quinta-feira, 28 de outubro de 2021
Este artigo foi preparado para discussão dentro do grupo de estudos Ponto de Encontro Cineclubista, que reúne cineclubistas e pesquisadores de cinema voltados para o tema. O próprio título do texto foi dado pela reunião que me atribuiu a tarefa. Está pensado para o contexto do grupo. Assim, é um tanto provocativo, pensando nas questões que penso poder suscitar, apesar da relativa brevidade do texto, um debate interessante entre os membros do grupo; também traz várias indicações bibliográficas, mas menos no sentido de justificar as afirmações feitas – como soem ser as referências mais acadêmicas – e sim para fornecer informação para outras pesquisas que tenham a ver com os trabalhos dos companheiros.
Heteroglossia
Falar sobre conceito de cineclube remete à necessidade de esclarecer, inicialmente, o próprio termo. Palavras, como indicou Bakhtin, são os signos principais da comunicação humana, no sentido de que, não sendo os únicos, são os mais gerais e ubíquos: retornamos sempre às palavras para tratar, mesmo na reflexão subjetiva, de toda a realidade, inclusive dos outros signos e sistemas de signos que utilizamos. Mais que isso, o pensador russo mostrou que os signos, ligados à transformação da realidade – o trabalho – e produzidos socialmente, isto é, no terreno da interação social, da intersubjetividade, são sempre, por definição, ideológicos. Cada palavra – ou melhor, ato de palavra – tem um sentido exclusivo a cada enunciação. E a este corresponde outro sentido específico, dado por cada ouvinte. Bakhtin chama esse sentido particular de tema do enunciado, e de significação o sentido que adquire uma maior permanência, adotado num conjunto social mais amplo: de grupos, comunidades, até classes sociais e, eventualmente, numa posição hegemônica mais ou menos estável na própria sociedade. Os dicionários, de fato, organizam a variação, a polissemia da maioria de seus verbetes, segundo uma ordem derivada do uso, ou seja, segundo o uso, a estabilidade dos sentidos das palavras. Para Bakhtin essa polissemia, no limite presente em cada enunciação particular, constitui uma heteroglossia: uma circulação permanente de sentidos diferentes, vozes diversas que interagem dialeticamente no campo social. O enunciado, veículo ideológico de interação social, é sempre parte de um diálogo, dialético. Assim, é também um espaço de luta de classes.
Palavras como cinema, filme ou cineclube revestem-se
de diferentes sentidos e de conteúdos ideológicos muitas vezes contraditórios.
Cinema, por exemplo, vai da mais óbvia identificação com a sala mesma, e/ou com
a atividade de lazer ir ao cinema, até a indicação de diferentes
dispositivos: a indústria do cinema, o campo cultural do cinema, a arte do
cinema. E mesmo a linguagem do cinema. E, como na fala (ou qualquer outra
linguagem adotada pela sociedade humana), os sentidos dos enunciados da
linguagem cinematográfica são igualmente estabelecidos – adotados socialmente
com maior ou menor estabilidade – pelos diferentes níveis do tecido social e,
no limite, pela compreensão individual subjetiva de cada espectador. Que é, por
sua vez, determinada pela sua inserção na intersubjetividade social. Um dos
elementos da variação de sentidos da palavra cinema é a sua repercussão em
diferentes contextos idiomáticos. Em francês – e português –, cinema está mais
associado à primazia dos Lumière e de seu aparato, o cinematógrafo; em
inglês prevalece Edison e seu produto, as imagens em movimento (moving
pictures, depois simplesmente movies). Daí podemos passar para a
palavra filme, também sinônimo de cinema para os anglófonos, que se
consolidou mais como o produto mesmo, a película que era sua base, e depois
assumiu o sentido de produto artístico, veículo da linguagem cinema e,
portanto, para a maioria, consolidado o dispositivo social do cinema, como narrativa.
Mas o filme/película não é necessariamente narrativo – nem nasceu assim, mas
como “simples” ou mecânica reprodução da realidade. Como a grande maioria dos
estudiosos do cinema admitem, a narratividade só se consolidou como sentido
hegemônico no período chamado de institucionalização do cinema, pelo
menos mais de uma década depois das experiências de Émile Reynaud, de Edison, dos
irmãos Skladanowsky ou
Lumière. A concepção de filme como narração é claramente ideológica, e vai mais
além: consolida o modelo comercial de entretenimento, baseado na transposição
de códigos literários consagrados. Hoje, parte dos cultores cinéfilos da aura
do cinema gosta de louvar as “transgressões” ou invenções que fogem aos dogmas
narrativos, esquecendo que a narrativa linear é ela mesma uma imposição do
sistema industrial de produção do cinema.
Cineclube
O mesmo se dá com o termo cineclube, evidentemente. O
conceito de cineclube tem, antes que tudo, um emprego que Gramsci situaria no
plano do senso comum, isto é, da repetição automática e acrítica de uma
ideia mais ou menos vaga, e que não se aplica concretamente aos fenômenos
reais. Em outras palavras, até mesmo os dicionários reproduzem uma mera
descrição empírica e superficial de cineclube: uma reunião de aficionados pelo
cinema. Mesmo essa ideia vaga, no entanto, tem uma origem histórica e
ideológica muito clara: os anos 20 do século passado – cerca de 30 anos depois
do surgimento do cinema – quando as elites intelectuais se apropriaram de
experiências populares contemporâneas do próprio cinema, tornando-as mais
palatáveis ao dispositivo socioeconômico dominante.
Já escrevi, inclusive, sobre as vicissitudes
etimológicas e históricas do termo cineclube, mais recentemente em dois
artigos: O primeiro cineclube? Periodização do cineclubismo – epistemologia
e ideologia e Ainda a epistemologia do cineclubismo, que estão
disponíveis em meu blogue: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/. Esses textos discorrem mais amplamente sobre a
origem do vocábulo cineclube e podem ser de interesse para complementar os
argumentos que uso aqui.
Mas descrever empiricamente o objeto: “cineclube é uma
reunião de gente que se interessa pelo cinema”, elude a compreensão do processo
que resulta na significação do fenômeno. Num cineclube as pessoas se reúnem em
torno de um filme, sem dúvida. Mas como? Para quê? Que tipo de pessoas? Em que
contextos?
As pessoas, em geral, gostam de cinema (ou de seus
muitos “derivados”, em múltiplos suportes ou mídias). Existe uma cinefilia
geral, ou comum, ao lado daquele sentido tão claramente ideológico que
identifica o gosto pelo cinema como apanágio de especialistas, de conhecedores.
Mas as pessoas também gostam de leitura, de pintura, de fotografia, de
histórias em quadrinhos e muitas outras formas de expressão, outras linguagens.
Não é só o cinema que tem seus devotos e suas instituições, no nosso caso os
cineclubes. No final do século 18, principalmente, com um aumento importante na
alfabetização, na urbanização e na expansão do proletariado, houve uma “febre
de leitura” que atingiu alguns setores dessa nova classe social. E eles se
organizaram, em clubes de leitura e bibliotecas populares
(Cavallo e Chartier, 1997), por exemplo. Mas, ainda que hoje existam alguns
clubes desse tipo, certamente estão em estado avançado de extinção – em boa
parte por causa de uma mídia que, um século depois, superou em grande parte o
que e como os livros podiam oferecer: o cinema. Bem antes, as artes visuais
tiveram suas próprias organizações, os salões, depois galerias de arte, que
existem até hoje, mas sempre foram e são instituições de e para privilegiados.
Outros salões – os que Habermas (2014) estudou como esferas públicas – também
cultivavam a leitura, talvez mais a imprensa, e o debate, e foram muito
importantes para a formação de uma opinião pública burguesa indispensável ao
ascenso da nova classe dominante. E assim por diante: diferentes públicos, eu
diria, dão origem a diferentes formas de organização – e, mais ou menos
paralelamente, iniciativas particulares dão origem a empreendimentos de tipo capitalistas,
ou se apropriam de outras, transformadas em iniciativas comerciais. São
reflexos não simétricos, na superestrutura, das mudanças nas relações de
produção.
