O terceiro turno e os cineclubes
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro
O título do filme icônico de Glauber Rocha serviria
bem para enquadrar a situação que vivemos neste segundo turno das eleições
presidenciais no Brasil. Estamos diante de uma perspectiva de horror,
representada pela possibilidade de reeleição do criminoso psicopata Bolsonaro:
o Dragão da Maldade. Isso nos levaria a uma destruição tão grande das chamadas
instituições republicanas e das estruturas administrativas ligadas à educação,
à ciência, à cultura, ao meio ambiente e à segurança dos setores
eufemisticamente denominados de vulneráveis, que ou implantaria de forma mais
estável um já esboçado regime fascista à moda contemporânea ou, mesmo que essa
fase fosse depois superada, ainda deixaria um monte de escombros sobre o já
arrasado solo social brasileiro: uma
condição de atraso e dependência que levaria gerações para ultrapassar, ou pior,
que poderia até se tornar nosso modo permanente de existir. No lado oposto
temos um herói popular: Lula, o Santo Guerreiro que, independentemente de
qualquer crítica que possa lhe ser feita, representa a única possibilidade de
determos esse processo destrutivo já iniciado e de retomarmos uma trajetória de
reconstrução institucional e social. Estamos diante de uma encruzilhada de
alcance histórico inigualável.
No entanto, por mais vital, como de fato é essa
decisão, seu resultado não altera – na melhor das hipóteses atenua - uma
condição essencial do Brasil: sua subalternidade em relação ao capital internacional
e a exploração sistemática, estrutural e histórica, assim como a exclusão da
grande maioria da sua população dos mínimos benefícios permitidos pela evolução
das condições de vida em nossos tempos. Só uma verdadeira revolução – política,
social e econômica - mudará a essência dessas condições. Por isso, este texto
não tratará dessa escolha imediata, mas do que nos espera no momento seguinte
ao resultado das eleições. E daí para a frente.
A sobrevivência dos mais fracos
No Brasil, a conhecida cesta básica equivale – segundo
levantamento recente do DIEESE – a 60% do salário mínimo. Os aluguéis mais
baratos estão mais ou menos nessa mesma proporção, ou pior. Só essa soma, necessária,
mas insuficiente para a sobrevivência, já ultrapassa o mínimo. Ainda segundo o
instituto intersindical, uma família de 4 pessoas necessitaria de, pelo menos,
5,39 salários para viver. Ora, entre desempregados, trabalhadores informais e
todas as demais categorias, cerca de 70% da população brasileira ganham menos
que um salário mínimo. Uma parte considerável não consegue sequer comida
suficiente, metade da população não tem esgoto e um contingente muito
significativo não tem sequer acesso regular a água potável. Mais de 30 milhões
passam fome! É o tamanho da população do Peru, por exemplo.
Essa grande maioria cuida, basicamente, de sobreviver.
Numa sociedade moldada pelo passado recente de escravismo (cerca de 400 anos) e,
posteriormente, das ditaduras (mais quase 40 anos), ao todo resta-nos menos de
um século de “liberdades democráticas” temperadas de privilégios, preconceitos
e exclusão. As maiorias – mulheres e negros, por exemplo – e outros segmentos
de brasileiros, junto com aquelas, ainda têm sua situação definida, e piorada,
em função de características de gênero, de raça, ou segundo heranças e opções
culturais e comportamentais.
O Brasil – os dois terços da população que praticamente
definem o que é este país - vive na miséria. Segundo o dicionário: um estado de
carência absoluta de meios de subsistência. Miséria também é um estado de alma:
uma situação permanente de indigência, de penúria, acompanhado de enorme
sofrimento, infelicidade, desgraça. A luta pela sobrevivência em seus níveis
mais básicos não favorece o tirocínio ou o juízo moral: as opções éticas e a
compreensão da vida social tendem para as escolhas que permitam a alimentação,
o abrigo, a segurança. Ou, em muitos casos, apenas a ilusão desse abrigo e
segurança. Ainda mais: os que escapam desses limites também estão presos na
instabilidade de sua condição – as fronteiras de pobreza no Brasil oscilam
conforme os governos e os ciclos econômicos – e apresentam esse perfil
ideológico de medo da pobreza que, como bem definiu Paulo Freire, favorece uma
espécie de consciência necrófila, transformando a frágil superação da condição
de oprimido pela necessidade de, por sua vez, reproduzir a opressão. A base
social mais ampla da psicopatia bolsonarista se enquadra nessa explicação
freiriana.
Mas a grande maioria não está sequer nessas regiões
limítrofes, e sim nas situações mais graves de carência. A miséria, a luta
diária pela sobrevivência básica, também trazem uma dificuldade extrema de
formular um projeto próprio de emancipação, de poder compreender, ter
consciência de seu papel na sociedade complexa e na história. A luta pela
sobrevivência, com alguma frequência, vira competição; e esta facilita, empurra
ao crime.
Tanto para Freire como para Gramsci, a consciência de
classe é um processo em relação constante com práticas de luta social; elas é
que constroem a hegemonia de valores contrários à exploração do trabalho, de
emancipação e de solidariedade. A definição de uma nova ordem social e moral se
dá no próprio processo da sua construção. É na luta que aponta para, ou resulta
em novas formas de relação social e na construção de instituições, isto é, de
formas de organização, de valores morais, comportamentos e normas com que vão
se tecendo as bases e a estrutura uma nova sociedade, com novas formas de
convivência entre as pessoas, de administração e distribuição da produção, de
definição de valores e projetos para o futuro da humanidade.
