Ícones da atitude cineclubista (cartaz dos anos 80) |
reflexões meio pessoais sobre cineclubismo e organização do público do audiovisual
A contradição cineclubista
e a reconstrução
do cineclubismo
A
publicação de um edital do estado do Rio de Janeiro para “cineclubes,
atividades de formação e festivais”[1],
que regula a aplicação da Lei Paulo Gustavo, escancara o que estou chamando de contradição
cineclubista. É um fenômeno análogo ao da chamada dissonância cognitiva, em
que as ações de uma pessoa não correspondem a suas crenças e valores, mas que aqui
está estampada na formulação e regulamentação especialmente da Lei Paulo
Gustavo (que se observa também em outros textos legais relacionados ao
cineclubismo). Na verdade, essa dissonância, paradoxo ou contradição se
manifesta também na própria realidade dos cineclubes.
O
edital fluminense é especialmente importante porque esse estado é
historicamente central na organização institucional e política do cinema
brasileiro, sede de várias das entidades mais importantes da produção
cinematográfica e de algumas repartições públicas também fundamentais para a
“indústria”. Além disso, os cineclubes do Rio de Janeiro têm igualmente uma
história muito significativa e influente, tanto localmente como dentro do
movimento cineclubista nacional. Certamente várias características desse edital
constituirão exemplo e serão reproduzidas em outros estados, e também
municípios, Brasil afora[2].
Já a
contradição cineclubista consiste no fato de que as atividades que se
identificam como cineclubes atualmente no Brasil não são mais cineclubes
segundo a legislação brasileira. E a aplicação de um programa de política
pública para cineclubes – o referido edital – é virtualmente impossível. Essa
contradição, na verdade, perpassa todo o universo cineclubista: ela está
presente e é central igualmente para a própria organização dos cineclubes e especialmente
para a sua união em entidades representativas locais ou nacionais. A
manifestação formal da contradição é o fato de que cineclubes são
necessariamente associações (até por isso o termo clubes), coletivas,
e não iniciativas individuais. Para que o Estado as reconheça legalmente, isto
é, para que possa formular políticas públicas para os cineclubes, essas
associações precisam ter alguma forma de constituição legal, tradicionalmente o
registro em cartório, hoje em dia sobretudo o CNPJ. Mas, mais que isso, para
comprovarem que são associações constituídas de acordo com a lei, também
precisam comprovar que são associações sem fins lucrativos – que não são
empresas comerciais, que distribuem seus resultados entre os associados - e que
são regidas por normas democráticas, isto é, em que os responsáveis são
escolhidos (eleitos) pelo conjunto dos associados, e substituídos da mesma forma
periodicamente. Precisam, ainda, ser abertas, isto é, suas regras devem estabelecer
condições para a entrada de novos sócios: não podem ser grupos fechados. Isto é
uma definição sucinta e simplificada de associação. Ora, quantos
cineclubes você conhece que são organizados dessa forma? Quantos cineclubes
podem apresentar CNPJ e a documentação de sua mais recente eleição, de acordo
com seus estatutos? No edital em questão há a previsão de 32 entidades
contempladas com o que considero pequenos valores (como sempre, muitíssimo
inferiores às quantias destinadas a outras atividades). O Rio de Janeiro é um
estado com várias iniciativas cineclubistas, algumas bem conhecidas de muitos
de nós. Será que, todas juntas, somam 32 entidades constituídas conforme a legislação?
Mas a
contradição é mais profunda, e generalizada. O canal YouTube do Conselho
Nacional de Cineclubes Brasileiros/CNCB – grupo que pretende representar os
cineclubes de todo o País – tem uma definição do que devem ser os cineclubes[3]:
“uma sociedade organizada que reúne apreciadores de cinema para fins de
estudo, debate ou lazer e onde se exibem filmes de interesse cultural”. Diz
ainda que qualquer pessoa pode participar de um cineclube, “desde que aceito
pelos demais associados, em conformidade com seus estatutos,
regimento ou carta de princípios”.
Uma publicação ainda mais recente - Cineclubismo – Organização e
Funcionamento[4]
também aborda a questão, salientando que “a atividade cineclubista
exige um esforço coletivo continuado para que haja uma prática democrática, com
transparência e ética”. Posto isso, “nem sempre precisa haver a
formalização da pessoa jurídica” (ambos os trechos sublinhados são de minha
iniciativa). No entanto acrescenta: “O que dificulta a ausência de um CNPJ é
que o cineclube não vai concorrer em editais nem estabelecer convênios,
participar de editais públicos e privados.” Nos dois exemplos se reproduz,
de certa forma, uma postura do cineclubismo brasileiro adotada nos anos 70[5]:
a de que os cineclubes devem ser atividades associativas, organizadas
democraticamente, com formas de participação claras e sujeitas a avaliação
pública. A sua formalização estritamente jurídica se insere em um plano
diferente, ou seja, a de participação no processo político e administrativo formal:
a capacidade de beneficiar-se das chamadas políticas públicas. Para a
colaboração organizada com outros cineclubes o registro formal é opcional, o
que importa é a democracia. Até aqui estou me repetindo.
A
questão mais essencial é que a quase totalidade das iniciativas e práticas que
se reconhecem ou se denominam como cineclubes deixaram de ser associativas – e,
portanto, democráticas -, frequentemente dependentes exclusiva ou
principalmente de uma única pessoa ou de grupos limitados, sem uma participação
decisiva das comunidades a que se dirigem, mais do que propriamente integram.
Há várias outras questões ligadas a essa situação, mas vou desenvolver mais
esse ponto.
A
referência ao CNCB serve para mostrar que uma organização nacional de
cineclubes é, nestas condições, uma contradição, virtualmente impossível: como
organizar uma entidade nacional com cineclubes constituídos de forma
associativa e organizada, se eles praticamente não mais existem? Cabe a mesma
pergunta: quantos cineclubes ditos “membros” do CNC estão constituídos “em
conformidade com seus estatutos, regimento ou carta de princípios”? Não é,
portanto, uma mera questão tecno-legal. Cineclubes sem alguma forma de
associação responsável – isto é, de participantes que decidem –, com regras de
conhecimento público, não são organizações dos públicos, como definem a
Federação Internacional de Cineclubes e a conhecida Carta de Tabor dos
Direitos do Público[6].
Não são comprovadamente “sociedades organizadas”, democráticas, transparentes
nem éticas. Para se constituir em uma entidade federativa nacional, é preciso
que tenham uma forma de organização comum, com transparência na sua
representação que, por sua vez, será a forma decisiva de deliberação e gestão
(eleição) de uma direção nacional. Essa é a contradição cineclubista atual:
social (porque os cineclubes têm quase nenhuma ressonância popular ou
cultural), política e legal.
Truculência
ou truque?
Por
que, e como, os cineclubes, que durante décadas se organizaram sem grandes polêmicas
segundo as regras descritas mais acima[7],
passaram à informalidade e à inexistência legal? Esse processo começa,
acredito, no governo FHC, sendo continuado e até agravado nos subsequentes
governos petistas. Mais que um problema governamental, no entanto, penso que
correspondeu a um progressivo crescimento do peso da burocracia nas
administrações públicas, levando a uma complicação formal desnecessária e ao encarecimento
dos processos legais de reconhecimento das organizações da sociedade civil. Em
outras palavras: os cineclubes normalmente se registravam em cartório, através
de seu representante formal (geralmente o presidente), apresentando os
estatutos e as atas das assembleias de constituição e eleição de suas direções.
O custo disso não era inalcançável pelos cineclubes organizados dessa forma.
Talvez mais importante ainda, os cineclubes eram imunes tributariamente,
isto é, dispensados de todo e qualquer imposto, já que não têm fins lucrativos
– isto é, como dizia a Lei 5.536[8]:
não era permitida a “distribuição de lucros, bonificações ou quaisquer
vantagens pecuniárias a sócios, mantenedores e associados”. Hoje, esses
custos aumentaram consideravelmente, proporcionalmente à burocracia dos
processos de registro: é preciso que um advogado assine estatutos e atas para
que seja feito seu registro – pelo que ele provavelmente cobrará – e há toda
uma série de registros, cadastros, com respectivos emolumentos e impostos. Até
nas quantias referentes a apoios, prêmios, etc.,
de parte do próprio Estado, se descontam impostos! A essa burocratização e
precificação das próprias funções do Estado se soma um processo bem mais
complexo e generalizado de desorganização dos setores populares, das entidades
representativas de bairro, sindicais, etc.
Claro, a informalidade é mais fácil – mas também nociva. “Pra baixo todo santo
ajuda”, diz a sabedoria popular...
Diante
do fato consumado da desorganização formal (e real) de parte da sociedade civil
– mas sempre pensando aqui nos cineclubes - as políticas públicas dos governos
petistas criaram uma virtual ilegalidade que, no entanto, vigeu mais ou menos
até agora: criaram a possibilidade de pessoas físicas representarem o
que seriam suas comunidades diante dos programas públicos. Foi como “apagar
incêndio com gasolina”. Criou-se uma espécie de categoria social: o especialista
de edital, capaz de suprir individualmente não apenas os conhecimentos técnicos
para tratar da burocracia, mas igualmente passando a representar – de fato,
substituir – a entidade e, por extensão, a comunidade. O resultado final desse
processo foi a desarticulação quase total do cineclubismo, finalizando uma
trajetória mais complexa que traz à atual realidade de informalidade.
Acredito
que a ilegalidade flagrante, evidente, da “pessoalização” da representação das
comunidades ficou patente e, por isso, voltou a existir, nos editais atuais,
exigência da organização formal na relação com o Estado. Dada a naturalização
do processo de informalização e desarticulação dos cineclubes, isso pode parecer
uma certa truculência para quem se acostumou com a situação anterior, muitas
vezes incapaz de compreender seu caráter ilegal do ponto de vista jurídico e
institucional e os efeitos nocivos social e culturalmente. Ou, como perguntamos
antes: quantos cineclubes são organizados de forma associativa e democrática?
Também
como já foi dito: a resposta muito pessimista à questão escancara o fato de que
não existem, ou são bastante raros, cineclubes assim constituídos. Assim,
parece ter sido criado um truque, uma saída para o que pareceria uma imposição
truculenta: delegar a representação do cineclube (a categoria prevista
na lei Paulo Gustavo), que precisa ter personalidade jurídica (exigência do
Código Civil, que se lhe sobrepõe), a uma entidade terceira, que tenha CNPJ.
Essa comporta de emergência, fragílima do ponto de vista legal (pode ser
denunciada por qualquer instituição que se sinta prejudicada pelo “truque”
legal), foi inserida como anexo, exclusivo para cineclubes, no Edital do Rio de
Janeiro. O que parece diferente, mas na verdade reintroduz o mesmo fenômeno
desagregador do cineclube. Ou talvez seja até mais grave: pode criar novas
formas de dependência. Embora essa “transferência de responsabilidade” possa, na
provisão do edital, se dar com qualquer entidade que possua CNPJ, algo me diz
que as mais compreensivas seriam provavelmente as empresas produtoras. Mas há mais
aspectos nisso, é ainda mais grave. Vamos analisar isso mais em profundidade?
A
hegemonia do cinema e do “autor” sobre a organização das comunidades (e no
dinheiro público)
Um
cineclube não é simplesmente um espaço (real ou virtual) de exibição de
filmes ou quaisquer outros conteúdos audiovisuais. Essa visão ideológica
corresponde aos interesses da produção, seja a do cinema mais
industrial, comercial, profissional (daí, em boa parte, a bandeira do cinema
nacional), ou a independente, autoral ou amadora. Dessa forma, o cineclube
consiste no ato, no evento de exibir um filme (seguido de debate com
realizadores ou outra forma de autoridade ideológica), preferencialmente
nacional. É uma forma – substitutiva - de mercado, num país em que mesmo o
chamado cinema comercial não se realiza no mercado de troca de mercadorias, mas
na própria produção: a quase totalidade dos filmes de longa metragem
brasileiros (uma das maiores “indústrias” do mundo) não se paga na exibição em
salas: a remuneração de seus realizadores – o conjunto dos envolvidos na
produção – é feita na fase de captação de recursos públicos diretos, indiretos
ou de renúncia fiscal. E uma pequena participação privada. O mesmo se dá com os
outros patamares de produção, com exceção de um segmento muito pequeno de
produções totalmente alternativas. Os festivais de cinema - com exceção
de alguns poucos, em outra categoria de importância, mais voltados à produção
internacional -, igualmente mantidos pelo mesmo sistema público, se tornaram os
principais espaços de divulgação da produção que não encontra outros canais de
exibição. No Edital de que vimos falando, os festivais receberão um valor
1.100% superior ao destinado aos cineclubes. E estes, reduzidos a simples ações
de exibição, supostamente sem custos de qualquer natureza (exceto a remuneração
de curadores ou outras autoridades e, claro, eventualmente, de direitos
autorais), aparecem no Edital como ações de exibição previstas para até 4 meses
(item III do Objeto), nada mais. Um ciclo, diríamos antigamente... Penso que é
bem evidente o que chamo de hegemonia do cinema e do autor na concepção
e na proposição do edital. De fato, de toda (se é possível empregar esse termo)
a política nacional para os cineclubes.
De
fato, até Célio Turino, um dos formuladores e gestores das políticas públicas
que incluíram cineclubes nos governos Lula, hoje denuncia o que chama de editalização
da cultura[9], que
descreve como um instrumento de competição e de exclusão a serviço do capitalismo.
Mas creio que ele não mostra como a editalização das leis as adapta segundo
esse traço ideológico. No caso do campo audiovisual – incluídos os cineclubes –
é a hegemonia da produção. Outro sintoma, pequeno, mas significativo disso é
que a Lei Paulo Gustavo fala sempre em audiovisual, e particularmente no item
III do § primeiro do art. 8º - que regula todos os elementos desse edital -; no
entanto, o referido edital nunca menciona a palavra audiovisual, substituída
sempre por cinema. É o cinema que manda.
A
reconstrução do cineclubismo
Cineclube
é uma organização do público que se utiliza dos meios audiovisuais,
principalmente, para promover o entretenimento, a autoformação, a memória, a
identidade e a expressão desse público. A questão central, no cineclube, não é
o cinema (ou quaisquer outras mídias), e sim o público. O cineclube é a
instituição audiovisual da comunidade – entendendo-se comunidade como todo
grupo de pessoas com características, necessidades e anseios comuns, como
moradores de um mesmo território (bairros, cidades, etc.), grupos de
identidades diversas (étnicas, profissionais, de gênero, de classe, etc.) ou os
que partilham interesses variados (por temas, estilos, culturas, etc.).
O
cineclube, na sociedade, tem uma constituição dual. É uma organização
cultural, social, política e representativa em seus escopos determinados,
isto é, no campo das expressões simbólicas audiovisuais[10].
Concomitantemente, é também - sobretudo para fins de reconhecimento
institucional e participação em políticas públicas – uma entidade do campo
audiovisual, isto é, a que concernem todas as mídias audiovisuais e
digitais contemporâneas e as que venham a ser, eventualmente, criadas. O
cineclube pode e deve ser apoiado, estimulado pelo Estado tanto como
organização comunitária, como em seus projetos e atividades mais
especificamente audiovisuais. Esses dois aspectos estão separados na Lei Paulo
Gustavo, que exclui os cineclubes de várias atividades e necessidades,
considerando-os apenas no item III do Art.6º - este que determina o escopo do
edital fluminense – e alijando-os da produção (item I) e até mesmo da
manutenção de salas de cinema (não confundir com cineclube!), até as
itinerantes (item II), sem falar de novas formas de exibição (item IV).