O que esse parágrafo procura mostrar é que elas –
organizações e instituições – vivem ciclos históricos precisos, mais ou menos
extensos (como até os modos de produção, pelo menos nesta pré-história em que
vivemos), determinados, sem mecanicismos (Williams, 2011, p. 56-58: “culturas
residuais e emergentes”) pela sua adequação ao processo produtivo e às relações
sociais. Praticamente todas elas, neste momento, ou foram totalmente integradas
ao mercado capitalista – como se dá com as instituições de artes visuais – ou,
sem conseguir ligar-se organicamente à outra classe fundamental, tornaram-se
praticamente irrelevantes social e culturalmente, vegetando sem muita
perspectiva em ambientes pequeno-burgueses. Esse é também o caso dos
cineclubes, mas ainda é cedo para entramos nesse tema específico.
O público
Antes de propor uma definição mais abrangente para
cineclube é necessário examinar o conceito de público. Esquenazi (2006), em seu
repertório de estudos do público, encontra uma proposição básica comum: público
é sempre, e se define por ser, público de alguma coisa. Ele vê quase sempre
esse público como uma sociação, termo empregado por Pierre Sorlin (1992,
p. 86-102), emprestado originalmente de George Simmel para descrever uma
reunião mais ou menos efêmera em torno de um evento comum. Alguns autores, que
reconhecem maior protagonismo dessas audiências, compreendem que seus vínculos
possam ser mais extensos do que a ocasião que os reuniu, o público
constituindo-se como algum tipo de comunidade. Mas não conheço nenhum
que trabalhe com o conceito de público como uma categoria social mais
abrangente – à exceção talvez de Kracauer (2009, e Hansen 2004), que fala do público
cosmopolita do cinema, justamente após a institucionalização deste último.
A meu ver, podemos trabalhar epistemologicamente com o
público em três instâncias: o público imediato, audiência e sujeito de
um evento; o público comunitário, compreendido no âmbito de uma
comunidade, como o de uma biblioteca ou mesmo, de forma mais ampla, o público
leitor, o público feminino, o público brasileiro, etc. e, finalmente, o público
moderno, fundado pelas particularidades inéditas do cinema no contexto do
que chamam de segunda revolução industrial ou simplesmente de modernidade (Singer,
2001, Staiger 2005, Albera, 2012), determinando, paradigmaticamente, a
disposição do público das chamadas indústrias culturais. E que, enquanto
categoria, abrange a quase totalidade da população. Corolário deste último,
devemos pensar também em um público contemporâneo, conceito que assinala
a passagem para a mídias audiovisuais. Definem-se os públicos por sua relação
com alguma forma ou meio de comunicação, do evento particular até praticamente
o conjunto da população nos dias de hoje. Com o cinema, o público atingiu
proporções inéditas, tornando-se categoria central no processo de transformação
social. Com a ampliação ainda maior atingida com a televisão e, atualmente, também
com as novas mídias audiovisuais e o mercado audiovisual planetário, o público
praticamente se confunde com o totalidade da população, com o conjunto de
segmentos que constituem um proletariado contemporâneo, constituído pelas classes que não têm acesso
aos meios de sua própria produção simbólica que, hoje, incluem e se confundem
com os meios de comunicação audiovisuais. Marx (2010) já indicava a tendência
de aglutinação da sociedade em duas classes fundamentais e antagônicas. Esse
conceito de público, em minha perspectiva, vai ao encontro de outras
formulações, especialmente as dos cineclubistas italianos Fabio Masala (1986) e
Filippo de Sanctis (1970), autores originais da Carta de Tabor dos Direitos
do Público, da ideia de oprimidos para Paulo Freire (2013), de povo
para Martín-Barbero (2013) ou mesmo da cidadania segundo Canclini (2007).
É o público, em todas essas três instâncias, que dá
sentido ao cinema: enquanto linguagem e, ao mesmo tempo, como mercadoria, ao
reproduzir, no papel de consumidor, as condições da sua produção. O cinema só
existe por causa da existência do público, e este, reversamente, se constitui
como público do cinema. Consequentemente, o mesmo se aplica ao conjunto das
mídias que constituem o dispositivo audiovisual contemporâneo.
Tal como na relação homóloga capital-trabalho operando
dentro do sistema capitalista, o público, a grande maioria da população que não
tem acesso aos meios de produção também de seu universo simbólico, constitui o
polo oposto ao do “cinema” no sentido de capital do cinema, indústria do
cinema, cinema comercial (que existe em função do lucro). Os dois polos opostos
geram instituições que disputam a hegemonia social nesse plano. Toda a
organização do sistema produtivo do cinema, sua divisão em aparatos de
produção, distribuição e exibição, assim como os formatos da linguagem
(narrativa linear, literária) e do produto (duração dos programas,
longa-metragem, ficção, documentário, etc.) e gêneros, entre outras, são
instituições geradas pelo capital. Outras instituições, como os cineclubes, as
cinematecas, o uso do cinema na educação, a experimentação, o cinema amador e
até mesmo, no limite, os cinemas nacionais lá onde não existe uma indústria do
cinema, têm sua origem no público. Estas dependem, em boa medida, de sua
tolerância pelo capital; aquelas, igualmente, mantêm-se apenas na medida em que
o público as reproduz. Ou seja, todas essas instituições estão em conflito
permanente e oscilam ou se modificam conforme a maior ou menor influência
específica de cada polo. Qualquer discurso ou narrativa cinematográfica é, como
qualquer conjunto de enunciados, um espaço de heteroglossia e luta de classes,
segundo o contexto social, momento histórico, etc. O mesmo acontece com as
outras instituições do cinema.
O cineclube pode ser visto, numa perspectiva mais
limitada, como a do modelo elitista, como um espaço opositor ao cinema. Mas essa
é apenas a perspectiva redutora, pequeno-burguesa, de grande parte da
intelectualidade: como na suposta oposição cinema de autor/cinema comercial, ou
da defesa da diversidade geográfica, étnica ou de gênero como opositora à
produção hegemônica. A oposição é, na verdade, mais ampla que essas, mais profunda,
estrutural: o cineclube é um paradigma opositor ao cinema capitalista, é
o embrião, a base da superação dessa forma de dispositivo cultural,
justamente por se constituir como organização do público.
O paradigma do cineclube como organização do
público
O cinema, enquanto dispositivo social, econômico,
cultural, ideológico se constitui no processo de desenvolvimento da reprodução
das imagens em movimento e sua adequação ao sistema das mercadorias. Em outras
palavras, desde a luta pela supremacia de um processo – o cinematógrafo –, até
a consolidação do cinema como mercadoria, seu processo de produção, circulação,
consumo, que envolve a linguagem e outros aspectos. Desde a mítica exibição de
28 de dezembro de 1895 até os nickelodeons; destes até Intolerância, passando
pelo processo de transição ou de institucionalização, que culmina
com a consolidação de todas as mais importantes instituições do cinema.
Homologamente, o público que se espantava com a
novidade das imagens em movimento, em seguida se divertia com a cinematografia
de atrações de feiras e mafuás, depois vaudevilles, teatros de revista e
outros, também encontra uma forma mais sólida a partir dos nickelodeons
e sua audiência mais ampla: a do proletariado, que também estava ainda em fase
final de formação. Mas é apenas no final daquele período, atingindo o que
Kracauer chamou de público cosmopolita (weltstadt publikum), constituído
por um leque social ainda mais amplo, que o cinema constitui, assimila e
domestica seu público. Esse é, então, o público moderno. Cinema e
público se formaram como opostos dialéticos do mesmo processo.
