domingo, 6 de maio de 2018


Pouco se escreve sobre cineclubes

O lançamento, muito em breve, do livro de Priscila Sales, Arte em movimento: a trajetória do Clube de Cinema de Assis, será uma contribuição importante para o conhecimento em um campo de estudos que, ao que parece, vem se consolidando em tempos recentes. A Priscila me convidou para escrever o prefácio, apresentando esse trabalho interessantíssimo que revê a trajetória de um cineclube do interior do estado de São Paulo, numa cidade importante, de forte tradição universitária. Em minha opinião, esse texto ilumina a compreensão do período histórico – dos anos 50 aos 80 – no Brasil, sob vários aspectos: da cultura e do cinema, da educação, da política. Muitas outras histórias de práticas culturais se reconhecerão na experiência do Clube de Cinema de Assis e nas reflexões que a autora propõe.
Apresento aqui o prefácio que fiz para o livro, sobrevoando um pouco a questão dos estudos sobre o público e sobre o cineclubismo:

Prefácio

No campo do cinema – teoria ou história do cinema - não se escreve muito sobre cineclubes. De fato, escreve-se muito pouco se considerarmos a influência que os cineclubes tiveram e ainda têm na formação de cineastas e outros profissionais, e sobre grande parte das instituições ligadas ao cinema: cinematecas, festivais de cinema, a crítica cinematográfica, os estudos universitários; o cinema amador, de vanguarda, documentário e até mesmo sobre grande parte dos cinemas nacionais, nos países que não têm uma indústria cinematográfica organizada, isto é, a grande maioria.

A historiografia do cinema ignorou por muito tempo diversos temas ou objetos de pesquisa - não apenas os cineclubes - que só começaram a ser “redescobertos” no decorrer da segunda metade do século passado. O cineclube foi um dos últimos, ou um dos mais recentes desses redescobrimentos. O “esquecimento” desses temas, o fato de a produção acadêmica ou institucional ignorar certos assuntos não é, em absoluto, neutro, e deve-se a várias razões. Mas a  principal é de caráter ideológico: diversos temas foram submetidos a um crivo de legitimidade criado e respeitado pela Universidade, reproduzido pela Imprensa e outras instituições sociais. Manifestações, práticas e instituições populares, tudo que não se exprime de uma maneira culta estabelecida como apropriada ficou, assim, de fora dos estudos cinematográficos por um longo tempo. Das manifestações orais no cinema mudo ao filme de família ou ao cinema amador; da pornografia à chanchada e inúmeras formas de comédia de todos os países; da mulher ao negro e todas as etnias em posição subalterna em diferentes sociedades, passando pelas orientações sexuais não hegemônicas, tudo isso foi considerado por décadas como vulgar, divergente, e ilegítimo como objeto. O público mesmo, paradoxalmente, só recentemente e/ou parcialmente foi reconhecido pelos estudos de cinema.