A condição miserável de grande parte da população
brasileira, assim como sua herança histórica de exclusão e exploração extremas
não facilitam a tarefa de compreensão e construção de novas instituições, de
uma nova sociedade. É mais difícil pensar em deter a destruição do planeta
quando não se tem água para beber, ser solidário quando se buscam restos de
comida (e, no entanto, exemplos de solidariedade são tão comuns entre os que
pouco têm). Por isso podem florescer as crenças que situam a felicidade num mundo
imaginário, místico e sempre por vir, iminente mesmo. Mas que, na verdade, nunca
chega.
De fato, a crença religiosa – e o milenarismo que
acompanha as seitas de maior sucesso no País, nos últimos anos – é muitas vezes
uma forma de descrença, de desânimo, de abandono da esperança no real. Descrença
nas possibilidades de gerir sua própria emancipação no mundo real, remetendo-a
ao plano do divino. Algumas igrejas, constituídas como grandes corporações, e
mesmo como partidos políticos (próprios ou ocupados em alguma medida), oferecem
interpretações da esfera divina para as opções materiais, sempre conservadoras
no plano das relações sociais e reacionárias no campo da economia – o que é a antítese
das necessidades da população e mesmo dos princípios de fraternidade, paz e
justiça que constituem o discurso e as crenças não apenas do cristianismo,
majoritário no Brasil, mas de todas as religiões.
Nossa miséria também se reflete nas características da
classe dominante, dependente por sua vez do domínio e controle das classes
dominantes do “primeiro” mundo: aquele que vem antes, tem a primazia, detém a
hegemonia real. Nossa classe dominante também não tem perspectiva de futuro e
limita-se a posturas predatórias e oportunistas, violentas e cruéis, cujos
exemplos recheiam nossa história. O oportunismo estrutural das “elites”
brasileiras também é uma forma de descrença e de desânimo, mas marcadas pela adesão
confortável ao mais forte, ao governante, ao estabelecido.
As eleições, as ruas e o cotidiano do proletariado
A formação das classes subalternas criadas com o
capitalismo, nos países centrais inicialmente, foi marcada pela
superexploração, pela violência e por níveis de miséria e fome que não são nada
estranhos à experiência de seus equivalentes na população brasileira contemporânea.
O proletariado foi expulso do campo, concentrando-se nas áreas urbanas,
juntando-se a outros pobres como massa disponível para o trabalho fabril – que
caracteriza o capitalismo sobretudo do século 19 – e para a prestação de
serviços à burguesia e seus servidores mais aquinhoados. Reunidos em grandes
contingentes nas fábricas, convivendo e partilhando uma mesma condição – e
sendo, ao mesmo tempo, a base principal da formação do capital - o operariado
se tornou uma força política e formou a vanguarda política dos segmentos
populares. Durante mais de um século, foi essa vanguarda que conduziu as lutas
e as maiores conquistas das classes trabalhadoras, entre elas a grande
revolução que deu origem à União das Repúblicas Soviéticas.
Depois da 2a. Guerra Mundial outros segmentos também tiveram
um protagonismo mais decisivo: os camponeses na constituição da República
Popular da China, e muitos setores populacionais unidos em revoluções
anticoloniais e socialistas na África, principalmente, mas também na Ásia e na
América Latina.
Os últimos 50 anos, no entanto, estão marcados pela acumulação
de experiência pelo Capital no enfrentamento – e, em muitos casos,
neutralização - daquelas lutas; pelo desenvolvimento das forças e dos processos
produtivos, com o estabelecimento sempre crescente da hegemonia do capital
financeiro; pela expansão geográfica e vertical do sistema, com a derrocada do
sistema soviético e, mais recentemente, pela revolução digital, afetando não
apenas a produção, mas resultando na criação de sistemas planetários de
comunicação e transmissão de dados, valores e controles sociais.
As classes trabalhadoras não lograram progressos
significativos em sua emancipação neste último período. Ao contrário, houve um
recuo bastante generalizado nas principais instituições criadas – e nos
direitos conquistados - pelas lutas dos trabalhadores, especialmente em seus
partidos políticos, sindicatos e outras organizações e movimentos sociais. O
proletariado não deixou de lutar com as mesmas disposição e intensidade a que a
própria vida o obriga, mas encontra-se enfraquecido e desorientado. Muitas de
suas manifestações não têm coerência de propósitos (como o Occupy Wall Street,
por exemplo) e se esgotam sem objetivos concretos; outras não conseguem unidade
nos objetivos, como os Coletes Amarelos na França, e muitas já não mobilizam a
maior parte dos que seriam interessados. Na América Latina temos ondas que se
entrechocam, de avanços e recuos políticos que, no entanto, não estabeleceram
até agora mudanças mais duradouras.
O Brasil tem uma história própria, dependente, e
construída com relativamente menos protagonismo popular que o das nações mais
avançadas do sistema. Mesmo assim criou uma sociedade civil forte o bastante
para, no período referido, derrubar a ditadura. Grande e significativa vitória,
mas não o suficiente para construir uma democracia vigorosa ou estável. E mesmo
essa sociedade civil comparativamente frágil também experimentou o refluxo e o
enfraquecimento de suas instituições. O Partido dos Trabalhadores, que foi uma
espécie de cume da fase de avanço popular, não conseguiu apontar caminhos
realmente sólidos, indispondo-se logo de início com a Constituinte – o outro
ponto alto das lutas populares e democráticas –, e paulatinamente adaptando-se
às exigências e costumes da via político-institucional à moda brasileira, enfraquecendo
as bases populares organizadas e mesmo comprometendo seu próprio prestígio.
