_freire_pedagogia_do_oprimido.pdf.
[37] Ver Quem são os inimigos do público? (na prática cineclubista) O evento, o espetáculo e a autoria em: http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2015/08/quem-sao-os-inimigos-dopublico-na.html
[38] A Liga do Ensino (Ligue de l’enseignement) surgiu em meados do século 19 como reação às ameaças – sobretudo da Igreja católica - de retrocesso do caráter laico do Estado conquistado pela Revolução. Com o apoio da maçonaria e, através dela, do Estado, espalhou-se por todo o território francês. Nos anos vinte do século passado, já consolidada como uma ampla rede de inciativas de ensino, de civismo, de esporte, etc., criou uma União Francesa da Obras Laicas para a Educação pela Imagem e Som – UFOLEIS, federação de ações educativas pelo cinema - ou cineclubes - através das redes de ensino públicas e informais. Chegou a ter cerca de 8 mil grupos associados nos anos cinquenta.
[39] A rivalidade entre as iniciativas sociais e culturais da Igreja católica – que também incluíram o cineclubismo e a organização de uma federação própria - e do movimento laico são também centenárias (ver nota anterior) na França; e continuam até hoje.