Parte desse esquecimento seletivo, os cineclubes têm características próprias que explicam sua exclusão de uma historiografia que, em todas as vertentes – mesmo as ditas progressistas – os ignorou durante praticamente todo o século 20. De fato, os primeiros trabalhos que começaram essa recuperação do cineclubismo como objeto válido de estudo são, concomitantemente, expressão clara de muitos dos motivos que mantiveram o tema desprezado. Estou falando dos livros de Christophe Gauthier[i] e Antoine de Baecque[ii], que lançaram as primeiras bases e iniciariam uma produção atualmente já importante de trabalhos sobre a cinefilia. Ou melhor, sobre uma concepção determinada de cinefilia, como apanágio dos connaisseurs, de especialistas capazes, segundo esses autores, de criar uma cultura – de fato uma subcultura – dentro de um protocolo composto de rituais comportamentais e de formas de expressão de um conhecimento próprio, traduzido em forma literária. E geralmente sob a tutela de uma personalidade totêmica: um artista, um autor, isto é, um realizador cinematográfico. Os cineclubes que incorporam ou corporificam essa cultura cinéfila são, assim, reconhecidos pela Academia porque esta pode identificar um autor e uma linguagem dita superior, a da escrita. Mas a imensa maioria dos cineclubes se caracteriza justamente pelo caráter coletivo e anônimo de sua organização, em que não se destacam personalidades – salvo exceções, claro – e pela inexistência de uma producão literária própria; o que mais caracteriza o cineclube é o debate em sua forma oral. Mesmo os boletins informativos ou as fichas de filmes que marcaram toda uma época do cineclubismo em todo o mundo eram, em sua quase totalidade, reproduções de textos de revistas e outras fontes externas. A introdução dessa cinefilia – e, por tabela, dos cineclubes - nos estudos de cinema, estabeleceu justamente uma abordagem, um corte elitista mais ou menos idêntico ao que motivava grande parte da exclusão do gosto pelo cinema (a cinefilia da pessoa comum) e dos cineclubes da História do cinema. Esses autores reconhecem os cineclubes de elite do final dos anos 20 (Gauthier) ou os círculos de cinéfilos do início dos anos 50 (De Baecque), que frequentavam a Cinemateca, algumas salas de arte e talvez uma dúzia de cineclubes em Paris – quando existiam cerca de 10.000 cineclubes na França.

Mas eles não ficaram de fora apenas por isso. Os cineclubes definem-se essencialmente por: a) serem associações entre iguais, de gestão coletiva e democrática, b) não terem fins lucrativos: ninguém se apropria privadamente dos resultados econômicos da atividade - se e quando estes existem – que devem ser obrigatoriamente reinvestidos na própria instituição, e c) terem como objetivo a apropriação do cinema, isto é, de serem instrumentos para o acesso, a fruição, a informação, o conhecimento, a formação, a preservação e expressão de identidades comunitárias, culturais, étnicas, etc., separadamente ou de forma combinada. Em outras palavras, o cineclube não tem dono, é propriedade coletiva, comunitária; não é uma atividade comercial, não é um empreendimento capitalista e, finalmente, é uma instituição criadora de valores (como diria Gramsci), uma ferramenta política para o autoconhecimento de todo tipo de comunidade, seja territorial, cultural, étnica ou de classe. Essas três características, exclusivas dos cineclubes quando todas reunidas, sempre foram motivo para mais que sua exclusão: para uma verdadeira e constante perseguição em toda a sua história e em todos os países. Os cineclubes são perigosos para as instituições hegemônicas em vários sentidos. O comércio do cinema, a chamada indústria cinematográfica, os vê como concorrentes a serem literalmente eliminados (apesar dos cineclubes sempre terem sido importantes formadores de público para o cinema em geral). Hoje, essa concorrência se apresenta travestida de supostos direitos autorais – quando se trata, na verdade, de direitos patrimoniais ou de propriedade industrial – como se não fossem justamente as grandes corporações cinematográficas as que mais sujeitam autores a abdicarem de seus direitos em negociações absolutamente desiguais. Os cineclubes sempre ameaçaram todas as igrejas e dogmas, e foram perseguidos por impiedade e imoralidade – justamente ao não acatarem a censura estabelecida por aquelas organizações. E os cineclubes sempre combateram – e seus membros e frequentadores foram por isso frequentemente presos e abusados – censuras, polícias e todas as formas de poder que cerceiem as liberdades e direitos em qualquer circunstância. A História do Cineclubismo, que nunca foi escrita, é também uma longa trajetória de exclusão, abandono e perseguição.