Seus governos, de conquistas significativas – de fato, os melhores de toda a
nossa história republicana -, ao mesmo tempo não ajudaram a organizar os
trabalhadores nem estabeleceram instituições sólidas sob o controle das
maiorias. Outros partidos, como o histórico Partido Comunista, se
desconjuntaram: uma parte substancial simplesmente aderiu, transformando-se em
complemento de partidos liberais ou ainda mais à direita, e uma pequena parte
busca uma recomposição partidária e ideológica coerente, mas sem conseguir
superar, ainda, a irrelevância política e social. O PCB de hoje divide esse
espaço de isolamento com outros partidos nanicos: PSTU, PCO, UP. A cisão dos
anos 60 do velho Partidão, o PCdoB, é mais importante que esses no campo
parlamentar, mas também é mais uma força auxiliar do PT do que uma agremiação
partidária com propostas claras, além das que se referem ao aparato político
institucional. O que Gramsci, em referência a Maquiavel, chamava de “príncipe
moderno”: o intelectual coletivo capaz de conduzir a construção e
estabelecimento de uma nova hegemonia, é no Brasil um conjunto de forças ainda
muito dispersas e que sequer conseguem estabelecer uma unidade operacional numa
eleição como a que estamos vivendo. Essa unidade, aliás, teria dado à classe
trabalhadora a vitória no primeiro turno das votações.
Essas chamadas esquerdas, contudo, constituem o
patrimônio e a expressão concretas da organização do proletariado brasileiro
real (constituído por uma grande maioria de desempregados e subempregados, além
dos trabalhadores mais “tradicionais”, se cabe a expressão). Elas ajudaram a
criar e a manter as perspectivas políticas dos trabalhadores limitadas
atualmente ao campo eleitoral e às “ruas”, isto é, passeatas e comícios. Isso
não deixa de ser um reflexo de uma crescente ausência das esquerdas nas
organizações e instituições populares. De fato, nestas eleições, a ausência da
apresentação de programas e, especialmente no segundo turno, a aceitação do
estilo fascista imposto pelo bolsonarismo, com intrigas e difamação, é mais um
indício claro da incapacidade de realmente organizar a participação popular no
processo político. No plano ideológico – e, exemplarmente, nas chamadas mídias
sociais – a vantagem da direita (que, note-se, costumamos designar no
singular...) ou, no mínimo, do seu estilo e de suas pautas, parece evidente.
Como votar com consciência política, social,
histórica, se essa discussão não é a principal da campanha eleitoral? E mais, se
mesmo essa questão, quando muito, só aparece na campanha eleitoral, a mais
curta da história recente? As ruas, por sua vez, foram crescente e nitidamente
melhor aproveitadas pelos setores reacionários. O carisma fascista do Führer,
do Duce ou do Mito; a apropriação muito bem sucedida dos grandes símbolos
nacionais (bandeira, suas cores, a própria Seleção de futebol), além do uso
escancarado das instituições e dos recursos públicos (em certos casos, até com
a anuência das esquerdas parlamentares) mostraram-se, em geral, mais eficazes –
ainda que traficadas - para mobilizar maiores e/ou mais visíveis manifestações
nas ruas, sem que a contestação das múltiplas ilegalidades do processo tenha
conseguido mostrar a mesma efetividade.
As instituições geradoras de valores, os aparelhos
de hegemonia, segundo Gramsci - dos partidos políticos aos sindicatos, das
associações de bairro e de movimentos sociais aos cineclubes -, foram em grande
parte abandonadas, ou desprovidas de muitas de suas práticas e atribuições pelas
esquerdas, pelas vanguardas políticas, sociais e culturais. O convívio nas organizações
proletárias e populares, a construção coletiva da identidade de classe (da qual
faz parte essencial a compreensão da importância das questões raciais, de
gênero e outras, como também da defesa do planeta) nas práticas e lutas do
cotidiano foi deixado sobretudo às igrejas mais conservadoras, que se dedicaram
a isso com afinco. E às mídias, que também intervêm profundamente na vida
diária de todos. É inclusive exemplar como essas duas coisas se somam:
proselitismo religioso e mídias audiovisuais.
Proletariado ou público
Ao mesmo tempo que o proletariado se expande, com o
assalariamento dos trabalhadores do campo ou com a proletarização de setores
médios, por exemplo, o papel central do segmento operário e fabril diminui comparativamente
em importância. No Brasil, com a desindustrialização; no mundo todo, com o
crescimento da automação e o aumento do setor de serviços.
Tal como o ambiente da fábrica, os espaços
comunitários – com exceção, claro, dos estabelecidos pelas igrejas,
especialmente as evangélicas – também perdem relevância, em boa medida para as
mídias, que substituem o convívio direto pela interação virtual e automatizada.
É unânime a consideração de que as mídias hoje constituem os principais
veículos de comunicação, de formação e de socialização, em seus espaços cada
vez mais “íntimos”, regulados por sistemas automáticos organizados para a
produção de informação para os donos dos meios de produção: o Capital, a classe
dominante. Embora existam iniciativas de resistência, elas são extremamente
minoritárias. A própria estrutura das plataformas em que estão
instalados esses espaços virtuais é concebida para se apropriar e, na maioria
dos casos, neutralizar ou cooptar essas iniciativas, especialmente as de maior
público, através de sua monetização.