Evidentemente, esse percurso, dos primeiros
kinetoscópios e cinematógrafos até a projeção de longas-metragens nos palácios
de cinema, com a audiência enquadrada por lanterninhas, não foi linear, sem
muitos conflitos. Já falei bastante sobre isso, em artigos esparsos
(disponíveis em meu blogue) ou em conversas virtuais, como as da série Passado
e Futuro do Cineclubismo, no canal YouTube do Cineclube Ó Lhó Lhó. O
cineclube, como outras instituições importantes do par conceitual
cinema-público, se forma desde o início desse processo – e, de fato, suas
origens o precedem, tal como esse processo também não surge do nada em 1895.
Práticas educativas, de proselitismo político ou religioso começaram a empregar
cinematógrafos desde a sua aparição. Logo tornaram-se atividades mais
frequentes, muitas itinerantes, em campanhas contra o alcoolismo, por exemplo,
ou para divulgação dos sindicatos. Nos nickelodeons – e outras salas
populares – a manifestação de formas de descontentamento do público era bastante
comum, levando progressivamente à organização de sessões independentes, em
organizações populares, e em salas mais estruturadas – além da produção de
filmes e noticiários – resultando em novas formas de organização desses
públicos. É, então, em torno dos anos 10 do século passado, entre 1908 e 1913 que
surge uma forma institucional definida: o que hoje chamamos de
cineclube. O Cinema do Povo[1] é o exemplo mais acabado
dessa nova forma de organização.
O cineclube não era uma “reunião de amantes do
cinema”, mas claramente uma forma de organização independente (em oposição às
salas comerciais), anticapitalista, que, na tradição da classe trabalhadora
(Williams, Thompson), se constituía de forma coletiva e democrática para ter
acesso, e mesmo criar, um cinema “que mostrasse a vida real dos trabalhadores”
– como disse um dos organizadores do Cinema dos Trabalhadores (Workmen’s Film
Theatre, 1911, Los Angeles) a jornais da época (Ross, 1999). Daí a minha
formulação das três características essenciais que definem a instituição
cineclube: o caráter associativo e democrático; a ausência de finalidade
lucrativa e o objetivo de se apropriar do cinema – no limite, de criar um novo
cinema, objetivo ligado intrinsecamente ao estabelecimento de uma nova
sociedade.
Essas
três características não se aplicam apenas aos cineclubes que surgiram no final
da primeira década do século passado. Elas são paradigmáticas para todas as
formas de cineclube subsequentes, até os dias de hoje. E mais, elas não apenas definem
cineclube, mas constituem o paradigma que se aplica ou pelo menos influencia
decisivamente, todas as formas de organização do público no campo do cinema e,
ainda, das mídias audiovisuais.
O
processo de apropriação e descaracterização das instituições do público, que
prossegue sempre, atuou fortemente sobre o paradigma criado no início do
século. De uma proposta de subversão radical e totalizante do cinema comercial,
as práticas se dividiram, se desorganizaram em alguma medida, atenuaram seus
objetivos. A criação, identificada com a produção/realização, foi afastada da
organização da recepção, e individualizada na figura do autor/realizador. A
ficção tornou-se o elemento preponderante; corolário disso, a documentação da
vida – da identidade e memória do público – e sua preservação, também se tornaram,
nos anos seguintes, função especializada, isto é, as cinematecas. O aspecto
pedagógico e político da formação do público também foi afastado,
especializado, criando outra linhagem, a do cinema educativo, reduzido inicialmente
ao chamado filme “científico”, e nunca “legitimado” pelo cineclubismo
hegemônico (nos anos 50, dos cerca de 10.000 cineclubes existentes na França,
8.000 eram de uma federação de “cinemas educativos”, a UFOLEIS - União Francesa
das Obras Laicas pela Imagem e Som, fundada em 1933).
Todas as práticas e organizações ligadas a essas
“ramificações” da organização paradigmática do público apresentam, no entanto,
em algum grau, os elementos de associativismo, ausência de finalidade lucrativa
e objetivo de apropriação do cinema. O mesmo já se observa, também, em muitas
das novas práticas de comunicação que chamo de audiovisuais: as rádios e tevês
comunitárias ou piratas, e blogues, vlogues e outros canais de comunicação pela
internet, em que pese o incentivo geral às iniciativas de caráter pessoal
(característica da classe dominante), o controle da chamada propriedade
intelectual e a forma de assalariamento modificada (em contraposição ao
financiamento coletivo) que busca ou efetivamente controla grande parte das
iniciativas de maior repercussão – além dos mecanismos de policiamento de
conteúdo exercidos pelas grandes corporações que controlam esses espaços e por
diferentes agências policiais governamentais
Falência do modelo
Os anos
20 e parte dos 30 estão marcados por esse processo de apropriação,
descaracterização e enfraquecimento das organizações do público –
dialeticamente articulado com a sua difusão internacional. O modelo de certa
forma “atenuado” do cineclubismo transformador, revolucionário, que o
antecedeu, tornou-se dominante e, aceito institucionalmente – com muitas
querelas com a censura – e, mais ou menos tolerado pelo comércio do cinema,
espalhou-se pelo mundo inteiro. Esta última observação deve, no entanto, ser um
pouco relativizada: a região que mais estimulou organizações do público
trabalhador, a União Soviética, foi ostracizada, ignorada em todos os aspectos
pela cultura dita ocidental. A tal ponto que pouco se conhece dos clubes
operários de cinema que, no entanto, formaram a base inicial de todo o cinema
dos países da URSS. Nos Estados Unidos, a outra potência cinematográfica que justamente
se consolida definitivamente (até agora) nessa época, a presença acachapante da
indústria hollywoodiana também obscurece o papel dos cineclubes mais ou menos efêmeros
(com notáveis exceções), também presentes sobretudo nos ambientes proletários e
universitários.
A nova
Guerra Mundial também teve um papel nesse processo de expansão, mas
praticamente interrompendo-o; ele foi, contudo, retomado de forma quase explosiva
logo após o encerramento do conflito. No final dos anos 40 e início dos 50 o
número de cineclubes aumenta exponencialmente na Europa, principalmente, e
também tem um notável crescimento em toda a América Latina. É a “idade do ouro”
dos cineclubes, a retomada criativa da cinefilia elitista, que vai alimentar
uma geração de “novos cinemas” em todo o mundo – inclusive o Cinema Novo
brasileiro. Essa movimentação cultural é também muito influenciada pelas novas
tecnologias de portabilidade e de reprodução do som – num paralelo, talvez, com
o papel que tiveram os “pequenos formatos” de captação e exibição de imagens
nos anos 20.
O ápice
desse processo é interrompido com a disseminação da televisão. Sua difusão muda
bastante o cenário do cinema comercial, induzindo uma reorganização geral –
isto é, a partir do centro que monopoliza o cinema mundial. Com exceção dos
países centrais – Europa e América do Norte anglófona – o cinema se torna um
produto de consumo limitado às regiões e camadas sociais mais ricas. Com outras
formas de consumo audiovisual, que não param de surgir, o processo de
individualização do acesso se acentua, o que ajuda a abalar ainda mais as
práticas cineclubistas elitistas. É o próprio modelo de “adaptação crítica” ao
cinema comercial, de cinefilia de autor, que torna esses cineclubes mais
vulneráveis à expansão econômica e tecnológica do capitalismo. A cinefilia vai
para o terreno do consumo privado. O cineclubismo sofre um impacto importante,
diminuindo muito em número nos países centrais (anos 70) e quase desaparecendo
nos países de médio e baixo desenvolvimento econômico e social. O fato de
muitos países da África e do Sudeste da Ásia alcançarem a independência mais ou
menos na mesma época – nos anos 60 -, de maneira pouco organizada, não apenas
dificultou ou mesmo impediu a consolidação de um movimento cineclubista
próprio, mas na verdade praticamente incapacitou esses países a desenvolverem
um cinema nacional.