Outro aspecto negativo da cinefilia elitista é o de reforçar uma concepção já bastante arraigada de que os cineclubes surgiram nos anos 20 do século passado. Claro, tratava-se do modelo proposto: atividades bem elitistas, como as premières de filmes promovidas para divulgar as revistas de Louis Delluc, Ciné-club et Cinéa, ou os banquetes organizados por Ricciotto Canudo para debater os valores da sétima arte. Ainda que essas ações tenham sido muito importantes para valorizar institucionalmente o cineclubismo – e válidas em si pela valorização do cinema numa época em que ele precisava de reconhecimento – os cineclubes já existiam há anos. De fato, sua origem vem de práticas de organização operária e popular e de debates em torno de exibições de lanterna mágica, desde o século 19. Mas na segunda década do século 20 já existem em diversos países cineclubes organizados segundo as características que elenquei anteriormente, como um Working Class Theatre, de Los Angeles, ou o Cinéma du Peuple, de Paris, além de muitas outras iniciativas não documentadas ou menos estruturadas. O termo cineclube também não foi invenção de Delluc, como querem alguns, tendo sido usado já em 1907 para designar um grupo de profissionais de cinema que tinha por base o cinema Omnia Pathé, em Paris.

Os cineclubes, de fato, se constituíram em sua configuração definitiva – que surge simultanemente em vários países e se espalha pelo mundo inteiro – como uma forma de organização, uma instituição cuja finalidade é defender o público contra a manipulação e a exploração de um cinema (comercial) cujo objetivo é o lucro e a reprodução do sistema hegemônico. Ao mesmo tempo, procuram estruturar-se como contra-instituições – os espaços heterotópicos de Foucault, como lembra a autora deste livro -, como ferramentas de afirmação e expressão de identidade do público. O cineclube como instituição constitui uma forma paradigmática de organização que vai se aplicar ou influenciar fortemente na formação de várias outras instituições do cinema. A maioria das cinematecas do mundo surgiu de cineclubes; os primeiros e muitos dos principais festivais de cinema foram organizados por cineclubes; até os anos 70, pelo menos, praticamente todos os cineastas formaram sua visão do cinema nos cineclubes. Quase todos os movimentos estéticos do cinema surgiram dos cineclubes como o impressionismo francês, o neorealismo italiano, a nouvelle vague francesa, os cinemas novos do Brasil, da Inglaterra, da Tchecoslováquia, bem como o cinema experimental ou de vanguarda, um pouco em toda parte. No limite, nos países onde não existe uma indústria do cinema organizada, o que existe de cinema se organiza em torno ou se origina dos cineclubes. Hoje já há países ou regiões – inclusive no Brasil, onde 90% dos municípios não têm cinemas - em que existem mais cineclubes que salas comerciais. No outro extremo, os Estados Unidos são provavelmente o país com o maior número de cineclubes na atualidade: lá toda cidade tem a sua film society.

Por tudo isso, é tão estranho e ao mesmo tempo revelador que tão pouco se tenha escrito – ou refletido de forma estruturada – sobre os cineclubes. É forçoso lembrar, no entanto, que desde o final dos anos 50, os chamados Estudos Culturais – de Richard Hoggart, Stuart Hall, Raymond Williams, E.P. Thompson e outros – recuperaram a noção do papel do público e de suas instituições nas artes e no campo do audiovisual. A esses, seguem-se as autoras que, baseadas na tradição aberta por Emilie Altenloh, mas sobretudo pela exclusão das mulheres no terreno do cinema, aprofundaram a questão do público e de suas instituições, mas com uma ressonância muito mais ampla: Janet Staiger, Miriam Hansen, Annete Kuhn, entre outras. Mas esses estudos, de resto essenciais para a compreensão das relações sociais estabelecidas em torno do dispositivo cinematográfico, não abordam especificamente o cineclubismo.

O sesquicentenário da Liga do Ensino da França, comemorado em 2016, propiciou a organização de um colóquio importante em Paris sobre o que lá chamam de cinema educativo, uma ampla ação social com apoio estatal que, desde o final dos anos 20 até hoje, atua com cineclubes numa escala importante, com muitos milhões de espectadores por ano. Alguns trabalhos sobre o cineclubismo francês também apareceram neste período bem mais recente, que podemos chamar de atual.