O outro aspecto essencial desse sistema é que sua
produção de lucro se dá pela venda de dados de seus consumidores a anunciantes
– os metadados -, num processo cumulativo ininterrupto de coleta de
informações as mais diversas: de interesses e hábitos de consumo, de locomoção,
mas também financeiros, de saúde e muitos outros. Com isso, o Capital pode cada
vez mais aperfeiçoar e sintonizar sua comunicação com esse público, com esses
consumidores, esse proletariado expandido. Além desse controle das informações
sobre as necessidades e anseios do público, os mesmos dados servem para o
controle político e social, e para a repressão mesmo, no que hoje se chama de
“capitalismo de vigilância”.
As maiores corporações do mundo se apropriam dos dados
de todos que frequentam suas plataformas – Google, Facebook, YouTube, Netflix,
etc. - ou que adquirem seus produtos – Apple, Microsoft, Amazon – ou, em muitos
casos, as duas coisas juntas. Esses dados das vidas de todos e de cada um são,
por direito, privados. De fato, definem a própria privacidade no campo das
relações sociais contemporâneas. No entanto, eles são apropriados sem nenhuma
compensação, sem autorização e sem controle por parte do público. Essa
apropriação é muito semelhante à da mais-valia, do sobrevalor produzido pelo
trabalho que não é restituído integralmente ao trabalhador, mas apropriado pelo
capitalista que o emprega. Por isso, vejo uma identidade crescente entre o
conceito de público – receptor e consumidor de todas as mídias – e o
proletariado, isto é, o conjunto de assalariados e outros dependentes do
capital. Em ambos os casos estamos designando uma mesma população, que tem como
característica principal não ter a propriedade dos meios de produção: hoje
tanto os de sua própria vida material, como também do seu imaginário, da sua
vida no campo simbólico – ou espiritual.
As mídias audiovisuais (e o cinema)
Sem me estender muito sobre as reviravoltas
etimológicas da palavra meio (de comunicação), lembro que ela veio do
latim (medium, plural media), assim passou para o inglês e,
através da pronúncia macarrônica do plural naquele idioma, voltou para nós e
acabou sendo abrasileirada como mídia ou mídias. A ideia de meio
- uma maneira, um sistema, um suporte, um veículo ou aparelho - de comunicação
não se limita, como costumamos empregar, aos meios mais modernos ou mesmo
audiovisuais de comunicação. A escrita é um meio de comunicação. De fato, o
meio de comunicação mais básico e essencial é a fala: um meio que utilizamos com
extensão e sutileza que nos são exclusivas; constituem uma das principais
características distintivas da espécie humana entre todos os animais.
Embora a fala pudesse ser incluída num campo do áudio,
e muitos meios de comunicação sejam também visuais – a pintura, a fotografia,
mesmo a escultura –, convencionamos chamar de meios ou mídias audiovisuais os
que envolvem recursos técnicos definidos, principalmente mecânicos e
eletrônicos, em sua criação e uso. O cinema, que como sistema de captação e
projeção de imagens (ainda sem som) se consolida no final do século 19, e que,
no final dos anos 20 (um pouco depois do uso generalizado do rádio) passa
também a reproduzir o som, pode ser considerado a base do paradigma audiovisual.
Em boa medida, outros meios audiovisuais já estavam em desenvolvimento ao mesmo
tempo que o cinema: o rádio e outras formas de reprodução e transmissão do som,
e mesmo a televisão, que só vai se tornar predominante depois da 2ª. Guerra
Mundial.
A evolução técnica experimenta um salto qualitativo
com a introdução da tecnologia digital, que redefine a produção, difusão e
consumo, ou recepção, dos meios audiovisuais mais ou menos um século depois da
“invenção” do cinema. Penso que poderíamos falar em duas revoluções: uma
começando com o cinema (cujo desenvolvimento é bem anterior, desde a invenção
da fotografia, ou mesmo antes), na última década do século 19, e outra, a
digital, com generalização dessa tecnologia e a constituição da rede mundial de
computadores. Mas o paradigma audiovisual, enquanto tal, começa e se define com
o cinema.
Todo meio de comunicação implica numa linguagem, na
verdade linguagens: diversas variações e evoluções do modo de expressão do
meio. É nesse sentido, principalmente - pois há outros - que o cinema
estabeleceu o paradigma audiovisual. É sobretudo em torno da expressão
da realidade em imagens e movimento, que o cinema inaugurou, que se constituem as
variações derivadas: na televisão e em outras telas, isto é, sistemas de captação
e reprodução das imagens e sons. Na verdade, em muitos níveis, todas as formas
de expressão e comunicação, todos os meios, se influenciam mutuamente todo o
tempo, e têm suas raízes numa mesma capacidade ancestral dos seres humanos de
se comunicar, determinada pela sua vida social e pela habilidade em transformar
a natureza (e, assim, a si próprios).
Povo, proletariado e público
De certa forma, sempre existiram públicos: desde que
os homens se comunicam em suas comunidades. Mas hoje, quando falamos em
público, estamos nos referindo aos públicos do nosso tempo. De fato, com a
generalização quase absoluta dos aparelhos digitais conectados numa rede
planetária, o público contemporâneo praticamente se confunde com o
conjunto da população da Terra. Público também remete à ideia de ser público
de alguma coisa, isto é, de um espetáculo de qualquer tipo, mas também, em
outros níveis, das mídias: o público leitor, público de cinema, de televisão,
etc. Até chegarmos ao público total, esse que chamei de público contemporâneo,
que se confunde com a ideia de povo, de proletariado.
E por que essa identificação? Porque se o público é
sempre público de alguma coisa, seu papel social ainda seria, num certo
sentido, dependente, subalterno a quem produz aquela “alguma coisa”: o
espetáculo e os outros produtos industriais (livro, cinema, televisão,
internet, etc.). Como o proletariado, como já foi dito anteriormente, o público
não detém os meios de produção daquilo de que é público.
