segunda-feira, 31 de maio de 2010

Cinema nas escolas, Cinemateca, salas de exibição, vale-cultura...

Alguns temas que me parecem importantes não têm sido objeto de muita discussão dentro do movimento cineclubista brasileiro. Ou, às vezes, são colocados já dentro de uma perspectiva definida, acabada, à qual só cabe a adesão ou o silêncio.

Mesmo a defesa dos direitos do público, no âmbito do movimento, tem mostrado tendência a se reduzir ou se confundir apenas com a questão da acessibilidade aos produtos audiovisuais – o caminho mais fácil, já que se identifica (ou se subordina?) aos interesses dos produtores brasileiros. Acredito que o acesso ao produto audiovisual brasileiro, de resto fundamental, não pode limitar a compreensão nem a dimensão da luta pelos direitos do público, pois isso equivaleria a compreender este último apenas, e mais uma vez, como objeto, como consumidor, como platéia. Os direitos do público incluem os instrumentos essenciais de organização, formação crítica e participação na elaboração, gestão e controle do que chamam de cadeia do audiovisual: produção, distribuição e consumo.

Os temas que abordo rapidamente a seguir fazem parte de uma problemática mais geral, mas não menos importante ou urgente, dos direitos do público. Não esgotam absolutamente o universo que interessa ao público ou ao cineclubismo. Mas estão sendo propostos, neste momento, nos campos em que a sociedade pode se manifestar. Acredito que o movimento cineclubista não deve se omitir.
A falta de debate pode levar à ausência de mobilização, à não participação no processo ou, pior, à subordinação e instrumentalização dos cineclubes e de seu público por outros interesses.

O ambiente eleitoral brasileiro, que favorece um pouco as preocupações com as grandes questões nacionais, e principalmente a aproximação da 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes, podem ajudar a criar uma boa oportunidade para a avaliação destes e outros temas. É bem verdade que nossas jornadas eleitorais têm, desde 2004, relegado as discussões programáticas a um papel secundário em relação à composição da chapa (tanto que o programa adotado é, até hoje, o de 2004). Mas este ano parece que chegaremos à Jornada com a composição da chapa já decidida, abrindo uma oportunidade única – que é a Jornada – para o aprofundamento de questões como as a que me refiro.

Este texto pretende ser uma contribuição a esse necessário debate.

Lei de cinema brasileiro nas escolas

A Comissão de Educação do Senado acaba de aprovar proposta do senador Cristovam Buarque estabelecendo a obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros nas escolas. “A única forma de dar liberdade à indústria cinematográfica é criar uma massa de cinéfilos que invadam nossos cinemas”, diz a justificativa do parlamentar (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/13153.pdf).

A luta pela defesa e/ou valorização do cinema nacional numa situação de ocupação imperialista do imaginário dos brasileiros (1) resultou numa espécie de vitória ideológica contraditória. Nas mentes dos produtores e realizadores, dos cineclubistas e da comunidade de ensino no campo do audiovisual, a compreensão da importância e primazia do cinema brasileiro para o conhecimento e comunicação da nossa cultura é coisa praticamente assente. Nossos melhores parlamentares também compartilham dessa visão geral. Mas, seja por uma certa tradição xenófoba ou pela predominância de uma ideologia estritamente comercial e/ou corporativista, que (como toda ideologia dominante) parece contaminar esses mesmos segmentos, a defesa do cinema brasileiro frequentemente se reduz ao modelo de disputa típica do mercado, não da cultura num sentido mais amplo – compreendida como resultante de múltiplas contribuições.