Cineclube é uma sessãozinha de cinema. Ou um ciclo de filmes de quatro meses...
Para
reconstituir o tecido de um movimento social e cultural – o movimento
cineclubista – é indispensável recuperar as suas células, os cineclubes. É
preciso, então, restabelecer a organização democrática de cada cineclube, ainda
que isso dê bastante trabalho. É mais cômodo pensar o cineclube como exibição
e debate: com os recursos digitais atuais é uma atividade que requer pouco
esforço, quase nenhum custo e, claro, alguma disponibilidade pessoal e de
tempo, nada mais. Já uma atividade que reúna uma comunidade, que organize
diversas atividades além de exibições (como arquivo, produção, eventos
comunitários, etc.) e as administre de forma
participativa e democrática, é bem mais trabalhoso. Cineclube não é, ou não
deve ser, um passatempo, uma atividade eventual, um hobby fácil e
prazeroso. A satisfação que traz é, ou pode ser, bem mais significativa. Mas
essa gratificação é, também, proporcional ao trabalho que envolve, que significa.
Assim,
uma das primeiras tarefas da luta dos interessados em desenvolver o
cineclubismo, é criar melhores condições para sua organização formal. Ora, já
vimos que não é possível organizar uma federação cineclubista, regional ou
nacional, que tenha existência real, democracia comprovável, representatividade
orgânica, se os próprios cineclubes não as têm. No entanto, subsiste uma
cultura, alguns chamam de atitude, um interesse cineclubista. E um campo social
e popular que necessita desse tipo de ação e organização. Assim, um primeiro
passo é reunirmos um Fórum Nacional de Cineclubismo e Audiovisual Comunitário –
eventualmente como conclusão de um processo de fóruns locais e/ou regionais.
Esse
Fórum, informal e aberto a todas as pessoas e iniciativas coletivas interessadas, seria um primeiro espaço possível para o
reconhecimento da realidade concreta das práticas cineclubistas e de animação
audiovisual comunitária. E a partir dessa identificação, se poderia construir
uma base de interesses comuns, dos quais decorram reivindicações objetivas.
Anexos
Anexo I - Lei Paulo Gustavo[11]
“A chamada lei Paulo Gustavo se define como uma medida emergencial. Proposta como um conjunto de ações em tempos de pandemia, irá vigorar apenas nos últimos meses de 2022[12] (paradoxalmente já um tanto fora desse contexto pandêmico). Mais que isso, como mais de 70% (2,797 bilhões) dos seus recursos são destinados ao audiovisual - esse termo bastante impreciso - e desses quase três bilhões, outros 70% (1,957 bilhão) irão diretamente à produção de cinema, o caráter emergencial da medida consiste, na verdade, na recuperação dos recursos perdidos pela produção cinematográfica brasileira[13] durante o atual desgoverno. Não se trata de comunidade, mas de mercado – que também é importante para a cultura nesta fase.
Outros recursos (1,65 bilhão) irão para os setores que
não sejam audiovisuais, conforme o parágrafo terceiro do Art. 8º da Lei:
É vedada a utilização dos recursos previstos neste artigo para a realização
de ações voltadas ao setor audiovisual nos termos do art. 5º. O tal do
artigo 5º, na verdade, traz a relação de valores (do total de 3,862 bilhões)
para cada atividade, e remete ao artigo 6º, que é importante destacar aqui para
os nossos objetivos cineclubistas. O artigo 6º lista as ações emergenciais que
deverão ser apoiadas. Juntando os dois (5º e 6º) para nossa contribuição, as
áreas e valores são:
I – o apoio a produções audiovisuais, de forma
exclusiva ou em complemento a outras formas de financiamento, inclusive aquelas
com origem em recursos públicos ou financiamento estrangeiro (1.957 bilhão);
II – o apoio a reformas, restauros, manutenção e
funcionamento de salas de cinema, incluindo a adequação a protocolos sanitários
relativos à pandemia da covid-19, sejam elas públicas ou privadas, bem como
cinemas de rua e cinemas itinerantes (447,5 milhões);
III – a capacitação, a formação e a qualificação no audiovisual,
o apoio a cineclubes e
à realização de festivais e mostras de produções audiovisuais, preferencialmente
por meio digital, bem como a realização de rodadas de negócios para o setor
audiovisual, para a memória, a preservação e a digitalização de obras ou
acervos audiovisuais, ou ainda o apoio a observatórios, publicações
especializadas e pesquisas sobre audiovisual e ao desenvolvimento de cidades de
locação (224,7 milhões); e
IV – o apoio às micro e pequenas empresas do setor
audiovisual, aos serviços independentes de vídeo por demanda cujo catálogo de
obras seja composto por pelo menos 70% (setenta por cento) de produções
nacionais, ao licenciamento de produções audiovisuais nacionais para exibição
em TVs públicas e à distribuição de produções audiovisuais nacionais (167,8 milhões).
Mas
tem mais: 1,65 bilhão, como já dissemos, vai para setores não audiovisuais. E
aí fica clara uma das grandes confusões que enxarcam essa legislação – e
remetem a um problema central dos cineclubes. Se não atuarmos com firmeza nas
frentes políticas locais de negociação dos nossos projetos, essa confusão vai
nos prejudicar bastante. Voltaremos a isso no item “Análise da Política Aldir
Blanc”, mas aqui já indicamos que este trecho da lei, paradoxalmente, sugere
que várias dessas ações não audiovisuais sejam promovidas através da
internet e gravadas. Os cineclubes estão na parte do audiovisual, e
expressamente vetados aqui, mas poderiam muito bem ser compreendidos dentro
desta seção da Lei Paulo Gustavo, art.8º. § 1º, que visa:
I
– o apoio ao desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia
solidária;
II
– o apoio, de forma exclusiva ou em complemento a outras formas de
financiamento, a agentes, iniciativas, cursos ou produções ou a manifestações
culturais, incluindo a realização de atividades artísticas e culturais que
possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes
sociais e outras plataformas digitais e a circulação de atividades artísticas e
culturais já existentes; ou
III
– o desenvolvimento de espaços artísticos e culturais, microempreendedores
individuais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas,
instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas
atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social para enfrentamento
da pandemia da covid-19.
Desta forma, e como a Lei induz e determina o entendimento dos cineclubes como parte do segmento dito audiovisual, só estaríamos aptos a demandar recursos (da alínea III do art. 6º) no valor de 224,7 milhões, divididos entre os estados e municípios e com as outras atividades previstas nesse item: festivais, formação e outras. No fim seguramente não será muita coisa.
No entanto, como os recursos serão geridos entre os
estados e os municípios (50% para cada nível) os cineclubes podem exercer uma
pressão social e política maior nessas instâncias – sobretudo em seus
municípios – e, dessa forma, argumentar que também se qualificam para todos os
três subitens referentes a atividades não audiovisuais...
Os demais artigos da Lei Paulo Gustavo descrevem
genericamente seus objetivos, fontes de recursos e outros temas que não
levantam questões mais discutíveis aqui no nosso escopo.”
Anexo II - A História se repete[14] (o pessimismo da inteligência[15])
“As palavras iniciais do primeiro capítulo de O 18 Brumário de Luís Bonaparte[16] viraram uma citação bem conhecida: a História se repete, pelo menos duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa. Aplicando, bem resumidamente, seu uso na atualidade cineclubista brasileira, podemos dizer que a tragédia teria sido o período anterior de Lula, com o governo que mais se preocupou – e, provavelmente, o que mais investiu – no movimento de cineclubes. E, paradoxalmente, foi dos que mais prejudicou esse setor da cultura, cooptando, desestruturando e depois abandonando os cineclubes tornados inteiramente dependentes não apenas das verbas – de resto pouco significativas – mas até das iniciativas, da direção mesmo, oriunda do Estado. Houve um estímulo importante e um abandono e queda ainda mais significantes. Claro, isso não teria acontecido sem a participação voluntária dos próprios cineclubes e de suas direções, nacional e regionais. Hoje, os cineclubes não mais podem ser reconhecidos por suas características mais “tradicionais”: o caráter associativo e democrático, a autonomia (isto é, o oposto de dependência), a autossustentabilidade, a atividade sistemática e a participação social e política. Essa contradição, aliás, está presente em “cartilhas”, oficinas, lives e outras orientações que, no clima de otimismo com o governo (e suas possíveis verbas), que já se instala, repetem “cânones” cineclubistas dignos dos anos 50 – mas praticamente nenhum cineclube brasileiro corresponde a esse modelo. Cineclube, hoje, é “exibição e debate”, com pouca ou nenhuma sistematicidade; é iniciativa individual ou de muito poucos, que geralmente também atinge apenas públicos muito reduzidos.
A possível repetição farsesca será a reprodução da distribuição de kits de projeção para centenas ou milhares de indivíduos, agora sem uma Programadora que oriente sua relação com o público, já que o acesso a conteúdos audiovisuais - na contracorrente da apropriação proprietária de empresas produtoras e realizadores - é tendência cada vez mais dominante nas relações do público com as mídias. De fato, essa “orientação” ou controle da programação será substituído pelo expediente dos direitos autorais: atividades só permitidas, ou orientadas, com autorização dos detentores desses “direitos” – aliás, geralmente constituídos com financiamento público. O Governo já criou cargos em comissão para responsáveis pelos cineclubes – sem qualquer consulta a um movimento que, apesar dos esforços do CNCB (ver o período entre 2010 e 2019), não têm uma real representação ou organização nacional. De fato, na realidade, com cineclubes sem estrutura organizacional não é possível uma representação formal: uma entidade nacional de cineclubes é impossível atualmente. O Estado, reproduzindo seu comportamento anterior em outra realidade, tentará substituir essa representação através das Conferências Nacionais (cuja análise não vou fazer aqui, mas que não conseguem representar os públicos, apenas os autores ou artistas dos mais diversos tipos). Muito possivelmente, o Estado criará – como já fez com os Pontos de Cultura – ou “estimulará” enfaticamente estruturas e organizações ajustadas às “políticas públicas”. E, encurtando estes comentários, poderemos ter mais uma política, leis e programas de curta direção, baseados e dependentes quase exclusivamente do Estado, e que podem desaparecer junto com a mudança de administração. Isso aconteceu com a passagem do governo Lula para a gestão de Dilma Roussef, sua mais confiável seguidora. Em 2026, com Lula octogenário, há uma forte possibilidade de se repetir o fracasso do seu segundo governo quanto aos cineclubes. Mas numa realidade bem diferente, em que a comunicação experimenta uma revolução digital e midiática. E em escala muito maior, com “cineclubes” ainda mais desnaturados e uma desorganização mais ampla e, talvez, mais definitiva. Uma farsa, que pode ser bem trágica.
O otimismo da vontade
Não cabe aqui, certamente, tratar em toda sua extensão e complexidade as propostas necessárias ao restabelecimento do cineclubismo como movimento cultural e social. A própria concepção de cineclube precisa ser revista, antes de mais nada pelo reconhecimento da primazia do público, das comunidades – ou seja, das relações sociais reais - em relação ao discurso semiológico abstrato do cinema. Isto posto, é indispensável o reconhecimento das profundas transformações dos meios de comunicação, a revolução digital e a constituição dos espaços virtuais. Em síntese, que o cinema, ferramenta apropriada pelas organizações do público no final do século 19, e que ocupou um papel fundamental na intermediação das relações sociais até meados do século passado, foi superado por formas mais dinâmicas e mais amplas de comunicação, desde a televisão até a rede mundial de computadores. As mídias audiovisuais em conjunto, como dispositivo social, têm uma presença infinitamente maior e um papel hoje preponderante na própria mediação das relações sociais, da produção da vida à produção da cultura.
As difíceis, quase insuperáveis tarefas concretas que
desafiam os cineclubes brasileiros – e de todo o mundo – envolvem a
reorganização de seu caráter associativo democrático, mas efetivamente
enraizado nas comunidades e movimentos populares. A constituição de uma ampla
rede de participação e colaboração entre cineclubes compreendidos como instituições
audiovisuais das comunidades pode ser parte do processo de transformação do
Estado, de constituição de um Estado em transição para uma sociedade mais
democrática e justa – e nesse sentido deve participar e propor a direção das
políticas culturais públicas dos governos, e não simplesmente seguir diretrizes
elaboradas em gabinetes.
Como já foi dito, um “movimento” de “clubes” de uma
pessoa só, ou de pouquíssimos participantes, sem regras democráticas e sem
inserção popular, não pode ser base para a constituição de uma instituição
nacional representativa. Ou será artificial, fraudulenta ou no máximo
corporativa, reunindo individualidades que pretendem incorporar uma
representação simbólica, imaterial, irreal.
O longo, árduo caminho que as iniciativas e pessoas
que hoje se interessam genuinamente pelo cineclubismo, tem que começar por
formas de reconhecimento, de questionamento honesto de sua condição e das
formas de superar suas fraquezas e deficiências, aproveitando a legislação –
especialmente a Política Nacional Aldir Blanc – para constituir cineclubes
organizados, autônomos, com espaços próprios dentro das mais diversas
comunidades. E, como hoje as iniciativas que se reconhecem como cineclubes
assumem as formas mais diversas, inclusive entre si, ou são simplesmente
iniciativas individuais, a única forma de iniciar esse processo de forma
inclusiva e abrangente é o estabelecimento de um Fórum Nacional de Cineclubismo
aberto a todos[17]: uma
instância informal de circulação de ideias e debates que podem evoluir para
propostas e, no ritmo possível, ajudar a constituir cineclubes integrais de um
novo tipo, base para um movimento organizado em escala nacional.”
[1] Disponível em http://cultura.rj.gov.br/wp-content/uploads/2023/09/LPG-Edital-de-Apoio-a-Difus%C3%A3o-e-Forma%C3%A7%C3%A3o-Audiovisual_-FINAL_18092023-2.pdf.
[2] Embora eu não
tenha examinando mais em detalhe editais de outros estados – e, menos ainda,
dos municípios – penso que eles trarão a mesma contradição,
eventualmente sob diferentes apresentações.
[4] Figueiredo, Hermano; Barbosa,
Regina Célia e Seabra, Carlos. 2023. São Paulo-Recife: Oficina Digital e Vento
Nordeste
[5] Antes disso, entre os anos 40
e 90, era meio que “natural” que os cineclubes se organizassem de forma
estatutária e se registrassem nos cartórios. E note-se que ainda não havia a
instituição do CNPJ nem propriamente políticas públicas para o cineclubismo.
Essa questão organizativa e jurídica, internacionalmente, já estava posta
claramente mesmo antes do reconhecimento de cineclubes (como geralmente se
entende hoje), na famosa Lei 1901, daquele ano, na França, que estabeleceu as
associações civis sem fins lucrativos e previa seu registro jurídico,
reconhecendo, no entanto, explicitamente, a possibilidade (e não a legalidade,
claro) das entidades organizadas de maneira mais informal. Creio que essa lei
influenciou as legislações da maioria das democracias liberais do mundo.
[6] Acessível em https://observacine.wordpress.com/campanha-mundial-pelos-direitos-do-publico/direitos-do-publico/
[7] Um comunicado da Federação
Paulista de Cineclubes, de março de 1983, recentemente disponibilizado, é um
bom exemplo do que era a prática corrente no movimento cineclubista brasileiro.