Mas a coisa é mais complicada. Ou dialética. Ainda que
ocupe essa posição formalmente subalterna, as mensagens, os sentidos de que o
público é público, se constituem socialmente através e apenas através de sua
adoção ou apropriação pelo público. Como já demonstrou Bakhtin, os sentidos
variam o tempo todo, não numa relação dualista, tipo emissor-receptor, mas numa
espiral de interação permanente, que não tem começo, não tem um lado principal:
o emissor de uma mensagem (ou de um enunciado, como diria Bakhtin), dos
sentidos nessa mensagem, já é produto de um repertório constituído; e sua
mensagem e sentidos serão reconstituídos e ressignificados pelo interlocutor,
ou pelo público. Esse é um processo permanente, que varia também segundo os
contextos históricos e sociais, em ambientes de classe, de território, etc. De
certa forma, como todos os participantes nesse processo – receptores/emissores/receptores
- estão inseridos num público geral, podemos dizer que o público não é apenas o
público de alguma coisa, mas o sujeito dialético, o autor em última instância
daquilo de que é, também, público. E, como o proletariado, que não detém os
meios de produção, mas é o produtor real e concreto de toda a riqueza, o
público é o criador, o autor de todos os sentidos. O público é, na atualidade,
a expressão no campo simbólico do que o conceito de proletariado exprime nos
campos econômico e social.
Público, proletariado, cinema e as mídias audiovisuais.
Esse público geral ou contemporâneo a que já me
referi, especificamente nessa acepção se constitui inicialmente com o advento
do cinema. Em sua formação e consolidação, o cinema formou (ou, de fato
consolidou, a história é mais complexa) um público de um novo tipo. Um público
muito mais amplo do que outras mídias tiveram anteriormente: pela primeira vez
mulheres e também crianças foram parte importante, e às vezes, numericamente
maiores que outros segmentos na frequentação desses espaços públicos. Esse
público surge com o cinema e, sem ele, o cinema – todo o dispositivo econômico
e social – também não existiria. São duas faces da mesma moeda.
O cinema também é parte da chamada modernidade: uma etapa
do capitalismo que alguns chamam de segunda revolução industrial (especialmente
no século 19 e sobretudo entre 1870 e 1920), com a confluência de diversas
inovações tecnológicas nos transportes (estradas de ferro, aviação), nas
comunicações, transformando o próprio ritmo da vida urbana. O cinema foi o
dispositivo mais importante entre outros que também caracterizam essa
modernidade, como o fonógrafo, o telefone e outros. O proletariado se consolida
na mesma época, no mesmo contexto e no mesmo processo. O público de massa
inicial do cinema era especificamente de trabalhadores e imigrantes pobres (na
segunda década do século 20 se expande ainda mais, assimilando as classes
médias).
Se o cinema foi muito importante naquela fase do
capitalismo, seu papel já evoluiu no pós-guerra com a televisão e, no final do
século, com a internet. Atualmente, as mídias ampliam e redefinem o papel do cinema
e o conceito de público. O público continua sendo a expressão do proletariado
no plano do simbólico, mas ambos mudaram. De fato, a transformação das formas
de trabalho – em boa medida devido à revolução digital – é uma das grandes
características do tempo que estamos vivendo. Muitas formas de produção,
inúmeras profissões, diversos ofícios estão desaparecendo, ou sendo
profundamente transformados e reorganizados. A revolução digital não acabou; as
revoluções não “acabam”, mas diluem-se e se integram a uma nova situação, com
suas próprias condições a serem, por sua vez, superadas. Hoje a mídias não são
apenas importantes, no sentido que o cinema inicialmente instituiu: agora elas
penetram, interferem e interagem, de forma inaudita e própria, na vida de todos
e de cada um. Em escala muito maior e numa proximidade, numa intimidade,
poderíamos dizer, inédita. E é nesse campo, hoje o mais importante, que a
direita, mesmo que superficialmente, parece ter uma dianteira.
E os cineclubes?
Os cineclubes não surgiram nos anos 20, como afirma
quase que um consenso – no entanto desinformado e equivocado -, mas junto com o
cinema, no processo de luta pela apropriação dos sentidos produzidos pela nova
linguagem, na afirmação da nova mídia. À medida que o público se formava
(processo que se consolida por volta do final da primeira década do século 20),
também evoluíam suas formas de resistência ao cinema que se organizava para dar
mais lucro e melhor entreter e controlar as massas que ele, ao mesmo tempo,
ajudava a formar.
Descontente com um cinema que, em síntese,
representava sua alienação e dominação, uma parte importante do público
resistia a procurava formas próprias de organização como sujeitos,
protagonistas do processo de produção do dispositivo do cinema. Insatisfeitos
com os filmes que lhes eram apresentados, grupos (sobretudo de militantes
socialistas, anarquistas, feministas) produziam seus próprios cinejornais,
documentários e mesmo ficções, e alugavam salas, ou usavam as das organizações
de trabalhadores, para sua apresentação. Também no final da primeira década do
século, consolidam-se iniciativas do tipo que hoje reconhecemos como
cineclubes: com estatutos democráticos e salas próprias e mais permanentes de
exibição, além da produção de filmes. Essa luta criou o que chamo de paradigma
cineclube: uma organização exemplar - uma instituição, constituída inclusive
juridicamente - para a apropriação do cinema de forma coletiva e democrática,
não capitalista. Essas mesmas características se encontrarão reproduzidas em
todas as outras formas de organização em torno do cinema – e hoje no campo mais
amplo das mídias audiovisuais - que têm origem no público, e não na estrutura
industrial, capitalista, do cinema e das mídias audiovisuais.