É indiscutível que o projeto do senador é positivo, mas é também surpreendente que um reconhecido especialista em educação baseie sua proposta principalmente na formação de platéias para a produção comercial brasileira. A proposição, que sugere simplesmente o acréscimo de um parágrafo ao artigo 26º. da lei de diretrizes e bases da Educação, deixa em aberto a forma de integração ao processo pedagógico de cada estabelecimento de ensino. Ou seja, não estabelece nem métodos nem formas nem recursos para esse entrosamento. Ora, sem uma boa regulamentação, corre o risco de constituir-se em apenas mais um espaço cativo para a produção (Qual produção? Curta? Longa? Ficção? Regional ou “global”?) e/ou um mero intervalo de lazer no período escolar.

Acredito que o projeto tem o mérito de colocar em pauta a questão da relação do audiovisual com o ensino e com a formação da cidadania. O movimento cineclubista deve, portanto, encontrar formas de articulação para apoiá-lo, mas aproveitando a oportunidade para aperfeiçoar a proposta, garantir uma regulamentação que dê conta dos inúmeros aspectos indispensáveis que não estão contemplados ou acrescentando, com articulação parlamentar, iniciativas (legais ou de programas) que o complementem.
O que não devemos é nos omitir. A Educação é um elemento e um campo essencial da própria idéia de cineclubismo e esta questão deveria ser oportunidade para uma verdadeira campanha do movimento, dentro das noções mais amplas dos direitos do público.

Quando diretor de Formação do CNC, preparei um projeto para a realização de um primeiro Seminário de Cinema e Educação - Cineclube, Escola, Comunidade (2) . Ainda acredito que ele seja uma necessidade e uma ferramenta – aperfeiçoável - para o aprofundamento das questões referidas no próprio nome do seminário. Questões que não podem ser reduzidas à formação de platéia para o cinema brasileiro, mas que correspondem à formação de cidadãos (o público) conscientes e livres. O seminário ainda é uma necessidade pois é preciso, antes de mais nada, reunir não apenas os cineclubes, mas todos os setores interessados e com experiência nesse campo, para localizar e aprofundar as questões referentes às relações entre cinema e educação. Que, em princípio, se articulam em torno de alguns aspectos principais: a) o audiovisual como recurso pedagógico, b) o ensino do cinema como forma de expressão, c) a formação dos professores, e d) O cineclube como instituição de autoformação do público e integração entre escola e comunidade.
Sem esse enfoque mais amplo, sem incluir qualquer um desses quatro eixos, qualquer proposta de exibição será precária e efêmera. O cineclube é a forma superior de formação do aluno, integrado ao ensino, à vida escolar, à comunidade e à sociedade.

Como infelizmente ainda não foram divulgadas as conclusões da Pré-Jornada realizada em Santa Maria (RS) há vários meses, não conheço a proposta de temário para a Jornada. Mas acredito que este tema geral deva estar incluído. Estou propondo que ele seja integrado a uma perspectiva de discussão e de apoio crítico à proposição do senador Cristovam Buarque – que deve ser encaminhado desde já, pois ainda faltam quase 4 meses para o nosso congresso bienal. Proponho ainda que a realização do Seminário Cinema e Educação seja uma proposta a ser discutida em vista do programa da próxima direção do Conselho Nacional de Cineclubes e aproveitando a presença na Jornada de representantes dos setores públicos, assim como de diferentes cidades, que podem manifestar interesse e aportar recursos para sediar tal evento.

Cinemateca Brasileira

Um abaixo-assinado de iniciativa da ABD paulista circulou nas listas conviviais cineclubistas. Trata-se, essencialmente, de uma reivindicação por melhores condições de acesso a imagens, para pesquisa e produção, entendendo-se acesso como conhecimento do acervo, mas também como política de preços para o uso dessas imagens em outros filmes. Sou absolutamente solidário com a movimentação dos cineastas. Mas acho que, para os cineclubes (além do seu interesse como realizadores também de filmes e eventuais compradores de “direitos”) há mais que isso a discutir. E um dos méritos da ABD paulista é ter tido a coragem de propor essa discussão.