Acessível em https://drive.google.com/file/d/1xEZq2yRnfhyK6BzGlCWjJr2pzAG2yf1f/view
[8] A lei 5.536, de 21 de
novembro de 1968, havia sido criada para regular “a censura de obras teatrais e
cinematográficas”. Apesar da data sombria – próxima da edição do AI-5, na
ditadura – sua origem reoercutia outro contexto, anterior, de conquistas
relativas dos meios culturais. Daí que criava várias exceções à Censura – que
era uma instituição naturalizada mesmo antes da ditadura – beneficiando, em
especial, os cineclubes e cinematecas. É a lei que melhor definiu cineclubes e
sobre qual se basearam, ainda que de forma indireta, todas as demais
disposições legais sobre cineclubes (Resolução 64, do Concine, de 1981 e a
Intrução Normativa 63, da Ancine, de 2007). Dizia a lei, sem seu Art. 5º. - A
obra cinematográfica poderá ser exibida em versão integral, apenas com censura
classificatória de idade, nas cinematecas e nos cineclubes, de finalidades
culturais.
Parágrafo único. As cinematecas e cineclubes referidos neste artigo
deverão constituir-se sob a forma de sociedade civil, nos termos da legislação
em vigor, e aplicar seus recursos, exclusivamente, na manutenção e
desenvolvimento de seus objetivos sendo-lhes vedada a distribuição de lucros,
bonificações ou quaisquer vantagens pecuniárias a dirigentes, mantenedores ou
associados.
[9] Acessível em A
editalização da Cultura – Cultura e Mercado
[10] Não caberia estender aqui a
questão, entretanto, fundamental: as mediações sociais na sociedade contemporânea
são feitas principalmente pelas mídias, que atingem praticamente a totalidade
da população mundial. E essas mídias são, essencialmente, mídias digitais
audiovisuais.
[11] Trecho extraído de A
Política Nacional Aldir Blanc, de agosto de 2022 – íntegra disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html
[12] O texto é de 2022. Sua
vigência foi estendida até o final de 2023.
[13]
Nos anos imediatamente anteriores ao desgoverno atual (Bolsonaro), os recursos
aplicados pelo Estado na produção de cinema eram de pouco menos de 1 bilhão de
reais anuais, numa aproximação superficial. Assim esses quase 3 bilhões
equivalem mais ou menos, e coincidentemente, com os recursos perdidos durante a
(falta de) gestão atual. (dados Folha de São Paulo) – nota do texto original.
[14] Trecho extraído da parte
final, “Conclusões e perspectivas”, de Novíssima Cronologia do Cineclubismo
Brasileiro, disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2023/09/novissima-cronologia-do-cineclubismo.html
[15] “Pessimismo da inteligência e
otimismo da vontade”. Essa espécie de dístico aparece algumas vezes nos
escritos de Gramsci (Gramsci, Antonio. 1999. Cadernos do Cárcere. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira): “é preciso atrair a atenção violentamente
para o presente assim como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da
inteligência e otimismo da vontade”. Ou: “O único entusiasmo
justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a operosidade
inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a
realidade existente”. E ainda: “é preciso criar homens sóbrios,
pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e que não se
exaltem por qualquer tolice. Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade.”
(apud Lelio la Porta, verbetes “otimismo”, p. 595-596 e “pessimismo”, p. 621,
em Liguori, Guido e Voza, Pasquale (orgs.). 2017. Dicionário Gramsciano.
São Paulo: Boitempo)
[16] Marx, Karl.1969 (1852). Le 18
Brumaire de Louis Bonaparte. Paris : Éditions Sociales.
[17] Não há que ignorar o Conselho
Nacional de Cineclubes Brasileiros (ver os anos 2019 e seguintes); inclusive o
grupo deverá promover mais uma Jornada, ainda neste ano, e desta vez com apoio
do governo federal. Se não reconheço sua representatividade nacional, nem vejo
consequência nas propostas que tem apresentado, penso, contudo, que é uma
iniciativa que se inscreve dentro da realidade cineclubista brasileira atual.
E, como tal, também pode contribuir significativamente em um Fórum como o
proposto.
Novíssima Cronologia do Cineclubismo
Brasileiro
Notei que minha Nova Cronologia do Cineclubismo
Brasileiro tem sido relativamente bastante lida no saite academia.edu, onde
tenho uma conta, ou perfil, com vários textos. Essa Nova Cronologia é um
texto relativamente recente, de 2018, uma revisão de outro texto, a Cronologia
original, de 2005. O fato desse texto estar sendo bastante acessado, a evolução
das minhas pesquisas sobre o assunto – que traz algumas informações novas – e,
talvez mais importante: a superação do governo criptofascista de Bolsonaro e a
provável retomada das políticas dos governos Lula para os cineclubes tornou, a
meu ver, necessária a revisão do texto e a proposição desta Novíssima
Cronologia do Cineclubismo Brasileiro.
Introdução
Em 2005 organizei uma Cronologia do Movimento Cineclubista Brasileiro, publicada no
primeiro saite que mantive, abandonado há muito (mas que ainda pode ser
acessado em http://cineclube.utopia.com.br/). Como eu dizia numa espécie de introdução, o texto
era muito baseado na minha memória pessoal – e um pequeno acervo de textos
próprios – e, portanto, sujeito a reparos de todo tipo. Também lembrava que até
então só existiam dois textos sobre a história do cineclubismo no Brasil: um
meu, Movimento Cineclubista Brasileiro,
um livreto publicado em 1982 pelo Cineclube da FATEC (SP), e o verbete de André
Gatti na Enciclopédia do Cinema
Brasileiro, de F. Ramos e L. F. Miranda, lançado no ano 2000. No entanto,
já começava um fenômeno surpreendente: uma pletora de trabalhos – de conclusão
de graduação, dissertações, teses e dezenas de artigos – que, segundo pesquisa
de Gizely Cesconetto[1],
passam de 250 atualmente! A maioria desses trabalhos trata do uso do cinema e/ou
cineclube na educação; muitos avaliam casos, experiências diversas de
cineclubes. São mais raras as pesquisas realmente históricas sobre o
cineclubismo e temas conexos – como sobre a própria história da educação com
cinema – mas é bastante comum que os trabalhos tenham uma parte introdutória
que resume a trajetória histórica do cineclubismo, no mundo e no Brasil. Essas
introduções formam uma espécie de doxa inconteste, repetida e
irrefletida. E equivocada.
Podemos resumi-la: os cineclubes teriam surgido nos
anos 20 do século passado, por iniciativa sobretudo de Louis Delluc (às vezes
também se cita Ricciotto Canudo). Delluc, aliás, teria criado o termo
cineclube, em seu conhecido Journal du Ciné-club. A partir dali os
cineclubes se espalharam por todo o mundo. Depois da 2ª. Guerra Mundial tiveram
um grande impulso. No Brasil, os cineclubes começam em 1917 com o Paredão,
grupo de jovens precursores, que uma década mais tarde seriam redatores e
críticos de cinema nas primeiras publicações nacionais sobre cinema. Como na
Europa, também na década seguinte – 1928 – é criado o primeiro cineclube de
fato, o Chaplin Club, no Rio de Janeiro. Depois, só em 1940 surge outro
cineclube, o Clube de Cinema de São Paulo, que é fechado pela ditadura Vargas e
reabre com a redemocratização, cinco anos depois. A partir daí há um ciclo de
cineclubismo que vai estruturando o que constituiria um verdadeiro movimento
cultural. De lá para cá os fatos são mais conhecidos e resumi-los vai ficando
mais difícil (estão no corpo da Cronologia).
Bem, tudo isso, esses resumos, apontam para uma
ausência praticamente absoluta de pesquisa, uma repetição em loop,
acrítica, de leituras anteriores. Isso não é apanágio exclusivo brasileiro;
ainda que um pouco mais atenuado, o fenômeno também se manifesta numa literatura
histórica cineclubista mundial, uma expressão que também não é real: afinal,
o cineclubismo não é – ou não é quase – um tema legítimo para a teoria mais
tradicional ou o suficiente para ter uma historiografia e uma autonomia
própria, constituir uma disciplina. Essa doxa, contudo, é um amontoado de
repetições equivocadas, tanto no que se refere ao Brasil como em escala
mundial.
De 2005 para cá, minha compreensão do cineclubismo,
sob todos os aspectos, mudou muito. Pesquisas que venho realizando há uns 15
anos me levaram à descoberta de dados e fatos históricos que modificam
profundamente uma visão “tradicional”, elitista e colonizada em nossas terras –
como vejo hoje com clareza - e, no entanto, ainda preponderante, do que seja o
cineclubismo. Estes estudos, porém, são ainda incipientes, sobretudo em relação
ao Brasil. Além das dificuldades inerentes às pesquisas sobre cineclubismo -
isto é, o caráter associativo deste, frequentemente anônimo, marginal, de
memória oral, entre outras características -, a preservação das fontes é muito
precária, em nosso País especialmente, e a pesquisa existente poucas vezes vai
além da experiência histórica diretamente accessível. Pelas mesmas
características, não há quase preservação e digitalização de fontes pouco
“tradicionais” – como publicações de movimentos populares ou dos próprios
cineclubes. No meu caso particular, o fato de residir no Canadá e, hoje
afastado da Universidade, não dispor de recursos ou apoios para a pesquisa in
loco nos poucos arquivos brasileiros existentes, dificulta muito minhas
pesquisas. Mas não as impede: trago vários acréscimos a esta novíssima Cronologia, o que é uma das razões
principais para “publicá-la”.
A versão da Cronologia que escrevi e divulguei
em 2018 tem tido um número importante de leitores, considerado o tema. Minhas
pesquisas mais recentes mudaram uma vez mais minha visão e os dados que
descobri sobre os primeiros anos de cineclubismo no Brasil. Sinto que devo a
esses interessados uma atualização. Por outro lado, o distanciamento temporal
em relação aos anos mais recentes daquela Nova Cronologia, assim como a
evolução da minha própria concepção teórica sobre cineclubismo, e cineclubismo
brasileiro, também trazem novas perspectivas para o relato e avaliação destes
anos mais recentes. Finalmente, entre 2018 e hoje (meados de 2023) aconteceram
dois fatos históricos extremamente importantes: o fim do governo criptofascista
de Jair Bolsonaro e o início da árdua tarefa de reconstrução democrática
centrada no talvez mais importante personagem da história da República, Luís
Inácio Lula da Silva. As políticas públicas referentes ao cineclubismo ou
práticas semelhantes estão apenas anunciadas, mas apontam para um período no
mínimo bastante movimentado para essas iniciativas. Resolvi, portanto, comentar
ao final as perspectivas contemporâneas do cineclubismo brasileiro. Tudo isso
se soma para justificar esta Novíssima Cronologia.
Teoria e História do Cineclubismo
A centralidade do público
A falácia do surgimento dos cineclubes nos anos 20 do
século passado, com seu corolário místico, a cinefilia, colocou um antigo
movimento emancipatório do público como subproduto, como uma extensão do
cinema. O público é mais amplo, existe independentemente do cinema – e a
recíproca não é verdadeira. De fato, a palavra aponta para as formações
coletivas que vão assumindo um aspecto moderno – isto é, dentro do capitalismo,
em que se constituem. Pode-se, talvez, situar as primeiras formas de público
moderno com a disseminação da alfabetização nos países centrais e o
desenvolvimento de um hábito popular de leitura[2].
Richard Butsch[3]
situa o mesmo fenômeno sobretudo depois ou mesmo a partir do teatro
elizabetano. Pensando no sentido contemporâneo da palavra audiovisual, podíamos
pensar nos espetáculos de lanternas mágicas, especialmente no século 19. A meu
ver, no entanto, a conformação definitiva – isto é, globalizante e estável –
desse público moderno se dá com a institucionalização do cinema,
isto é, com o processo de consolidação de praticamente todas as grandes
instituições do cinema: sua linguagem, sua economia, sua recepção, entre
outras. Esse processo acontece – mais uma vez, nos países centrais – entre 1905
e 1915, mais ou menos. Kracauer[4]
chama o público que resulta desse riquíssimo processo de público cosmopolita
(weltstadt publikum), que compreende praticamente a totalidade das classes
sociais, excluindo os detentores dos meios de produção.
O público é a expressão no plano simbólico do que Marx
denominava proletariado no sentido mais amplo: os que dependem da venda da sua
força de trabalho para se sustentar e aos seus. Corresponde ao povo,
como descreve Martín-Barbero[5]. Ou
ao oprimido de Paulo Freire[6]. Não
é exclusivamente o público de cinema, mas os receptores, testemunhas e
participantes de todas as mídias no sistema em que vivemos: é o público leitor,
de teatro, de cinema, de rádio, de cinema, da televisão e de todas as mídias
mais recentes. De fato, diferencio um pouco o público contemporâneo dos
paradigmas fundadores – o cinema e o público moderno – com as mudanças
que a revolução digital vem provocando nas formas de recepção e
participação intermediadas pelas mídias atuais e em formação.
Os cineclubes, portanto, não são organizações do
cinema, mas do público. Essa distinção é essencial, mas negligenciada por
praticamente todos os autores que escrevem sobre os cineclubes e o
cineclubismo. As raízes dessas instituições crescem nas palestras e debates
ilustrados com as projeções de lanternas mágicas nos clubes de trabalhadores no
século 19. Essas mesmas práticas imediatamente adotaram o cinematógrafo, ainda
naquele século (assim como conservaram o emprego das lanternas até além da 1ª.
Guerra Mundial). As reuniões que usavam essas mídias visavam a autoformação
dos participantes, sua apropriação daqueles recursos, de forma semelhante ao
que faziam com outras práticas. O cinema nasceu burguês, manipulador e
alienador; foi principalmente nos ambientes de trabalhadores que se tentou
criar um outro cinema, contra aquele cinema que se estava ainda
definindo. Das projeções isoladas, ocasionais, a organização evoluiu para
iniciativas mais sistemáticas, com o uso de espaços comunitários ou com o
aluguel de salas. Concomitantemente, cita Steven Ross[7],
já se produziam “filmes” desses mesmo públicos, antes do final da primeira
década do século. Mesmo quando propus à assembleia de Túnis (2013), da
Federação Internacional de Cineclubes, que se considerasse o Cinema do Povo
(Paris, 1913) como o primeiro cineclube – e teve bolo do centenário do
cineclubismo – eu já alertava[8]
que havia outras iniciativas, menos documentadas, algumas anteriores mesmo
àquele cineclube. E várias posteriores, apesar da Guerra que também foi assunto
quase exclusivo dos países centrais.
A distinção entre ser uma atividade de cinema ou uma
iniciativa do público tem um sentido essencial, que não foi compreendido por muita
gente nos meios cineclubistas em todo o mundo, ainda que vários repitam a
locução “organização do público” e gostem de agitar a Carta de Tabor dos
Direitos do Público, muitas vezes paradoxalmente combinada ao culto da
cinefilia. Quando cabe ao cinema a primazia – e é assim em quase todos os
textos – ao público cabe o papel de espectador, de coadjuvante, de legitimador,
de consumidor, de alfabetizando. Ainda que mais recentemente se lhe reconheça
algum grau de consciência, o público segue sendo determinado por aquilo que
vê e que, por sua vez, é usualmente uma decorrência metafísica da criação,
da autoria, do artista. Qualquer traço de sentido que lhe dê o público é
provocado, resultado, iniciativa de um criador. Tão imanente quanto seu
homônimo com maiúscula para certas crenças. O cinema, assim, por inversão, parece
ser a instância que dá sentido às coisas e às relações sociais.
No entanto, qualquer autor é parte do público, na
heteroglossia[9],
no diálogo permanente que é a circulação de sentidos em todos os níveis da
sociedade. O público de uma mídia ou de um espetáculo, o público de uma
comunidade e o público como classe social são os campos de construção de
sentidos: o filme, o produto ou evento audiovisual é instrumento, meio
dessa circulação. Cinefilia é alienação.