Nos países centrais, hegemônicos, o cineclubismo
mantém as mesmas características de sua idade do ouro, mas sem o mesmo impacto
social ou cultural. Tornou-se parte do grande cenário do cinema comercial, uma
forma de cultura residual perfeitamente integrada: fornece um pouco da
diversidade que o cinema comercial não oferece, sem realmente contestá-lo, isto
é, concorrer, de qualquer maneira que seja, com ele. Sob formatos inspirados
nesse modelo, a maioria dos cineclubes de países mais ou menos periféricos
mimetizam esse processo. Mas sem as mesmas estruturas sociais, oferecem uma
espécie de pastiche do cineclube de país desenvolvido: o cinema de autor
praticamente se confunde com o cinema nacional (conceito também
indiscutido) – que não existe como indústria cultural – e a busca pela
originalidade, diversidade e afirmação contracultural se encontra nas produções
amadoras, frequentemente produzidas pelos próprios mentores desses cineclubes,
eles mesmos buscando alguma identificação com a figura mítica do autor.
Aproveitando e adaptando um pouco minha exposição dentro do 1º. Seminário de
Cineclubismos Latino-americanos, de julho deste ano:
“No
Brasil, especialmente, já não se encontram praticamente cineclubes organizados
como associações. Disso decorre um virtual rompimento da ligação com as
comunidades em que atuam, pois elas não estão representadas, para além do
desejo ideal dos animadores dessas atividades, nos ditos cineclubes. Afirmar
que não têm fins lucrativos também perdeu parte do sentido, já que a maioria
depende da sustentação do Estado – paradoxalmente muito pouco presente – ou de
algumas poucas instituições de ensino que, por sua vez, frequentemente
determinam uma parte do seu trabalho, retirando-lhes parte da autonomia. Os
cineclubes mantêm a diretriz de passar filmes relevantes, é verdade, e de
realizar debates, geralmente centralizados numa figura de autoridade: alguém da
produção do filme exibido ou um especialista acadêmico. A relevância do que é
exibido é determinada pelo gosto institucional dessa classe média: o tal do
cinema de autor e um compromisso com o cinema nacional.”
Perspectivas
Aproveitando, ainda, a mesma apresentação:
“Não
é mais possível usar a palavra cineclube com um significado unívoco: seu
sentido se diluiu, perdeu aquela precisão paradigmática – que apenas ronda,
como um fantasma residual, as diferentes práticas que encontramos.
E não
existe ainda uma concepção unitária de como organizar o público, as comunidades
em que vive, para um mundo em que as mídias – que quase por definição, hoje,
são audiovisuais – estão omnipresentes e constituem o principal elemento e
ambiente de mediação das relações sociais no plano simbólico.
Os
cineclubes, e o público, têm diante de si o desafio de se apropriar das mídias
que hoje ocupam o papel que o cinema teve no século passado.”
A falência do modelo cinéfilo e elitista não
significa, em absoluto, o fracasso da instituição cineclube, mas apenas a crise
da concepção pequeno-burguesa e, num certo sentido, “reformista” de cineclube.
Os cineclubes não surgiram, e não se confundem, com lugares de culto à aura
(Benjamin, 1935) cinematográfica e de educação bancária (Freire, 2013) “do
olhar”. Com o dispositivo do cinema como referência, essas primeiras
organizações do público tinham como objetivo propiciar sua expressão através da
então relativamente nova mídia, apropriando-se dela em todos os aspectos:
produção, circulação, recepção, assim como sua aplicação como elemento de
preservação da memória, de promoção da identidade e da autoconsciência
histórica (educação) das classes dominadas sob o jugo capitalista.
Mas o cinema, na
verdade, constituiu apenas o processo inicial do estabelecimento de um
dispositivo mais amplo, das mídias audiovisuais (Elsaesser, 2018); o cineclube
contemporâneo tem, portanto, como objetivo, a organização do público para
que este se aproprie do dispositivo midiático. Diante da crise generalizada: do
modelo elitista, da fragmentação e dispersão de outras iniciativas do público,
da falta de compreensão e direção unitárias diante da situação, além das crises
complementares que afetam outras formas de organização popular, em outros
campos – sindical, partidário, etc. –, o grande desafio do cineclubismo é
encontrar as formas de superação dialética da situação presente. Sob pena de
permanecer numa condição de irrelevância política, social, cultural e de adiar,
de forma importante, a construção de uma sociedade justa, igualitária e livre:
objetivo do qual se origina e que constitui sua maior finalidade.
Procurando resumir
o que na verdade é matéria para muita discussão, o cineclube contemporâneo deve
construir a adequação de sua tradição popular, do paradigma cineclubista, aos
meios de comunicação da atualidade, às mídias audiovisuais. E essa não é uma
questão técnica, mas uma tarefa política que envolve a rearticulação do próprio
cineclube, da sua organização, e de suas formas de integração e
representatividade em relação às comunidades em que se instituiu – além, é
claro, do domínio das técnicas e da capacidade de criar novas formas de
expressão e de comunicação através delas.
Atualizar – no
sentido mais profundo, fazer essa adequação histórica – o cineclube implica na
ressignificação das suas características “tradicionais”. Assim, o caráter
associativo e democrático precisa ser retomado com seriedade, através de formas
de participação e integração permanentes e abertas, e de práticas inclusivas,
que permitam a sistemática incorporação de um público ativo, consciente e
participante. A questão da finalidade não lucrativa deve ser melhor
compreendida, e superado o “gratuitismo” que contamina os cineclubes,
mantendo-os em situação de dependência externa à comunidade, sem condições de
sustentabilidade real e sem os vínculos que deve estabelecer com seu público. Incontáveis
novas formas de sustentação e crescimento podem ser descobertas e desenvolvidas
com os novos meios – além daquelas tradicionais. E a apropriação, claro, deve
incluir a teledifusão, os novos formatos (aplicativos, videogames,
canais web, blogues, vlogues, lives, etc.) e “suportes”
propiciados pela rede internacional de dispositivos cibernéticos (televisores,
computadores, celulares, etc.). A noção ideológica de filme, que comentei mais
atrás, também deve ser superada: a reprodutibilidade técnica e simbólica da
realidade através dos meios audiovisuais inclui, para além do filme de ficção
ou documentário, a reportagem, a entrevista, a captação e difusão de todos os
eventos e espetáculos esportivos e culturais (apresentações musicais, de dança,
bailes, feiras e outras manifestações) da comunidade e de interesse do público
do cineclube. A experiência presencial é
intrínseca e indispensável ao cineclube. Mas, além das exibições retangulares
em salas especiais às escuras, a acessibilidade quase universal aos conteúdos
(sem as limitações da aceitação e reprodução do controle da propriedade
intelectual) permite a organização de outras “salas” e públicos, em outras
disposições, quantidades, sistematicidades e finalidades. Em minha exposição na
série Passado e Futuro do Cineclubismo, no terceiro encontro, justamente,
O Futuro do Cineclube[2],
apresento logo no início uma brincadeira com a história do Cineclube Revolição,
que busca exemplificar mais concretamente como se podem dar essas mudanças e
ressignificações.
Montreal, outubro de 2021, ano II
da Pandemia.
Felipe Macedo
Bibliografia citada
ALBERA, François. 2012. Modernidade e Vanguarda do
Cinema. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). 2014. Marxismo e
Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec Editora.
BENJAMIN, Walter. 1935. A obra de arte na era da
sua reprodutibilidade técnica. http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/02_babel/textos/benjamin-obra-de-arte-1.pdf
CANCLINI, Nestor García. 2007. Lectores,
espectadores e internautas. Barcelona: Gedisa.
CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. 1997. História
da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo: Editora Ática.