A Cinemateca Brasileira é o arquivo nacional da memória cinematográfica e audiovisual brasileira. É uma instituição pública, mantida pelo governo federal com nossos impostos. De fato, apenas no governo Lula a Cinemateca passou a receber os recursos necessários para esse tipo de arquivo – pela primeira vez desde o tempo em que o acervo do Clube de Cinema de São Paulo deu origem à Filmoteca do Museu de Arte Moderna, depois Fundação Cinemateca Brasileira, em 1957. É, como quase todas as cinematecas do mundo, a nossa também teve origem num cineclube. E hoje a Cinemateca está entre as mais bem aparelhadas do mundo.

Mas, desde o falecimento de Paulo Emílio Salles Gomes, a Cinemateca foi se afastando do movimento cineclubista, a ponto de atualmente ser-lhe francamente hostil. Apesar de ser uma instituição pública nacional, por sua especialização e pela sua história particular, a Cinemateca tem características de uma corporação fechada, um monopólio e um cartório de documentos dirigido por uma espécie de casta diferenciada que, sempre que pode e no que lhe interessa, foge à orientação do próprio governo. Como a carta da ABD demonstra, a Cinemateca não facilita a pesquisa pública, não estimula o acesso à memória imagética e se comporta como dona (não como conservadora) de um acervo que é patrimônio público.

Para os cineclubes e para o público em geral essa disposição – ou falta de – se manifesta principalmente no campo da difusão. A cinemateca tem como “política de difusão” a maior restrição possível à circulação de seu acervo – de resto praticamente todo ele fora de risco do ponto de vista da preservação (que seria a única razão válida para sua não difusão, como foi durante anos). Exceto quando exibido em suas próprias salas. Localizada em São Paulo, apesar da riqueza incomparável de sua programação, a Cinemateca tem um perfil relativamente baixo de acesso de público.
Totalmente equipada para qualquer operação de transferência de suportes, a Cinemateca mantém seu acervo quase que exclusivamente em 35 mm (3) e também cobra caríssimo pelo empréstimo das cópias nessa bitola, mesmo quando autorizada pelos legítimos detentores dos direitos dos filmes, que apenas os depositam na instituição, não cedem os direitos. Ora, tal “política de preços” não se justifica diante nem dos aspectos legais nem das fontes de manutenção da entidade, providas pelo Estado.

A Cinemateca, como principal parque técnico audiovisual do governo, é responsável pela elaboração das cópias da Programadora Brasil – que sintomaticamente opera em separado: é outra instituição, em outro estado. Mas a constituição dessa operação foi uma imposição bem difícil do MINC à Cinemateca que, dessa vez, não pôde fugir da diretriz. Fundamentalmente pela pressão da demanda do programa Cine+Cultura (com o qual a Cinemateca está em guerra praticamente aberta) e dos cineclubes, a Programadora Brasil organizou um acervo muito interessante de filmes. Em relação ao acervo e à capacidade da Cinemateca (4), porém, esse acervo é muito pequeno.
E, tal como no item anterior, sobre as escolas, a questão da formação audiovisual do público não pode se confundir nem se limitar apenas à produção brasileira. A Cinemateca tem em seu acervo, ou pode complementar através de intercâmbio com as cinematecas de todo o mundo, uma amostra extensa da história do cinema mundial e de todas as suas tendências e movimentos.

Assim, acredito que o tema Cinemateca, isto é, o arquivo nacional de filmes do governo, é outro assunto a ser debatido pelo movimento, inclusive recuperando propostas que perambulam inutilmente até agora em projetos mantidos nos computadores dos seus autores ou discutidos em grupos de trabalho reunidos ocasionalmente, mas que não têm sido objeto de mobilização dos cineclubes nem - ou portanto - de consideração pelo Estado, neste caso no plano federal.