As primeiras três décadas do cineclubismo (até 1928) que
revejo bastante com relação ao texto de 2018 – e em contraste com quase todos
os outros escritos sobre o tema – no caso do Brasil, especialmente, estão cheias
de lacunas, interrogações, pistas que ainda não permitem um quadro mais preciso
da trajetória do cineclubismo ancorada em sua relação com a sociedade
brasileira. Espero que, mesmo assim, estas notas indicativas possam ser úteis,
motivadoras também para outros pesquisadores. Há um outro fosso de ignorância
ideológica entre o Chaplin Club (1928) e o Clube de Cinema de São Paulo (1940/45). Depois disso essa história está mais e melhor
documentada, este meu novo texto não reflete uma nova pesquisa sobre esse
último período, apenas a reprodução dos dados de que já dispunha, ainda que –
como é apanágio do historiador – reveja essas fontes sob uma nova luz. Dos anos
finais da ditadura militar (a partir de 1971) até a atualidade me baseio em
meus próprios arquivos e minha memória pessoal[10]
para a interpretação da experiência histórica. Isso, claro, tem vários e claros
riscos. Porém, como fui parte integral dessa experiência, não poderia escapar
de forma nenhuma desses perigos – que procuro minimizar com a bagagem acadêmica
com que tenho viajado nestes últimos anos. Todo exercício intelectual é
ideológico, expressa interesses mais ou menos claros, mais ou menos
conscientes. Tratando-se de uma atividade em que sempre estive profundamente
implicado, mais ainda, provavelmente. Mas considero que quanto mais clara for a
exposição do ponto de vista adotado pelo historiador, tanto mais transparente
será a interpretação da história e maior a autonomia da leitura – igualmente
ideológica – que pode ser feita. O texto que segue procura ser coerente com
essa convicção. De todos modos, esta Novíssima Cronologia não pretende constituir mais que notas introdutórias, um
breve resumo para interessados e uma provocação para os estudiosos.
Cronologia do Cineclubismo
Durante muitas décadas o cineclubismo foi ignorado
pela historiografia do cinema – e de qualquer outro objeto de estudo. Embora
onipresentes em toda a história do cinema e na origem de grande parte de suas instituições
– como as cinematecas, os festivais de cinema, a crítica, o cinema amador e
documentário, os estudos universitários, a quase totalidade dos movimentos de
renovação, etc. – os cineclubes eram, no máximo, citados marginalmente, como
reuniões de apaixonados pelo cinema (uma noção imprecisa e altamente
discutível) ou lembrados para falar da adolescência dos sacrossantos
autores. Apenas na última década do
século passado começou-se a falar mais frequentemente em cinefilia, trazendo mais ou menos os cineclubes – “templos da
cinefilia” – para mais perto do nível de objeto legítimo de estudo. No entanto,
de maneira mais ou menos consciente ou vagamente explícita, a cinefilia, e suas
bases, surgiu muito antes: ao final dos anos 20 em Paris e outras cidades
importantes da Europa e, desde então, foi paulatinamente se consolidando como a
ideologia dominante do cineclubismo mundial. Junto com os cineclubes, neste
mesmo período, vieram à luz da legitimidade acadêmica vários outros objetos
esquecidos ideologicamente pela historiografia: o cinema amador, os arquivos,
os festivais, as mulheres[11] (e
outros sujeitos distintos do arquétipo masculino, branco, euronorteamericano,
heterossexual, cristão) e, portanto, o público. Que, como os cineclubes, ainda
está em processo de assimilação pela Teoria do cinema e de integração em sua
História.
Nos anos 70, Philippo de Sanctis e Fabio Masala, dois
cineclubistas e pesquisadores italianos, trabalhavam com a ideia de que o
público era sujeito – e não objeto passivo, consumidor inerme - da recepção
cinematográfica. O associativismo é
para eles a grande característica e o principal instrumento de emancipação do novo público que se identifica com uma
forma contemporânea do conceito de proletariado da tradição marxiana. No
Brasil, na mesma época, mas na situação de resistência à ditadura militar, eu
mesmo escrevia sobre o cineclube como organização do público voltada para a criação de um novo cinema,
veículo de expressão da emancipação desse público. É notável a convergência de
ideias dos três pesquisadores, que não se conheceram antes do desaparecimento precoce
dos dois cineclubistas italianos. Infelizmente eles só são lembrados em alguns contextos
cineclubistas, à margem dos espaços acadêmicos mais canônicos.
Ora, o público moderno se constrói juntamente com o
desenvolvimento do cinema. Os dois conceitos são interdependentes. O cinema se
consolida como elemento essencial da modernidade a partir do estabelecimento de
um novo público – que, pela primeira vez, trazia para os espaços públicos as
mulheres, as crianças, juntamente com toda a população amalgamada. E o público,
igualmente, só atinge sua configuração definitiva com a chamada institucionalização do cinema, isto é,
do dispositivo tecnológico, estético, econômico do cinema, suas formas
permanentes (até a recente revolução digital) de produção, distribuição e
recepção. As duas primeiras décadas – mais particularmente a segunda - da
história do cinema marcam um período de transformações que culminam no
estabelecimento de um modelo dominante. Os cineclubes, que constituem a
instituição por excelência criada pela resistência do público em formação,
estão presentes em todo esse período. Tal como o cinema em transformação,
diferentes tradições e novas práticas populares culminam na instituição do
cineclube como forma paradigmática de organização do público.
As primeiras origens desse processo, uma proto-história do cineclubismo, pode ser
encontrada nas exibições de vistas de lanternas mágicas – que os jesuítas já
usavam no século XVIII para maravilhar os indígenas das Missões nas Américas –
frequentemente usadas para ilustrar conferências, estimular discussões. No
século XIX, evoluindo junto com outras formas de organização popular, os clubes
operários constituíram-se como locais de reunião, aprendizado e organização
política, através de representações, conferências, debates ilustrados
com a projeções. Desde o surgimento da exibição cinematográfica, esses grupos
adotaram a nova tecnologia. Com o desenvolvimento do cinema, a consolidação de
sua linguagem e a domesticação de um
público passivo, espectador, o
cineclube se consolidou como forma de resistência à alienação e como base de
criação de um cinema alternativo àquele que servia principalmente para a sua
sujeição e exploração. A história do cineclubismo é concomitante e parte integrante
da história do cinema. A instituição cineclube se consolida – e é marginalizada
- com a institucionalização do cinema.
Uma concepção elitista, que ignora a ligação do
cineclube com o público, criou uma versão daquele como expressão do interesse
de conhecedores especializados – os cinéfilos
– que teria surgido a partir dos anos 20 graças às premières de divulgação do jornal Ciné Club, de Louis Delluc, e aos banquetes promovidos por
Ricciotto Canudo para discutir a sétima arte (expressão criada por ele) com a
elite de Paris. Esses dois intelectuais fazem sem dúvida parte da história do
cineclubismo e tiveram um papel importante na valorização institucional e
artística do cinema, mas estão bem longe de terem dado origem aos cineclubes.
Mesmo a palavra cineclube, que alguns querem atribuir a Delluc, já existia pelo
menos desde o início do século e foi usada em vários contextos diferentes; houve
até mesmo um Clube de Cinema e um jornal homônimo em Sobral (CE), em 1910, como
veremos.
No Brasil
Até 1910 – Não existem pesquisas publicadas sobre esse período –
até porque ninguém pensa em cineclubismo antes dele ser legitimado pelo modelo
europeu. A formação do público de cinema no Brasil é, sem dúvida, bem diferente
da ocorrida nos países centrais: as primeiras exibições chegaram aqui poucos
anos depois da abolição da escravidão, encontrando uma classe trabalhadora
desarticulada, sem a mesma tradição de organização e mesmo de luta que seus
correspondentes em países de capitalismo central. É mesmo duvidoso que no País
tenha havido um processo “explosivo” de multiplicação do público de cinema
semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa. Contudo, desde 1901
já existem referências a manifestações públicas de posicionamento quanto ao
cinema[12].
De fato, os meios e organizações anarquistas, formados
quase que exclusivamente por imigrantes, predominantes entre o operariado
fabril desde a virada do século, davam uma importância central à formação e
educação, adotando as mais diversas e modernas práticas em associações, clubes,
ateneus, nos quais se organizavam sistematicamente festas, criavam-se grupos
teatrais, de declamação, etc. O cinema era um dos instrumentos usados nessas
atividades. Na época do fuzilamento do grande educador anarquista catalão, Francesc
Ferrer, em 1909, as escolas modernas,
de sua concepção, já existiam no Brasil e usavam todas essas práticas. Não
sabemos, até agora, muito mais sobre o uso do cinema ou sobre a organização
popular em torno do novo meio de expressão e comunicação. Mas muitas pistas
apontam para seu uso sistemático como elemento de atração e congraçamento nas
comunidades populares[13].
Da mesma forma, a outra vertente de uso não comercial
do cinema, a Igreja, também já o usava fortemente. Ela trouxe para o País
adaptações das organizações francesas, como a Boa Imprensa. A revista Vozes de Petropólis, em 1912, já menciona
várias salas de cinema da Igreja: o Centro Popular Católico (Petrópolis), o Cinema Modelo
(Belo Horizonte) e o Cinema Católico (Recife), por exemplo[14].
1910-1912
– O primeiro cineclube: Clube de Cinema de Sobral (Ceará) - Uma cópia em mal estado do jornalzinho Cinema
Club – Órgão do Cinema do Club dos Democratas, encontra-se na Biblioteca
Nacional. Essa iniciativa pertencia à “associação social” Club dos Democratas, fundada
em 1910, que promovia festas, bailes, concursos com as jovens da sociedade, mas
também mantinha uma sala de cinema – iniciada também ainda em 1910[15],
- e um grupo de teatro amador. Edilberto Florêncio dos Santos, em sua
dissertação de mestrado e também em outros artigos traz muitos detalhes dessa
organização, sua história, atividades e ligações com a sociedade local. Não é
possível determinar precisamente quanto o Cinema Club era uma atividade mais
coletiva, mas há a informação do envolvimento de associados, inclusive eleitos
para tanto, em atividades do Club dos Democratas. Parece certo, então, que o
Cinema Club era parte de uma associação, constituída estatutariamente –
inclusive com a regra de rodízio mensal dos diretores eleitos -, que não
distribuía seus resultados financeiros aos sócios e propiciava acesso ao
cinema, dentro dos limites ideológicos do seu tempo e, principalmente, da sua
classe social. Era, portanto, um cineclube. Provavelmente o primeiro, ou pelo
menos o mais documentado até aqui, com as características que definem um
cineclube – desde que não apliquemos, teleologicamente, o modelo cinéfilo
“tradicional”. De fato, o Cinema Club também foge do modelo operário,
igualmente produzido na Europa e Estados Unidos, mais ou menos na mesma época.
Mas, como penso podermos claramente deduzir, apresenta as características
presentes em todos os outros tipos de cineclubes do século 20. Os dados não são
completos, mas certamente são bem mais consistentes que tudo que tem sido
estudado até hoje. E mais, o Cinema Club é mais uma evidência a corroborar a
ideia de que a invenção do termo cineclube – ou clube de cinema - só iria
ocorrer na década seguinte é, de fato, uma grande falácia.
1914 – Neno Vasco, importante liderança anarquista, exilado
em Portugal, escreve no jornal paulista A
Lanterna sobre a experiência do Cinema do Povo, o cineclube de anarquistas
e socialistas franceses criado no ano anterior. Em seu número de 8 de maio, o
jornal publica uma convocatória para uma reunião no dia 11 daquele mês visando
a formação de “uma associação voltada
para a propaganda social (ou educação) através
do cinematógrafo” em São Paulo. A sequência ou consequência desse convite,
porém, ainda não foram documentadas. Outras fontes mencionam o continuado uso
do cinema como estímulo nas atividades operárias, inclusive durante a grande
greve geral de 1917.
1916 – O mito do Paredão. Muitos autores citam o grupo
que teria adotado esse nome, Paredão, como uma espécie de cineclube avant la
lettre. A construção desse
mito deve-se a uma sucessão de repetições de referências anteriores em diversos
textos que não procuraram a sua confirmação. A primeira citação, no entanto, é
de Carlos Vieira (importante liderança cineclubista entre os anos 50 e 70) e
não faz parte dessa cadeia de mal-entendidos. Creio que a primeira referência
ao Paredão foi feita na revista portuguesa Celulóide, citação esta que não foi
reproduzida no Brasil até agora, que eu saiba. Para Vieira, “era o ‘Nacional
Infante Filme’, fundado pelos jovens cinemaníacos Pedro Lima, Paulo Vanderley,
Adhemar Gonzaga e Álvaro Rocha, que não só faziam sessões com pedaços de fitas
conseguidos nas distribuidoras, como tentavam a filmagem de cenas breves em que
todos intervinham como atores.” Em que pese o valor pessoal do autor, a
história – que nunca foi repetida por ninguém – parece meio mítica,
improvisada, desprovida de qualquer rigor, sem outra confirmação. Foi,
entretanto, a versão contada por Peri Ribas (um dos companheiros dos
protagonistas - todos redatores da revista Cinearte nos anos 20 -, mas
que nunca foi parte do grupo original de adolescentes) que deu origem a essa
espécie de série histórica de crescente distanciamento da realidade, que
finalmente criou o mito. O jornalista disse a Rudá de Andrade, segundo a Cronologia
da Cultura Cinematográfica no Brasil deste último, editada pela Cinemateca
Brasileira em 1962, que aquele grupo de adolescentes se reunia para ir aos
cinemas do Rio de Janeiro e depois discutir os filmes na casa Álvaro Rocha. Em
1982 eu reproduzi a citação de Rudá de Andrade em O Movimento Cineclubista
Brasileiro. Pouco depois, André Gatti, autor do verbete cineclube,
na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, lançada no ano 2000 pelos
organizadores Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda, também cita Rudá. Gatti é o
primeiro a chamar o grupo de Cineclube Paredão, reconhecendo, entretanto, que
não havia uma constituição formal, legal. Creio que é possível afirmar que a
maioria dos textos que a partir daí mencionam o grupo do Paredão repetem as
informações do verbete de Gatti. Taís Campelo Lucas, no
entanto, em sua dissertação de 2005, Cinearte: o cinema brasileiro em
revista (1926- 1942), traz outras informações importantes, baseadas em
depoimentos de Adhemar Gonzaga ao Museu da Imagem e do Som do Rio (1974), e de
Pedro Lima a Vera Brandão de Oliveira: “Uma odisseia no tempo: Pedro Lima em
flashback”, na revista Filme Cultura, nº 26, no mesmo ano. A historiografia oral tem fraquezas evidentes,
sobretudo a falta de isenção dos depoentes e falhas ou falsas memórias,
eventualmente juntas. Mas tem também a riqueza inigualável de quem viveu os
processos em questão. Completada por uma pesquisa em outras fontes possíveis,
localizando o contexto que envolveu os depoentes, a oralidade constitui uma
fonte importante. Da mesma forma, as fontes primárias tradicionais são eivadas
de erros, contaminadas pelos redatores – pessoas ou instituições. Também são
fontes importantes, mas com limites, que pedem uma pesquisa histórica em outros
sentidos. Finalmente, nesta breve abordagem epistemológica, “fazer história”,
no sentido de interpretar os dados adquiridos, é uma visão contemporânea sobre
o observado. A reconstituição da história é sempre uma interpretação dos tempos
correntes sobre o que, com essa perspectiva, logramos ver no passado, sejam
quais forem as fontes. A história é uma produção ou representação do presente num
passado que não pode ser reproduzido. Assim, minha
interpretação é que o Paredão é uma lembrança forte de seus principais
mentores, muito provavelmente ampliada em sua importância nos depoimentos
tomados várias décadas depois. Tem muito de verdade: seus membros provavelmente
tinham uma forte atração pelo cinema, que era um entretenimento preferido entre
os jovens e crianças (a idade desses rapazes variava de 14 a 17 anos em 1916),
uma invenção extraordinária que provocava surpresas e emoções. Provavelmente
essa espécie de cinefilia juvenil não era a mesma que os mesmos personagens
teriam apenas dez ou mais anos depois, como críticos, cineastas e técnicos. Associar isso a uma ou mais biografias e, por isso,
chamar essa prática, um tanto singela, de cineclube, constitui um exagero e
mais, um deslize teleológico. O empréstimo de categorias posteriores a
situações do passado é um dos equívocos mais frequentes em diversas
reconstituições históricas, e particularmente no cinema. Desde o século 19 a
palavra clube era frequente na linguagem corrente, e aplicada em vários
contextos; não sei, contudo, se cineclube faria parte do léxico carioca daquela
época: é bem possível que só tenha se vulgarizado, de certa forma, ao final da
década seguinte, justamente por influência de uma cinefilia parisiense erudita
que só seria construída nos anos 20.