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sexta-feira, 30 de julho de 2021
Um guia bem pessoal do 1º. Seminário de Cineclubismos
Latino-americanos
Sendo um dos seus organizadores, assisti ao vivo a todas
as intervenções feitas no Seminário. Foram 33 exposições, em 10 mesas, de
manhã, à tarde e à noite nos três primeiros dias e uma só no domingo, dia do
encerramento. Pouca gente fez isso, o que é natural. O resultado maior do
Seminário foi o de criar um amplo painel de abordagens diversas sobre o
cineclubismo que é, também, permanente, e ficará sempre disponível para
consultas, para retornos às questões, eventuais anotações. É um arquivo
audiovisual do cineclubismo, uma novidade importante, e um marco na própria
história do movimento de cineclubes. Esse arquivo só tende a - e de fato
estimula - o crescimento.
O próprio tema do cineclubismo é bastante
especializado, e o pequeno interesse que desperta - não especialmente no
Seminário, mas em todas as muitas conversas virtuais e debates sobre o assunto que
proliferaram neste tempo pandêmico – mostram não apenas a especificidade do objeto,
mas uma certa indiferença dos próprios cineclubes, que me parece corolário dos
problemas que enfrentam nos dias que correm e aos quais voltarei mais adiante neste
artigo. Embora o Seminário tivesse um escopo continental, atingindo
potencialmente mais de duas dezenas de países – e certamente muitas centenas de
práticas cineclubistas ou que se aparentam, isto é, atividades audiovisuais em
ambientes comunitários, escolares e outros – e ainda que tenha sido bastante
divulgado nas chamadas redes sociais de vários países (mais de 100 mil pessoas
receberam a programação, e foram confirmadas cerca de 8 mil “reações” de algum
tipo nessas plataformas) e difundido simultaneamente pelo Facebook e YouTube, a
presença do público interessado, a cada mesa apresentada, esteve sempre em
torno de 30 pessoas. O fato da FICC (Federação Internacional de Cineclubes) ter
resolvido, literalmente em cima da hora, fazer um Encontro Ibero-americano,
também virtual, apenas alguns dias antes (apesar das datas do Seminário serem
conhecidas desde meados de 2020) também não ajudou. Uma pena. Claro, a
possibilidade de aceder ao evento e às mesas de debates quando a pessoa quiser
e durante o tempo que interessar, podendo zapear por esse espaço, fará
que esses números aumentem consideravelmente nos próximos dias e meses. Esse patrimônio
de informações, reflexões, é o grande ganho do que foi apenas uma primeira
iniciativa do tipo.
Por outro lado, o número de trabalhos propostos e
finalmente apresentados foi surpreendentemente grande. Como já havíamos
estabelecido, com um ano de antecedência, que o Seminário teria 4 dias,
pensávamos inicialmente que faríamos 4 mesas, uma por dia, possivelmente com 3
exposições cada uma. No final tivemos que acomodar os trabalhos em 10 mesas, 3
por dia, e várias delas com 4 apresentações. Ou seja, se o interesse dos
cineclubes pela reflexão sobre a sua própria prática não parece consolidado,
paradoxalmente, na intersecção entre a militância e a vida acadêmica o tema do
cineclubismo parece despertar muita curiosidade e resulta numa produção ampla e
consistente sobre o assunto.
As exposições, claro, foram desiguais – avaliação de
resto sempre subjetiva. Como acabamos de dizer, o interesse pelos temas e
abordagens que integram o “objeto” cineclube é, também, bem diversificada. A
avaliação do Seminário tende a ser, portanto, um reflexo dos interesses e da(s)
experiência(s) do espectador cineclubista. Meu caso, claro, não é exceção. E é
assumindo minhas preferências, ou melhor meus interesses e minhas decepções, que
compartilho esta “leitura” do Seminário.
Raymond Williams e o cineclubismo
Claro que valorizo minha própria intervenção – senão
não a teria feito. E ela me conduz a um dos aspectos que julguei mais
interessantes no Seminário: as aplicações das categorias de cultura residual
e cultura emergente, de Raymond Williams, ao cineclubismo. Usei
esses conceitos para localizar a persistência da influência do modelo de
cineclube elitista dos anos 50 em tantas práticas cineclubistas dos dias
atuais, um efeito cultural residual de contextos históricos superados, que
também poderíamos chamar de ideia fora do lugar aproximando a questão da
conhecida proposição de Roberto Schwarz. Também mencionei que as diferentes
práticas inovadoras no campo do audiovisual comunitário – na verdade hoje mais desenvolvidas
por outras formas de organização dos públicos, não pelos cineclubes – não têm
tido uma repercussão mais significativa na transformação das relações sociais
no plano da cultura, cabendo, assim, em alguns processos que Williams
identifica com cultura emergente.
Mas eu estava pensando muito numa extensão
semântica mais ampla de cultura, isto é, na transformação de tendência
gerais e paradigmas históricos de uma certa amplitude. O que não está errado,
acho eu, mas o trabalho apresentado por Marilin Perez, na mesa 5: Inicios y
Auge de Cine Club Santa Fe: El entramado económico, socio-político y cultural
entre los años 1953-1966 me fez ver com muito mais acuidade a extensão
dialética das categorias de Williams. Perez, ao invés de tratar os
acontecimentos que cercam o surgimento do cineclube de Santa Fé e da cinefilia nos
anos 50 como manifestações de formas culturais estanques, fora de lugar, propõe
e demonstra, justamente, que elas constituíram, naquele contexto, formas
emergentes de cultura, correspondendo às transformações sociais daquele
momento. Tanto que, além de motivarem e mobilizarem centenas e até milhares de
associados do Cineclube, tiveram papel central no surgimento da conhecida
Escola de Cinema daquela cidade, liderada por Fernando Birri, que tanta influência
teria, por sua vez, no desenvolvimento dos novos cinemas latino-americanos, com
destaque para o brasileiro – aqui já são comentários meus. Suas colocações
também enriquecem muito a compreensão que podemos desenvolver sobre todo o
fenômeno da onda de cineclubismo e cinefilia que se espalhou simultaneamente na
América Latina e, de fato, em boa parte do mundo naquele período.
O trabalho de Perez tem uma relação direta com o que
Rielle Navitski apresentou na mesa 1: Programación, públicos y clase social
en los cineclubes latinoamericanos de la posguerra: Una mirada comparativa.
Resumindo bastante, Navistski, tratando do mesmo período, mas com sólida pesquisa
em cineclubes de diferentes países, destaca o caráter contraditório desse
movimento emergente, que era concomitantemente democratizante e paternalista,
mostrando seu inequívoco caráter de classe – da pequena-burguesia
intelectualizada dessa época. É interessante que também a fala de Eliana López,
na mesa 4 - La muerte de la cinefilia y la vida del Cine Club Universitario,
em suas conclusões, também mostre esse paradoxo entre vanguarda e comunidade no
Equador, uma década depois.
Ainda nesse registro, Mariana Amieva e Ana Broitman, na mesa 8, apresentaram o trabalho sobre Redes
cineclubistas en el Rio de la Plata en las décadas de 1940 y 1950, que
mostra outras relações, como a penetração de uma crítica de corte cineclubista
na grande imprensa e suas interfaces com o surgimento das cinematecas da
Argentina, do Uruguai e mesmo do Brasil.
Rafael Zanatto, na mesa 10, fecha, de certa forma,
essa trajetória, trazendo essa problemática – cujo caráter latino-americano o
Seminário ajuda a demonstrar – para o Brasil com sua intervenção sobre Paulo
Emílio e o Cineclubismo no Brasil (1958-61): Formação, difusão e pesquisa
histórica. Entre muitas outras observações importantes, ele recuperou a
crítica que Paulo Emílio Salles Gomes, em meio ao próprio fenômeno, fazia dos
exageros artificiais e alienados de uma certa cinefilia de distinção social,
que também é observada (mas agora feita com distanciamento histórico) na
crítica presente nos outros trabalhos aqui citados. A ligação que Zanatto faz
entre o trabalho de Paulo Emílio e o cineclubismo, e como o situa no contexto
histórico e cultural do período estudado labora no mesmo sentido das outras
intervenções citadas e provoca muitas outras reflexões sobre o papel dos
cineclubes na sociedade naquele momento. Por exemplo, aponta as relações
causais entre o cineclubismo e o surgimento do estudo de cinema nas
universidades. Além, claro, das origens (tardias) das cinematecas
latino-americanas também a partir de cineclubes.