O Brasil tem uma forte tradição de cineclubismo, que também vem desde o início do século passado, constituindo um movimento cultural que influenciou muito não apenas o cinema brasileiro, mas a cultura cinematográfica como um todo. Foi provavelmente o cineclubismo brasileiro que rompeu de forma mais evidente e profunda com o padrão elitista de cineclubismo herdado do modelo francês que, combinado com as práticas paternalistas patrocinadas  pela Igreja, criou um modelo que influencia até hoje cineclubes em todo o mundo. Contudo, por aqui também os cineclubes foram ignorados pela reflexão acadêmica. Pelo menos até o início deste século. Um levantamento que realizei recentemente[iii] revelou a existência de um bom número de artigos e trabalhos acadêmicos sobre aspectos bem diversos do cineclubismo em nosso país. O texto de Priscila Sales, que eu já havia descoberto antes, se destaca qualitativamente nesse conjunto, pela consistência e coerência com que determinou seu objeto e a abrangência que deduz da experiência do Clube de Cinema de Assis.

Contar a história de um cineclube pode não ter maior interesse para quem não participou ou conheceu a experiência. Mas aqui Priscila Sales consegue localizar e mostrar a importância de um cineclube como paradigma de uma organização da comunidade universitária inserida na realidade de uma cidade média do interior do estado, neste caso São Paulo. Ela revela como essa experiência estabeleceu uma rede de conexões culturais institucionais e informais que culminavam na formação – e na busca – do seu público. E como essa prática evolui em diferentes momentos e contextos igualmente emblemáticos da história recente do País. É uma história que vai muito além da narrativa factual. Mas, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais interessantes do trabalho que embasa este livro é justamente a prospecção, organização e análise dos fatos, através dos documentos que revelam essa trajetória, seja no que me parece ter sido uma verdadeira aventura de descobrimento, nos arquivos do cineclube e na revelação de um dossiê do cineclube na Cinemateca Brasileira, ou seja na articulação heurística desses componentes com a pesquisa na imprensa de Assis e em diversas outras fontes que a autora percorreu e integrou neste trabalho.

  Arte em movimento: a trajetória do Clube de Cinema de Assis não é apenas a recuperação da história do Clube de Cinema de Assis entre os anos de 1960 e 1983. É a exposição de uma experiência cultural, social e política de interesse e validade muito maiores. Sales localiza essa experiência no tempo de várias maneiras: na história do cineclubismo, que ela igualmente revela e valida, ao mostrar a integração do Clube de Cinema no processo histórico; no período complexo que articula o fim de uma época (do desenvolvimentismo, da mobilização popular, de um tipo de cineclubismo) e o percurso acidentado da ditadura e seus reflexos na universidade e na cidade; no cineclube e no movimento cineclubista, e no seu público, uma busca constante. Sua análise também dialoga permanentemente com a teoria, integrando o caso pontual numa reflexão ampla. Além de ser uma monografia exemplar de um tema que empolga – porque acredito que atinge a todos que se interessam por cinema, por cultura, por política em sua acepção mais ampla – é a restituição em profundidade de uma experiência que serve não de modelo, estático, mas de exemplo que se mostra vivo nas páginas deste trabalho. Exemplo em que muitas outras experiências se reconhecerão, do qual se podem tirar importantes reflexões gerais. Porque temos cerca de 6 mil municípios, quase 2.500 instituições de ensino superior e, nas grandes cidades, comunidades de bairro com traços identitários que encontram ressonância na experiência apresentada neste livro.

 Arte em movimento: a trajetória do Clube de Cinema de Assis é o resultado de uma pesquisa acadêmica séria e consistente mas, para mim, bem mais: é sobretudo um trabalho que consegue reproduzir uma experiência cultural de forma a apresentá-la como uma ferramenta para a compreensão do que é um cineclube. E por isso é também um estímulo para a reflexão, acadêmica e/ou informal, e para o engajamento cultural, para a atividade cineclubista.



[i] La passion du cinéma – Cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929. AFRHC – École des Chartes. 1999.
[ii] La cinéphilie – Invention d’un regard, histoire d’une culture, 1944-1968.Fayard. 2003 (Existe edição brasileira)
[iii] Bibliografia cineclubista brasileira (2000/2017) – disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2017/10/reuni-aqui-os-principais-textos.html