1925/26 – O cineclube de São Paulo - Rudá de Andrade, na já citada Cronologia da
Cultura Cinematográfica, é bem conciso ao tratar do Cineclube de São Paulo,
de 1925 – e um tanto opinioso: “1925 – O nome ‘Cine Club’ é utilizado por
Jayme Redondo. Trata-se de um clube de jogo, com exibições cinematográficas
para atrair jogadores. O resultado é a produção de dois filmes: Passei minha
vida num sonho e Fogo de Palha.” (op. cit., p. 6). O mesmo ponto de vista,
isto é, de que não se tratava de um cineclube por estar em ou fazer parte de um
clube de jogos, é exposto de forma bem mais extensa por César Augusto de
Carvalho[16],
que traz um resumo bastante completo e interessante da biografia de Jayme
Redondo, com citações da revista Cinearte e outras fontes. Já o verbete
do André Gatti também, na mesma linha, faz apenas uma breve menção ao caso.
Jurandyr Noronha, no entanto, descreve o Cineclube de São Paulo como “um
agrupamento de cinéfilos encabeçado por Jayme Redondo, os quais, com a fundação
do Cineclube de São Paulo, pretendiam chegar à prática, o que efetivamente
aconteceu com a realização de dois longas-metragens...”[17]. Parece
meio discutível essa espécie de desprezo que, baseado claramente na
transposição do modelo europeu, procura ignorar a cinefilia de Jayme Redondo.
Se a iniciativa visava apenas o jogo, produzir longas metragens parece uma
maneira bastante trabalhosa de obter resultados. Vale, ainda, lembrar que o
número 24 de Cinearte traz uma série de fotos da sede ocupada pelo Cine
Clube de São Paulo: sala de administração, sala de leitura, duas fotos da sala
de projeção e até uma do salão de chá. Depois que os cineclubes incorporaram
barzinhos, livrarias, ou passaram a atuar em barzinhos privados, entre outras
atividades, ninguém mais se ofende com essa amálgama cultural.
Outras iniciativas – Na história do cineclubismo – e mais uma vez eu considero
que isso se deve, ao menos em grande parte, à invenção da cinefilia culta
e ao efeito ideológico do cineclube de tipo cinéfilo – diversas formas
autônomas de organização do público para a apropriação do cinema se destacaram
da trajetória percebida do cineclubismo, formando uma espécie de outra
linhagem, ou foram mesmo esquecidas. Prevalece um tipo de senso comum
simplificador: cineclube é o que tem esse nome. Às vezes nem esses são
admitidos no clube da cinefilia. Ora, os anos 20 marcam a introdução dos
pequenos formatos: filmes e aparelhos para projeção doméstica, depois também de
filmagem – em 9,5 mm e em 16mm –, que imediatamente possibilitaram uma ampla
utilização do cinema fora dos espaços comerciais tradicionais. A revista Cinearte menciona alguns Clubes de
Cinema nas décadas de 20 e 30, mas sem maiores informações, o que não permite
realmente comprovar a atividade cineclubista: como em vários outros países,
algumas vezes os chamados Clubes de Cinema reúnem realizadores amadores, ao
contrário dos cineclubes, voltados para a atividade com o público. Mas onde
ficaria a fronteira entre os dois modelos? A revista tinha uma sessão voltada
especialmente para esses amadores e clubes, tratada mais como um espaço de
aprendizado técnico, mas com eventuais referências a associações ou clubes que
também se dedicavam ao cinema amador. Há bons trabalhos a respeito, especialmente
os de Lila Foster:
A Pathé-Baby no Brasil e o imaginário sobre cineamadorismo nas décadas de
1920 e 1930 (2015) ou sua tese, de 2016: Cinema amador
brasileiro: história, discursos e práticas (1926-1959).
1928 – 1930 - Chaplin Club – Em 13 de junho, no Rio de Janeiro, Otávio
de Faria, Plínio Sussekind Rocha, Almir Castro e Cláudio Mello fundam o Chaplin
Club. Tradicionalmente foi considerado como o primeiro cineclube brasileiro,
por ser o primeiro caso claramente documentado – e por influência da ideia
cinéfila que localizava a origem dos cineclubes nos anos 20. Hoje isso parece
muito duvidoso e uma pesquisa mais acurada pode provavelmente encontrar o (ou
mais de um) elo perdido do cineclubismo uns dez ou quinze anos antes. Mas não
há como ignorar a importância do Chaplin Club, que alcançou grande repercussão
nos meios cultos da então Capital Federal. Reunia figuras de grande prestígio
no ambiente cultural carioca, influenciando as principais polêmicas
cinematográficas da época – como a do advento do som, ou a da fotogenia - e
trazendo para o Brasil cinematografias até então aqui desconhecidas, como o
expressionismo alemão e os primeiros clássicos soviéticos. Alguns filmes
lançados no Chaplin Club marcam a história do cinema no Brasil: como Limite, de Mário Peixoto ou O Encouraçado Potenkin, de S.
Eisenstein. Ainda em agosto de 28 o cineclube criava a revista "O
Fã", seu órgão oficial, que duraria apenas dois anos, ou nove números. O
nome Chaplin era uma homenagem que também simbolizava uma tomada de posição em
defesa da pureza estética do cinema silencioso.
A década de 30, o INCE - Outro longo hiato. Igualmente estranho já que, por
exemplo, a geração do Chaplin Club – em especial Otávio de Faria e Plínio Sussekind
- influencia e forma novos cinéfilos, como Vinícius de Moraes, e cineclubistas
como Paulo Emílio Salles Gomes – que declarou ter sido “levado” ao cineclubismo
por Sussekind quando de seu exílio em Paris, no final dos anos 30. Mas
igualmente estranho porque o cinema já era um fenômeno nacional, e muito
popular, à época das chanchadas.
Em 1936 foi
criado o Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE). Seu principal
inspirador foi o antropólogo Edgar Roquette-Pinto com extensa vinculação aos modernos meios de
comunicação – criou a primeira rádio brasileira. O INCE visava promover o
cinema como auxiliar do ensino e servir-se dele como um instrumento voltado
para a educação popular. Entre 1936 e 1966, foram mais de 400 filmes produzidos,
entre curtas e médias, dos quais a direção de cerca de 350 é atribuída ao
cineasta Humberto Mauro. Boa parte da produção voltava-se ao apoio às
disciplinas das escolas, à divulgação de aplicações da ciência e da tecnologia,
às pesquisas científicas nacionais e ao trabalho de instituições nacionais.
1939 – Em 1939, mais uma vez em Cinearte, aparece uma matéria bem mais circunstanciada - com foto da equipe, nomes de vários associados e endereço (Rua São Francisco da Califórnia, no. 47) - do Cine-Fan Club de Porto Alegre. Além de já ter produzido um “filme amador”, o Cine-Fan pretendia desenvolver o movimento associativo de cinema amador no Brasil, “pois os clubes de amadores de cinema, nos Estados Unidos, contam-se às dezenas”. Ainda em 1939, foi fundado o Foto Clube Bandeirante, em São Paulo, que se distinguia pelo interesse pela fotografia, claro, mas era presidido pelo conhecido cineasta Benedito Junqueira Duarte. A revista Scena Muda traz a notícia da criação, no mesmo ano, do Club de Fans Cinematográficos, no Rio de Janeiro, na Avenida Rio Branco 181, 4º. Andar, sala 404, voltada para “o desenvolvimento cultural e artístico nos sectores do Cinema, do Rádio e do Theatro”. Esse cineclube tem uma extensa folha corrida.
1940 – 1945 – Clube de Cinema de
São Paulo (1940); Cine Siri (Recife), 1944; Foto Cine Clube Bandeirante, SP,
1945 - Em 1940 é fundado o Clube de Cinema de São Paulo, por Francisco Luís de
Almeida Salles e outros. O cineclube é logo fechado pelo Departamento de
Imprensa e Propaganda - DIP - do Estado Novo. Aqui aparece outro hiato sem informação e que se
aceita sem muita discussão em virtude de ser o período da ditadura do Estado
Novo. No entanto, em 1944 há menções – em documentos dos órgãos de segurança da
ditadura – sobre atividades sistemáticas do Cine Siri (ou Museu Cinema),
iniciativa principalmente de Pedro Salgado Filho (que fez parte do chamado
Ciclo de Recife, nos anos 20). Ainda em 1945, o Foto Clube de 1939, já citado,
mudou os estatutos e passou a chamar-se Foto Cine Clube Bandeirante, iniciando
atividades importantes nesse novo campo, com o nome que mantém até hoje.
1946 - Ressurge o Clube de Cinema de São Paulo - futura Fundação
Cinemateca Brasileira (1957) - agora incorporando Paulo Emílio Salles Gomes,
grande animador da instituição e presença influente no relacionamento com um
cineclubismo internacional renovado ao fim da 2ª. Guerra Mundial (fundação da
Federação Internacional de Cineclubes – FICC - em 1947)
1948 – 1952 - Nascem cineclubes em várias cidades do País: Porto
Alegre, Fortaleza, Salvador, Florianópolis, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Marília... É a geração em que surgem importantes críticos de cinema e
animadores de cineclubes: Alex Vianny, Walter da Silveira, Moniz Viana, Cyro
Siqueira, Darcy Costa, Eusélio de Oliveira, Paulo Gastal, para lembrar uns
poucos.
1952 - Chega ao Brasil uma missão francesa do OCIC –
Escritório Católico Internacional do Cinema, para dar cursos e seminários e
estimular a formação de cineclubes nas instituições ligadas à Igreja. Entre os
principais nomes do "cineclubismo católico", que exercerá grande
influência no movimento até os anos 60, estão os padres Guido Logger e Edeimar
Massote, o crítico Humberto Didonet e a educadora Irene Tavares de Sá.
1956 - Na sede da Fundação Cinemateca Brasileira é fundado o
Centro dos Cineclubes de São Paulo, primeira entidade representativa de
cineclubes, presidido por Carlos Vieira.
1958 - Fundada a Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro
– que vai ter entre seus presidentes Leon Hirszman, Cosme Alves Neto, entre
outros nomes importantes em diferentes ramos do cinema brasileiro. Na Fundação Cinemateca
Brasileira, sob a coordenação de Paulo Emílio Salles Gomes e Carlos Vieira, é
organizado o Curso de Formação de Dirigentes Cineclubistas, com duração de um
ano.
1959 - Realizada a Primeira Jornada dos Cineclubes
Brasileiros – congresso nacional que se tornará uma tradição e será realizado,
anual ou bianualmente, até o início desta década (com intervalos, durante
momentos de desorganização em nível nacional: entre 1969 e 1972; 1990 e 2002, e
desde 2012 – ver este ano) sempre em diferentes cidades e regiões do País.
1960 - Surge a Federação de Cineclubes de Minas Gerais.
1961 - Criada a Federação Gaúcha. Nesse ano também foi
fundado o Conselho Nacional de Cineclubes - CNC - entidade nacional
representativa dos cineclubes. Nos anos seguintes ainda surgirão as federações
Nordeste e Centro-Oeste.
1964 – Ano do Golpe de Estado que dá origem à longa
(1964-1985) ditadura militar. Inicialmente, a repressão do regime ataca fundamentalmente
os ambientes e organizações ditas de massa, de operários, estudantes e das
bases das forças armadas. O movimento cineclubista estava dividido, na época,
entre entidades católicas e estudantis, mais à esquerda. Este último segmento,
apesar de atingido em parte pela perseguição ao movimento estudantil, aos Centros
Populares de Cultura da UNE – União Nacional dos Estudantes, tende a se
recuperar e a ocupar um papel predominante à medida que a sociedade, e
especialmente os estudantes, se articulam na resistência. Já os cineclubes
católicos vão paulatinamente desaparecendo a partir da reorganização da Igreja e perda de influência as OCIC.
1968 - Após a 7ª Jornada, realizada em Brasília, com o
recrudescimento da ditadura militar, os cineclubes passam a ser perseguidos
diretamente. É estabelecida na prática a censura prévia às suas atividades e
todo tipo de entraves e pressões vão desmantelando todas as entidades no País.
Em 1969 haveria no máximo uma dúzia de cineclubes em funcionamento e quase
todas as suas entidades representativas haviam sido destruídas. Apenas o Centro
de Cineclubes de São Paulo sobrevive, com uma atividade reduzida em torno do
idealismo de Carlos Vieira.
1972 - Reorganiza-se a Federação de Cineclubes do Rio de
Janeiro, sob a direção de Marco Aurélio Marcondes.
1973 - Ressurge a Federação Nordeste. Junto com Rio e São
Paulo, reúnem-se naquele ano no tradicional Encontro de Marília (em que o
cineclube local entregava anualmente o Prêmio Curumim para o melhor filme
brasileiro) para reestruturar o CNC. O Conselho, como o nome indica, era até
então uma instância de deliberação entre federações – cineclubes não votavam
diretamente.
1974 - Após um hiato de quase 6 anos realiza-se a 8ª
Jornada Nacional de Cineclubes, em Curitiba. O documento final do Encontro, a
"Carta de Curitiba", lança as bases programáticas que vão nortear o
movimento cineclubista pelo menos por uma década. Os estatutos do CNC também
são reformados, tornando-o uma federação nacional, em que a instância superior
de deliberação é a assembleia geral dos cineclubes brasileiros. O presidente
eleito é Carlos Vieira.
1976 - Na 10ª Jornada, em Juiz de Fora, é criada a
Dinafilme – Distribuidora Nacional de Filmes para Cineclubes, órgão do CNC, sob
a direção de Felipe Macedo, com sede em São Paulo. O acervo inicial é composto
de clássicos em 16mm que pertenciam ao acervo da Cinemateca, cedidos por Paulo
Emílio Salles Gomes. Ao longo dos próximos anos esse acervo vai ser enriquecido
principalmente com documentários brasileiros e produções "clandestinas"
– não submetidas à Censura – que documentam a vida e as lutas dos setores
populares. No ano seguinte, Marco Aurélio Marcondes cria na Embrafilme o
"setor 16mm", que vai abastecer durante anos o movimento cineclubista
com longas metragens brasileiros. E mais adiante, já nos anos 80, a Dinafilme
vai começar também a distribuir produções semelhantes de outros países da
América Latina.
1977 - No Encontro de Figueira da Foz (Portugal), o Brasil (Felipe
Macedo) passa a fazer parte do Comitê Executivo da FICC – Federação
Internacional de Cineclubes. Em São Paulo, sede do CNC e da Dinafilme, ocorre
uma invasão pela Polícia Federal, que apreende filmes, principalmente
clássicos, documentários britânicos, desenhos de Émile Cohl, etc. Em todo o
País, durante a década de 70, sucedem-se invasões de cineclubes, detenção de
cineclubistas, apreensões de filmes.