Haveria muito mais a dizer dessas intervenções, que
estão entre as mais importantes do Seminário, mas meu objetivo aqui é mais
resenhar um pouco, propor ligações entre as abordagens e, sobretudo, motivar os
leitores deste texto a aproveitarem diretamente essa discussão, disponível no
canal YouTube do certame.
Outros temas
Diferentemente de outras lives que têm
discutido o cineclubismo nas redes “sociais” do senhor Zuckerberg (Facebook) ou
da companhia Alphabet (YouTube), o Seminário não selecionou alguns
especialistas para discutir um determinado tema, mas fez uma chamada aberta de
trabalhos – durante cerca de um ano – para discutir amplamente o cineclubismo
na América Latina, com abordagens diversificadas. Isso não retira o mérito de
outros debates, mas tem alguns que lhe são próprios, até aqui exclusivos: o
Seminário aproximou experiências de dez países do subcontinente, que propuseram
seus próprios interesses. Isso revela muita coisa sobre o cineclubismo, tanto
pelos assuntos abordados como pela ausência de outros. Também tem a qualidade
de descobrir, de certa forma, experiências, tratamentos e mesmo talentos que
não faziam parte de nenhuma rede ou grupo já conhecido. O Seminário, sobretudo,
aproximou a produção acadêmica do ambiente cineclubista, o que pode beneficiar
a ambos.
Algumas intervenções feitas nesse encontro são de
fundamental interesse e importância. Eu resenhei algumas, que me atraíram
particularmente, pelas questões abordadas e pela qualidade das pesquisas e
apresentações. Mas diversos outros temas também me interessaram e agradaram e,
certamente, serão mais ou menos atraentes para outras pessoas, com interesses
diferenciados. Tentarei indicar e resumir alguns outros temas que julgo
relevantes.
Mulheres e cineclubismo
Apenas dois trabalhos que abordam essa questão foram
enviados para o Seminário. Ambos são pesquisas mais ou menos em andamento, já
que cineclube é um tema muito recentemente legitimado pelos estudos
acadêmicos e a questão de gênero, tal como na teoria feminista, como recorte do
cineclubismo, está ainda mais em sua fase inicial. Os trabalhos foram
apresentados na mesa 3.
Ainamar Rodagut estuda o papel de três mulheres no que
se conhece melhor como início do cineclubismo na Argentina e no México: Mujeres
iberoamericanas mediadoras y sus redes en los cineclubes de finales de los años
20 y 30: Lola Álvarez Bravo, Victoria Ocampo y María Luz Morales. Sua
pesquisa visa propor a ideia de redes de relacionamento como base para uma
abordagem metodológica e categorial do papel das mulheres no cineclubismo, em
qualquer escala. Tal como se poderia aplicar aos cineclubes anarquistas ou
católicos, por exemplo. Uma pesquisa de muita qualidade.
Já Priscila Sales apresentou o delineamento inicial de
sua pesquisa doutoral sob o título de Mulheres no cineclubismo brasileiro
(1970 e 1980). A abordagem de Sales revela a importância da Dinafilme –
distribuidora de filmes orgânica do movimento cineclubista – no estabelecimento
de interfaces entre cineclubes feministas, filmes cujo tema principal era a
mulher e até as poucas diretoras de filmes dessas duas décadas. Um trabalho
pioneiro e indispensável.
As duas intervenções, cada uma à sua maneira, são
muito interessantes e suas apresentações foram bem instigantes. Ainda que
também mostrem um estágio inicial do tratamento de uma questão tão fundamental,
elas têm indiscutivelmente o mérito de despertar curiosidade e disposição para
ampliar e aprofundar esse tipo de trabalho. E mostram que isso já começou e que
vai bem.
Hiperconexão e pedagogia cineclubista
Outro tema que julgo primordial é o que chamo de
pedagogia cineclubista. Não se trata de ensino de cinema ou com cinema, mas do
estudo do papel particular, próprio e exclusivo que penso caber aos cineclubes
na formação do público e, muito especialmente, da infância. A questão não é a
formação com cinema, nem mesmo com as mídias que o substituíram e superaram
como mediação social, mas da formação das pessoas, indivíduos e comunidades,
para sua participação consciente na sociedade, o que não pode prescindir do
domínio da capacidade de se instruir, se comunicar e se exprimir através das
mídias. Foi na mesa 9 que se fizeram as principais exposições sobre o tema da
educação em suas relações com o cineclubismo.
Apenas o trabalho de Altayra Rojas - Lenguaje
cinematográfico e hiperconexión, una experiencia desde la educación y la niñez –
foi direto a esse ponto. E o fez de forma muito pedagógica, digamos assim, já
que nos ofereceu uma excelente introdução ao assunto, e um comentário sobre os
principais teóricos da atualidade nesse campo: Henry Jenkins, Pierre Levy e
Alberto Scolari - sem esquecer seus antecessores, em muitos sentidos: Lev
Vigotsky, Jean Piaget e Paulo Freire. Como moderador da mesa, sugeri a ela que
lembrasse também o papel essencial de Mikhail Bakhtin na explicação do processo
social de formação dos sentidos (dos signos), que tem muito a ver com os três
últimos autores citados.
Milene Figueiredo apresentou seu projeto de tese - Histórias
sobre crianças e cineclubismo: a ressignificação do cineclubismo escolar -
que, para mim, apresentou, ou propôs, outra perspectiva fundamental: o ensino
fora da escola, ou o estudo das interfaces entre escola e comunidade. A meu
ver, é preciso ressignificar tanto a escola quanto o cineclube. O trabalho de
Figueiredo aponta substancialmente nessa direção. Em outra mesa, a 10, Paula Cherep y Santiago Santillán mostraram, em Resistir,
mostrar, reflexionar. El ciclo de Cine y Filosofía como experiencia de
extensión cultural um aspecto da mesma reflexão, agora aplicado no ensino
superior, no que chamam de extensão cultural, conceito que tem um
significado diferente do mais usual nos meios universitários no Brasil. Sidimar
Brandolt completou a mesa com Cineclube: um novo olhar, para um novo pensar sobre o
uso do cinema em sala de aula no IFFAR (Instituto Federal Farroupilha), campus
de São Vicente do Sul (RS).
Práticas transformadoras e presença da Venezuela
Gizely Cesconetto também apresentou, na mesa 5, um
delineamento do seu projeto de tese, no campo da Geografia cultural. O objeto é
seu próprio cineclube e o recenseamento dos cineclubes brasileiros que estão
realizando. Acompanho esse trabalho bem de perto e creio que ele se apresenta
como uma ferramenta indispensável de reconhecimento da situação concreta
dos cineclubes brasileiros no momento presente. Cesconetto explica que essa
pesquisa se dá em dois níveis: o do mapeamento objetivo e o do
auto-reconhecimento subjetivo dos cineclubes. Para mim isso é fundamental para
o debate não apenas das práticas desses cineclubes, mas também para a
identificação de suas necessidades e interesses comuns, num momento de
desorganização do movimento cineclubista e mesmo da sociedade civil, numa
conjuntura de reação e atraso político e social do País. Esse trabalho é ou representa
simultaneamente uma tese, um cineclube, uma prática específica e uma ação
política.
Juan Manuel Hernandez, por sua vez, na mesa 8,
apresentou uma visão do cineclubismo bem ampla, geográfica e historicamente: Reconociendo
nuestra mirada al cineclubismo. Uma reflexão teórica que deita raízes numa
longa experiência prática pessoal do venezuelano Hernandez, participante e
criador – desde o século passado – de um cinemóvil, um tipo muito
especial de cineclube itinerante, que invade e ocupa temporariamente ruas e
outros espaços de comunidades, trazendo ações que envolvem outras mídias e
mesmo outras formas de expressão: do teatro até um aparelho que Hernandez criou
que permite “entrar” nos televisores das comunidades “invadidas”.