Proponho então a discussão, para efeitos de programa para a próxima direção do movimento, de uma política (pública, a ser negociada com as instituições públicas, mas também interna, do movimento e do CNC – que ainda tem uma diretoria com esse nome) de formação de público cinematográfico (5). A FICC, por exemplo, costumava organizar uma pesquisa dos 100 filmes mais importantes da História do Cinema. A partir dessa idéia, propusemos várias vezes a organização de um “pacote” com a História do Cinema Mundial – com um número de filmes a determinar (acho que considerando uma leitura mais moderna, com a história da formação do público, o curta metragem, o documentário e tantas cinematografias nacionais, esse número devia ser pelo menos de 200 programas) – a ser disponibilizado para os cineclubes (através da efetiva organização da Filmoteca Carlos Vieira, o que já é outra discussão) e outras entidades sem fins lucrativos – e agora escolas, dado o projeto do Senado. Além de se destinarem a entidades sem fins lucrativos, esses filmes seriam, em grande número, anteriores a 1940 e, portanto, de domínio público. Os custos disso tudo são absolutamente razoáveis.

Esse pacote poderia ser a base de uma ou mais séries de programas da TV Brasil – em que a História do Cinema Mundial incluiria destacadamente o cinema brasileiro, via Programadora Brasil ou novas cópias – objetivando a formação do público. É claro que essa iniciativa também pode ser implementada sem a colaboração da Cinemateca

Na França, um projeto que deverá estar implantado a partir de setembro deste ano aproxima os dois temas tratados acima. Com o programa Cinélycée, cada escola francesa deverá ter um cineclube e acesso a um acervo digital de filmes importantes, franceses e de todo o mundo. Um(a) professor(a) receberá um bônus para orientar a iniciativa, coordenada por um conselho de estudantes. Os alunos também poderão interagir na internet, tanto na escolha dos filmes como nos comentários. O projeto é patrocinado pelas televises públicas e pelo ministério da Educação: http://www.cinelycee.fr .

Salas de exibição

Desde meados do ano passado a imprensa tem tratado de projetos da ANCINE visando a criação de salas de cinema. Em setembro do ano passado apresentei uma consulta à diretoria do CNC sobre o tema, mas nem o colegiado nem qualquer diretor individualmente teve oportunidade de considerar minhas questões. O assunto não está sendo considerado pelo movimento, mas me parece ser do maior interesse do público e dos cineclubes. O objetivo declarado da ANCINE é mudar completamente o chamado parque exibidor brasileiro (que tem cerca de 2.100 salas concentradas nos estados e cidades mais ricas) com o acréscimo de 2.934 salas em quatro anos.

De acordo com matéria publicada no jornal carioca O Globo há cerca de um mês ( http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2010/04/16/programas-do-governo-federal-para-construcao-de-salas-de-cinema-estao-atrasados-ou-longe-das-metas-916357149.asp ), são dois projetos: o Cinema Perto de Você traria um aporte de 400 milhões de reais do Fundo Setorial do Audiovisual (não confundir com Fundo do Audiovisual Cultural, previsto na reforma da Lei Rouanet) para a construção de 600 salas de cinema, 150 delas este ano. O projeto que deveria ser iniciado em janeiro ainda está “apenas no papel”, segundo o jornal. O outro é o Cinema da Cidade, que pretende criar duas salas pelo menos em cada um dos 1.177 municípios brasileiros com população entre 20 mil e 100 mil habitantes. Este projeto deve ser financiado por emendas parlamentares. Em cerca de 8 meses, “apenas quatro emendas foram apresentadas: o deputado Sergio Barradas Carneiro (PT-BA) pediu R$ 1,5 milhão para o município de Eunápolis (100 mil hab.), na Bahia; o deputado Raimundo Gomes de Mattos (PSDB-CE), R$ 750 mil para Irauçuba (20 mil hab.), no Ceará; o senador Antonio Carlos Magalhães Jr. (DEM-BA), R$ 150 mil para Caculé (20 mil hab.), na Bahia; e a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, R$ 3,4 milhões para cidades brasileiras através de um edital que deve ser organizado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine)”.