1978 - A Dinafilme distribui uma produção alternativa
nascente, que acompanha de perto os movimentos sociais, como o chamado
"Cinema de Rua", em São Paulo, entre outros exemplos. Neste ano, que
marca a retomada dos movimentos grevistas, a distribuidora monta equipes móveis
que, com o apoio de alguns sindicatos, exibe os filmes que documentavam as
greves do ABC e ficavam prontos em tempo de serem apresentados nas grandes assembleias
sindicais que se realizavam em todo o meio operário. No final dos anos 70, a
maioria dos cineclubes – que já são 600 filiados nominalmente ao CNC – é de
bairros das periferias das grandes cidades. A atividade de distribuição da
Dinafilme atinge centenas de outros pontos de exibição, em associações,
sindicatos, igrejas e diversos movimentos populares. Vários cineastas, que
acompanham de perto a distribuição de seus filmes pela Dinafilme nesse circuito
popular, são influenciados por esse contato com o público e, de resto, pelo
próprio clima de resistência que já é muito nítido no Brasil; seus filmes – e
até uma certa estética – refletem o convívio com uma realidade popular em parte
criado pelo movimento cineclubista: O
Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade; Gaijin, de Tisuka Yamasaki; Eles
não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman – para citar apenas alguns – e toda
uma produção de curtas e documentários que a Dinafilme recolhe na Bahia,
Pernambuco, Paraíba, Brasília, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, etc.,
repassando-os para todo o Brasil. A Distribuidora, contudo, não consegue
remunerar o custo de produção desses filmes – aspecto essencial apara
continuidade dessa relação com os realizadores – e é cronicamente deficitária. Começa,
então, a fazer uma série de experiências para rentabilizar suas atividades.
Essas experiências terão muito sucesso, mas não no sentido pretendido, pois
sairão do controle da distribuidora e do movimento (ver os anos 1980, 1981, e http://cineclube.utopia.com.br/ - História - Da
distribuição clandestina ao grande circuito exibidor).
1979 - Nova invasão da
Dinafilme pela Polícia Federal. Mas desta vez ela enseja uma grande vitória dos
cineclubes. Já sem censura à imprensa, a violência ganha amplo destaque e uma
mobilização solidária de todos os segmentos da sociedade, em todo o País –
articulado pelo CNC e as federações – obriga o ministro da Justiça Petrônio
Portela a se retratar publicamente e ordenar a devolução de todo o material apreendido.
O Brasil é reeleito – em Marly-le-Roi (França) – para a direção da FICC,
ocupando o Secretariado Latino-americano, na gestão de François Truffaut. Em
1982 ainda haverá a recondução ao cargo, em Havana, Cuba.
1980 - O Homem que
Virou Suco, melhor filme do Festival de Moscou desse ano, é lançado
simultaneamente no circuito comercial pela Embrafilme e nos cineclubes de
bairro pela Dinafilme. A distribuidora dos cineclubes e o Sindicato dos
Jornalistas produzem outra experiência, buscando maior rentabilidade com o
lançamento mais elaborado de programas de curtas (sobre greves, movimento
operário, índios, etc.) e longas metragens – como Braços Cruzados, Máquinas Paradas, de Sérgio Toledo e Roberto
Gervitz.
1981 - Fica cada vez mais patente a mudança do modelo de
distribuição – e consequentemente de exibição – no Brasil. A concentração do
mercado leva paulatinamente ao fechamento de 70% dos cinemas e a uma queda de
público equivalente. Já no final dessa crise, depois de discutida na Dinafilme
e aprovada na Jornada de Campo Grande (1980), toma corpo a ideia de criar uma
sala mais "profissional" em 35mm, ocupando os espaços deixados livres
pelo cinema americano – assim como a enorme disponibilidade de equipamento dos
cinemas fechados. Graças ao trabalho de António Gouveia Jr, Arnaldo Vuolo,
Frank Ferreira e outros, surge o Cineclube Bixiga, que influenciará
profundamente a evolução do cineclubismo e do próprio mercado de exibição,
sendo considerado a origem e inspiração dos atuais grandes circuitos culturais
de que o País dispõe. Por outro lado, a inflação crescente, o aumento nos
custos de frete e a sensível diminuição das atividades culturais das
instituições federais como a Embrafilme dificulta muito o funcionamento dos
cineclubes menos organizados. E a progressiva democratização da vida nacional
passa a atrair as lideranças dos cineclubes para os movimentos políticos e
partidários. Até o final dessa década, a quase totalidade dos cineclubes 16mm e
todas as entidades representativas dos cineclubes irão desaparecendo. Não sem
antes protagonizar mais algumas experiências.
1984 - Em meio à sua
própria crise, o movimento cineclubista se divide profundamente. O setor que
tenta relançar o movimento em torno da atividade em 35mm como base de apoio
para os demais cineclubes é derrotado nas eleições da Jornada de Curitiba desse
ano. A partir desta data, os principais acontecimentos cineclubistas se darão
de maneira mais ou menos isolada, já sem ligação com as organizações do
movimento. A gestão de 1984-86, presidida por Diogo Gomes dos Santos, é
justamente marcada pelo combate, nas Jornadas, aos cineclubes 35 mm, chamados
de "burgueses" – por comparação com os cineclubes de periferia.
1985 - Surgem (ou abrem sua sala 35mm) os cineclubes
Oscarito (São Paulo), Cauim (Ribeirão Preto), Barão (Campinas), Estação
Botafogo (Rio de Janeiro) e Porta Aberta (Brasília). A tendência prossegue nos
anos seguintes, e outros tipos de salas também aparecem na esteira dessa
experiência, em Vitória, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba, Porto Alegre e
outras.
1986 - Na Jornada desse ano é eleito para a diretoria do
CNC – em aliança com a diretoria anterior – um grupo do Paraná, que se proclama
representante do pensamento de Muammar Gaddafi e diz-se financiado por ele. Esdrúxula
mistura de fascistas e fundamentalistas, andavam armados em público, combatiam
os cineclubistas judeus e desprezavam as mulheres – que “ficam doentes uma vez
por mês”, segundo o “livro verde” que distribuíam na Jornada. Anos depois, já
fora do cineclubismo, alguns deles serão processados legalmente por racismo.
1987 – 1989 - O movimento cineclubista se desarticula, mas antes
destitui aquela diretoria, substituindo-a por um colegiado com um mandato
tampão sob responsabilidade de antigos dirigentes do movimento, presidido por
Antonio Claudino de Jesus. Em 1988 faz-se a 22ª Jornada em Campinas,
comemorando os 60 anos do cineclubismo (aniversário do Chaplin Club) e tentando
levantar o moral do movimento. Mas já é tarde: em 1989 realiza-se uma última e
melancólica Jornada em Vitória, ES, e é eleita uma diretoria que nem chega a
assumir e já não consegue reunir forças suficientes para manter os cineclubes
atuando como um movimento efetivamente nacional.
1990 - Nesse ano surge o Elétrico Cineclube, em São Paulo,
com duas salas de cinema e uma de vídeo, além de manter várias outras
atividades (teatro, música, feira de trocas, etc.). O Elétrico e o Estação, do
Rio de Janeiro, inauguram o lançamento de filmes com distribuidoras comerciais,
com grande sucesso. O extinto Banco Nacional patrocina inúmeras salas pelo País
afora (o próprio Estação Botafogo, o Savassi, em BH, o Vitória, em Campinas,
entre outras), mas exige que sejam empresas privadas, e não cineclubes. É um
belo último suspiro exclusivamente cineclubista: até meados da década esses
cineclubes – e os que os haviam antecedido – morrerão ou terão que se adaptar e
adotar uma forma de gestão e funcionamento propriamente comercial. As salas que
conseguem se adequar à nova realidade do mercado e do País obtêm sucesso
crescente e se expandem pelo Brasil. Em particular o agora Grupo Estação,
criado por Nélson Krumholz (ex-presidente do CNC) e Adhemar Oliveira
(ex-gerente do CC Bixiga) em 1985. A partir de 1993 Oliveira dirige seu próprio
circuito, um dos mais importantes do Brasil. Uma boa parte desse sucesso está
ligada à característica marcadamente cultural e de vanguarda (ambos os grupos
fusionam com as importantes mostras anuais internacionais de cinema do Rio e de
São Paulo), além da ligação com o cinema brasileiro e de várias atividades
educacionais que ambos os grupos conseguiram aliar a uma gestão tipicamente
comercial. As empresas de Krumholz e Oliveira consolidam um novo “modelo de
negócios” de cinema.
2003 - Depois de um hiato de 14 anos é organizada, com
forte estímulo do governo Lula, uma Jornada de Reorganização do Movimento
Cineclubista, em Brasília, que revela a existência de um grande número de
cineclubes atuando isoladamente, principalmente nas capitais e cidades
importantes de muitos Estados; em maior número no Rio Grande do Sul e
particularmente no Rio de Janeiro. Já prenunciando uma forte divisão, a
principal resolução dessa Jornada é preparar devidamente um próximo congresso.
2004 – Constituída, na Jornada do ano anterior, uma
Comissão de Reorganização do Movimento Cineclubista, com representantes de
várias regiões do País, tem como suas tarefas principais: 1) a organização de
uma Pré-Jornada, para preparar um congresso bem representativo, que possa
reconstituir a entidade nacional dos cineclubes e estabelecer um programa de
consolidação do movimento, e 2) organizar o referido encontro, a 25ª. Jornada
Nacional de Cineclubes. Como já havia ficado claro no ano anterior, em
Brasília, três grandes grupos se identificam durante o ano e nas atividades
organizadas pela Comissão Nacional: a) os cineclubistas mais antigos, com
muitos dos que dirigiam o movimento entre 1974 e 84 (ver esse período) e que,
na maioria dos casos, apenas começam a organizar seus cineclubes a partir deste
ano, em várias partes do País; b) os cineclubistas que gravitam em torno do Centro
Cineclubista de São Paulo e da liderança de Diogo Gomes dos Santos, presidente
do CNC na gestão 84/86, a que se somam novas iniciativas impulsionadas pelo
Partido Comunista do Brasil (PCdoB), também em São Paulo, e c) os cineclubistas
surgidos nos últimos anos (desde o final dos anos 90), bastante ligados à
realização de filmes e a novas experiências técnicas e de organização:
destaca-se o Rio de Janeiro, com o maior número de entidades, mas igualmente o
Rio Grande do Sul e alguns outros estados.
Os dois primeiros grupos – que haviam constituído as
duas principais tendências nos anos de crise do cineclubismo, nos anos 80 -
logo revelam grande dificuldade para se entenderem; os cineclubes novos perdem
com isso um pouco de motivação. Também uma certa extrapolação do seu mandato -
ao passarem a negociar com o governo federal um projeto não discutido de
organização de cineclubes em todo o País - afasta um pouco a Comissão de seus
objetivos. Ainda assim, a Pré-Jornada, em abril, é um sucesso - graças ao trabalho
desenvolvido por João Batista Pimentel, do CREC de Rio Claro (SP), que a
organiza - com mais de 100 representantes de cineclubes de grande parte do
Brasil. Ao mesmo tempo, ela deixa de aprofundar o debate sobre a organização e
projetos do movimento, falhando em transformar a grande motivação de todos em
mecanismos e projetos de trabalho comum. O temário da Jornada, as propostas
para a entidade e seu programa só vão ser divulgados para o movimto, muito
precariamente, às vésperas do Encontro.
O apoio do governo federal também começa a se mostrar
menos claro e sistemático. O grupo do CECISP (Centro Cineclubista de SP),
encarregado da realização da 25ª. Jornada na capital de São Paulo, mostra-se
incapaz de organizá-la. Menos de um mês antes do congresso, uma equipe de
representantes de vários cineclubes, sob a coordenação de um experiente
dirigente, Antonio Claudino de Jesus, do ES, tem de se instalar em São Paulo
para garantir a realização da Jornada. Paralelamente, um I Encontro Ibero
Americano de Cineclubes, é realizado em Rio Claro imediatamente antes do
Encontro nacional. Também fica evidente que o CECISP trabalha na perspectiva de
garantir o controle da futura entidade e os pretensos recursos que se imagina
virão do governo. Uma vez assegurados os recursos e a organização da Jornada, o
grupo assume novamente a administração da Reunião.
A Jornada corre muito mal, e a maior parte do programa
não é realizada. Fica patente o golpe premeditado, uma vez que os
"cineclubes" ligados ao CECISP e ao PCdoB, apenas na cidade de São
Paulo, apresentam-se em número igual ao da soma de todos os cineclubes do resto
do País. E notoriamente, a cidade de São Paulo não tinha nenhuma atividade
cineclubista. Essa atitude, porém, provoca um efeito inesperado: a união do
restante do País. Cineclubistas mais antigos e mais novos encontram suas
afinidades e organizam uma chapa com representação de dez estados – presidida
por Antonio Claudino de Jesus - e a maioria absoluta da assembleia, além de se
acertarem em torno de um programa sucinto, mal discutido, mas unitário,
preparado por Felipe Macedo. A minoria, composta por grupos da capital de São
Paulo e mais duas ou três cidades do interior, promove uma ruidosa retirada de
plenário, denunciando a arbitrariedade... do resto do País. A delegação da
Bahia, sem contudo se retirar, manifesta seu apoio ao grupo dissidente. Os “cineclubes”
do PCdoB desaparecem nas semanas e meses seguintes.
2005 - Esse foi um ano de recuo, inação e perplexidade. O
Ministério da Cultura – em especial do Programa Cultura Viva, que coordena os
investimentos do governo federal na área comunitária e é controlado pelo PCdoB,
deixa completamente de apoiar o movimento cineclubista. E os cineclubes não
puderam ou não souberam encontrar alternativas de sustentação autônoma do seu
trabalho como movimento nacional integrado. A Pré-Jornada, que deveria
acontecer em abril, só foi realizada em setembro (no Cineclube Cauim, em
Ribeirão Preto, SP), com os recursos dos próprios participantes e apoio da
Secretaria de Cultura de São Paulo: não repetiu o sucesso do ano anterior. A
26ª. Jornada, prevista para dezembro, também não obtém quaisquer recursos da
área federal, o que impede a sua realização. O número de cineclubes, contudo,
parece continuar aumentando, atingindo novas regiões e criando novas formas de
atuação em âmbito local. No Espírito Santo, em especial, houve um grande
crescimento de atividade e de organização regional, mas também vale lembrar o
Ceará, Minas Gerais, a região Centro-Oeste, entre outras.
2006 – Realizada a Jornada em Santa Maria, RS, graças ao
apoio do festival de cinema local e aos esforços do CC Lanterninha Aurélio. Claudino
de Jesus é reeleito; o programa de 2004 é simplesmente reafirmado. Decide-se
tornar as Jornadas bianuais, intercaladas com as pré-jornadas. A Jornada
seguinte é marcada para o Rio de Janeiro, sob responsabilidade da vigorosa
ASCINE (a associação dos cineclubes do estado).
No final do ano é inaugurada em São Paulo a sala Maria
Antônia do projeto PopCine (financiado pelo governo do estado), que prevê a
criação de 20 salas populares de cinema em cidades ou bairros importantes sem
cinema. No início do ano seguinte, ainda em fase inicial de montagem das salas,
o projeto é cancelado pelo executivo André Sturm, do novo governo estadual (do
mesmo partido: PSDB).