Nos anos 20, o cineclubismo, como ideia de organização
integral de apropriação do cinema pelo proletariado, se fragmentou, dando
origem a várias instituições: o cinema educativo, o cinema amador, os festivais
e arquivos de filmes, e mais tarde (já nos anos 50) o ensino universitário do
cinema.
A fragmentação do primeiro modelo de cineclube deu
origem a uma forma nova e dominante de cineclube: uma organização limitada em
grande medida à recepção dos filmes. A cinefilia, ou a recepção crítica do
cinema, herdou parte da tradição já estabelecida: a organização coletiva,
democrática e a ausência de finalidades comerciais. Ela teve importante papel
na disseminação e mesmo na constituição de uma cultura cinematográfica, em boa parte
crítica, nos mais diferentes países. Mas também elitista e paternalista, muitas
vezes calcada na valorização absoluta do autor e, em contraposição, numa visão
paternalista e até preconceituosa em relação ao público. De certa forma,
estabelecia um modelo hierárquico, estamental ou de castas: havia o autor,
objeto de culto; o cinéfilo, especialista, esclarecido, e o público, ignorante,
a ser dirigido, “alfabetizado”. De qualquer forma, esse modelo cinéfilo se
expandiu por praticamente todo o mundo, sendo talvez o principal instrumento de
formação de culturas cinematográficas – marcadamente nos países periféricos,
como o Brasil – contraditórias: ao mesmo tempo críticas e progressistas, mas
simultaneamente elitistas, e concentradas nos ambientes intelectuais e
universitários.
Com a televisão e outras formas de reprodução da imagem
em movimento - VHS, DVD, etc. -, que hoje podemos situar como prenúncios da revolução
digital, aquele modelo da cinefilia entrou em processo de crise. De fato, todo
o dispositivo social do cinema entrou em crise. O cineclubismo, em primeiro
lugar, diminuiu enormemente nos países centrais (anos 50); e um pouco mais
tarde, na periferia do sistema. Na América Latina, as ditaduras dos anos 70 e
80 interferem de forma diferenciada nesse processo. O Brasil, particularmente,
teve um movimento cineclubista bastante atuante até a segunda metade dos anos
80 e importantes cineclubes “independentes” até os anos 90. De toda maneira, os
muitos cineclubes que ainda existem em todo o mundo baseados naquele modelo cinéfilo,
limitado à exibição e debate de filmes considerados especiais ou mais
relevantes, constituem o que Raymond Williams chamou de formas residuais de
cultura: práticas que já não correspondem aos interesses e necessidades do
público contemporâneo e apenas refletem modos e formas, em grande parte
superados, de organização da comunicação pelo que chamamos de “imagem em
movimento”.
Isso porque o cinema morreu, metaforicamente. Apenas
de certa forma, claro, é preciso frisar. O cinema – na verdade o filme de
ficção ou documentário (excluindo todas as outras formas de cinema) exibido em
sala escura para um grupo de espectadores relativamente pequeno – já não é o
formato ou o espaço mais relevante, nem economicamente nem quanto à
participação do público. O espaço simbólico disputado pelos setores populares é
o espaço das mídias: a televisão, o computador, os celulares. O modelo cinéfilo
não (se) dá conta das mídias, não integra as mídias. O cineclubismo – como
outras instituições geradoras de valores, outros aparelhos de hegemonia – corre
o risco de morrer, como o cinema “morreu”. Ou definhar numa relativa
irrelevância cultural e social, limitado a públicos muito reduzidos e a setores
da sociedade que não são tão fundamentais nem para o próprio cinema nem para a
transformação da sociedade. É preciso um novo tipo de cineclube, para novos
tempos e novos desafios.
O cineclube no terceiro turno (no Brasil e no mundo)
Os cineclubes em todas as suas formas – o cineclube
revolucionário do início do cinema; o cineclube da cinefilia que se espalhou
por todo o mundo; o cineclube educativo que se disseminou pela educação formal
e informal; os clubes de cinema voltados para a produção amadora, entre vários
outros – influenciaram, em maior ou menor grau, a cultura e a sociedade nos
diversos países e contextos em que existiram. Na análise que fiz mais no início
deste artigo, falei da necessidade absoluta de instituições sociais e
comunitárias que organizem, representem e deem expressão aos trabalhadores, à
grande maioria da população brasileira. Um novo tipo de cineclube deve ter a
capacidade de ser uma dessas instituições. E acredito que o cineclube pode
realmente ter esse papel e uma importância fundamental nestes tempos de
centralidade das mídias audiovisuais.