A Venezuela constitui uma questão em separado. O
processo político radicalizado e polarizado determina claros posicionamentos
dos cineclubes daquele país. Nancy de Miranda, na mesa 2, apresentou um quadro
bastante completo da evolução das atividades comunitárias com cinema - Venezuela:
Apreciación y Realización Audiovisual Comunitaria 2007- 2019 – sob a
direção da Cinemateca Nacional, isto é, do Estado venezuelano. Embora muito
diferente da nossa experiência, na análise desse trabalho pode-se encontrar
muitos traços comuns com o que vivemos no Brasil, de forma bem incipiente, com
o programa Cine Mais Cultura.
A presença da Venezuela, em contraste com muitas
experiências e discursos mais conservadores que o Seminário também mostrou,
trouxe obrigatoriamente a reflexão da atividade cineclubista para o campo
social e político.
Outros temas
Como já disse, a avaliação dos trabalhos que faço é
bastante determinada pelos meus interesses pessoais de pesquisa e do processo
subjetivo que me leva a extrapolações talvez nem sempre pertinentes, mas que
para mim são inspiradoras, me estimulam e levam a novas conjecturas e
reflexões.
Nesse sentido, é preciso citar o trabalho de Julio
Lamaña, apresentado na mesa 1: Protohistoria de los públicos. Asonadas, disturbios y otras manifestaciones del
público de cine en Colombia. Lamaña
faz uma espécie de recenseamento de vários autores que tratam dos primeiros
tempos do cinema na Colômbia, abordando também as manifestações dos públicos
nas primeiras décadas dessa história. Além do anedotário muito interessante dos
distúrbios provocados pelos públicos insatisfeitos, Lamaña indica a relação de
inadequação latente entre os possíveis interesses do público e os da indústria,
mais particularmente dos exibidores. Esse trabalho, a meu ver, demonstra ou
pelo menos indica, que “há vida” nos públicos antes dos anos 20 (casos da
Argentina, Brasil e México) ou a partir dos anos 50 nos demais países. Ao
contrário de uma historiografia ideológica que só consegue reconhecer o
cineclubismo, isto é, o público organizado, nessas datas completamente
dissociadas das experiências de outros países. Países esses que, aliás, só
recentemente começam a entender isso, como na recente proposta da Federação
Portuguesa de Cineclubes, que sugere o surgimento do cineclubismo em 1907 – mas
isso já é outra discussão. Os estudos que informaram essa apresentação mostram
que não há desculpa: existem fontes a serem pesquisadas na busca das primeiras origens
do cineclubismo nos países latino-americanos.
Outro trabalho muito interessante foi apresentado por
Gabriel Álvarez, na mesa 10: Carlos Monsiváis y la cinefilia universitária.
Trata-se do que eu chamaria de uma crônica investigativa: uma apresentação
breve – como o Seminário obrigava – do papel de Carlos Monsivais na formação de
uma cultura cinematográfica (que Álvarez identifica como cinefilia) no meio
universitário mexicano. Monsivais é um nome e uma obra que precisam ser melhor
conhecidos. Muitos o associam aos chamados Estudos Culturais Latino-americanos,
junto com Jesús Martín-Barbero, Nestor Canclini e alguns outros. Mas Monsivais
tem uma trajetória diferente, principalmente como jornalista e crítico em
diferentes mídias: foi uma figura nacional no México. Lembro de João do Rio, um
contexto completamente diferente, quando penso em Monsivais. Mas é verdade que
ele tem um papel muito importante na valorização da cultura popular e na tomada
de muitas posições em situações políticas que viveu e enfrentou.
A última exposição foi a de um cineclubista de gênero.
No sentido cinematográfico do termo. Um fã de filmes fantásticos, de heróis e
monstros, como Christian Aguirre chamou sua intervenção: De dibujos, monstruos y héroes: El Cine
Club Nocturna. De certa forma foi um fecho de ouro para o Seminário, porque
o que ele nos apresentou foi uma série de imagens evocativas desses temas, dos
filmes de ficção, de terror, de animação. Pessoalmente, acho que essa prática
de fandom, como muitos a chamam, tão típica de nossa tradição
cineclubista e do culto cinéfilo, são totalmente válidas, mas atendem sempre a um
aspecto da ação cineclubista. Hoje, com as tecnologias digitais que tanto
facilitaram a obtenção e exibição de materiais específicos, isso pode ser
oferecido como uma entre outras atividades do cineclube. Como um grupo
de estudos, que nesse caso pode ser bem agradável e divertido. Como foi essa
apresentação.
Cultura residual
Essa identificação das persistências do modelo
“tradicional” ou hegemônico do cineclubismo dos anos 50 na atualidade é uma
visão minha. Não foi dita ou assumida por ninguém mais durante o Seminário e
não deve ser inferida dos comentários que faço neste artigo. De fato, creio que
o Seminário revelou, para além das preleções aqui lembradas, uma grande – senão
prevalente – presença de uma concepção cinéfila de cineclubismo, ligada à
“educação do olhar”, uma atitude tutorial diante da formação do público, e de
culto diante do cinema. Como já destaquei, poucas intervenções falaram de
outras mídias – aqui me lembro apenas de Altaira Rojas e Juan Manuel Hernandez
(mas, é claro, o tema não cabia mesmo em muitos dos trabalhos apresentados). E,
de forma surpreendente, creio que nenhuma falou de produção, de realização de
filmes ou outros materiais audiovisuais por cineclubes. Isso também é muito
revelador, e se inscreve entre as várias reflexões que o Seminário pode sugerir.
Para mim, esses traços que mencionei constituem uma
cultura residual, ou seja, formas superadas pela realidade, pelo
desenvolvimento das relações sociais, que não correspondem mais ao contexto
atual. Mas que sobrevivem, pela força excepcional (quer dizer de exceção) de
algumas instituições ou, o que é mais comum, de forma precária, sem qualquer
impacto social ou cultural.
O fato de representar esse tipo de sobrevivência
excepcional não retira a importância de algumas experiências que construíram,
ao longo de décadas, uma tal inserção na comunidade, que continuam a ser muito relevantes.
É o caso mais que importante do Cineclube de Santa Fé – e, por consequência, do
Cineclube de Reconquista – que continua sendo uma referência na cultura da cidade
e da região. Tanto que foi objeto de três trabalhos (mesas 5, 6 e 10 – além da
mesa 7, com o Cineclube Reconquista) apresentados no Seminário, todos muito
interessantes.
O Seminário, enfim, mostra que a proposição de um
debate amplo e democrático, organizado com o rigor que essas duas
características – alcance e democracia - exigem, é capaz de revelar
descobertas, aprofundar conhecimentos e propiciar novas reflexões não apenas
com as posturas com que nos identificamos, mas, com a mesma intensidade, com aquilo
que achamos equivocado, e que nos leva a imaginar outras análises, soluções.
Iguais oportunidades de participação e liberdade de
debate são indispensáveis para que a organização da sociedade avance. Um
cineclube também se baseia nesses princípios, não?
julho de 2021, ano II da Pandemia
terça-feira, 22 de junho de 2021
Cineclubes? Presentes!
500.000 mortos, e provavelmente mais uns 30% não comunicados devidamente. O que é “30%”? São outros 150.000. Mortos. Certamente vamos ultrapassar os Estados Unidos em mais um ou dois meses: seremos campeões! Pátria amada, Brasil!
Foram cerca de
18.000.000 de contaminados – também subestimados. Os especialistas avaliam que
cerca de 15% destes – quase 3.000.000 - estão sequelados, em diversos níveis de
gravidade, e levarão meses para se recuperar. Isto é, os que se recuperarem,
pois alguns – uma minoria, ora, desses 3.000.000 - terão problemas permanentes.