2008 – Um ano movimentadíssimo. O quadro de isolamento do
movimento junto ao governo federal transforma-se completamente: dois projetos
originais do movimento são apropriados e modificados pelo MINC, dando origem a
1) um programa de distribuição de kits
de projeção, que adotará diferentes nomes até 2010, e a 2) uma distribuidora de
filmes (em DVD), a Programadora Brasil. Frederico Cardoso, curta-metragista do
Rio de Janeiro, é o coordenador-geral dessas duas frentes governamentais; logo em
seguida dividirá o trabalho com Rodrigo Bouillet, presidente da ASCINE. Esses
programas representam a hegemonia dos jovens realizadores sobre o movimento
cineclubista, com um projeto de criação de espaços de exibição para a produção
de curtas-metragens financiados a fundo perdido pelo Estado. A ASCINE não
realiza a Jornada, prevista para julho. Ao invés disso, com patrocínio dos
novos programas federais, organiza no RJ um encontro chamado de Circuito em
Construção, com cineclubes e outros representantes de todo o País, escolhidos
pelo governo em contraposição à organização autônoma do movimento. Apesar dos
investimentos, esse projeto acabará não tendo continuidade.
O programa de kits,
sob pressão do Conselho Nacional de Cineclubes, passa a incluir a publicação de
um Manual de Formação Cineclubista, a
organização de um site do CNC, a
constituição de uma distribuidora cineclubista de filmes (não incluídos
no projeto da Programadora, como clássicos e filmes de outros países) e a
criação de um vasto programa de oficinas de formação cineclubista. O site e a distribuidora, que recebe o
nome de Filmoteca Carlos Vieira, devem ser apresentados em projeto separado,
como um Pontão de Cultura (nome de instituições especiais financiadas através de
outros editais do MINC) – o que só se dará em 2012 (ver esse ano). Mas o Manual
e as oficinas entraram no projeto inicialmente chamado de Circuito Brasil,
depois de Cine Mais Cultura, que contrata o CNC para apresentar o texto do
Manual e o plano das oficinas. O CNC chama Felipe Macedo para redigir o Manual
e propor a organização das oficinas. O projeto das oficinas, uma semana de
imersão total, em 8 regiões do País, visa a formação de monitores para a
reprodução das oficinas, que devem em seguida se multiplicar: o projeto Cine
Mais Cultura prevê criar milhares de pontos de exibição. Essas primeiras
oficinas ocorrem na mesma época – novembro e dezembro – em que a Jornada é
finalmente realizada em Belo Horizonte, organizada pelos cineclubes do projeto
independente Curta Circuito em convênio com o CNC. Desde a primeira oficina
surgem problemas. O Manual é finalmente vetado pelos coordenadores do
Cine Mais Cultura. Na Jornada, Claudino de Jesus é mais uma vez reeleito para a
Presidência.
2009 – 2010 – Estes dois anos marcam essencialmente o apogeu e a
queda do movimento cineclubista de dimensão nacional no Brasil. Resumem o mais
essencial das grandes contradições de um período que podemos situar entre 2003
e 2010 ou, de forma um pouco diferente, entre 2003 e 2013.
Censurado o Manual de Formação Cineclubista e
declarado um conflito aberto com seu autor e coordenador das oficinas: os
executivos Cardoso e Bouillet finalmente exigem do CNC a destituição de Macedo.
Afastado do projeto que ajudara a criar, este último se demite da direção do
CNC em março de 2009. O Cine Mais Cultura continua, associando-se, inclusive, a
vários estados na reprodução de editais que distribuem, segundo dados incertos
do governo, mais de mil equipamentos. Durante 2009 e início do ano seguinte, as
oficinas continuam em todo o território brasileiro, na maioria, porém, perdem
em conteúdo, tornando-se meros instrumentos de formação de iniciativas de
projeção e cursos rápidos de treinamento para a exibição de filmes da
Programadora. Praticamente todas as lideranças cineclubistas do País são
contratadas para esses trabalhos; o CNC torna-se um executor terceirizado das
políticas do MINC, voltadas essencialmente para a criação de pontos de exibição
de curtas metragens que, desta forma, têm seu financiamento justificado pela
“demanda” estimulada. O movimento cineclubista perde toda autonomia – e os cines mais (novo nome dos beneficiados
pelo programa) abandonam definitivamente as características básicas dos
cineclubes: associativismo democrático e inserção representativa nas
comunidades. Em troca, os dirigentes do CNC e, em menor grau, das regiões, são
aquinhoados por editais e programas diversos ou mesmo diretamente remunerados
pelo Ministério.
Em dezembro de 2010 é realizada a 28ª. Jornada, em
Moreno, PE. É o Baile da Ilha Fiscal dessa relação promíscua do CNC com o
governo. Centenas – fala-se de 500, sem documentação conhecida – de representantes
de cines mais de todo o País têm
viagem aérea e despesas pagas e a maioria acaba veraneando nas praias
pernambucanas durante os dias do congresso. O CNC distribui homenagens e
troféus a diferentes políticos e personalidades, em campanha aberta pela
recondução de Juca Ferreira ao MINC. Até o presidente da FICC, presente na
Jornada, atrela a entidade mundial à disputa do cargo brasileiro. Mais uma vez
sem programa e em chapa única, elege-se uma nova diretoria, agora presidida por
Luiz Alberto Cassol, do RS.
Uma assembleia geral da Federação Internacional de
Cineclubes também acontece no mesmo local, em sequência ao fim da Jornada.
Delegados de cerca de 40 países – também financiados pelo Brasil – elegem pela
primeira vez um presidente de fora da Europa: Antonio Claudino de Jesus.
Um detalhe: desde o início do ano, devido às muitas
mudanças de cargos no MINC, mas também por múltiplas dificuldades
burocrático-administrativas deixadas pelos programas de Juca Ferreira, os
projetos que movimentaram o ambiente cineclubista durante pouco mais de um ano já
estavam completamente parados. E, desde então, não foram retomados.
2011 – 2012 – Como parece acontecer periodicamente com o movimento
cineclubista (entre 1990 e 2003, por exemplo), a partir de 2011 o referencial
histórico já não é mais principalmente a organização nacional, mas a atividade,
muitas vezes pouco conhecida, dos cineclubes isoladamente. Ou de algumas
regiões do País. A gestão desse biênio, novamente sem qualquer apoio do Estado
– e incapaz de criar alternativas próprias – não realizou muita coisa.
Conseguiu organizar uma espécie de Pré-Jornada com um ano de atraso, mas não
chegou a reunir uma Jornada legal para a transmissão da gestão.
Diferentemente da última década do século passado,
contudo, um grande número de cineclubes subsiste um pouco por toda parte no
Brasil. Os milhares – ou mais seriamente, várias centenas – de cines mais desapareceram quase completamente,
dada a sua dependência congênita do paternalismo estatal. Característica
curiosa dos cineclubes mais ativos, que subsistem, poucos participaram dos
projetos públicos dos anos anteriores. Também algumas federações, nem sempre
com esse nome, mantiveram suas atividades e até as ampliaram, exercendo um
estímulo importante para os cineclubes em seus estados: Pernambuco, Espírito
Santo, Ceará, e mais periodicamente na Bahia ou em Goiás. Os primeiros são
também estados – no caso do RJ, também a capital - em que existem políticas
mais estáveis de apoio ao cineclubismo, ainda que sempre muito frágeis e pouco
importantes na comparação com qualquer outro setor do campo audiovisual.
Um pouco atrás (ver 2008) há a menção ao que veio a
chamar-se Pontão Cineclubista de Cultura. Apresentado pelo CNC, estranhamente o
projeto foi entregue à Associação de Cineclubes de Vila Velha (ES). Na ocasião,
final de 2011 e início de 2012, criou uma disputa virulenta, que separou velhas
lideranças das gestões anteriores do CNC: as quantias envolvidas eram bem
significativas. O projeto criou um site
de vida muito curta e a Filmoteca Carlos Vieira lançou um único programa (DVD)
antes de desaparecer. Mistério e suspeitas cercam todo esse episódio.
2013 – 2019 – O movimento cineclubista brasileiro não conseguiu,
depois de 2010, realizar uma Jornada - isto é, seu congresso nacional - legítima,
organizada segundo os prazos e as disposições democráticas estatutárias. Jurídica
e politicamente o Conselho Nacional de Cineclubes – cujos estatutos preveem
eleições a cada dois anos - deixou de existir em dezembro de 2012. No entanto,
uma assembleia altamente irregular foi realizada no primeiro semestre de 2013
em Vitória, ES, pretendendo ser uma Jornada regular, contando com o apoio
formal da diretoria do CNC cujo mandato já expirara, assim como reconhecida
pelo presidente da FICC. Cerca de 30 pessoas elegeram uma diretoria com número
praticamente igual de cargos (contando suplentes), agora presidida por Jorge
Conceição, da Bahia. Dois anos e meio depois, no final de 2015, em Salvador,
BA, o processo se repetiu, agora com a eleição de Eduardo Paes Aguiar, do
Centro Cineclubista de São Paulo (ver ano 2004). Nenhuma das duas gestões
apresentou qualquer projeto ou realizou alguma coisa além da reunião que a
reproduziu – exceto participações eventuais em eventos de terceiros,
“representando” o CNC. Desde 2017, a “nova” diretoria convocou algumas vezes
uma nova “Jornada”, mas nada aconteceu até o final de 2019.
2019 – Em dezembro desse ano Eduardo Paes Aguiar convocou (em
nome daquele CNC eleito irregularmente cinco anos antes) uma nova Jornada,
finalmente realizada em Viçosa, MG. Também convocada irregularmente, fez do
processo de participação uma seleção de aliados identificados com o grupo que
se constituiu para esse fim. Retomando, de certa forma, a aliança de 2004 (ver
esse ano), Diogo Gomes dos Santos lidera junto com o PCdoB a realização muito
exclusiva do Encontro. Desta vez, contudo, com o apoio do antigo adversário,
Antonio Claudino de Jesus, agora no papel de secretário-adjunto da FICC para a
América Latina. A Jornada, que nas palavras do secretário-geral eleito na
ocasião “foi a menor de que havia participado” desde 2004, mudou topicamente os
últimos estatutos do CNC, reduzindo bastante sua direção (que tinha quase 30
cargos) e dobrando o mandato da diretoria, tornando também o congresso
quadrienal. A presidência da entidade é ocupada Terezinha Avelar, de Minas
Gerais. Os cineclubes no Brasil, relativamente numerosos, estão muito
dispersos, a maioria organizados informalmente, muitos até de iniciativa apenas
pessoal[18].
O “novo” Conselho Nacional dos Cineclube Brasileiros (CNCB) está muito longe de
uma representatividade expressiva desse movimento. Sua direção, no entanto, tem
mais experiência e inserção política – esta através do vínculo partidário.
2020-2021
– Pandemia - A pandemia que atingiu o mundo todo provocou diversos
efeitos importantes no cineclubismo brasileiro, que já vinha se transformando
sob muitos aspectos. Inicialmente, fez com que as atividades dos cineclubes
fossem interrompidas desde meados de março. Mas parte dos cineclubes
paulatinamente voltou a promover sessões e debates virtuais. Desde o primeiro
semestre, o Cineclube Ó Lhó Lhó, de Florianópolis, de certa forma inaugurou
novas práticas com os recursos da Internet. Primeiro disponibilizou em seu
canal no YouTube (plataforma do grupo Google) uma série de exposições e
debates, Passado e Futuro do Cineclubismo, que constitui a mais
ampla discussão disponível em torno do tema do cineclubismo. Na sequência, o Ó
Lhó Lhó realizou um recenseamento informal dos cineclubes brasileiros – o Censo/Senso
Cineclubista -, através de reuniões virtuais por estado. Além de relativamente
pouco interesse de muitos cineclubes, também a oposição de certos grupos acabou
inviabilizando esse trabalho. Mesmo assim, cerca de 100 cineclubes, de 8
estados constituiram um importante banco de dados sobre as atividades
desenvolvidas em todos os cantos do País. No final do ano, a empresa Yahoo, que
hospedava a lista de debates dos cineclubes cncdialogo - criada em 2004
e com cerca de 1.200 participantes – extinguiu o grupo sem que houvesse
qualquer reação por parte do novo CNC, que detinha as senhas para realocá-lo. O
mesmo cineclube catarinense organizou uma nova lista que se mostra à altura da
precedente (que já estava bem decadente), senão em número de participantes, ao
menos pelo tipo de atividades que divulga.
Surpreendentemente, em que pese a política do governo
Bolsonaro, no segundo semestre de 2020 foi aprovada uma lei complementar aos
auxílios de emergência para a pandemia, voltada para a área cultural, com
recursos muito significativos (R$ 3 bilhões, equivalentes a mais de 500 milhões
de dólares): foi denominada de Lei Aldir Blanc, em homenagem ao compositor
morto pela epidemia. Ainda que visasse principalmente artistas desempregados e a
cessação de receita de entidades fechadas pelas restrições sanitárias, uma
parte substancial da verba foi dirigida a editais, o que possibilitou que
muitos cineclubes (que atualmente não têm mais nenhuma atividade econômica)
fossem beneficiados. Assim, encontros, debates, oficinas, além das exibições
com debate, se multiplicaram na Internet.
A Lei Aldir Blanc não foi uma iniciativa do governo,
mas o resultado de uma ampla mobilização de parlamentares progressistas no
Congresso, com apoio de setores da sociedade civil. Seus proponentes têm forte
ligação com os grupos que dirigiam e/ou apoiavam os programas da gestão de Juca
Ferreira (2008-2010), que incluíam o projeto Cine Mais Cultura, que existiu
durante esse mesmo período. Na prática, muito paradoxalmente, os editais da Lei
tornaram-se como que a única política cultural do governo Bolsonaro, em
dissonância absoluta com todas as suas outras ações – e omissões – nesse
âmbito. O campo aberto pelos editais da Lei Aldir Blanc reproduz, de certa
forma, a dependência dos cineclubes em relação a esses recursos governamentais,
tal como há 10 anos. Dessa forma, e graças a suas ligações com o partido que
geria parte do antigo ministério da Cultura, o “novo” CNCB pôde se integrar,
ainda que de forma subalterna, com as outras forças que buscam restaurar, de
alguma forma, as políticas identificadas com a gestão de Juca Ferreira. Uma de
suas primeiras aparições públicas, em julho, foi num episódio de uma série
denominada Diálogos Nacionais: Cineclubes, produzida pela Articulação
Nacional de Emergência Cultural, sob coordenação da conhecida organização Fora
do Eixo, onde o CNCB teve um papel coadjuvante e acanhado.
2022 – Lei Paulo Gustavo e Política Aldir Blanc – A experiência de aprovação da Lei Aldir Blanc parece
ter sido o maior incentivo para outras iniciativas no campo da cultura,
hostilizada se maneira amadora pelo governo. Ainda que desta vez tenha havido
maior resistência do núcleo “duro” do bolsonarismo, duas leis foram aprovadas
nesse final de governo. A Lei Paulo Gustavo, alegando ainda as perdas de renda
da Pandemia, na verdade está centrada na recuperação das receitas da produção
audiovisual retidas durante a administração bolsonarista. De seu valor total de
3,9 bilhões, 70% vão para o setor audiovisual e, ainda desse valor, outros 70% vão
diretamente para a produção. Já a Política Nacional Aldir Blanc é um projeto de
maior alcance, que se desdobra por alguns anos (há um tratamento mais
aprofundado disso em dois textos acessíveis em: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/08/politica-nacional-aldir-blanc-nova.html e https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2022/10/o-terceiro-turno-e-os-cineclubes-o.html).