Não vou entrar aqui numa discussão mais técnica desses projetos, que considero inviáveis sob qualquer ponto de vista – podemos examinar isso em outra oportunidade, se alguém se interessar. Mas gostaria de levantar o significado político que tais iniciativas, e/ou a falência dessas iniciativas, têm para o público brasileiro e para os cineclubes.

Praticamente todo cineclubista conhece as estatísticas mais gerais sobre acesso a cinema no Brasil: o preço elevado, a concentração de salas, a exclusão do público e de qualquer cinema – inclusive o brasileiro - que não interesse aos distribuidores hollywoodianos. Este modelo de cinema (6) está ligado a uma política de exploração do mercado mundial e vigora em todos os países em que o cinema de Hollywood é dominante, isto é, o chamado Ocidente - que neste caso inclui a América Latina – e uma parte importante da Ásia - mas excluindo Índia e China, entre outros, e a maior parte da África.
A impraticabilidade dos projetos da Ancine está justamente no fato de que ela não questiona esse modelo, antes procura aderir a ele. Mas não é possível sustentar a exibição nos moldes comerciais em cidades com menos de 100 mil habitantes (senão o mercado as teria feito). No entanto, os projetos – até aqui – propõem a criação de salas tradicionais, com um investimento (proporcionalmente às realidades locais) extremamente elevado; a manutenção da circulação, equipamentos, cópias, pessoal, etc, também é muito cara (mesmo aceitando a utilização marginal de tecnologias digitais, a Ancine os inscreve na lógica do modelo – até para não concorrer com as salas 35, preferenciais na visão da Agência). Para a Ancine, os operadores locais dessas salas deverão ser empresas privadas, que se beneficiariam do aporte financeiro público e de isenções fiscais no município.

Ora, o movimento não se posicionou em momento algum. O CNC não entrou – que se saiba – em contato com a agência para participar de qualquer forma da elaboração desses projetos. No entanto, os cineclubes poderiam ser o grande canal de viabilização desse tipo de ação, evidentemente após modificações e adaptações importantes, em especial a adoção de tecnologias digitais, que barateiam incrivelmente todo o processo.

Acredito, portanto, que esse é um tema urgente, que exige discussão e posicionamento do movimento e de sua entidade representativa. Sob pena de dilapidação de recursos preciosos e da reiteração de políticas de exclusão do público e da sociedade. Quando será aberto esse edital de 3,4 milhões? Que modelo de sala será financiado? Quem poderá participar? Como a comunidade pode controlar? Essas decisões estão sendo tomadas neste momento, e o movimento não está tomando nem conhecimento nem posição.

Mas, além de urgente, é uma política que pode(ria) criar mudanças e oportunidades importantes na relação do público com o cinema no Brasil, um tema permanente que – tendo os projetos da Ancine e, por outro lado, o Cine+Cultura como exemplos concretos – deve ter atenção e espaço na 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes.

Penso que o movimento deve se mobilizar para a democratização desse debate junto a movimentos e organizações sociais e populares, que também precisam ser ouvidos, além das classes artística e cinematográfica. Nesse debate público, a proposta do movimento cineclubista – e das entidades que a subscreverem – deve ser a criação de uma ampla rede de salas populares de cinema, com base em tecnologia digital, preços accessíveis, com qualidade e conforto, e sob controle da sociedade. Além de empresas – que por terem fins lucrativos tenderiam a ser pequenas, familiares ou de tipo cooperativado – essas salas devem ser abertas a associações sociais sem finalidade de lucro que, uma vez que recebem importantes subsídios públicos, devem ser sujeitas a controle por conselhos locais, municipais, com ampla participação da sociedade – associações e movimentos populares, empresários, técnicos, profissionais, etc – e, em especial, dos cineclubes, única instituição existente até hoje de representação do público de cinema ou audiovisual.

O programa Cine+Cultura também deve ser objeto de discussão, sendo a Jornada uma excelente oportunidade de avaliação dessa experiência que já terá dois anos na ocasião do nosso congresso. Mas aqui o objetivo maior é trazer assuntos que o movimento não tem discutido ou vivenciado, é abrir temas de debate.