Haveria que se contar igualmente os que sofrem de outras doenças ou precisam de
intervenções ou tratamentos hospitalares e que morrem por falta de atendimento,
de vagas em UTIs e de outros procedimentos clínicos. Aí também morreram
centenas de milhares. Quantas pessoas são atingidas afetivamente, moralmente,
financeiramente por esses “números”? Quantas famílias perderam sua principal
fonte de sustento? Quantas crianças ficaram órfãs? Milhões...
No entanto, fora desses “poucos” milhões atingidos diretamente – no total “apenas” uns 10 ou 15% da população brasileira – estamos tratando essa questão como estatística mesmo, como números abstratos, como um tsunami que acontece na China, um terremoto na Indonésia, países onde as vidas valem pouco no ranking do capitalismo global, no mundo controlado, explorado e desprezado pelas classes dominantes dos países euronorteamericanos brancos, cristãos. Como nós, que estamos adormecidos, insensibilizados, ou de tal forma explorados que praticamente não podemos oferecer resistência. O mesmo acontece com o outro genocídio, esse permanente, secular, de negros, de pobres, de miseráveis, da população LGBTQIA+, das mulheres... Os vulneráveis como se gosta de dizer, os dispensáveis, os invisíveis, que são, no nosso País, mais de 70% da população. Os jornais dão como notícia quase corriqueira que, neste último ano e meio, 52% da população brasileira tiveram, pelo menos, “alguma dificuldade” para se alimentar! 10% passam fome mesmo!
Eu sabia, ao começar a escrever este texto que, além da emoção por tantas mortes evitáveis, estaria também preso a uma certa obviedade, uma repetição de comentários sobre o que todo mundo que poderá ler isto já conhece, já sente. Mas que talvez não esteja conseguindo transformar em ação real, política, na direção absolutamente indispensável de derrubar esse aprendiz de ditador e levá-lo, junto com seus asseclas, à justiça e à prisão.
Às vezes o óbvio se esconde em plena vista. Vivemos numa pandemia. Vivemos no país do Bolsonaro. Muita gente se indaga se haverá um golpe. Ora, que ele, o Bozo, pensa o tempo todo em articular um golpe é evidente. A sua capacidade de fazer isso pode ser debatida, mas a intenção é indiscutível: e é certo que haverá violência – com sua provável derrota nas urnas, mas possivelmente até mesmo em caso de vitória (argh!). Seus seguidores: o movimento fascista; os PMs ressentidos e seus primos, os milicianos; setores das forças armadas (cuja extensão ignoramos); os facínoras armados com mais de 1.000.000 de fuzis, pistolas e revólveres postos em circulação por este governo, vão sair por aí atirando. Em pessoas. Matando, como fazem em seu cotidiano de policiais sanguinários e/ou em seus sonhos ressentidos de machos inseguros. Não estamos em um normal da pandemia ou da pós-pandemia; é uma emergência, é preciso agir! Agora!
Não há tempo a perder: tempo é morte no Brasil
Então lanço um apelo: não é hora de “alfabetizar o olhar”, de discutir linguagem[i]. É urgente mobilizar consciências! Nós, cineclubes, temos que engrossar esse movimento de avanço da consciência democrática e transformadora. Não há tempo a perder: tempo é morte no Brasil. O papel dos cineclubes, nesta hora, é muito importante. Não é por isso que fazemos cineclubismo, ainda que de formas e com concepções diferentes? Pela vida.
Os debates, as lives precisam mobilizar as mais amplas parcelas do público! Não é hora de debater Bergman, mas sim de desnudar o nosso aspirante (por enquanto) a Pinochet. A linguagem cinematográfica, importante sem dúvida, fica para depois da tragédia, na reconstrução. Oficinas de formação, ou para participar de editais, devem ser articuladas com a organização e mobilização da resistência: não é uma coisa técnica.
É hora de fazer uma programação política, combativa, comprometida com a causa da defesa da democracia e da vida. Bem sei que não é o filme que resolve isso, é o debate. Mas desconfio que essa linha de trabalho, neste momento, com filmes que remetam à discussão do que todos estamos vivendo, provavelmente reunirá mais público, aproximará muito o cineclube e a comunidade.
Creio ainda que esses debates, com o público ou entre cineclubes e redes, devem ser realmente interativos, deixar fluir livremente as opiniões e as emoções (porque o Brasil nos emociona): essas lives com um grupinho de convidados que fala, em que os participantes – o público – só pode escrever comentários no chat, deveriam ser realmente interativas. Todos devem poder falar, mesmo sob o que alguns veem como risco de perder um pouco o controle, a ordem. Afinal, que ordem se está querendo preservar?
Os cineclubes, que hoje incorporaram a capacidade de produzir, precisam documentar nossa tragédia em sua própria comunidade. Encontrar suas manifestações locais, documentá-las, divulgar, denunciar, discutir com suas comunidades. Para além das construções mais elaboradas dos documentários, os noticiários e cinejornais são uma tradição dos cineclubes operários dos anos 20 e 30 (as Ligas de Cinema dos Trabalhadores, que existiram em todo o mundo, por exemplo), que se estende pelos grupos militantes latino-americanos, do Cine de Base argentino até o Grupo Ukamau, da Bolívia, ou o Chaski, do Peru, hoje em dia. Como foram atingidas as famílias locais, que ações de solidariedade material e proteção sanitária foram criadas pela comunidade? O público gosta de se ver na tela, como todos sabem; a questão real é que o público deve ocupar as telas! Deve ser o sujeito das suas narrativas.
Uma outra tradição cineclubista e proletária, que vem até de antes, do século 19, é a dos Tribunais. Hoje a gente descreveria esses tribunais como performances, teatralizações de temas: problemas, ou indivíduos e organizações que os provocam, que afetam as comunidades. Monta-se um tribunal, com juiz(es), advogado(s) de acusação e de defesa, e testemunhas. Provas são apresentadas e discutidas; os jurados são o público[ii]. A questão em julgamento pode ser o Bolsonaro ou outro político, o combate à pandemia, um caso de racismo, um abuso... O que, enfim, o cineclube decidir que é relevante, oportuno. Uma variante de tribunal pode ser a organização de uma CPI – uma Comissão Popular de Inquérito – com atores (pessoas da comunidade ou mesmo profissionais) representando diferentes figuras: o Pazuello, a Capitã Cloroquina, o Renan Calheiros, os senadores bolsonaristas e por aí afora. Além disso poder ser realizado virtualmente, como na CPI do Senado (e em muitos tribunais de verdade), filmes e matérias jornalísticas podem intercalar as intervenções, constituir provas.
Bom, essas são apenas algumas sugestões, contribuições se ajudarem de alguma forma: a imaginação dos organizadores e a participação do público é que determinam o acerto e o sucesso de todas essas iniciativas que, de certa forma, ousei propor. Peço desculpas pelo texto longo, mas talvez muito incompleto; é em boa parte um desabafo diante dessa indescritível tragédia em que se transformou nosso País.
Abaixo Bolsonaro!
Vacinação para todos!
Auxílio emergencial digno até que
todos estejam vacinados!
junho de 2021, Ano
II da Pandemia
[i] Todas essas expressões:
“alfabetizar o olhar”, discutir linguagem ou “programar Bergman” são
simplificações que não devem ser entendidas literalmente, mas como uma
provocação e uma incitação a uma prática mais politizada, também no sentido
mais amplo – e, ao mesmo tempo urgente - deste termo. Trata-se de articular os
recursos e os saberes dos cineclubes, como estes puderem organizá-los, para
ajudar a promover uma mobilização social suficiente para deter este presidente
genocida e combater a pandemia. Só o povo organizado...
[ii] Há uma cópia ruinzinha, mas que
vale muito a pena ver, do filme Tribunal Berta Lutz, do João Batista de
Andrade, cobrindo o tribunal organizado por feministas e pelo Cineclube Nós
Mulheres, em 1982: https://www.youtube.com/results?search_query=tribunal+berta+lutz