Para isso, o primeiro e indispensável passo é o
reconhecimento e superação do isolamento de classe do cineclubismo. Esse
fenômeno não é brasileiro, mas mundial. Sua forma é que tem características
próprias. E estas não se devem exclusivamente – e talvez nem principalmente –
aos animadores dos cineclubes existentes. Em boa parte, explicam-se pela
própria estreiteza de muitos setores populares, naquilo que Francisco Foot Hardman
chamou de “estratégia do desterro”: uma desconfiança anti-intelectual, uma
espécie de “purismo de classe” que apenas revela a permanência de uma
incapacidade de interagir e dirigir setores mais amplos da sociedade – condição
necessária para construir uma nova hegemonia. Nos cineclubes que ainda operam
sob o modelo cinéfilo, mas que não satisfazem, de alguma forma, seus
integrantes, é necessário ter a capacidade de reconhecer a realidade: que não
conseguem reunir um número significativo frequentadores, são incapazes de
manter uma atividade mais intensa que as poucas exibições mensais ou
quinzenais, ou que, nos espaços virtuais, atingem ainda menos pessoas. Intelectuais,
professores, estudantes universitários e cinéfilos que não habitam torres de
marfim precisam procurar as organizações populares para nelas e com elas
construírem cineclubes. As escolas de ensino básico e médio – através dos seus
professores e alunos - devem se articular, integrar e atuar conjuntamente com
as organizações comunitárias de seus bairros e cidades. Os sindicatos,
associações comunitárias e movimentos populares precisam também, por sua parte,
procurar educadores, intelectuais, artistas e técnicos progressistas, ligados
às causas e projetos populares, para ajudarem a organizar e manter cineclubes
em suas sedes, ocupações, acampamentos, e formar, num espírito solidário, não
paternalista, os cineclubistas desse novo tipo. Também é necessário inventar e
expandir o modelo de organização e ocupação de espaços: cineclubes podem ser instalados
nas proximidades de igrejas, quartéis, e outras instituições que atraiam ou
reúnam grupos normalmente afastados ou excluídos de formas de entretenimento
mais crítico ou de formação mesmo. E mais, cineclube não é uma atividade
eventual, um encontro cultural mensal: nesta época de presença permanente e
ubíqua dos celulares, o cineclube deve ser uma organização complexa, que também
esteja presente na dimensão cotidiana e virtual do seu público.
Uma revolução, entretanto, no seu sentido mais pleno,
não é feita por entidades culturais ou educacionais. Certamente também não é
resultado de eleições, especialmente da forma como são realizadas hoje no
Brasil e em outras “democracias ocidentais”. São muitos os exemplos – e os
nossos são bem recentes – de governantes progressistas eleitos e logo
derrubados pela violência fascista (Salvador Allende, no Chile) ou por ardis
“parlamentares”, como aconteceu com Fernando Lugo, no Paraguai, e com Dilma
Roussef no Brasil – ou pela combinação dos dois, como com Evo Morales, na
Bolívia. Mas também não acontece “nas ruas”, exceto em estágios muito avançados
de luta, quando esse tipo de manifestação é geral, avassalador, impossível de
ser detido. Mesmo assim, geralmente isso acontece em combinação com outras
ações – sobretudo a greve geral. A mobilização para uma transformação radical
da sociedade precisa ser conduzida por uma direção política capaz de liderar a
edificação das novas instituições que vão constituir uma nova sociedade. Essa força
de mobilização ampla e radical e a capacidade de formar uma direção experiente
e capaz é produto da combinação necessária de todos esses níveis de ação e
organização. Cada um deles é essencial, mas só em conjunto podem produzir uma
transformação radical e plena.
No Brasil é bem evidente a falta – e como já disse, o
recuo histórico – de instituições culturais e formativas. Mas não falo das que
querem ensinar alguma coisa ao povo ou ao público, que querem transferir uma
cultura decorativa, pretensamente apolítica, inócua. As organizações que nos
interessam aqui precisam estar do lado da grande maioria da população, da
classe trabalhadora, e desenvolver com esse público, coletivamente, um projeto
de emancipação. Não me canso de lembrar do Cinema do Povo, criado na França em
1913, e que propus fosse considerado “o primeiro cineclube”, devido à documentação
bastante completa que mostra essa condição. Seu lema, válido até hoje – mais de
um século depois - para os cineclubes engajados nas causas populares:
“Divertir, instruir, emancipar”. É preciso atuar nessas três instâncias.
O cineclube de novo tipo
Com a crise, que já mencionei, do modelo predominante
de cineclube, o cineclube cinéfilo, várias de suas características passaram a
se desestruturar. Creio que o Brasil, pelas muitas vicissitudes que este artigo
já mencionou também, é possivelmente o país onde esse processo foi mais longe.
Hoje não existe praticamente por aqui um cineclube organizado formalmente, com
regras de participação e projetos de atuação deliberados democraticamente, e
direções eleitas regularmente. A própria palavra cineclube em seus usos mais
correntes, passou a designar apenas uma atividade - a exibição de um ou mais
filmes (no caso dos curtas-metragens) acompanhada de debate ou palestra – e não
a instituição organizada. Fala-se em “fazer um cineclube” a tal hora, em tal
lugar; não em organizar um cineclube, permanente, sistemático, representativo.
O que, a meu ver, indica uma desestruturação do modelo
“tradicional” de cineclube, de resto presente também em vários outros tipos de
organizações culturais, educativas e políticas, é muitas vezes explicado como
“informalidade” e “horizontalidade”. Haveria que se acrescentar também “gratuidade”
para descrever completamente o que não é propriamente um modelo organizativo
mas, bem ao contrário, um exemplo de incapacidade de organização institucional
e democrática e, complementarmente, de sustentação de maneira autônoma de
iniciativas estruturadas e representativas de comunidades organizadas.
Corolários dessas características, as iniciativas aqui citadas são geralmente
de grupos bem pequenos – e uma parcela significativa é mesmo exclusivamente
individual – realizadas com grandes intervalos, frequentemente mensais e
bastante precárias quanto a recursos, instalações e equipamentos.