Vale-cultura

Está para ser encaminhado para votação final o projeto de lei do Programa de Cultura do Trabalhador que, essencialmente institui o vale-cultura. Também este assunto aparentemente não interessou o movimento cineclubista. De fato, tampouco suscitou muito debate no restante da sociedade, inclusive e especialmente entre as entidades sindicais. Também na chamada classe artística – produtores e trabalhadores de empresas de teatro, cinema, edição, espetáculos, etc – a lei foi bem recebida como tal, sem grande discussão

Um exame superficial do projeto (http://blogs.cultura.gov.br/valecultura/projeto-de-lei/) mostra que operadores, beneficiários, usuários e recebedores são concebidos mais ou menos nos mesmos termos que outros projetos, tipo vale-refeição ou vale-transporte. O vale-cultura é um instrumento de facilitação de acesso a bens culturais no mercado comercial. Se bem aceito, deverá contribuir para aumentar a freqüência nos diversos tipos de empreendimento cultural previstos nos objetivos da lei. Talvez justamente por esses aspectos indubitavelmente positivos é que o projeto não tenha levantado maiores debates.

Ora, como os trabalhadores – mesmo que com “carteira assinada” – constituem parcela importante da população, e aqui claramente do público, acredito que o projeto também merece discussão por parte dos cineclubes. Dois aspectos aspectos principais me preocupam: um está na lei; o outro, ligado a ele, está nas consciências cineclubistas (e de outros ativistas culturais e entidades comunitárias).

O projeto do vale cultura tem por objetivo estimular o acesso à cultura e ao conhecimento através de produtos e serviços culturais, definidos no corpo do projeto. No entanto, como numa grande maioria de textos legais que se referem à cultura, esses “bens e serviços”, ao longo do projeto, vão sendo paulatinamente identificados com “fornecedores” comerciais e, no fim, a eles se limitam. Mas a maior parte da produção cultural no Brasil é produto de iniciativas individuais e/ou comunitárias, sem estrutura comercial. E é essa produção majoritária que também tem menos acesso a outras formas de estímulo e subsídio. É esse tipo de cultura que tem, por tradição e identificação, uma relação mais próxima com suas comunidades, e com os trabalhadores. Não quero excluir outras formas aqui, mas destaco a exclusão destas. É como distribuir terras apenas para empresas, sem considerar as famílias camponesas.
Entre as ações não comerciais excluídas estão os cineclubes, que não se “qualificam” (em grande parte porque não se apresentaram) para receber o vale-cultura, para entrar nesse circuito.

Essa atitude, ou ausência de atitude, me parece ligada à concepção cada vez mais difundida – a ponto de parecer “natural” para os espíritos menos inquisidores – de que a atividade cineclubista deve ser gratuita.
É claro que há inúmeros casos em que os cineclubes não podem ou não devem cobrar ingressos. O problema é quando isso se torna o modelo preponderante e inquestionado. Fora das exceções já referidas, acho que essa concepção – embora possa parecer tão natural - é derivada essencialmente de uma matriz ideológica bem definida. Corresponde à visão comercial e atende aos interesses dos distribuidores (hollywoodianos) e exibidores comerciais de cinema.
Como o cineclube não é coisa séria, é marginal e minoritário – por pressuposta natureza – deve ser mantido paternalmente pelo Estado ou pelas empresas e, portanto, ser gratuito. Não importa se “mantido”, na maioria dos casos, signifique ser mantido inclusive sem apoio, isto é, mantido em silêncio. Ou que seja mantido com um apoio mínimo.
Isso “mantém” os cineclubes no “seu lugar”, como atividade precária, efêmera, sazonal. Enquanto até prédios de apartamentos anunciam hoje em dia, entre os seus “plus a mais”, salas de cinema, o modelo para o povão é tela caindo, cadeira de plástico, exibição ao ar livre... De graça, até injeção no olho. Projeção precária tem que ser de graça. E como ela não gera nenhum recurso, continuará precária e de graça. Naturalmente. Circularmente.