Conclusões e perspectivas
Reconstrução democrática, repetição de modelos
A história do presente e a que examina perspectivas
futuras já são como que um anexo a esta Cronologia. Mas são,
concomitantemente, uma de suas principais decorrências.
Penso que podemos ensaiar uma periodização (meio
incompleta) do cineclubismo brasileiro. Sua história revela alguns ciclos não
apenas bem claros na linha temporal como nas características dominantes de suas
formas de organização e práticas. Vou examinar isso aqui muito rapidamente. Até
o final do Estado Novo, a ausência de pesquisas e de reflexão dificultam a
avaliação das experiências concretas e o papel social e cultural exercido por
elas (com exceção, claro, dos mais bem conhecidos Chaplin Club e Clube de Cinema
de São Paulo). Após a guerra, e até o início da ditadura militar (1945-anos
60), vivemos um ciclo riquíssimo, com cineclubes inspirados diretamente pelo
modelo cinéfilo parisiense (com muita influência da Igreja), que levou a
“cultura cinematográfica” para todo o País, criando um setor cultivado e até
politizado na classe média que, finalmente, desembocou no Cinema Novo – o eixo
fundador do moderno cinema brasileiro. No ciclo seguinte, do início dos anos 70
até meados dos anos 80, os cineclubes se identificaram como um movimento de
resistência à ditadura, que também se espalhou por todo o território nacional
e, igualmente, exerceu alguma influência na produção cinematográfica. Esse
movimento foi o que chegou mais perto de uma inserção social além dos setores
médios, falhando, entretanto, em consolidar essa posição. De meados dos anos 80
a meados dos 90 houve o ciclo de poucos cineclubes, mas muito ativos, com um
modelo de funcionamento diário. Esses cineclubes atingiram realmente um público
de massa em cidades grandes, mas sempre dentro de um modelo voltado à classe
média. Foram extintos por pressão do próprio sistema em que procuraram operar:
pela especulação imobiliária e pelos bancos. Esse ciclo é o último em que os
cineclubes brasileiros mantiveram formas de organização coletivas e
democráticas – neste caso juridicamente constituídas – e autônomas em relação
ao Estado, até então geralmente ausente ou mesmo hostil. E também independentes
de uma direção nacional formal, que se diluiu ainda no início desse período. Um
ciclo diferente começa em 2003 e termina a partir de 2010 (ou vai até 2012, fim
do último mandato legítimo de uma direção nacional). Hoje é possível
identificar claramente a dependência deste ciclo inteiro em relação ao
impulsionamento, e retirada deste, pelo Estado.
Aparentemente a nova gestão – chamada às vezes de Lula
3 –, ainda se organizando no âmbito da cultura, vai na direção de repetir,
quase mecanicamente, as experiências anteriores. Fazer essa crítica tem suas
dificuldades. Lula é o maior e melhor presidente da história da República, até
hoje. Se ele marcou o acesso simbólico da classe trabalhadora ao Estado em seus
primeiros governos, agora é responsável pela reconstituição do tecido
democrático formal – ferido gravemente pela gestão anterior – e pela geração de
políticas públicas inclusivas, em contraposição às graves desigualdade,
exclusão e preconceito que constituem e minam a estrutura social do Brasil. E,
mais que em suas experiências anteriores, tem de enfrentar, evitar, e compor
com as forças secularmente dominantes na economia e na política, extremamente
reacionárias.
A História se repete (o pessimismo da inteligência[19])
As palavras iniciais do primeiro capítulo de O 18
Brumário de Luís Bonaparte[20]
viraram uma citação bem conhecida: a História se repete, pelo menos duas
vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa. Aplicando, bem
resumidamente, seu uso na atualidade cineclubista brasileira, podemos dizer que
a tragédia teria sido o período anterior de Lula, com o governo que mais se
preocupou – e, provavelmente, o que mais investiu – no movimento de cineclubes.
E, paradoxalmente, foi dos que mais prejudicou esse setor da cultura,
cooptando, desestruturando e depois abandonando os cineclubes tornados
inteiramente dependentes não apenas das verbas – de resto pouco significativas
– mas até das iniciativas, da direção mesmo, oriunda do Estado. Houve um
estímulo importante e um abandono e queda ainda mais significantes. Claro, isso
não teria acontecido sem a participação voluntária dos próprios cineclubes e de
suas direções, nacional e regionais. Hoje, os cineclubes não mais podem ser
reconhecidos por suas características mais “tradicionais”: o caráter
associativo e democrático, a autonomia (isto é, o oposto de dependência), a autossustentabilidade,
a atividade sistemática e a participação social e política. Essa contradição,
aliás, está presente em “cartilhas”, oficinas, lives e outras
orientações que, no clima de otimismo com o governo (e suas possíveis verbas), que
já se instala, repetem “cânones” cineclubistas dignos dos anos 50 – mas
praticamente nenhum cineclube brasileiro corresponde a esse modelo. Cineclube,
hoje, é “exibição e debate”, com pouca ou nenhuma sistematicidade; é iniciativa
individual ou de muito poucos, que geralmente também atinge apenas públicos
muito reduzidos.
A possível repetição farsesca será a reprodução da
distribuição de kits de projeção para centenas ou milhares de indivíduos, agora
sem uma Programadora que oriente sua relação com o público, já que o acesso a
conteúdos audiovisuais - na contracorrente da apropriação proprietária de
empresas produtoras e realizadores - é tendência cada vez mais dominante nas
relações do público com as mídias. De fato, essa “orientação” ou controle da
programação será substituído pelo expediente dos direitos autorais: atividades
só permitidas, ou orientadas, com autorização dos detentores desses “direitos”
– aliás, geralmente constituídos com financiamento público. O Governo já criou cargos
em comissão para responsáveis pelos cineclubes – sem qualquer consulta a um
movimento que, apesar dos esforços do CNCB (ver o período entre 2010 e 2019),
não têm uma real representação ou organização nacional. De fato, na realidade, com
cineclubes sem estrutura organizacional não é possível uma representação
formal: uma entidade nacional de cineclubes é impossível atualmente. O Estado,
reproduzindo seu comportamento anterior em outra realidade, tentará substituir
essa representação através das Conferências Nacionais (cuja análise não vou
fazer aqui, mas que não conseguem representar os públicos, apenas os autores ou
artistas dos mais diversos tipos). Muito possivelmente, o Estado criará – como
já fez com os Pontos de Cultura – ou “estimulará” enfaticamente estruturas e
organizações ajustadas às “políticas públicas”. E, encurtando estes
comentários, poderemos ter mais uma política, leis e programas de curta
direção, baseados e dependentes quase exclusivamente do Estado, e que podem
desaparecer junto com a mudança de administração. Isso aconteceu com a passagem
do governo Lula para a gestão de Dilma Roussef, sua mais confiável seguidora.
Em 2026, com Lula octogenário, há uma forte possibilidade de se repetir o
fracasso do seu segundo governo quanto aos cineclubes. Mas numa realidade bem
diferente, em que a comunicação experimenta uma revolução digital e midiática.
E em escala muito maior, com “cineclubes” ainda mais desnaturados e uma
desorganização mais ampla e, talvez, mais definitiva. Uma farsa, que pode ser
bem trágica.
O otimismo da vontade
Não cabe aqui, certamente, tratar em toda sua extensão
e complexidade as propostas necessárias ao restabelecimento do cineclubismo
como movimento cultural e social. A própria concepção de cineclube precisa ser
revista, antes de mais nada pelo reconhecimento da primazia do público, das
comunidades – ou seja, das relações sociais reais - em relação ao discurso
semiológico abstrato do cinema. Isto posto, é indispensável o reconhecimento
das profundas transformações dos meios de comunicação, a revolução digital e a
constituição dos espaços virtuais. Em síntese, que o cinema, ferramenta
apropriada pelas organizações do público no final do século 19, e que ocupou um
papel fundamental na intermediação das relações sociais até meados do século
passado, foi superado por formas mais dinâmicas e mais amplas de comunicação,
desde a televisão até a rede mundial de computadores. As mídias audiovisuais em
conjunto, como dispositivo social, têm uma presença infinitamente maior e um
papel hoje preponderante na própria mediação das relações sociais, da produção
da vida à produção da cultura.
As difíceis, quase insuperáveis tarefas concretas que
desafiam os cineclubes brasileiros – e de todo o mundo – envolvem a
reorganização de seu caráter associativo democrático, mas efetivamente enraizado
nas comunidades e movimentos populares. A constituição de uma ampla rede de
participação e colaboração entre cineclubes compreendidos como instituições
audiovisuais das comunidades pode ser parte do processo de transformação do
Estado, de constituição de um Estado em transição para uma sociedade mais
democrática e justa – e nesse sentido deve participar e propor a direção das
políticas culturais públicas dos governos, e não simplesmente seguir diretrizes
elaboradas em gabinetes.
Como já foi dito, um “movimento” de “clubes” de uma
pessoa só, ou de pouquíssimos participantes, sem regras democráticas e sem
inserção popular, não pode ser base para a constituição de uma instituição
nacional representativa. Ou será artificial, fraudulenta ou no máximo
corporativa, reunindo individualidades que pretendem incorporar uma
representação simbólica, imaterial, irreal.
O longo, árduo caminho que as iniciativas e pessoas
que hoje se interessem genuinamente pelo cineclubismo, tem que começar por
formas de reconhecimento, de questionamento honesto de sua condição e das
formas de superar suas fraquezas e deficiências, aproveitando a legislação –
especialmente a Política Nacional Aldir Blanc – para constituir cineclubes
organizados, autônomos, com espaços próprios dentro das mais diversas
comunidades. E, como hoje as iniciativas que se reconhecem como cineclubes
assumem as formas mais diversas, inclusive entre si, ou são simplesmente
iniciativas individuais, a única forma de iniciar esse processo de forma
inclusiva e abrangente é o estabelecimento de um Fórum Nacional de Cineclubismo
aberto a todos[21]:
uma instância informal de circulação de ideias e debates que podem evoluir para
propostas e, no ritmo possível, ajudar a constituir cineclubes integrais de um
novo tipo, base para um movimento organizado em escala nacional.
[1] Tese doutoral em redação,
Universidade do Minho.
[2] Wittman, Richard, “Existe uma
revolução da leitura no final do século XVIII?”, em Cavallo, Gugielmo e
Chartier, Roger. 1998. História da Leitura no Mundo Ocidental. São Paulo:
Editora Ática.
[3] Butsch tem vários livros publicados,
mas paradoxalmente é pouco conhecido. Creio que a obra que melhor resume seu
trabalho é The Making of American Audiences – From Stage to
Television, 1750-1990, Cambridge University Press, 2000. Infelizmente
desconheço traduções do seu trabalho.
[4] Kracauer, Siegfried. 1926. “The
Cult of Distraction – On Berlin’s Picture Palaces”, em The Mass Ornament,
1988. Harvard University Press.
[5] Martín-Barbero, Jesús. 2013. Dos
Meios às Mediações – Comunicação, Cultura e Hegemonia. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ.
[6] Freire, Paulo. 1998. Pedagogia
do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
[7]
Ross, Steven J. 1998. Working Class Hollywood – Silent Film and the Shaping
of Class in America. Princeton
University Press.
[8] Várias instituições ligadas
ao cinema, e o próprio cinema, isto é, as primeiras projeções, ocorreram mais
ou menos simultaneamente em diversos lugares e países diferentes. É mais que
provável que várias organizações do tipo que podemos identificar como cineclubes
tenham surgido igualmente em diversos contextos. O Cinema do Povo, no entanto,
parece até hoje o mais completamente documentado.
[9] Bakhtin, Mikhail (ou
Volochínov). 2014. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:
HUCITEC.
[10] Tive acesso, também a uns
poucos documentos dessa época – publicações do CNC e boletins da Dinafilme.
[11] Neste caso específico das
mulheres, a chamada Teoria Feminista de Cinema é bem anterior, talvez seu texto
inaugural pudesse ser identificado com “Visual Pleasure and Narrative Cinema”,
de Laura Mulvey, 1975 – mas outros textos feministas já circulavam naquela
década.
[12] Existe menção a uma disputa
entre o médico Tobias Barreto (não confundir com o poeta mais conhecido) e o
abade de São Paulo após uma exibição pública de filmes que mostravam a
Inquisição (1901) e que degenerou numa briga entre anarquistas e católicos – http://www.almanack.paulistano.nom.br/ambulantes.html (acessado em setembro de 2012).
[13] Entre outras: Figueira, Cristina
Aparecida Reis. 2003. O Cinema do Povo: um projeto de educação anarquista –
1901-1921. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade de São Paulo.
[14] Almeida, Cláudio Aguiar.
2011. “A Igreja Católica e o Cinema: Vozes de Petrópolis, A Tela
e o jornal A União entre 1907 e 1921”, em Capelato, Maria Helena;
Morettin, Eduardo; Napolitano, Carlos, e Saliba, Elias Thomé. História e cinema:
Dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda.
[15] Agradeço a inestimável
contribuição de Gizely Cesconetto, que encontrou diversas informações, que
utilizo aqui, sobre o Club de Cinema do Club dos Democratas, especialmente em
algumas edições do jornal Pátria, de Sobral, entre 1910 e 1915.
[16] Carvalho, César Augusto. 2008.
“Constelações cinematográficas: cineclube, cultura brasileira e cinema nos anos
50”, em GUIRADO, Maria Cecília. 2008. Processos midiáticos em construção:
Brasil 200 anos, São Paulo: Ed. Arte e Ciência e Marília: Ed. UNIMAR.
[17] Noronha, Jurandyr. 2008. Dicionário
de Cinema Brasileiro – De 1896 a 1936, do Nascimento ao Sonoro. Rio de
Janeiro: EMC Edições.
[18] Evidentemente há uma
contradição total entre a concepção de clube, de associação, e essa referência
a “cineclubes” de iniciativa individual. De fato, todas as características
originais – e centenárias – dos cineclubes praticamente despareceram no Brasil:
o caráter coletivo e democrático, o associativismo, a autonomia, entre as
principais. Embora virtualmente não existam mais cineclubes no Brasil, inúmeras
iniciativas e práticas de exibição se consideram como tais. Não há como
desconsiderar essa nova realidade ou excluir desta Cronologia esse novo modelo.
[19] “Pessimismo da inteligência e
otimismo da vontade”. Essa espécie de dístico aparece algumas vezes nos
escritos de Gramsci (Gramsci, Antonio. 1999. Cadernos do Cárcere. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira): “é preciso atrair a atenção violentamente
para o presente assim como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da
inteligência e otimismo da vontade”. Ou: “O único entusiasmo
justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a operosidade
inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a
realidade existente”. E ainda: “é preciso criar homens sóbrios,
pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e que não se
exaltem por qualquer tolice. Pessimismo da inteligência e otimismo da vontade.”
(apud Lelio la Porta, verbetes “otimismo”, p. 595-596 e “pessimismo”, p. 621,
em Liguori, Guido e Voza, Pasquale (orgs.). 2017. Dicionário Gramsciano.
São Paulo: Boitempo)
[20] Marx, Karl.1969 (1852). Le 18
Brumaire de Louis Bonaparte. Paris : Éditions Sociales.
[21] Não há que ignorar o Conselho
Nacional de Cineclubes Brasileiros (ver os anos 2019 e seguintes); inclusive o
grupo deverá promover mais uma Jornada, ainda neste ano, e desta vez com apoio
do governo federal. Se não reconheço sua representatividade nacional, nem vejo
consequência nas propostas que tem apresentado, penso, contudo, que é uma
iniciativa que se inscreve dentro da realidade cineclubista brasileira atual.
E, como tal, também pode contribuir significativamente em um Fórum como o
proposto.