A grande maioria dos cineclubes que assim se denominam
no Brasil e, entre eles, os de maior organização e assiduidade, está instalada
nas universidades. A instituição e os programas de verbas e bolsas de extensão acadêmica
também são um elemento fundamental para a manutenção dessas atividades. É
nesses ambientes, sem dúvida, onde melhor se realiza a proposta de exibição de
filmes de alguma forma “alternativos” e a discussão de suas características
estéticas, narrativas, políticas, entre outras. Há alguns cineclubes que são
mesmo oficiais, mantidos por uma universidade e dirigidos por professores
alocados também nessa função; estão entre os mais ativos e influentes.
Nos anos 70 e 80, num contexto de fortalecimento da
sociedade civil contra a ditadura militar, os cineclubes se reconheciam e se estruturavam
como um movimento social e cultural e se organizavam também em comunidades
populares, junto a movimentos sociais – inclusive étnicos e de gênero – e
alguns sindicatos. Com os dois governos de Lula e a criação do programa Cultura
Viva, depois seguido pelo Cine Mais Cultura (exclusivo para a exibição), o
governo investiu bastante em seus projetos de exibição de filmes brasileiros em
comunidades populares – mas já sem as características organizativas dos
cineclubes do século passado. Depois dessas duas experiências, em seus momentos
históricos, o cineclubismo de certa forma refluiu para o tipo de inserção
social que (sempre) tivera até o início da Ditadura – e que tem em quase todo o
mundo: nas classes médias cultas.
Um novo modelo de cineclube, penso, consistirá na
recuperação das características democráticas e anticapitalistas que definiram o
paradigma cineclube desde seu surgimento até a crise iniciada no terço final
do século 20. Esse paradigma, que informa e influencia todas as outras formas
de organização com origem no público, consiste na forma coletiva e democrática
de organização e na ausência de finalidade de lucro, isto é, de apropriação
privada dos resultados econômicos que a organização eventualmente produzir. O
objetivo desse paradigma de organização é a apropriação integral do cinema pelo
público organizado. Esse modelo, contudo, só será realmente novo – será a atualização
da proposta cineclubista - se incluir em sua organização e propósitos a
articulação com as mídias audiovisuais, sendo o cinema “apenas” uma delas,
ainda que uma espécie de paradigma ele também, nas bases das inovações e
diferenciações nas linguagens desenvolvidas em outras mídias.
Recompor e atualizar a proposta cineclubista de
organização integral para a apropriação das mídias audiovisuais pelo
público, na perspectiva de transformação democrática radical dos processos de
expressão, comunicação e informação, bases estruturais de uma sociedade livre e
justa. Em outras palavras, cineclube não pode mais ser cinefilia, no sentido de
culto elitista do cinema. Mas também não pode ser “exibição e debate” que, no
fundo, exprime objetivo semelhante. As tecnologias digitais, a difusão global de
conteúdos e as perspectivas, em sua maior parte não realizadas, de
interatividade - isto é, participação -, permitem a reconstituição da totalidade
do processo produtivo da expressão audiovisual sob a forma do paradigma
cineclube. A produção, a difusão, o consumo ou recepção, e a preservação da
memória, do patrimônio imagético das comunidades humanas pode hoje ser
integrado num mesmo processo, organizado num mesmo espaço social (comunitário):
o do cineclube. A divisão de trabalho capitalista, organizada por setores
corporativados (as “indústrias” de produção, distribuição e exibição), pode ser
superada pela organização integral, democrática, participativa, do público
informado e organizado, e pela sua intercomunicação planetária em redes livres
e públicas.
O novo modelo de cineclube deve integrar todas as
mídias num processo unificado de atividades orgânicas e críticas nos campos da
informação, da formação e educação, do entretenimento produtivo, da preservação
da memória e das identidades e da diversidade. Deve saber ocupar, organizar e
gerir as dimensões presenciais e virtuais de suas atividades. Articular a dimensão
comunitária, local, de base, e a dimensão social, planetária, em redes.
O objetivo político do novo tipo de cineclube, aquele que pode ajudar a construir uma novo modelo de comunicação e uma nova sociedade, é superar e substituir as instituições vigentes: alienantes, controladoras, de dominação. Em uma palavra: capitalistas. O objetivo político do novo tipo de cineclube é a substituição/superação das sala comerciais de cinema, das televisões e das redes sociais.
O objetivo político do novo tipo de
cineclube não é modesto, não é fácil e não é simples. É apenas indispensável.
Algumas referências no texto:
Freire, Paulo – Pedagogia do
Oprimido - https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Pedagogia-do-Oprimido-Paulo-Freire.pdf
Gramsci, Antonio. 2002. Cadernos
do Cárcere. 6 volumes. São Paulo: Civilização Brasileira – também
acessível na internet.
Maquiavel, Nicolau. 2019. O
Príncipe. Ed. Do Senado Federal (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/573552/001143485_O_principe.pdf)
Bakhtin, Mikhail (Voloshinov,
Valentin). 2014. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec.
(https://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Bakhtin-Marxismo_filosofia_linguagem.pdf)
Williams, Raymond. 2011. Cultura
e Materialismo. São Paulo: UNESP. (https://www.academia.edu/34926870/williams_raymond_cultura_e_materialismo_pdf)
Hardman, Francisco Foot. 1984.
Nem pátria nem patrão! Cultura operária e anarquista no Brasil. Ed. Brasiliense
(https://pdfcoffee.com/nem-patria-nem-patrao-francisco-foot-hardmanpdf-pdf-free.html)
Rocha, Glauber (dir.) O Dragão
da Maldade contra o Santo Guerreiro – 1969 - (https://www.youtube.com/watch?v=SSEnlffMB5s&t=695s)
DIEESE - Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (https://www.dieese.org.br/)