Existem, entretanto, mil maneiras de assegurar uma sustentabilidade independente para os cineclubes. Na história do movimento, essas formas são, inclusive, as mais comuns. Estão consagradas nos estatutos de quase todos os cineclubes (que têm estatutos): quando dizem que o cineclube viverá “das receitas de suas atividades”, “das contribuições de seus associados”, além, é claro, de “doações e contribuições públicas ou privadas”. Ninguém é contra apoio, especialmente público; ele é praticamente indispensável. Mas não pode gerar dependência – e quando é a única fonte de recursos do cineclube, necessariamente gera dependência.

Por isso, provavelmente, os cineclubes não atentaram até agora para a oportunidade cidadã que pode representar o vale-cultura se aceito nos cineclubes – inclusive aproximando-os das empresas operadoras e beneficiárias.
Mas acho que ainda é possível apresentar pequenas emendas aos parágrafos do projeto de lei, assim como é viável criar iniciativas e uma cultura cineclubista de negociação com as empresas, especialmente no âmbito das comunidades, para estimular a freqüência e participação dos trabalhadores nos cineclubes.
Mas, para isso, as sessões do cineclubes, ou as mensalidades dos sócios, têm que ter um valor. E desse valor deve decorrer um projeto permanente de aperfeiçoamento das atividades do cineclube: melhor ambiente, melhor projeção, eventos, publicações, produção, pesquisa...

O projeto define o vale-cultura como “individual e intransferível”, talvez ele não possa beneficiar os familiares do trabalhador. É mais uma “promoção” que o cineclube poderia oferecer, associando, fidelizando o trabalhador e sua família em seu nome.

1 O movimento cineclubista encabeçou essa luta, desde a histórica Carta de Curitiba (8ª. Jornada, 1974), sobre a base do pensamento pauloemiliano, tão criticado atualmente por uma parte dos historiadores e críticos do cinema brasileiro. A Carta pode ser vista em http://cineclube.utopia.com.br/ , na rubrica Documentos e textos do cineclubismo brasileiro.

2. Se alguém se interessar, posso fornecer cópia do projeto original.

3. Estou ciente da importância desse suporte para a preservação. Mas a ausência de um acervo de difusão, de uma coleção para vulgarização, denota a falta de interesse no que deveria ser objetivo primário da instituição.

4. É verdade que aqui entra também em consideração a política de “direitos” da própria Programadora Brasil, que privilegia também (o estímulo a) a produção em detrimento (do conteúdo) da distribuição. Mas isso é outra discussão que extrapola este tópico.

5. A questão semântica é bem complexa. Falo em “público cinematográfico” porque estamos tratando de filmes de cinema. Ao mesmo tempo, como sabemos, a forma mais ampla para a sua divulgação é digital. As questões estéticas, semiológicas e outras, associadas à compreensão das imagens e sons, também já não é exclusiva do cinema, mas extensiva, problematicamente (isto é, com várias diferenças e particularidades), a todo o campo do audiovisual (televisão, jogos, internet, etc.). A formação do público não pode se reduzir à crítica do cinema, deve incluir todo o audiovisual; entretanto, para efeitos práticos, estamos aqui falando da Cinemateca e do acervo mais imediatamente accessível para as propostas em discussão. Isto não elimina a consideração dos outros aspectos, também fundamentais.

6. Ver Macedo, Felipe (2008). “O modelo brasileiro: um estrangeiro em nossas telas”. In Moraes, Geraldo (org.). O cinema de amanhã. Brasília, DF: Congresso Brasileiro de Cinema/Coalizão Brasileira pela Diversidade Cultural, p. 53-71. Se alguém se interessar, posso remeter o texto
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